Especial O equilíbrio do cérebro Uma boa notícia para depressivos

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Especial
O equilíbrio do cérebro
Uma boa notícia para depressivos, ansiosos
e fóbicos: amparados em novas descobertas,
psiquiatras e psicólogos unem forças para
combater os transtornos da mente,
superando décadas de divergências
João Gabriel de Lima
Montagem com fotos de Pedro Rubens
• 30% da população mundial terá, pelo menos uma vez na vida,
algum tipo de transtorno mental
• 70% desses transtornos são ligados às famílias da ansiedade ou
da depressão
• Os quadros mais comuns são fobias (24%), depressão (17%),
distimia (6%) e ansiedade generalizada (5%)
• A soma dá mais de 30% porque parte dos pacientes apresenta
distúrbios simultâneos
Fonte: estudo do sociólogo americano
Ronald Kessler, replicado em diversos países
O início do século XXI marca uma nova fase no tratamento dos transtornos da mente.
Depois da "era Prozac", na qual se acreditava que a medicina desenvolveria remédios
capazes de curar sozinhos as diversas variedades de ansiedade e depressão, vive-se uma
época mais realista em que profissionais de diversas especialidades, em vez de concorrer
pelo monopólio do tratamento, combinam suas forças contra a doença. Os fatos mais
marcantes são:
• Psiquiatras e psicólogos, que nutriram uma encarniçada rivalidade ao longo do século
XX, hoje acham que as melhores terapêuticas são aquelas que combinam remédios e
psicoterapias. O predomínio de um ou de outro recurso varia de caso para caso. "Nos
últimos anos, ficou claro que os fatores biológicos e os psicossociais são igualmente
importantes. Durante esse processo, a rivalidade entre psicólogos e psiquiatras, que sempre
existiu, foi varrida para a lata de lixo da história", disse a VEJA Tomas Furmark, renomado
pesquisador sueco, da Universidade Uppsala.
• A "medicina da alma" passou a contar, também, com o auxílio de outras áreas. Ao longo
dos anos 90, período conhecido nos meios médicos como "a década do cérebro", cientistas
de várias especialidades estudaram a mente humana numa intensidade inédita.
Neurologistas esquadrinharam o cérebro usando as mais modernas técnicas de ressonância
magnética, geneticistas mapearam a transmissão dos transtornos mentais por meio do DNA
e biólogos detalharam a química dos neurônios. O resultado é que hoje se conta com um
conhecimento incrivelmente maior para tratar os transtornos da mente.
• A ciência encontrou muitas respostas, mas surgiu também um grande número de novas
questões. Por mais que a farmacologia tenha se beneficiado de novas descobertas, a criação
de medicamentos que curem definitivamente todos os sofrimentos da mente sem a ajuda de
terapias é considerada hoje um horizonte distante.
O sueco Tomas Furmark trabalha na fronteira do conhecimento na área, que hoje em dia
consiste na intersecção entre psicologia, psiquiatria e outras áreas da medicina. Ele é o
autor de um artigo que causou grande repercussão na comunidade científica. Utilizando
uma técnica de obtenção de imagens do cérebro – a tomografia por emissão de pósitrons
(PET) –, Furmark analisou o encéfalo de pacientes com fobia. Parte desses pacientes havia
se tratado unicamente com terapia cognitivo-comportamental, e outra parte havia recorrido
a remédios. O resultado de seus estudos mostrou que a terapia altera o funcionamento
cerebral tanto quanto a química. Comentando o estudo, o alemão Klaus Grawe,
pesquisador da Universidade de Berna e outra grande autoridade no assunto, destacou o
fato de que experiências de vida alteram o cérebro tanto quanto remédios – e o trabalho de
Furmark dava novas provas dessa evidência.
O uso da neuroimagem para fins psiquiátricos é uma das vertentes mais exploradas
atualmente. Existem vários trabalhos que mostram quais são as alterações no cérebro em
casos de Alzheimer, transtorno obsessivo-compulsivo e depressão. Em todos os
experimentos, observou-se leve diminuição do volume de determinadas estruturas
encefálicas. A mente é tão complexa, no entanto, que é impossível chegar a conclusões
definitivas com base nessas evidências. "Mesmo com todo o avanço na área, não dá para
mapear o curso dessas doenças no cérebro porque elas se apresentam de forma diferente de
indivíduo para indivíduo", diz o psiquiatra Beny Lafer, ex-docente da universidade
americana Harvard e atualmente professor do departamento de psiquiatria da Universidade
de São Paulo. "Além disso, as técnicas de neuroimagem identificam apenas o
funcionamento cerebral nos transtornos, mas nada dizem sobre as causas. Para estabelecê-
las, precisamos investigar a hereditariedade e os eventos da vida de cada indivíduo. Daí a
importância de integrar a genética, a psiquiatria e o estudo dos fatores psicossociais." O
vocábulo "integrar", empregado por Lafer, é o que melhor resume a disposição dos que
lidam seriamente com os distúrbios da mente nos dias de hoje.
Nem sempre foi assim. Ao longo do século XX, os especialistas estavam divididos em dois
grupos. De um lado, os psicólogos investiam na criação de terapias cada vez mais eficazes,
a maior parte delas derivada da psicanálise. De outro, a psicofarmacologia trabalhava no
aperfeiçoamento dos remédios. Os dois grupos se olhavam reciprocamente com
desconfiança. O marco inicial da luta foi a descoberta, em 1949, da primeira droga
psiquiátrica, quando o australiano John Cade comprovou a eficácia do lítio na estabilização
do humor dos portadores de psicose maníaco-depressiva. Durante as quatro décadas
seguintes, as terapias que não usavam remédios continuaram a predominar, porque os
pesados efeitos colaterais dos medicamentos psiquiátricos limitavam seu uso aos casos
mais complicados. A virada foi o lançamento, em 1987, do antidepressivo Prozac, estrela
de uma nova geração de remédios com poucas contra-indicações. Eles deixaram de ser
usados predominantemente nos casos de psicose e passaram a ser receitados em larga
escala para os portadores dos transtornos ligados à ansiedade e à depressão mais comum,
que atingem 70% dos pacientes. Até pessoas que enfrentavam atribulações ocasionais
começaram a lançar mão de remédios. A década de 90 foi a da escalada dos
antidepressivos. Uma pesquisa feita nos Estados Unidos mostrou que, em 1994, 40% dos
portadores de algum transtorno mental tomavam remédios. Esse número pulou para 68%
em 2004.
Durante a "era Prozac", houve quem decretasse que os males da mente eram unicamente
uma questão química. Assim, todas as teorias psicológicas – a freudiana inclusive –
estariam condenadas ao esquecimento. Seriam substituídas no futuro próximo por uma
"pílula da felicidade", que permitiria a abolição completa de todo tipo de angústia mediante
a ingestão de um simples comprimido. A desilusão, no entanto, seguiu-se à euforia com os
remédios psiquiátricos de última geração. Eles poderiam ser mais toleráveis, no sentido de
ter menos contra-indicações. Não eram, no entanto, necessariamente mais eficazes do que
os do passado. Os novos antidepressivos, por exemplo, não apresentam resultados em cerca
de 20% dos pacientes. E, embora minimizados, os efeitos colaterais continuam existindo.
Numa pesquisa realizada neste ano, 40% dos pacientes psiquiátricos americanos se
queixaram de diminuição da libido e 20% reclamaram de ganho de peso. Além disso,
estudos mostrando que adolescentes medicados com antidepressivos tinham mais idéias
suicidas foram amplamente divulgados, ajudando a criar um sentimento negativo em
relação a esses remédios (veja quadro). A tal "pílula da felicidade" hoje parece uma utopia
tão distante quanto as experiências dos alquimistas. Contra os médicos que receitam
remédios em larga escala, ganhou força a idéia de que, para determinados casos de
transtornos psíquicos, a terapia é suficiente, de maneira que os pacientes não precisem se
sujeitar aos incômodos colaterais. O pensamento hegemônico, no entanto, é mesmo o de
que na maior parte dos casos a combinação de procedimentos médicos e psicológicos traz
os melhores resultados. "Em boa parte dos transtornos mentais, os remédios promovem a
recuperação sintomática. Ou seja, eliminam os sinais mais indesejáveis dos distúrbios, caso
da tendência suicida nos deprimidos", diz o psiquiatra Ricardo Moreno, do Hospital das
Clínicas, em São Paulo. "Mas, para a recuperação funcional, a reinserção do indivíduo na
sociedade, a psicoterapia é poderosa" (veja casos de pacientes tratados com terapias
combinadas).
A integração entre psicologia e psiquiatria sempre enfrentou obstáculos. As diversas
correntes de ambas as especialidades falavam línguas diferentes e babelianamente nada se
construía. O idioma que permitiu que todos se comunicassem foi o DSM, sigla de
Diagnostic and Statistical Manual (Manual de Diagnóstico e Estatística), uma classificação
dos transtornos da mente elaborada pela Associação Psiquiátrica Americana. Desde a
década de 50 que se tentava um acordo nessa área, mas apenas nos anos 80 se chegou a um
consenso internacional. A grande mudança se deve ao fato de que, com o DSM, os
psiquiatras e a maior parte dos psicólogos passaram a trabalhar com o conceito de
diagnóstico – com a idéia de que os diversos distúrbios mentais poderiam ser isolados e
tratados. De acordo com os critérios do DSM, 70% dos pacientes psiquiátricos sofrem dos
transtornos de ansiedade (síndrome do pânico, fobias, ansiedade generalizada, transtorno
obsessivo-compulsivo e stress pós-traumático) ou dos transtornos de humor (depressão,
distimia e transtorno bipolar – veja quadro). O DSM possibilitou que se chegasse a uma
conclusão impressionante. Em 1994, o sociólogo americano Ronald Kessler fez uma
pesquisa nos Estados Unidos e concluiu que 30% da população sofria, ou iria sofrer ao
longo da vida, de algum transtorno mental. No topo das ocorrências estavam as fobias e a
depressão. O estudo foi replicado em vários países, usando a mesma metodologia, e os
resultados foram praticamente idênticos. Com isso, caíram por terra várias idéias – por
exemplo, a de que a depressão pós-parto era típica da cultura ocidental. O pesquisador
escocês John Cox mostrou que o índice de ocorrência desse distúrbio nas cidades do Reino
Unido era análogo ao dos vilarejos de Uganda. É questionável também a idéia corrente de
que as doenças psicológicas sejam provocadas pelo stress da vida moderna. Estudos
indicaram que existe mais síndrome de pânico na zona rural dos Estados Unidos do que na
frenética Nova York.
Nem todas as correntes da psicologia se dispuseram a falar a língua do DSM. "Era
necessário adotar o conceito médico de diagnóstico e o foco na comprovação experimental
dos tratamentos, o que para alguns significava uma submissão da psicologia à medicina",
diz o psiquiatra José Alberto Del Porto, professor da Escola Paulista de Medicina. As que
se adaptaram melhor foram as correntes comportamental e cognitiva, ambas surgidas nos
Estados Unidos nos anos 50 e 60, e que defendiam um olhar mais pragmático sobre o
fenômeno psicológico. Burrhus Frederic Skinner, principal nome da escola
comportamental, achava que mais importante do que abrir a caixa-preta da mente, como
queria Freud, era se deter sobre a realidade observável dos transtornos e seus tratamentos.
É difícil resumir sua complexa teoria, exposta em livros como Ciência e Comportamento
Humano, que tem mais de 500 páginas. Ela se baseia nos conceitos de estímulo, resposta e
reforço, e o tratamento hoje utilizado para fobias, no qual o paciente é incentivado a
enfrentar aquilo que teme, é baseado em suas técnicas. Aaron Beck, o criador da vertente
cognitiva, achava que grande parte das doenças psíquicas se devia a percepções distorcidas
da realidade, e caberia ao terapeuta corrigir essas distorções. Por exemplo, um paciente
deprimido que acha que não tem condições de trabalhar é incentivado a escrever num
caderno várias situações em que foi chamado a desempenhar tarefas e se saiu bem. Com
base nos argumentos fornecidos pelo próprio paciente, o terapeuta tenta convencê-lo de que
ele é capaz. "Em um momento da história da psicologia, essas duas correntes se
encontraram, e hoje são consideradas as mais eficazes nos tratamentos dos distúrbios
psíquicos", diz a psicóloga Miréia Roso, que trabalha em colaboração com psiquiatras do
Hospital das Clínicas em São Paulo.
Entre todas as vertentes da psicologia, a que está mais distante da integração com as outras
áreas da ciência é justamente a psicanálise. "Nós não somos uma área da medicina, e não
trabalhamos com o conceito de diagnóstico como os psiquiatras fazem. Não tratamos de
doenças específicas, mas sim do paciente como um todo", diz o psicanalista Renato Mezan,
uma das maiores autoridades brasileiras na obra de Sigmund Freud. Para Mezan, as
fronteiras são claras: "O tratamento psiquiátrico minora os sintomas, enquanto a psicanálise
quer investigar qual o sentido desses sintomas em cada indivíduo". No divã, persegue-se
mais o autoconhecimento do que uma hipotética cura. Embora a rivalidade ainda subsista,
psicanalistas e psiquiatras já não são radicais como no passado. Mezan admite que
encaminha alguns pacientes seus para o psiquiatra quando acha conveniente, e Beny Lafer
diz que identifica quando seus pacientes são caso de psicanalista. "Não dá para descartar
tudo o que Freud falou. As teorias de Skinner e de Beck, que nada têm de freudianas,
confirmam com instrumentos práticos várias coisas que o pai da psicanálise intuiu em seus
escritos", avalia Vera Lemgruber, presidente da Associação Psiquiátrica do Rio de Janeiro.
É fato, no entanto, que existe um declínio do tratamento psicanalítico. Estima-se que, nos
últimos vinte anos, os pacientes que enfrentam a aventura intelectual do divã venham
decrescendo à razão de 10% ao ano. Os motivos são fáceis de ser identificados: ela é cara,
demorada e não oferece garantia de cura. No artigo mais provocativo sobre o assunto
escrito nos últimos tempos, o neurologista Eric Kandel, Prêmio Nobel de Medicina em
2000, criticou duramente a terapia psicanalítica. Segundo ele, a psicanálise, que existe há
mais de um século, deveria estar preocupada em obter evidências científicas de seus
mecanismos. Se não enfrentar esse desafio, acha o cientista, ela estará fadada a perder cada
vez mais influência. O artigo de Kandel, intitulado "A biologia e o futuro da psicanálise",
pode ser o estímulo que falta para que as teorias de Freud sejam finalmente cotejadas com
a ciência de ponta. O austríaco não se furtaria ao confronto, pelo que deu a entender em
Além do Princípio do Prazer, obra de 1920: "Podemos esperar que a biologia nos dê as
mais surpreendentes informações e não podemos imaginar quais respostas, daqui a dezenas
de anos, ela terá para as questões que agora lhe fazemos. Elas podem vir a destruir toda a
estrutura artificial de nossas hipóteses".
Freud, não se deve esquecer, era médico. Se pudesse acompanhar o que ocorre atualmente,
é provável que aprovasse a parceria cada vez mais estreita entre psiquiatria e psicologia,
apesar das resistências (sem trocadilho) dos seguidores da psicanálise. E certamente ele,
que também se esforçou para cancelar o pesado estigma das doenças mentais, ficaria muito
satisfeito com o fato de as pessoas hoje se sentirem mais livres para falar desses distúrbios
e procurar ajuda. "O oposto da depressão não é felicidade, e sim vitalidade", escreveu o
ensaísta americano Andrew Solomon, que sofre do distúrbio e é autor de um belo livro
sobre o tema, O Demônio do Meio-Dia. É isso que a associação entre psiquiatras e
terapeutas oferece: vitalidade. Força para equilibrar-se num mundo tão desequilibrado.
http://veja.abril.com.br/011204/p_116.html
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