O exame cardiovascular na prática do desporto Cardiovascular screening of competitive athletes JA Duarte, CIAFEL, Faculdade do Desporto da Universidade do Porto. Correspondência: José Alberto Duarte CIAFEL, Faculdade do Desporto da Universidade do Porto Rua Dr. Plácido Costa, 91 4200-450 Porto email: [email protected] Telef: +351225074784 Fax: +351225500689 Resumo A ocorrência de morte súbita num atleta, apesar de rara, constitui um acontecimento trágico com grande repercussão social. Existem relatos da sua ocorrência desde há longos anos e tudo indica que este tipo de morte induzida pelo exercício irá continuar a ocorrer no futuro, fruto da reduzida prevalência das patologias cardiovasculares subjacentes e da sua baixa expressão clínica, da necessidade de exames sofisticados para a sua detecção e, consequentemente, das limitações económico-financeiras para a implementação destes exames a grandes massas populacionais praticantes de modalidades de alta competição. Apesar destas limitações, prevê-se que a incidência da morte súbita de origem cardíaca no jovem desportista tenda a diminuir com a realização, no exame médico-desportivo, de histórias clínicas e exames físicos mais direccionados para as patologias cardiovasculares em causa e, principalmente, com a prescrição do electrocardiograma de repouso como exame complementar de rotina para todo o exame médico efectuado num âmbito desportivo. Abstract Sudden cardiac death in athletes, although rare, is a tragic event with large social repercussions. It is impossible to fight efficiently this type of death induced by physical exercise because of the existence of several restrictions such as: i) the reduced incidence of the underlying cardiovascular pathologies in population, ii) the minor clinical expression of those diseases, iii) the necessity of sophisticated examinations for their diagnose and, consequently, iv) the economic and material resource restrictions to implement those exams to large populations of athletes. Despite those limitations, the accomplishment of well-straight cardiovascular screenings and the routine prescription of a rest electrocardiogram seems to be efficient procedures to decrease the incidence of sudden cardiac death the in young athlete. Palavras-chave: Atleta, Morte súbita, Doenças cardíacas, Avaliação do risco Key words: Athlete, Sudden cardiac death, Cardiac diseases, Risk assessment 1. Introdução Todos os anos, crianças e adolescentes morrem de forma súbita em consequência de um comportamento de alto risco: o exercício físico intenso (5, 14, 18, 23, 32). De facto, a prática organizada de exercícios físicos associados aos desportos de alta competição, onde os jovens atletas superam muitas vezes os seus limites físicos na tentativa de melhorar o seu rendimento, faz com que o risco de morte súbita nestes indivíduos seja cerca de 2,5 vezes superior ao observado nos adolescentes e adultos jovens em geral (5) . A morte inesperada destes jovens tende sempre a captar a atenção do público, não só porque os praticantes de desportos de alta competição são normalmente vistos como o segmento mais apto e saudável da sociedade, mas também porque o próprio exercício físico é tido como um hábito de vida saudável e recomendado a toda a população (3, 4). Assim, apesar de muito esporádico, é natural que o colapso inesperado de um atleta constitua um momento chocante, envolvendo não só os seus familiares directos mas também toda a comunidade envolvente, e motive o debate público sobre a necessidade de se estabelecerem normas cada vez mais rigorosas e eficazes para, através do despiste de indivíduos de risco, evitar estas situações (6, 8, 14, 15). No entanto, é importante ter em conta que, para além de muito raras, as anomalias cardíacas subjacentes às situações de morte súbita são, normalmente, silenciosas do ponto de vista clínico, difíceis de despistar apenas pela história clínica ou pelo exame físico, sendo mesmo necessário, nalguns casos, recorrer a exames sofisticados para as detectar (7, 26). Contudo, apesar das dificuldades apontadas, algumas das situações de morte súbita poderiam ser suspeitadas e, teoricamente, evitadas, pela simples valorização de alguns sinais e sintomas clínicos que os atletas referiram em algum dos exames médicos previamente efectuados (para refs. ver 6, 14). Esta constatação reforça a ideia de que os médicos que lidam directamente com os atletas (os pediatras, os médicos desportivos e os médicos de família) devem estar atentos para o fenómeno e familiarizados não só com as várias etiologias da morte súbita de origem cardíaca, mas também com as actuais recomendações quanto à selecção dos atletas para a prática de esforços vigorosos, realizando histórias clínicas e exames físicos mais direccionados para este tipo de problemas (6). 2. Morte súbita de origem cardíaca em jovens atletas Apesar de existirem outras definições, particularmente relacionadas com o tempo de ocorrência da morte após exercício físico (13), a maioria dos autores define morte súbita de origem cardíaca como resultado da paragem cardíaca que surge de forma inesperada e não traumática nas seis horas seguintes a um estado de saúde aparente (20, 22, 23) . Em mais de 80% das situações, a morte súbita ocorre durante ou imediatamente após a realização de um exercício físico extremo (23). Contudo, é preciso ter em conta que a morte súbita que ocorre nos atletas não é da responsabilidade exclusiva do exercício físico. De facto, independentemente da idade do indivíduo, é aceite que a morte surge por acção concertada do exercício físico intenso e da existência prévia de uma doença cardíaca subjacente, funcionando o exercício como o factor despoletador para o estabelecimento da instabilidade eléctrica desencadeadora da arritmia fatal (2, 5, 6, 8, 23, 29, 31, 32) . 2.1. Incidência Em atletas com idade superior a 35 anos, a aterosclerose coronária constitui a doença subjacente mais prevalente, responsável por cerca de 73% a 95% dos casos (20, 25, 31). No entanto, quando se trata de atletas jovens (com idade inferior a 35 anos), na sua origem está, geralmente, uma doença cardiovascular congénita a qual, pelo facto de ter uma prevalência muito baixa nestes indivíduos (aproximadamente 0,2%), torna muito difícil a sua eficaz detecção (23). Também por essa razão, felizmente, a morte súbita de origem cardíaca em atletas jovens é muito rara (6, 30). Não se conhece, com exactidão, a incidência da morte súbita de origem cardíaca no jovem atleta porque não existem bases de dados, nacionais ou internacionais, onde sejam registadas as diferentes causas de morte que vão afligindo os atletas. No entanto, alguns trabalhos de índole científica, integrando grandes grupos populacionais, estimam que a incidência deste tipo de morte varie anualmente entre 1/100.000 e 1/300.000 jovens atletas (1, 24, 30). Em indivíduos que se exercitam de forma muito vigorosa, aqueles valores poderão ser exacerbados, ficando compreendidos entre 1/15.000 e 1/18.000 atletas (27, 28). Aparentemente, parece bastar o aumento da intensidade do exercício (ou do programa de treino) para, imediatamente, aumentar o risco da ocorrência deste tipo de morte. No que respeita à influência sexual, e como resultado provável da menor participação do sexo feminino nas actividades desportivas de alta competição, estima-se que a morte súbita de origem cardíaca no jovem atleta seja cerca de 5 a 10 vezes mais frequente nos rapazes (5, 7, 23, 30) . 2.2. Etiologia Nos USA, das anomalias cardíacas subjacentes à ocorrência de morte súbita induzida pelo exercício, a que contribui para a maior percentagem de casos é a cardiomiopatia hipertrófica (cerca de 36%), seguida pelas anomalias congénitas das artérias coronárias (entre 17 a 19%) e pela hipertrofia cardíaca idiopática (cerca de 10%) (2, 23). O quadro I discrimina, em função da sua ocorrência, as principais anomalias cardíacas subjacentes à ocorrência de morte súbita no jovem atleta. A cardiomiopatia hipertrófica, doença autossómica dominante de expressão variável, possui uma prevalência aproximada na população em geral de 1/500 indivíduos (2). Infelizmente, a maioria dos jovens atletas com cardiomiopatia hipertrófica (cerca de 79%) são assintomáticos até ao momento da morte (23). Das anomalias congénitas das artérias coronárias, a origem no seio de Valsalva direito da artéria coronária esquerda é a que mais frequentemente conduz a situações de morte súbita (32). À semelhança da cardiomiopatia hipertrófica, também aqui a maioria dos sujeitos portadores de anomalias congénitas das artérias coronárias (cerca de 70%) é assintomática até à ocorrência do episódio de morte súbita (23). Sem uma base genética evidente, a hipertrofia ventricular esquerda idiopática caracteriza-se por um aumento inexplicado da massa cardíaca que excede os limites fisiológicos, distribuída de forma simétrica e sem o aparente desarranjo histológico que caracteriza a cardiomiopatia hipertrófica (20) . A percentagem restante dos casos de morte súbita de origem cardíaca no jovem atleta (cerca de 35%), resulta de um conjunto diversificado de causas que incluem, entre outras, a miocardite, a ruptura de aneurisma, as disritmias, a estenose aórtica, o síndrome de Wolff-Parkinson-White (WPW), o síndrome idiopático do QT longo, a displasia ventricular direita arritmogénica, o consumo de cocaína ou de esteróides anabolizantes e, possivelmente, o prolapso da válvula mitral (7, 11, 17, 21, 23). A aterosclerose coronária, sendo a principal responsável pelos episódios de morte súbita nos atletas com mais de 35 anos, nos atletas mais jovens contribui com uma percentagem muito reduzida (cerca de 2% a 3%) para aquele tipo de morte (23). Embora a morte súbita de origem cardíaca em jovens atletas seja condicionada pela existência de uma doença cardíaca subjacente, é importante considerar que um traumatismo directo da grade costal, motivado por uma bola, um objecto desportivo ou até só pelo contacto físico, pode também ser responsabilizado por um pequeno número de situações de morte súbita onde não existe qualquer anomalia cardíaca subjacente (16). Pensa-se que a fibrilação ventricular seja despertada pelo estímulo mecânico, intenso, mas apenas quando o traumatismo ocorre durante a fase do ciclo cardíaco electricamente mais vulnerável: a repolarização ventricular (16). 3. O exame cardiovascular do jovem desportista Apesar deste trabalho se centrar especificamente no exame cardiovascular, importa referir que este faz parte integrante do exame médico-desportivo de qualquer atleta onde, para além daquele sistema, se faz também o despiste de doenças e patologias que possam afectar outros órgãos ou sistemas corporais (29, 32). Este exame deve ser efectuado no início da actividade competitiva do jovem atleta, o que habitualmente ocorre entre os 12 e os 14 anos, e deve ser repetido, de forma regular, pelo menos de dois em dois anos (6). Para além de pretender atenuar a morbilidade induzida pelo exercício físico, o exame cardiovascular do desportista visa, sobretudo, identificar os indivíduos propensos à ocorrência das situações de morte súbita despoletadas pelo exercício (8, 14, 29, 32). Nesta missão, deve-se estar consciente que a grande maioria dos exames será normal e que todo o cuidado será pouco para não excluir da actividade física indivíduos saudáveis (29, 32) . Estima-se que, por cada 200.000 jovens atletas avaliados, apenas 1.000 estão, de facto, em risco de ocorrência de morte súbita mas, dessas mil crianças ou adolescentes de risco, só 1 virá, realmente, a morrer dessa forma (9). Para aumentar a eficácia de detecção destas situações, é importante que o exame seja bem direccionado por forma a valorizar determinadas manifestações clínicas cardiovasculares e a não desconsiderar aspectos importantes da história pessoal dos indivíduos. De facto, em cerca de 21% a 35,7% dos casos de morte súbita em jovens com cardiomiopatia hipertrófica, os indivíduos apresentaram, previamente ao episódio fatal, sinais e/ou sintomas que levariam a suspeitar da existência de qualquer anomalia cardiovascular (8, 11, 14). Da mesma forma, no caso das anomalias congénitas das artérias coronarias, antes da ocorrência da morte, cerca de 31% dos atletas apresentavam já uma história pessoal de arritmias, síncope ou outros sinais e sintomas sugestivos de doença cardiovascular que, aparentemente, não foram devidamente valorizados (23). Também tem sido habitual, antes da ocorrência do episódio fatal, que a maioria dos indivíduos com WPW apresentem já uma história de palpitações, tonturas ou síncope que não foi devidamente valorizada (32). Também nalgumas das restantes doenças cardíacas menos frequentes (como, por exemplo, na estenose aórtica, na cardiomiopatia dilatada e na displsasia ventricular direita arritmogénica), antes do episódio fatal, os indivíduos apresentam normalmente uma história pessoal de síncope, palpitações ou pré-cordialgias associadas ao esforço (6, 14). 3.1. A história clínica Independentemente da especialidade ou do problema médico em causa, é assumido que todo o exame deve começar com uma boa história clínica. Para a realização desta história, é necessário ter em consideração que os exames médico-desportivos não são, normalmente, motivados por nenhuma queixa (29, 32). De facto, seria muito mais simples se o atleta apresentasse um leque de sintomas já direccionados para um determinado problema. Contudo, na realidade, não é isso que acontece, sendo a obrigação legal (pedido da escola ou do clube) a principal razão para a consulta. Por isso, é pouco provável que muitos atletas jovens que possuam nos seus antecedentes pessoais episódios de dor pré-cordial, síncope, intolerância ao exercício ou palpitações, ou ainda que possuam antecedentes familiares de interesse clínico, revelem essa informação espontaneamente, a menos que sejam sujeitos a perguntas específicas (29, 32). No quadro II são apresentadas algumas questões simples que podem ser colocadas aos jovens atletas para despiste de antecedentes pessoais com interesse clínico. Apesar de poderem ter outras etiologias, as tonturas ou a síncope durante ou após o exercício podem ser o resultado de uma cardiomiopatia hipertrófica, de anomalias de condução, de arritmias ou de problemas valvulares, tais como estenose aórtica ou o prolapso mitral (6, 14, 23). As pré-cordialgias durante ou após o exercício podem ser motivadas por uma anomalia da artéria coronária ou por uma outra doença cardiovascular avançada (29, 32). A dispneia desproporcionada à actividade efectuada pode indicar anomalias estruturais, problemas valvulares ou pulmonares subjacentes (29, 32). As palpitações durante ou após o exercício podem resultar de arritmias ou anomalias da condução cardíaca (29, 32). Apesar de pouco frequentes, a miocardite e a cardiomiopatia dilatada são outras causas de morte súbita de origem cardíaca no jovem atleta que podem ser suspeitadas se o médico estiver desperto para essa possibilidade; é de valorizar uma história de uma situação gripal prodrómica seguida pela ocorrência de sinais e sintomas de intolerância progressiva ao exercício com dispneia e ortopneia (14). Na história clínica devem também ser pesquisados o uso legal e ilegal de drogas (incluindo álcool e tabaco), desordens alimentares, história de doença cardíaca congénita ou de cirurgia cardíaca precedente (8, 14) . A história familiar pode ser decisiva já que muitas das anomalias subjacentes aos episódios de morte súbita de origem cardíaca não têm nenhuma evidência auscultatória (14, 29, 32). A existência de mortes de familiares directos com idades inferiores a 30-40 anos tem obrigatoriamente de ser despistada. Existindo, na maioria das situações, uma doença cardíaca congénita subjacente, normalmente autossómica dominante de expressão variável (cardiomiopatia hipertrófica, síndrome de Marfan, síndrome do QT longo), o despiste da sua ocorrência nos familiares directos é de extrema importância (29, 32). Porque a maioria das crianças não possui grande informação sobre os seus antecedentes familiares, seria conveniente que durante a recolha desta informação, estivessem acompanhadas, pelo menos, por um dos progenitores. Toda a história que sugerir risco de anomalia cardíaca subjacente deve merecer uma avaliação mais aprofundada, ficando a criança impedida de competir até esclarecimento da situação. 3.2. O exame físico No exame médico-desportivo, não está indicada a realização de um exame físico completo. O exame físico está direccionado para o sistemas cardiovascular, musculoesquelético, olhos, cavidade oral, ouvidos, nasofaringe, pulmões, abdómen, pele e genitália externa, no caso dos rapazes (29, 32). Neste exame devem também ser incluídas medidas antropométricas, tal como altura e peso corporal. A aparência física dos sujeitos pode ser decisiva para se suspeitar da existência de doença cardiovascular subjacente. Por exemplo, a aparente desproporção entre os segmentos corporais superior e inferior pode ser resultado de uma coarctação aórtica. Da mesma forma, apesar da ruptura de um aneurisma aórtico ser uma das causa menos frequentes de morte súbita de origem cardíaca, é importante lembrar que cerca de metade dos casos descritos ocorreu em atletas com síndrome de Marfan, (20, 23). Nas características morfológicas destes indivíduos estão incluídas a estatura elevada, com um comprimento de braços desproporcional para a altura, a aracnodactilia, a laxidez articular, a escoliose, o palato arqueado e elevado e a presença de deformidades da parede anterior do tórax, tais como o pectus excavatum (8). No que respeita ao exame cardiovascular propriamente dito, este não deve ser muito complexo, devendo, no entanto, incluir sempre a medição da tensão arterial em repouso, a palpação dos pulsos radiais e femorais e a auscultação cardíaca, estando esta última principalmente vocacionada para a detecção de arritmias, sopros ou outros sons adicionais, tais como estalidos ou cliques (10, 29, 32). Porque os sopros sistólicos funcionais no adolescente são muito comuns, há necessidade de os diferenciar dos patológicos. Como norma geral, recomenda-se que todos os sopros sistólicos, com intensidade igual ou superior a 3/6, ou os sopros sistólicos exagerados pela manobra de valsalva, ou ainda a simples presença de qualquer sopro diastólico, devam ser motivo de avaliação mais aprofundada por um cardiologista, ficando o atleta temporariamente impedido de participar em actividades físicas (29, 32). Da mesma forma, também um sopro que irradie para a região cervical ou para a região do vértice, deve merecer uma maior atenção por parte do médico. Em termos gerais, todo o ruído extra implica, geralmente, a existência de uma patologia, embora nem sempre os cliques possuam significado clínico, como pode ser o caso de um clique sistólico apical que pode não reflectir um prolapso da válvula mitral (29, 32). Contudo, é recomendável pedir a opinião de um cardiologista sempre que houver qualquer dúvida (ver quadro III). Nas crianças e nos adolescentes, os valores da tensão arterial devem ser, preferencialmente, comparados aos valores de referência, ajustados para a idade, que figuram em tabelas próprias para essa população. Tensões arteriais “realmente” elevadas (por vezes bastam alguns minutos de contacto com o médico para retornarem aos valores normais) devem ser motivo para um estudo mais aprofundado antes da aprovação do atleta para a prática de exercícios de competição. Entre outras causas, podem levantar a suspeita para o uso de cafeína, nicotina ou de outros estimulantes. Perante uma situação de hipertensão arterial, os valores tensionais referentes aos braços direito e esquerdo, assim como o exame do pulso radial e femoral, poderão ajudar a despistar a existência de uma coarctação aórtica (29, 32). 4. Exames subsidiários A maioria das anomalias cardiovasculares subjacentes a estes episódios de morte súbita apenas poderão ser diagnosticadas com exames complexos e dispendiosos, tais como a ecocardiografia, a ressonância magnética nuclear, a angiografia, o cateterismo cardíaco, o holter e os estudos electrofisiológicos (para refs. ver 6). O uso destes exames para o rastreio dos indivíduos de risco é impraticável por um variado leque de razões, quanto mais não seja, pelo elevado custo que comportaria (2, 8, 9, 11, 29, 32) . Para além disso, como já referido, a prevalência das anomalias cardiovasculares subjacentes ao fenómeno de morte súbita no jovem desportista é muito reduzida e, como se isso não bastasse, evoluem de forma silenciosa, fazendo com que a eficácia do exame médico-desportivo na sua detecção precoce, seja muito reduzida. Independentemente dessa eficácia ser variável de trabalho para trabalho, a ideia corrente é que ela é, de facto, muito baixa (2, 9, 12). Por exemplo, uma análise retrospectiva de 134 atletas que morreram de forma súbita, sugere que apenas em 3% destes indivíduos a doença cardíaca subjacente poderia ter sido suspeitada só pela história e pelo exame físico, tendo menos de 1% recebido diagnóstico adequado (23). Por essa razão, um melhor direccionamento dos exames médico-desportivos, com uma maior valorização de sinais ou sintomas cardiovasculares normalmente desconsiderados, apenas atenuará ligeiramente a incidência deste tipo de morte nos jovens. Contudo, se à informação clínica se associarem os dados fornecidos pelo electrocardiograma de repouso, como exame subsidiário de rotina a qualquer exame médico-desportivo, a incidência da morte súbita de origem cardíaca parece ter tendência a reduzir-se significativamente uma vez que a maioria das doenças cardiovasculares subjacentes à morte súbita do jovem atleta têm repercussões electrocardiográficas (para refs. ver 6). Por exemplo, estima-se que mais de 95% dos pacientes com cardiomiopatia hipertrófica apresentem, apesar de inespecíficas, alterações electrocardiográficas sugestivas da existência de uma patologia subjacente (19) . Independentemente do número de falsos positivos que daí possam advir, compreende-se que sendo esta patologia a mais frequentemente associada à morte súbita do jovem atleta, a prescrição rotineira deste exame possa trazer mais valias para um eficaz despiste dos indivíduos de risco. Já mencionando o electrocardiograma como exame subsidiário de rotina, a figura 1 ilustra o protocolo proposto por Corrado et al. (6) para aumentar a eficácia de detecção destas patologias. No que diz respeito à cardiomiopatia hipertrófica, uma vez que a sua expressão fenotípica pode não ocorrer até que a maturação e o desenvolvimento físicos estejam completos, recomenda-se que os atletas com predisposição genética (mas sem sintomas nem sinais clínicos ou electrocardiográficos), devam submeter-se à realização repetida de ecocardiogramas, a cada 12-18 meses até, pelo menos, aos 18 anos de idade (22). 5. Referências 1 - Ades PA. Preventing sudden death: cardiovascular screening of young athletes. Phys Sportsmed. 1992; 20: 75–89. 2 - Basilico FC. Cardiovascular disease in athletes. Am J Sports Med. 1999; 27: 108121. 3 - Booth FW, Chakravarthy MV, Gordon SE, Spangenburg EE. Waging war on physical inactivity: using modern molecular ammunition against an ancient enemy. J Appl Physiol. 2002; 93: 3-30. 4 - Booth FW, Vyas DR. Genes, environment, and exercise. Adv Exp Med Biol. 2001; 502: 13-20. 5 - Corrado D, Basso C, Rizzoli G, Schiavon M, Thiene G. 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Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 1999. Figura 1. Protocolo para rastreio das anomalias cardiovasculares subjacentes à ocorrência de morte súbita no jovem atleta. Jovens atletas História pessoal e familiar Exame físico e ECG Resultados negativos Apto para competir Resultados positivos Sem evidências de doença cardiovascular Protocolos definidos Adaptado de Corrado et al. (6) Exames adicionais: Ecocardiografia, RMN, Holter, Angiografia, Biópsia, Estudos electrofisiológicos Diagnóstico de doença cardiovascular Quadro II. Exemplos de questões a serem colocadas aos jovens atletas na história clínica. 1. Durante o exercício físico, sente muita falta de ar? 2. Consegue acompanhar o esforço dos seus amigos? 3. Durante o exercício físico, costuma ficar exausto? 4. Já alguma vez sentiu algum desconforto durante ou após o exercício físico? 5. Já alguma vez desmaiou durante ou depois de se ter exercitado? 6. Já alguma vez foi afastado de uma competição por razões de saúde? 7. Já lhe foi alguma vez diagnosticado um sopro ou anomalia cardíaca? Quadro I. Doenças cardiovasculares subjacentes aos episódios de morte súbita em jovens atletas nos USA. Mais comuns 1. Cardiomiopatia hipertrófica 2. Anomalia congénita das artérias coronárias 3. Hipertrofia cardíaca idiopática Menos comuns 1. Miocardite 2. Ruptura de aneurisma aórtico (síndrome de Marfan) Incomuns 1. Displasia ventricular direita arritmogénica 2. Estenose aórtica 3. Anomalias de condução (WPW) 4. Aterosclerose coronária Adaptado de Corrado et al. (6) Quadro III. Critérios para recorrer à opinião de um cardiologista. 1. Quando se detectar o que parece ser uma anomalia cardíaca, tal como um sopro muito intenso ou um provável síndrome de Marfan; 2. Quando um sopro sistólico aumentar de intensidade com manobras que diminuam o retorno venoso; 3. Quando houver sintomas preocupantes, como um história de síncope, palpitações ou de fatigabilidade fácil induzida pelo exercício; 4. Sempre que houver incerteza sobre um sopro ou outro som cardíaco.