99 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 1, Edição 2, Ano 2006. PARA RETORNAR AOS PRÉ-SOCRÁTICOS Daniel Matos Alvarenga [email protected] Brasília-DF 2006 100 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 1, Edição 2, Ano 2006. PARA RETORNAR AOS PRÉ-SOCRÁTICOS Daniel Matos Alvarenga1 [email protected] Resumo Retroceder aos Pré-Socráticos não é apenas apresentar aquilo que acreditaram ser o princípio de tudo; antes disso, é preciso tê-los como um modelo para que o verdadeiro filosofar ressoe novamente e deixemos de apenas raspar velhos ossos da filosofia. Com eles, tem-se a filosofia por ela mesma, sem as amarras dos costumes e dos modismos inseridos numa sociedade. Uma breve apresentação, não de todos, mas de alguns dos Pré-Socráticos, incentivado pela leitura que Nietzsche e Russell fazem dos mesmos. Palavras-Chave: Pré-Socráticos – Filosofia – Originalidade – Aprendizagem. Considerações em Retroceder aos Pré-Socráticos Aprofundar e fazer ressoar novamente o gênio grego, repensar as implicações da “simplicidade” das suas observações pode (ou deveria) se fôssemos fiel a eles, escutando-os, aprender ao menos como fizeram filosofia com aquilo que hoje somos desprovidos, de originalidade. E qual a necessidade da filosofia em retroceder aos Antigos? O que eles ainda têm a oferecer? Se muitos dos seus argumentos não mais se sustentam, não devemos abandoná-los. São raros os livros que abordam não só o nível histórico, mas as implicações de seus pensamentos. Talvez se justifique, pelos poucos escritos que a nós chegaram. Mas tal “obstáculo” deveria ser mais um motivo para nos aventurarmos e aprendermos com a originalidade deles. A tentativa de demonstrar a importância do pré-socrático é influenciada, primeiramente, por questão de gosto; segundo, e principalmente, pela maneira que, principalmente, Nietzsche aborda os pré-socráticos, que diferencia dos demais autores, pois, 1 Graduado em Filosofia e Pós-Graduando em Filosofia pela UNB. 101 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 1, Edição 2, Ano 2006. não só apresenta-os novamente, mas antes, curva-se diante deles. Com a leitura nietzscheana, a superficialidade que é tratada desaparece, talvez mesmo pela paixão notável que Nietzsche os aborda, apresentando-nos os “grandes homens”. Contudo, nem todos serão abordados; ficaremos relegados a alguns deles e sobre algumas considerações. Algumas Abordagens Se tentarmos colocar o início da filosofia, ou quando se começa a fazer filosofia, seremos arrebatados sempre aos gregos. O advento da civilização grega que produziu tamanha atividade intelectual é um dos acontecimentos mais grandioso tido na história porque jamais houve, nem antes, nem depois e num curto espaço de tempo (dois séculos) o que os mesmos produziram na filosofia, na literatura, na ciência, na arte etc. que, acabaram por moldar os padrões gerais de toda civilização ocidental. Comumente, vê-se uma insurreição destemida contra os pré-socráticos, apresentando suas idéias como fantasiosas, pitorescas, inocentes. Fica obscuro o que de mais notável já verificado na filosofia, o filosofar inserido no caos, sem ordem; o pensamento preso a ele mesmo, dependendo de si próprio; é a filosofia desprendida do modismo e das convenções. O juízo desses filósofos sobre a vida e sobre a existência em geral é muito mais significativo do que um juízo moderno, porque tinham diante de si a vida numa plenitude exuberante e porque neles o sentimento do pensador não se enreda, como em nós, na cisão do desejo de liberdade, da beleza, da grandeza da vida, e do instinto de verdade, que só pergunta: o que é que a vida vale? (NIETZSCHE, 2002, p.22). O que mais provoca ao enveredarmos aos pré-socráticos é a originalidade de como cada um deles tratou do princípio das coisas. De início, contemplemos Tales. Nietzsche nos dá três motivos para que levemos a sério a proposição de Tales de que a água é a origem de todas as coisas. O primeiro motivo se dá pelo simples fato de aferir sobre a origem; a segunda (esta vejo como a mais sublime), a observação feita sem apego a modismo, a cultura, “porque 102 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 1, Edição 2, Ano 2006. faz isso sem imagens e fábulas”. (Idem, p. 27). Terceiro, porque contém a idéia de que “tudo é um”. Das três razões propostas por Nietzsche, a primeira deixa Tales no mesmo barco dos homens religiosos e supersticiosos; a segunda o faz separar desses e o insere como investigador da natureza; a terceira faz de Tales, o primeiro filósofo grego. “(...) Tales é um criador e um mestre que começou por sondar as profundidades da natureza, sem fábulas fantasistas”. (Idem, p. 30). Quando Tales diz: “Tudo é água” – o homem sai do apalpar vermiforme e do rastejar das ciências particulares, pressente a solução última das coisas e, graças a este pressentimento, supera a timidez vulgar dos graus inferiores do conhecimento. O filósofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacá-la em conceitos para fora de si: enquanto é contemplativo como o artista plástico, compassivo como o homem religioso, enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando até ao macrocosmo, conserva a circunspecção de friamente se considerar como reflexo do mundo (...). (NIETZSCHE, 2002, p.31). Tal como Tales, Anaximandro foi inventor e homem prático. Não se sabe exatamente quando nasceu. Talvez por volta de 610 a.C. Foi discípulo e sucessor de Tales para mais tarde, dele o distanciar. Por que razão acreditar que a água é a origem das coisas? Para Anaximandro, a substância primária da qual são feitas às coisas não pode ser uma das suas próprias formas especificas. Logo, deve ser algo diferente de todas as outras, pois as várias formas da matéria estão numa ininterrupta batalha: o quente contra o frio, o úmido contra o seco. Se qualquer destas formas fosse à matéria básica, há muito teria suplantado as outras. A matéria originária é o que Aristóteles chama de causa material. Anaximandro intitula isso de o Ilimitado, uma reserva infinita de material que se estende em todas as direções. Dele surge o mundo e a ele retornará no final. (RUSSELL, 2003, p. 31). 103 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 1, Edição 2, Ano 2006. “(...) De onde as coisas tiram a sua origem, aí devem também perecer, segundo a necessidade; pois elas têm de expiar e de ser julgadas pelas suas injustiças, de acordo com a ordem do tempo”, diz. Assim, para Anaximandro, o ente verdadeiro, não possui qualidades que sejam definidas, pois, se assim fosse teria de nascer e de morrer, como as demais coisas. Tudo que possui qualidade definida será negado ser sua própria origem. Para que o nascer e morrer não se acabem, é necessário que o ser originário seja indefinido, ilimitado. Se Tales simplifica o que é plural a uma qualidade existente, a água, Anaximandro o supera. Para ele, “se há, em geral, uma unidade eterna, como é que a multiplicidade é possível? Por que é que tudo o que entrou no devir não pereceu já há muito, uma vez que já se passou uma eternidade de tempo? De onde provém a torrente sempre renovada do devir?” “(...) Quanto mais de perto se quis ver o problema, perguntando como é que o definido pôde alguma vez sair, por secessão, do “Indefinido”, o temporal do eterno, a iniqüidade da justiça, mais densa se tornou a noite. ”2. O terceiro e importante dos famosos pensadores milésios foi Anaxímenes. Como seus antecessores, há poucas informações sobre sua vida. Seguindo o caminho de Anaximandro, coloca que há uma matéria básica, o ar. Verifica sua descoberta nos processos de condensação e rarefação. Além de ser uma substância que nos mantém vivos, é a substância de que é feita a alma. Este ponto de vista foi adotado mais tarde pelos pitagóricos. Para Anaximandro as coisas são feitas através da fonte: o Ilimitado; existe algo nele que provoca o isolamento entre o úmido e o seco, o quente e o frio. Suas misturas formam todas as coisas, reconhecendo a mudança na luta dos opostos. Anaxímenes vê a mudança como a atuação de forças externas de condensação e rarefação sobre a matéria. Qualquer forma de matéria pode então servir como básica. Assim, ele escolheu o ar. Para os filósofos antigos, a 2 Nietzsche, 2002, p. 37. 104 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 1, Edição 2, Ano 2006. filosofia era assunto eminentemente prático; seus filósofos podiam ser, e eram, homens de ação. Na tradição pitagórica é o oposto. A filosofia se torna contemplação apartada do mundo. O modo de viver filosófico é o único a oferecer alguma esperança de superar os acasos da existência, propiciando uma fuga à roda do destino. Pois, segundo os pitagóricos, a alma é sujeita a uma série de transmigrações. (RUSSELL, 2003, p. 35). A música desempenha um aspecto purificador desse modo de viver. Pitágoras descobriu as relações numéricas simples denominadas, como hoje, de intervalos musicais. Quando se fala em música pode-se pensar afinação, harmonia (sentido de equilíbrio). Pode-se pensar que as descobertas na música propiciaram a idéia de Pitágoras de que todas as coisas são números. Para que possamos compreender o mundo, necessitamos descobrir o número contido nas coisas. Se descobrirmos a estrutura numérica, o mundo poderá ser controlado. Resumindo: a idéia fundamental do pitagorismo é que “a matéria, que é representada inteiramente destituída de qualidade, somente por relações numéricas adquire tal ou tal qualidade determinada”. 3 O último filósofo é Heráclito. Ele não teve o mesmo interesse científico que seus antecessores jônios, suas teorias são reflexos dos ensinamentos dos jônios e de Pitágoras. Não somente desenvolveu uma nova teoria sobre o mundo, mas deu uma grande importância à própria Filosofia. Diz-nos que o mundo real consiste de um ajuste equilibrado de tendências opostas. Essa luta é o motivo principal que mantém vivo o mundo. Afirma que “a guerra é a origem do mundo.”. Todo o devir nasce do conflito dos contrários; as qualidades definidas que nos parecem duradouras só exprimem a superioridade momentânea de um dos seus lutadores, mas não põem termo à guerra: a luta persiste pela eternidade fora. Tudo acontece de acordo com esta luta, e é esta luta que manifesta a justiça eterna. (NIETZSCHE, 2002, p.42). 3 Os Pensadores, Pré-Socráticos, 2000, p. 64. 105 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 1, Edição 2, Ano 2006. Heráclito, assim como seus antecessores, falará de uma nova e específica matéria, e assim escolhe o fogo. Esse fogo de Heráclito deve ser apreendido metaforicamente, ilustrando a noção de que nada permanece imóvel, de que todas as coisas são processos. Assim, nada nesse mundo permanece igual. Das suas máximas, a mais lembrada é a do rio, que acaba ilustrando geralmente seu pensamento. “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois novas águas estão sempre fluindo”. “Entramos e não entramos no mesmo rio, somos e não somos”. Considerações Finais Uma vez retrocedendo aos Pré-Socráticos, não é apenas redizer o que pensaram. Mais do que isso, é fazer uma autocrítica daquilo fazemos e entendemos com o nome de Filosofia. Numa época em que a Filosofia sofre de originalidade e refugia-se na “reflexão sobre”, sem muito a apresentar com o que os Antigos tinham por abundância, a originalidade. É impossível para aqueles que têm uma relação estreita com a filosofia, quererem que ela seja “livre” de imposições, seja de que ordem for. Ninguém pode ousar cumprir a lei da filosofia em si, ninguém vive filosoficamente com aquela lealdade elementar que obrigava um Antigo, onde quer que estivesse e fosse o que fosse que fizesse, a comportar-se como Estóico, se tinha jurado fidelidade a Stoa. Todo o filosofar moderno é restringido a uma aparência de erudição, politicamente e policialmente, por governos, por Igrejas, por academias, por costumes (...) fica-se pelo suspiro “se” ou pela constatação “era uma vez”. (NIETZSCHE, 2002, p.26). Apesar da breve apresentação de alguns e da exclusão de outros Antigos em busca da arché, não implica rejeição a eles e as suas teorias. Pelo contrário. O intuito é apenas deixar o caminho e incentivo para sempre voltar e aprendermos com os mesmos; assim como eles souberam fazer filosofia sem as amarras dos mitos e dos costumes, é preciso que esse germe filosófico não se perca e que germine hoje, pois muito sãos os empecilhos que silenciam o 106 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 1, Edição 2, Ano 2006. “fazer filosofia”. Quando tratados, abordá-los não com o objetivo de emudecê-los, tratando suas teorias como “inocentes” e “fantasistas” numa insurreição em contradizê-los. E assim, se muitos são os obstáculos, este deve ser mais um motivo para tomá-los como exemplos, imitálos sempre; não temer o caos em que nos encontramos, pois, pode ser ele capaz de trazer novamente a originalidade que nos falta. 107 Revista Filosofia Capital ISSN 1982 6613 Vol. 1, Edição 2, Ano 2006. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS NIETZSCHE, F. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Lisboa: Edições 70, 2002. PENSADORES, Os. Pré-Socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 2000. RUSSELL, B. História do Pensamento Ocidental. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.