Muller, Marcieli Eloisa_M

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
MARCIELI ELOISA MÜLLER
INTENCIONALIDADE: A POSSIBILIDADE DE UM MODELO PRAGMÁTICO
CAMPINAS
2015
Agência de fomento: FAPESP
Nº processo: 2012/16382-7
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387
M914i
Müller, Marcieli Eloisa, 1989M_UIntencionalidade : a possibilidade de um modelo pragmático / Marcieli
Eloisa Müller. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.
M_UOrientador: Marco Antonio Caron Ruffino.
M_UDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.
M_U1. Intencionalidade (Filosofia). 2. Linguagem. 3. Corpo e mente. 4.
Pragmática. I. Ruffino, Marco,1963-. II. Universidade Estadual de Campinas.
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Intentionality : an pragmatical approach
Palavras-chave em inglês:
Intentionality (Philosophy)
Language
Mind and body
Pragmatic
Área de concentração: Filosofia
Titulação: Mestra em Filosofia
Banca examinadora:
Marco Antonio Caron Ruffino [Orientador]
Ludovic Soutif
Emiliano Boccardi
Data de defesa: 28-08-2015
Programa de Pós-Graduação: Filosofia
Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)
Agradecimentos
À Universidade Estadual de Campinas, e ao Programa de Pós­Graduação em Filosofia, pela
assistência e oportunidade.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo financiamento dessa
pesquisa.
Ao professor Marco Ruffino, pela orientação e confiança.
Aos meus pais, pela simplicidade e exemplo.
Ao grupo do “chá das cinco”, pela amizade.
Ao Thiago, pela disposição em me acompanhar nas infindáveis aventuras, da filosofia e da
vida. “Eles não sabiam para onde a levavam, mas sabiam que a levavam toda vez que atravessavam o rio.”
(E. & A.)
Resumo
Esta dissertação tem como principal objetivo analisar o papel que a noção de intencionalidade
desempenha no contexto da obra de Wittgenstein, tendo como fio condutor o problema da
compreensão do conteúdo proposicional. De maneira geral, Wittgenstein argumenta contra a
tese de que a compreensão de uma proposição seja redutível a um processo mental, no sentido
de algo que se passa “dentro da cabeça” de alguém. A respeito desta questão, a tese
defendida por Wittgenstein consiste em afirmar que nós operamos com proposições, e que
estas são compreendidas na medida em que demonstramos habilidade em operá­las, isto é,
sabemos como utilizá­las de acordo com certas regras. O ponto consiste em investigar em que
medida essa aplicação de regras num contexto de uma pragmática exibiria ou pressuporia uma
espécie de comportamento intencional, em detrimento de orientações “internalistas” (no
sentido de um processo psicológico privado). Nesse sentido, nossa principal orientação
consiste em analisar se a idéia de “operar com proposições”, como um meio para
compreender seu conteúdo, os oferece bons subsídios para uma abordagem pragmática da
intencionalidade, de acordo com a qual o que é visado por meio de um estado intencional
não é, primariamente, um objeto ou sua representação, mas uma operação, no sentido de
uma função (jogo) a ser cumprida num determinado contexto sociolinguístico.
Palavras Chave: Compreensão; Corpo e Mente; Intencionalidade; Linguagem; Pragmática.
Abstract
The main aim of this project is to analyze the role that the notion of intentionality plays in the
context of Wittgenstein's work, considering the problem of propositional content
understanding. In general terms, Wittgenstein argues against the claim that the understanding
of a proposition would be reduced to a mental process, in the sense of something in
"someone's head". About this question, Wittgenstein's claim is that we do handle with
propositions, and these are understood as much as we show ourselves skillful to operate them,
that is, we know how use them according certain rules. The point is to inquiry in what extent
this rules application in a pragmatical context would show or presuppose a kind of intentional
behavior, despite of "internalists" approaches (in the sense of a private psychological
process). Our main question is about if the idea of "handle of propositions", as a way to
understand its content, give us a good deal to hold up a pragmatical approach to
intentionality, according to which what is sight by a intentional state is not, primarily, a object
or its representation, but a operation, in the sense of a function (game) to be fulfilled in a
specific sócio­linguistic context.
Keywords: Understanding; mind–body; intentionality; Language; Pragmatic.
Sumário
Introdução ..........................................................................................................................…..10
Capítulo 1 ­ O modelo clássico de Intencionalidade ................................................................17
1. 1. Brentano: Critérios de demarcação para o domínio dos fenômenos mentais...................17
1. 2. Críticas à tese de Brentano sobre a natureza dos fenômenos mentais........…..................21
Capítulo 2 ­ Uma leitura pragmática da Intencionalidade........................................................26
2. 1. Sobre conceitos psicológicos – The Voices of Wittgenstein............................................27
2. 2. Intencionalidade nas Investigações Filosóficas................................................................31
Capítulo 3 ­ Críticas ao modelo pragmático de Intencionalidade.............................................36
3. 1. Intencionalidade nas Investigações Filosóficas................................................................37
Capítulo 4 ­ Hacker sobre Intencionalidade, Gramática e Pragmática.....................................44
Conclusão..................................................................................................................................54
Bibliografia...............................................................................................................................63
10
Introdução
Ordinariamente, fazemos uso de palavras, signos, expressões linguísticas para
comunicar algo que visamos ou temos em mente. O universo de expressões das quais
podemos lançar mão para comunicar nossos pensamentos contempla variados tipos e formas.
Assim, a sentença1 “o gato está no telhado” exemplifica um tipo de expressão que pode ser
facilmente compreendida, uma vez que faz parte de uma família de expressões que se referem
a coisas ou eventos relativos ao domínio natural. Bem formulada do ponto de vista do
vernáculo em que é asserida, basta que tenhamos condições de saber se o que a expressão se
refere é ou não o caso, ou seja, se há algum objeto ou evento no mundo que corresponda ao
que é expresso. Havendo alguma dificuldade em saber o que a sentença expressa, pode­se
recorrer a ostensão ou a um conjunto de descrições a fim de determinar univocamente sua
referência.
Também costumamos fazer uso de expressões do tipo “3 é menor do que 4”. De
maneira similar, esse tipo de expressão pode ser facilmente compreendido por qualquer
falante que esteja habituado ou tenha familiaridade com matemática, ainda que o domínio
referido pela expressão não necessariamente seja o de um fato ordinário ou de um objeto da
natureza ou cultura. Há, ademais, outro tipo ou família de expressões que pode ser exemplificado pela
frase: “sala pessoas na cinco há”. Neste caso, a compreensão da sentença como expressando
uma ideia ou pensamento é dificultada, senão ausente, pois a sentença mesma parece carecer
de uma unidade de sentido. A razão para tal é que estamos diante de uma sentença
malformada, isto é, que não segue as regras de composição da gramática do vernáculo, pois
sua formulação é dissonante à sintaxe ou padrões normativos prescritos.2 1
Neste primeiro momento, estamos usando “sentença”, “palavra” e “signo” em um sentido não técnico, intuitivo.
Assim, uma expressão linguística pode ser lida como uma sentença, frase ou proposição. 2
Boa parte do desenvolvimento inicial da filosofia “analítica” da linguagem no início do século XX foi
orientada por análises críticas seja de um ponto de vista sintático seja de um ponto de vista “categorial”. O
exemplo clássico do primeiro caso é a crítica de Carnap a Heidegger, apresentada em The Elimination of
Metaphysics Through Logical Analysis of Language. Neste artigo, Carnap avalia que sentenças como “o nada
nadifica” e “o mundo munda” são exemplos de uso deturpado da linguagem, por conta da atribuição de caráter
de verbo ao que é substantivo. Já como exemplo para o segundo caso, da análise categorial, a referência é a
11
Por outro lado, expressões como “o amor é azulzinho” ou “amor é fogo que arde
sem se ver” podem ser consideradas como exemplos de mau uso da linguagem, por
incorrerem numa espécie de “engano categorial”, ou seja, de tomar uma classe de indivíduos
ou entes de domínio distintos como pertencente a um mesmo conjunto de propriedades ou
atributos similares3. Diferentemente do exemplo anterior, neste caso, podemos observar a
conformidade com a gramática do vernáculo, ainda que não consigamos, ao menos não tão
facilmente, entender o que se pretende expressar por meio de tais sentenças. Para esta
categoria de expressões, costuma­se conceder a chamada “licença poética”, uma vez que há a
possibilidade de que o sentido seja livremente interpretado por cada um que leia/ouça
expressões desta categoria. Poder­se­ia dizer que, no caso da poesia, não há um sentido
específico que se pretende veicular. Pelo contrário, poderíamos pensar que a intenção do
poeta é a de que cada sujeito aprecie e/ou reinterprete aquilo que lê/ouve da maneira que mais
lhe convir.
Por fim, consideremos outro tipo de expressões que carregam consigo uma boa
dose de ambiguidade. Por exemplo, a sentença “hoje é sábado”, apesar de ser bem formada
em relação ao vernáculo e de fácil compreensão no tocante ao seu sentido, é indeterminada no
que diz respeito ao que se refere, visto que seu conteúdo está estritamente relacionado ao
contexto de enunciação (ao que o termo “hoje” representa). O caso pode ser resolvido
apelando­se ao contexto de enunciação: basta consultar o fuso horário local e um calendário
para saber o dia em que se está, de tal modo que se possa constatar que a aparente
ambiguidade carregada pela sentença se desfaz. Assim, a ambiguidade de sentenças que
envolvem termos indexicais, do tipo “hoje”, “aqui”, “agora”, pode ser resolvida ao
recorrermos ao seu contexto de enunciação (Cf. Kaplan, 1989). E se, entretanto, nas mesmas condições da expressão, o contexto ainda é ambíguo,
crítica apresentada por Ryle a Descartes, em The Concept of Mind. Este erro consiste em representar fatos em
uma categoria lógica que pertencem à outra. Para ilustrar o problema, o autor lança mão de vários exemplos,
dentre os quais, um relativo à noção de Universidade. Neste exemplo, a confusão categorial ocorre quando
acreditamos que Universidade faça parte da mesma categoria que bibliotecas, museus, escritórios, salas de
aula... De fato, trata­se do modo como estes se organizam, caracterizando uma categoria lógica distinta. Desse
modo, pode­se pensar que a descrição de atividade mental como “não mecânico” e “não espacial” também
trata­se de um caso similar de erro categorial. 3
Aqui, temos a ideia que não faz sentido dizer certas coisas (atributos) de um determinado ente, pois este não
pertence ao domínio para o qual aquelas propriedades ou atributos seriam naturalmente mais apropriados.
12
como podemos chegar à compreensão do que está sendo expresso? Suponhamos que, ao
caminhar por um campo com várias árvores frutíferas encontramos um colega que está
vestindo uma camisa branca com mangas de cor laranja, segurando uma sacola cheia de
mangas, no caso, frutas em tom alaranjado. Então, alguém ao meu lado observa: “olhe! as
mangas dele parecem laranja!”. Parece natural que qualquer interlocutor terá dificuldades, num primeiro
momento, para entender a que o outro está se referindo. Ainda que a sentença expressa esteja
bem formulada no vernáculo e o domínio de objetos possíveis representados pela sentença
encontre referência no contexto (uma vez que há dois objetos que corretamente preenchem os
requisitos ser manga e ser laranja), parece carecer de algo para a determinação do sentido,
havendo ambiguidade não só na sentença, mas também no contexto. Sendo assim, a forma mais natural de resolver o caso é perguntando ao
interlocutor o que ele quer dizer, o que ele tem em mente, a que ele se refere quando faz uso
de tal expressão. Sua resposta muito provavelmente será: “'tenho em mente isso ou aquilo...”,
“quero dizer a manga da camisa, não a fruta”. Sua resposta revela o que ele quer dizer, sua
intenção de significação, a que ele se refere ou tem em mente quando profere determinada
expressão. Nesses casos, em que não há compreensão imediata do sentido de uma sentença,
ao utilizarmos uma expressão linguística, tal como “quero dizer que...” ou “tenho em mente
que...” é revelado de modo mais genuíno um componente intencional implícito do “ato de
fala”4, pois a intenção de significação expressa pelo falante nada mais é do que um visar algo
de alguma maneira, um direcionar­se para algo. Esse direcionar­se para algo foi reconhecido
na tradição filosófica moderna como uma característica distintiva da mente humana, ou seja,
de possuir intencionalidade.
Assim sendo, se entendermos a intencionalidade como característica exclusiva dos
fenômenos mentais, como representação de objetos visados, seria natural entender que a
compreensão do significado se afigura como um processo mental, por meio do qual
formaríamos uma “imagem” do objeto representado. Nesta perspectiva, dizer que a pintura
4
Não se trata ainda do termo técnico, tal como definido por Searle ou Austin, mas pura e simplesmente o ato da
enunciação linguística do ponto de vista de sua intenção de expressão.
13
representa a pessoa x significa que a conexão entre a pintura e a pessoa por ela representada é
criada na mente de alguém que “vê” a imagem e então lhe confere um significado. Tendo isso em vista, o objetivo central dessa dissertação é analisar o papel que as
intenções do falante desempenham para a compreensão do significado linguístico. Visto que
recorrer às intenções do falante parece algo natural em contextos onde a linguagem é usada de
forma ambígua, nossa análise será restrita ao âmbito ou domínio de uso da linguagem
ordinária, entendido com um contexto pragmático. Do ponto de vista de uma teoria do significado, restringir­nos­emos, portanto, a
uma abordagem de cunho pragmático, que considera o significado linguístico como algo
instituído sócio culturalmente, fundamentado no modo como a linguagem é usada por uma
comunidade de falantes. De forma geral, um “pragmatista” em termos linguísticos defende
que os significados linguísticos são socialmente instituídos, portanto, são contextuais, e sua
compreensão repousa na habilidade do falante em operá­los num contexto linguístico
específico. Essa orientação nos é de particular interesse, pois nos proporciona entender
(hipostasiar) o fenômeno da intencionalidade para além do domínio mental, no sentido
tradicional de um estado psicológico privado. Assim, o ponto consiste em investigar em que
medida a noção “operacional” (pragmática) de significado geraria uma abordagem
“pragmática” da intencionalidade, de acordo com o qual o que é visado por meio um estado
intencional não é, primariamente, um objeto ou sua representação, mas uma operação, no
sentido de uma função a ser cumprida num determinado contexto sociolinguístico. Tal
abordagem é representada, de acordo com a interpretação que apresentaremos neste trabalho,
pela teoria dos jogos de linguagem de Wittgenstein.
Em termos de estrutura, nossa análise será desenvolvida em quatro partes:
No primeiro capítulo, faremos uma apresentação de uma abordagem clássica a
respeito do conceito de intencionalidade, a saber: a tese de Brentano sobre a identidade entre
estados mentais e estados intencionais, que consiste em afirmar que todos estados mentais, e
somente os estados mentais, são intencionais, de tal modo que estaria vetada a possibilidade
de haver estados mentais não intencionais, assim como a de haver estados intencionais não
mentais. 14
Brentano define estados mentais como intencionais pela referência a objetos,
característica essa que pode ainda ser chamada de referência a um conteúdo ou
direcionamento para um objeto (que não necessariamente é um objeto existente no mundo
natural, ou seja, pode ser acerca de um ente ideal). Nesse sentido, diz Brentano, para o caso de
uma representação, há algo representado, no juízo, algo é afirmado ou negado. O ponto é que
sempre há algo a que os estados mentais estão direcionados, algo de que são sobre e é isso que
os caracteriza como intencionais.
Na sequência, apresentaremos um desenvolvimento crítico da proposta de
Brentano, a saber, a teoria de Searle. Nosso interesse em Searle se resume à sua crítica ao
conceito de intencionalidade de Brentano. Para fins de esclarecimento, consideremos a tese de
Brentano em duas partes: “todos estados mentais são intencionais” e “apenas estados mentais
são intencionais”. Disso depreende­se que não é o caso que um estado mental seja não
intencional e que não é o caso que um estado não intencional seja mental. A crítica de Searle
repousa sobre a primeira parte da tese, pois segundo ele há estados mentais cujo objeto não
está determinado, violando o critério de direcionalidade, distintivo dos estados intencionais. O caráter distintivo a respeito das investigações de Searle reside no fato de que ele
defende que o fenômeno da significação linguística remete explicitamente à estrutura da
intencionalidade, seja por atos de significação ou atos de fala. Assim, considerando que o ato
de visar intencionalmente um objeto consiste numa espécie de direcionamento, torna­se
pertinente a questão sob quais condições um estado intencional refere­se a algo e de que modo
nós “captamos” o conteúdo intencional visado. No primeiro caso, trata­se de uma questão
acerca da designação dos estados intencionais, cuja resposta envolve uma teoria sobre a
designação linguística, e, no segundo, acerca das condições de satisfação da compreensão do
objeto intencional visado, cuja solução envolve uma teoria epistemológica a respeito dos atos
de conhecimento e funcionamento da mente. No segundo capítulo, interpretaremos a teoria dos jogos de linguagem de
Wittgenstein como um caso da concepção pragmática, contextualista de significado. Nesse
contexto, nosso interesse é duplo: primeiro, saber como Wittgenstein entende a significação
linguística, especificamente numa perspectiva pragmática, e, em relação a isso, qual o
significado do ato intencional dada sua concepção acerca da significação linguística. 15
Considerando a primeira questão, sobre como Wittgenstein entende a significação
linguística, pode­se pensar na explicação proveniente de dois modelos: um baseado na ideia
de representação e outro na noção de uso em um dado contexto. O primeiro modelo é
apresentado no Tractatus por meio da noção de Figuração e tem por princípio a ideia de que
representamos um estado de coisas no mundo por meio de uma proposição, uma vez que esta
compartilha com a realidade uma mesma estrutura lógica, a assim chamada relação interna
afiguradora (Cf. Wittgenstein, 2001, p. 167 §4.014). Nessa perspectiva, a proposição é
formada de acordo com certas regras de composição da linguagem e adquire significado na
medida em que corresponde a um estado de coisas no mundo. Sendo assim, pode­se pensar
que a compreensão do conteúdo proposicional está atrelada às regras lógico/sintáticas de
formação da linguagem e às condições de determinação de verdade ou falsidade (idem, p. 169
§4.021; 4.024). O segundo modelo, que tem por base a noção de uso, consiste na tese de que
operamos com proposições, e que seu significado é compreendido na medida em que
demonstramos habilidade para utilizá­las de acordo com certas regras. Considerando a segunda questão interpretativa a respeito das ideias de
Wittgenstein, o ponto consiste em determinar o significado do ato intencional, dada sua
concepção acerca da significação linguística. Aparentemente, a compreensão inicial
consistiria em afirmar que o que é visado por meio de um estado intencional não é,
primariamente, um objeto ou sua representação, mas uma operação, no sentido de uma função
a ser cumprida num determinado contexto sociolinguístico, tal que o papel desempenhado por
cada componente linguístico seja determinado pelas regras dessa estrutura intencional,
caracterizada pela habilidade em “jogar o jogo” em questão. Disso decorre a ideia de que os
signos linguísticos adquirem significado no contexto em que os aplicamos, de acordo com o
papel que desempenham nesse contexto, diferentemente de uma posição que sustenta que os
significados são instituídos psicologicamente (a la Brentano), mas também diferentemente do
modelo da Figuração a la Tractatus (Cf. Wittgenstein, 1999, p. 114).
No terceiro capítulo, examinaremos a crítica ao pragmatismo de Wittgenstein,
apresentada por Crane. A crítica de Crane consiste em negar que a abordagem gramatical de
Wittgenstein seja suficiente para explicar como se dá a relação entre, por exemplo, a
16
expectativa e sua satisfação e entre a ordem e seu cumprimento. 5 A contribuição de Crane
consiste em uma tentativa de eliminar concepções como a de Wittgenstein, entendido como
um “externalista” (no sentido da determinação do conteúdo dos estados mentais), ao mesmo
tempo em que apresenta uma defesa do representacionalismo clássico, inspirado em Brentano,
que por sua vez tem sido classificado como uma abordagem de cunho “internalista”.
Considerando este cenário que opõe internalismo e externalismo, temos por um lado uma
leitura de Wittgenstein, que critica o internalismo semântico 6, ao mesmo tempo em que é
objeto de críticas de um autor que defende uma espécie de internalismo. No quarto capítulo, apresentaremos a crítica de Hacker a Crane, especificamente
no que tange à defesa que Hacker faz da leitura de Wittgenstein relativo ao tema da
intencionalidade. O ponto da crítica de Hacker é mostrar que a interpretação de Crane é
parcial, não tocando nos pontos centrais da proposta de Wittgenstein relativo a
intencionalidade, discutida em termos da relação entre pensamento e realidade. Basicamente,
colocaremos, lado a lado, ambas as interpretações, a fim de avaliar o alcance da crítica de
Hacker.
Por fim, na conclusão, avaliaremos os argumentos discutidos nos capítulos
anteriores, sumarizados basicamente em dois pontos: (i) considerando as consequências do
abandono da proposta pragmática de significação (no sentido de Wittgenstein), seria o caso de
recorrer ao representacionalismo? (ii) haveria a possibilidade de preservar o papel das
intenções do falante no tocante à significação sem cair num representacionalismo (clássico)
nem relegar à determinação do significado tão somente ao contexto relativizado a uma
comunidade linguística?
5
Esta ideia de solução gramatical oferecida por Wittgenstein é defendida por autores como Peter Hacker no
contexto de uma discussão acerca do conceito de intencionalidade.
6
Um possível desdobramento da orientação de tipo internalista consiste na hipótese de uma “linguagem
privada”, ou seja, uma linguagem cujo acesso está restrito ao seu possuidor (cf. Kripke, 1982). De tal hipótese
segue­se, igualmente, que a determinação do conteúdo mental, e, por conseguinte proposicional (da “intenção de
significação”), seria “interna” à mente. De fato, Wittgenstein não nega que existam estados mentais aos quais
aplicamos nossos conceitos, tal como o de intenção, no entanto, não são tais estados que determinam o conteúdo
proposicional, isto é, não é necessário que existam para que os conceitos tenham sentido e possam ser aplicados
(cf. Wittgenstein, 2003, p. 413ss).
17
Capítulo 1
O modelo clássico de Intencionalidade
Em Psychology from an Empirical Standpoint, Franz Brentano tem por objetivo
fundamentar uma ciência que explique de maneira satisfatória a classe de fenômenos que não
encontrava lugar no contexto de outra ciência já estabelecida, a Fisiologia, a qual se dedicava
ao estudo dos fenômenos de natureza físico/biológica. Os fenômenos que não encontravam
explicação na perspectiva da Fisiologia, Brentano convencionou chamar “fenômenos
mentais”, e a ciência que permite melhor explicá­los é a Psicologia. Para fundamentar essa nova ciência, faz­se necessário delimitar seu campo de
atuação, bem como caracterizar adequadamente seu objeto de estudo. Dado que o campo de
atuação é o domínio relativo ao que se denomina de “mental”, Brentano recorre à tradição,
que remete aos escolásticos, para estabelecer o que é característico do domínio mental,
afirmando que o caráter distintivo do que é mental reside em estar sempre voltado a ou
direcionada a. Tal caráter da mente de estar voltado ou direcionado é denominado por meio
da noção escolástica de intentio, ou, inexistência intencional do objeto.7
Para dar conta do propósito geral de sua investigação, de apresentar um critério de
demarcação entre o domínio dos fenômenos físicos e dos mentais, Brentano toma como tarefa
preliminar oferecer uma caracterização, mesmo que primeiramente negativa, das notas que
compõem o conceito de fenômeno mental. É essa análise e delimitação conceitual elaborada
por Brentano que passamos a descrever na seção a seguir.
1. 1. Brentano: Critérios de demarcação para o domínio dos fenômenos
mentais
Brentano analisa diretamente três características que tradicionalmente são
7
A tradição que os escolásticos resgataram remonta aos termos árabes: 'ma'qul' de Al Farabi e 'ma'na' de
Avicena e ao termo grego 'noema', de Aristóteles. 'Noema': “aquilo que está 'diante da' mente enquanto pensa;
aquilo que a mente visa”. Crane, por exemplo, trata 'intentio', 'noema', ma'qul' e 'ma'na' como termos sinônimos.
18
atribuídas como distintivas dos fenômenos mentais, quais sejam: (i) a definição dos fenômenos mentais como não extensos;
(ii) como fruto da percepção interna, percebidos apenas pela consciência;
(iii) como fenômenos que ocorrem sequencialmente, em contraposição aos
fenômenos físicos, que ocorrem simultaneamente.
Relativo ao critério (i), sobre a extensionalidade dos fenômenos mentais, Brentano
argumenta que considerá­los como não extensos, em contraposição aos fenômenos físicos,
não é o suficiente para uma caracterização positiva da mente, especialmente se considerada a
possibilidade de fenômenos físicos não extensos, como por exemplo, sons e cheiros. De
maneira similar, argumenta Brentano, poderíamos conceber a existência de fenômenos
mentais dotados de extensionalidade, tal como, por exemplo, quando nos referimos a um
pensamento ou ideia que tínhamos num determinado contexto, eventualmente indicado por
uma foto ou figura (Brentano, 1995, p. 65ss).
Tal caracterização dos fenômenos mentais encontra representantes na tradição
filosófica, tais como Kant e Descartes, que oferecem primeiramente uma caracterização
negativa da mente, como algo não extenso, não espacialmente localizado. No caso de Kant,
essa visão claramente decorre de sua concepção de natureza espacial, do sentido externo da
percepção (intuição), e para Descartes, simplesmente pela concepção de que os entes naturais
(res) pertencem ao domínio da extensa, ou seja, do espaço entendido em sentido absoluto (não
condicionado à subjetividade do sujeito). Por outro lado, numa acepção idealista extrema (por exemplo, Berkeley), poder­
se­ia conjecturar que nenhum fenômeno da percepção externa é extenso, ou ainda, que nos
parecem extensos com base em nossas representações mentais anteriores, ou seja, todo objeto
só pode ser concebido via uma ideia do mesmo, a qual não pertence ao domínio da extensão
espacial, se entendido em sentido absoluto. Para Brentano, esse tipo de caracterização não é
suficiente pelo fato de não oferecer uma demarcação precisa, uma vez que se pode tanto
conceber fenômenos físicos não extensos, como conceber fenômenos mentais extensos,
exemplificada pela ideia de “membro fantasma”. Em relação ao critério (ii), Brentano coloca em questão a possibilidade de
19
caracterizar o domínio dos fenômenos mentais frente aos físicos, por meio da distinção entre
percepção interna e externa. Brentano considera satisfatório caracterizar os fenômenos
mentais em termos de sua percepção pela consciência interna, porém, argumenta ser enganoso
falar em termos da percepção externa. Para Brentano, apenas a percepção interna é percepção
em sentido estrito, pois esta possui como características marcantes ser imediata e
infalivelmente autoevidente. Uma vez que o conceito de percepção interna em uso nesse
contexto pressupõe como nota característica a noção de falibilidade, torna­se fácil notar a
razão pela qual Brentano desengana a percepção externa como fonte legítima para
caracterização de uma forma de percepção (Brentano, 1995, p. 70).
Relativo ao critério (iii), a distinção entre fenômenos físicos e mentais teria por
base a temporalidade, em termos de simultaneidade e sucessividade. A suposição de que os
fenômenos físicos têm como característica a simultaneidade reside na analogia com as
funções biológicas do corpo humano, tais como, digestão, respiração, circulação [...] que são
percebidas em sincronia, todas ocorrendo ao mesmo tempo e interdependentemente. Nesse
esquema de raciocínio, os fenômenos mentais seriam caracterizados como sucessivos, uma
vez que as atividades do pensamento nos apareceriam sempre separadamente e uma após a
outra. Para Brentano, a não correção deste critério pode ser atestada tanto pela existência de
fenômenos físicos que ocorram sucessivamente, quanto pela existência de fenômenos mentais
que ocorram simultaneamente. O argumento usado por Brentano para denegar o critério da simultaneidade pode
ser assim exemplificado: pensemos em uma experiência ordinária, tal como o ato de andar.
Tal ato envolve uma série de fenômenos mentais, não necessariamente percebidos pela
consciência, e menos ainda, de forma sucessiva. Por exemplo, o simples ato de caminhar pela
Avenida Paulista envolve uma série de atividades às quais estamos atentos: ouvimos o
barulho do trânsito, o que nos permite acompanhá­lo para saber se há um veículo por perto e
com base nisso, podemos modificar nossa trajetória; ouvimos música e eventualmente temos a
lembrança de alguém; pensamos no compromisso ao qual devemos comparecer dali a poucos
minutos e para o qual estamos atrasados […]. Todos esses fenômenos são mentais e ocorrem
de forma simultânea – não é necessário que tenhamos a percepção de cada um em particular
em nossa consciência para que eles se deem (Brentano, 1995, p. 72ss).
20
Ao considerar tais critérios, Brentano conclui que a caracterização dos fenômenos
mentais em termos dos conceitos de extensionalidade, percepção externa e simultaneidade,
não é suficiente para a delimitação do objeto de estudo da Psicologia. Em contraposição aos
critérios tradicionais, Brentano apresenta outras três notas para o conceito de fenômeno
mental, a saber:
(i) os fenômenos mentais são aqueles realmente existentes;
(ii) todos os fenômenos mentais são representações ou baseados em
representações;
(iii) todos os fenômenos mentais são intencionais.
A despeito de serem três as notas distintivas do conceito, Brentano atribui como
característica marcante do mental a referência a um objeto, ou seja, a intencionalidade. Em
suas palavras (idem, p. 68): “Todo fenômeno mental é caracterizado por aquilo que os escolásticos da Idade
Média chamaram de inexistência intencional (ou mental) de um objeto, e que nós
deveremos chamar, mesmo que de forma não totalmente clara (não ambígua),
referência a um conteúdo, direção a um objeto (que não é para ser entendido aqui
como significando uma coisa), ou objetividade imanente. Todo fenômeno mental
inclui algo como objeto em si mesmo, embora eles não o fazem todos do mesmo
modo. Na representação algo é representado, no juízo algo afirmado ou negado, no
amor algo amado, no ódio algo odiado, no desejo algo desejado e assim por diante.
Essa in­existência intencional é característica exclusiva do fenômeno mental.
Nenhum fenômeno físico exibe algo similar. Nós podemos, portanto, definir os
fenômenos mentais dizendo que eles são aqueles fenômenos que contêm um objeto
intencionalmente neles mesmos”.
Assim, a característica que define os fenômenos mentais, o objeto de estudo da
Psicologia, ao mesmo tempo em que demarca seu campo de atuação frente à Fisiologia, é a
intencionalidade. Tal caracterização deu origem ao que chamamos de a “tese de Brentano”, a
qual pode ser descrita pelo seguinte lema: todos os estados mentais são intencionais e todos
os estados intencionais são mentais. No decorrer desta dissertação, ora nos referiremos à tese
em sua forma original, ora nos referiremos à sua primeira ou segunda parte. Por esta razão,
optamos por desmembrá­la em duas afirmações: todos os estados mentais são intencionais e
todos os estados intencionais são mentais. A tradição que teve origem com a tese de Brentano convencionou descrever a
intencionalidade como uma relação sobre algo, um voltar­se a, ou ainda, um direcionamento
para algo. Essa relação é tal que não implica que ambos os termos sejam existentes, mas
21
apenas um dos relata. Que tipo de relação é essa, na qual não há a necessidade do objeto
referido existir? A que se refere um estado intencional que é sobre “objetos não existentes”?
O que são “objetos intencionais”? Se uma relação intencional pode fazer referência a objetos
inexistentes, seria razoável cogitar que objetos intencionais possuem um status diferente dos
objetos reais, tal como sugerido por Meinong? Essas são algumas das questões relativas à tese
de Brentano, no entanto, em nosso trabalho não examinaremos em detalhe o desenvolvimento
de tais questões. Na próxima seção, nossa exposição será direcionada às críticas apresentadas à tese
de Brentano, especificamente, a elaborada por Searle, acrescida da apresentação de uma
tentativa de defesa da referida tese desenvolvida por Tim Crane. É precisamente pela forma
como tais críticas são construídas, por meio de contraexemplos apresentados ora à afirmação
de que “todos os estados mentais são intencionais”, ora a “todos os estados intencionais são
mentais”, que optamos pela apresentação da tese a partir de duas afirmações separadas, ainda
que sejam interdependentes.
1. 2. Críticas à tese de Brentano sobre a natureza dos fenômenos mentais
A tese de Brentano sobre a natureza dos estados mentais consiste na afirmação de
que todos os estados mentais são intencionais e todos os estados intencionais são mentais. A
partir dessa formulação geral, pode­se afirmar o seguinte: (i) a intencionalidade é condição necessária e suficiente para definir o que é
mente;
(ii) não existem estados mentais que não sejam intencionais;
(iii) não existem estados intencionais que não sejam mentais.
As críticas à tese tem a forma de contraexemplos que questionam ora a correção
da segunda, ora a da terceira dessas afirmações. No que se refere à afirmação todos estados
mentais são intencionais, os críticos costumam questioná­la cogitando a possibilidade de
existirem estados mentais não intencionais. Como exemplo paradigmático desse modelo de
crítica, temos a afirmação de Searle em seu livro Intencionalidade, segundo a qual:
“apenas alguns estados mentais, e não todos, têm Intencionalidade. Crenças, temores
e esperanças são intencionais, mas há formas de nervosismo, exaltação e ansiedade
22
não­direcionada que não o são. Uma chave para essa distinção é fornecida pelas
restrições que envolvem o relato de tais estados. Se eu disser que tenho uma crença
ou um desejo, fará sempre sentido perguntar: 'Em que, exatamente, você acredita?'
ou: 'O que é que você deseja?', e não poderei responder, 'Ah, eu só tenho uma crença
e um desejo sem acreditar em nada nem desejar coisa alguma'. Minhas crenças e
meus desejos devem ser sempre referentes a alguma coisa. Mas meu nervosismo e
minha ansiedade não direcionada não precisam ser referentes a alguma coisa, nesse
sentido” (Searle, 2002, p. 2).
O ponto em questão para Searle consiste em esclarecer quais estados mentais po­
dem ser considerados genuinamente intencionais. Searle denomina sua condição para estados
intencionais de Critério de Direcionalidade. Tal critério prevê a capacidade do sujeito de res­
ponder a perguntas do seguinte formato: “a que se refere tal estado mental?”. Caso não seja
possível responder a pergunta, não se pode afirmar que o estado mental em questão seja inten­
cional. É com base nesse critério que alguns estados mentais, especialmente certos tipos de
emoções, tais como exaltação, depressão, ansiedade, nervosismo […] não seriam intencionais.
Não atenderiam o critério de direcionalidade, pois o individuo não seria capaz de dizer sobre
o que é sua ansiedade, ou nervosismo, não sendo possível determinar o objeto do estado men­
tal. A correção do contraexemplo de Searle poria a perder a necessária identidade en­
tre mente e intencionalidade e implicaria ou na revisão da tese de Brentano, por meio de uma
alteração no conceito de intencionalidade a fim de contemplar a crítica, ou no melhor esclare­
cimento da tese, dissolvendo o problema. Se, por um lado, um crítico alinhado à concepção de
Searle diria que a intencionalidade não é uma característica necessária para a caracterização
do domínio do mental e que a melhor alternativa é a alteração do conceito de intencionalida­
de, por outro lado, defensores da tradição de Brentano, afirmariam que a crítica reside na má
compreensão da tese e que a solução pode ser encontrada ao se deixar mais claro o que se en­
tende por “todo estado mental é intencional”. No que se refere à afirmação todos os estados intencionais são mentais, os críticos
costumam questioná­la cogitando a possibilidade de existirem estados intencionais não
mentais. Diferentemente das críticas apresentadas à outra afirmação da tese exemplificada
acima, no presente caso, os exemplos são bastante controversos. Dentre eles, podemos citar o
fenômeno da disposição de algumas plantas que se movem procurando a luz solar, como uma
23
forma primitiva de intencionalidade não mental.8
Os contraexemplos apresentados à afirmação de que todos os estados intencionais
são mentais têm por objetivo a conclusão de que a intencionalidade não é suficiente para
caracterizar o que é mental. Diante de tal objeção, há duas alternativas possíveis: ou alterar
conceito de mente, a fim de contemplar a crítica, ou esclarecer de forma mais abrangente a
tese de Brentano, dissolvendo o problema. Um exemplo de defensor da teoria de Brentano é Tim Crane. Sua posição consiste
em afirmar que as críticas apresentadas à tese tem origem numa confusão histórico/exegética.
Para afastar a necessidade de uma alteração nos conceitos de “mente” e “intencionalidade”, a
alternativa encontrada por Crane consiste em esclarecer de forma mais abrangente o conteúdo
da tese, com a intenção de dissolver os problemas levantados pelas críticas. Crane argumenta primeiramente contra a possibilidade da existência de estados
mentais não intencionais, tal como exemplificado, pelas teorias de Searle (2002) e McGinn
(1982). São objetos de sua análise os contraexemplos que indicam as categorias de sensações
e emoções, apresentados como exemplos de estados mentais não intencionais. Com respeito às sensações, especificamente a de dor, o argumento oferecido pelos
críticos consiste no seguinte: se estados intencionais são aqueles sobre alguma coisa, direcio­
nados a algo, então se pode demarcar a classe de estados intencionais a partir da seguinte per­
gunta – “sobre o que é x?” Dado um estado de dor, a resposta que se obtém é “sobre nada”,
8
Autores representativos desta posição são Dretske, Fred. Knowledge and the Flow of Information. Cambridge,
MA: MIT Press, 1981; B. Enç. 'Intentional States of Mechanical Devices' Mind 91, 1982. Aparentemente,
carecemos do ponto de vista científico, de uma metodologia suficientemente desenvolvida para afirmar que o
movimento de uma planta em direção ao sol se dá não por uma questão físico/causal, mas por uma decisão
deliberada, de caráter volitivo ­ condição necessária para concluirmos que, por exemplo, o girassol por buscar a
luz do sol possui alguma forma, ainda que rudimentar, de intencionalidade. Para ilustrar, pensemos no seguinte
experimento de pensamento: ao observarmos um campo de girassóis, deveríamos observar que alguns se movem
em direção ao sol, enquanto outros ficam parados ou, que o mesmo girassol, por vezes movimenta­se em direção
ao sol, por vezes não, ao passo que outros girassóis giram em direção à luz. Para o comportamento de uma planta
em busca da luz solar ser considerado intencional, deve ser contemplada a possibilidade de ela não fazê­lo. Para
que determinado desempenho não seja executada, para que tal evento não ocorra, ela deve estar contemplada no
universo de possibilidades; para que x decida não fazer y, x deve ter a representação de y em seu universo de
possibilidades. Para o girassol ter estados intencionais, deve poder escolher não girar em direção ao sol; para
poder escolher não girar em direção ao sol, deve poder considerar a possibilidade de não fazê­lo; tal
possibilidade deve estar contida em um universo de possibilidades que lhe é representado. Sem o cumprimento
de tais condições, não poderíamos afirmar seguramente a possibilidade de estados intencionais não mentais e,
consequentemente, a tese de Brentano não estaria ameaçada.
24
visto que nem sempre se pode determinar o conteúdo ou referência de tal sensação. Logo, tal
estado mental não possui direcionalidade (pelo critério de Searle), não podendo ser caracteri­
zado como intencional. Para este caso, Crane argumentará que uma relação intencional não é
uma relação de caráter exclusivamente externo, podendo ser autorreferencial. Isso se funda­
menta na própria definição brentaniana do objeto intencional como in­existente, ou seja, como
existente (internamente) no domínio mental. Não se trata, portanto, necessariamente de uma
relação entre algo que está na mente do sujeito e um relata no mundo; pode ser o caso de que
o relata do objeto intencional seja oriundo do próprio domínio mental, como uma ficção ou
conceito fruto da imaginação. Em outros termos, os críticos afirmam que uma relação (no caso, intencional) aRb
não existe porque um dos relata é indeterminado no tocante à sua natureza, ou não pode ser
representado. O que Crane visa mostrar é que, da impossibilidade de se poder determinar a
natureza de um dos relata, não se segue que a própria relação não exista ou não faça sentido
(algo que poderia ser efetivado apenas por meio de um juízo a respeito da subsistência ou não
da relação). Por exemplo, o fato de que não se perceba ou se atente para uma sensação, não se
segue que esta não tenha um relata – tal como sermos acordados por uma forte dor causada
por uma cãibra – a cãibra é o relata intencional da sensação de dor. Nesse sentido, não é
necessário que se note a dor para que a mesma tenha referência. Outro exemplo se dá quando
no contexto de uma luta, um lutador é lesionado, mas continua o combate, mesmo após fortes
hematomas, somente notados ao fim do combate.
Para o caso das emoções, especificamente no caso da ansiedade, o ponto é o mes­
mo: deve­se poder responder a pergunta a respeito de que se está ansioso. Neste caso, a crítica
(de Searle, por exemplo) consiste em defender que, se não se pode descrever (expressar) o ob­
jeto da emoção, então a mesma não tem um objeto específico (não tem um relata intencional).
A resposta de Crane a essa crítica é mais direta: do fato de que não possamos sempre estar em
condições de oferecer uma descrição ou nos expressar a respeito do objeto de nossa ansieda­
de, não se segue que a mesma não tenha um relata intencional (exemplo: TPM feminina). O
relata intencional, neste caso, nem precisa ser algo atual ou determinado, representável descri­
tivamente – pode ser um estado de crença a respeito de um evento futuro, uma expectativa a
respeito de um fato.
25
Nota­se que os argumentos de Crane seguem a mesma estrutura, tanto para o caso
das sensações, quanto para o das emoções. Se, por um lado, não é suficiente mostrar a possi­
bilidade de emoções terem causas que ignoramos para refutar a crítica de Searle, por outro
lado, dizer que certos tipos de emoções não são estados intencionais porque não podemos di­
zer a respeito do que tratam também não é suficiente para corroborar a crítica de Searle e refu­
tar a tese de Brentano.
No que segue, no próximo capítulo, apresentaremos uma abordagem gramatical a
respeito de conceitos mentais ou psicológicos – tais como estados de crença. Tal abordagem,
devida ao pensamento de Wittgenstein, está fundamentada numa concepção pragmática da
linguagem, de acordo com a qual o significado dos conceitos ou termos linguísticos é instituí­
do por meio do modo como o mesmo é usado num determinado contexto linguístico. A orien­
tação filosófico­metodológica que fundamenta a análise de Wittgenstein tem por fim dissolver
certos problemas filosóficos que, de acordo com ele, são oriundos da não observância do uso
adequado da gramática de acordo com a normativa instituída pelo seu contexto original de
uso. Dentre os problemas que diretamente se referem ao tema deste trabalho, encontram­se a
relação entre mente, linguagem e mundo, a natureza do conteúdo dos estados mentais (estados
de crença, etc.), e a fundamentação da ação (do querer).
26
Capítulo 2
Uma leitura pragmática da Intencionalidade
Neste capítulo, apresentaremos uma abordagem gramatical a respeito dos
conceitos mentais ou psicológicos. Tal abordagem, devida ao pensamento de Wittgenstein,
está fundamentada numa concepção pragmática da linguagem, de acordo com a qual a
normatividade que confere significado aos conceitos ou termos linguísticos é instituída por
meio do modo como os mesmos são usados num determinado contexto linguístico. A
orientação filosófico­metodológica que fundamenta a análise de Wittgenstein tem por fim
dissolver certos problemas filosóficos que, para essa visão, são oriundos da não observância
do uso adequado da gramática de acordo com a normativa instituída pelo seu contexto
original de uso. Dentre os problemas que diretamente se referem ao tema deste trabalho,
encontram­se a relação entre mente, linguagem e mundo, a natureza do conteúdo dos estados
mentais (estados de crença, etc.), e a fundamentação da ação (do querer).
Iniciaremos o capítulo nos remetendo aos ditados de Wittgenstein a Waismann
(Cf. Baker, 2003), nos quais Wittgenstein trata do tema da compreensão do conteúdo proposi­
cional e dos conceitos psicológicos, especificamente o de intencionalidade. Dois modelos se­
rão analisados nesse contexto: o da ostensividade e o dos processos psicológicos. O ponto
para Wittgenstein é mostrar que ambos explicam a questão da compreensão tomando o signi­
ficado como fruto de uma relação extralinguística. Seu modelo proposto, em contrapartida,
parte da tese de que a compreensão do significado é fruto de sua operação em conformidade
com certas regras prescritas pelo contexto de uso. Essa solução está fundamentada na ideia de
que o significado é oriundo de uma relação intralinguística – entre um signo ou nome linguís­
tico e o modo como é operado no próprio contexto de uso da linguagem. Em seguida, focaremos no que é o objeto central da discussão sobre o conceito de
intencionalidade no pensamento de Wittgenstein, qual seja: os trechos §§428­465 das Investi­
gações Filosóficas, contexto em que a discussão sobre a intencionalidade, no sentido de ter a
intenção de, refere­se à análise gramatical do esperar e do desejar. Apresentaremos os princi­
pais trechos, seguidos de uma exegese dos mesmos. Nosso objetivo é caracterizar e elucidar
27
as teses que servirão de conteúdo base para a discussão a ser apresentada no quarto capítulo, o
qual é dedicado ao confronto das interpretações de Hacker (2011) e Crane (2010/2013).
2. 1. Sobre conceitos psicológicos – The Voices of Wittgenstein
Apesar de não ser uma obra redigida propriamente por Wittgenstein, podendo ser
vista até mesmo como “apócrifa”, é no The Voices of Wittgenstein que, salvo engano, a
temática da intencionalidade e sua referência a Brentano aparecem de maneira
particularmente explícita. Ademais, alguns comentadores referendam tal asserção, julgando o
texto como relevante para o entendimento da posição de Wittgenstein a respeito dos conceitos
psicológicos em geral, e o de intencionalidade em particular (Cf. Hacker, 2011, p. 2).
A questão que importa a Wittgenstein no contexto de seus ditados a Waismann é a
análise dos conceitos psicológicos no que tange ao que está envolvido na compreensão do
significado do conteúdo proposicional. De uma perspectiva mais geral, pode­se interpretar
que o questionamento de Wittgenstein a respeito dos conceitos psicológicos remete a um
criticismo “gramatical” sobre o psicologismo na lógica, uma vez que conceitos como
significar algo, crer, julgar, compreender, inferir e supor poderiam ser vistos como
atividades mentais.
Por suas objeções à pretensão explicativa dos conceitos psicológicos, Wittgenstein
propõe que o essencial para tais conceitos são os usos, as operações, entendidos do ponto de
vista do papel que eles desempenham em nosso universo linguístico, e não as experiências
que temos ao usá­los (ou seja, a forma que exibem na experiência, não o conteúdo desta). O
objeto da crítica é a tese de que a relação de significação, e assim, o significado, seja de
natureza extralinguística. Nesse sentido, sua análise visa mostrar que esse é o pressuposto
adotado por ambos os modelos aos quais remete sua análise crítica, a saber: a definição
ostensiva e a teoria que toma conceitos como compreensão no sentido de processos mentais. A tese de Wittgenstein é que a relação de significação deve ser tratada
exclusivamente no escopo da linguagem, sendo tão somente de caráter intralinguístico. Tendo
como parâmetro de análise a questão acerca do que está envolvido na compreensão do
significado, basicamente são investigadas três abordagens distintas, quais sejam: 28
(i) o modelo de compreensão por meio de definição ostensiva;
(ii) o modelo da compreensão como um processo ou estado da consciência que
ocorre “em mim” ao ouvir uma proposição;
(iii) o modelo que representa a proposta de Wittgenstein, de que a compreensão é
uma habilidade de usar os signos linguísticos de forma adequada ao contexto de uso.
A tese de Wittgenstein é, portanto, de que: “[…] understanding is not a particular psychological process that is there in
addition, supplementary to the perception of a propositional­picture. It is true that
various processes are going on inside me when I hear or read a proposition. An
intuitive image may surface, and various other images may be associated with it,
which may in turn be imbued with certain subtle shades of emotion. But all these
processes are not what really interest us here. We want to know in what consists
what is called understanding the proposition. The answer we wish here to support
runs: I understand a proposition by applying it. The point of a proposition is that we
should operate with it. And we understand it if we have the ability to operate with
it.” (Baker, 2003, p. 437).
Quer dizer, a compreensão não se reduz a um processo que ocorre em nossa
mente, no sentido de uma representação. Compreensão é uma habilidade que adquirimos e
que nos torna capaz de “operar” com proposições de acordo com certas regras de uso. Um modelo que também entra em questão para Wittgenstein nesse contexto é o da
definição ostensiva, por ser uma forma de definir o significado de um signo como aquilo para
o que ele aponta. Obviamente, diz Wittgenstein, não é o próprio signo que aponta para algo,
mas o faz ao ser usado por um falante como um instrumento de designação. A definição
ostensiva pressupõe que o significado remete à relação entre um signo (um nome) e o objeto
expresso pelo signo/nome, caracterizando­se como uma relação binária, nSo, entre um nome e
um objeto nomeado. O que Wittgenstein vê como problemático no caso da definição
ostensiva é que o significado de algo é estabelecido como uma relação extralinguística, tal
como um “stepping outside language”: “One calls Venus the bearer of the name ‘Venus’ or of the name ‘The Morning
Star’. For this case the rule holds: ‘The bearer of the name “N” is synonymous with
“N” ’. It is important that in this rule the word ‘bearer’ is not to be replaced by the
word ‘meaning’. Instead of saying ‘Mr N has gone away’ I can I suppose say ‘The
bearer of name N has gone away’ but not ‘The meaning of the name N has gone
away’. ‘The word N has no meaning’ does not mean ‘The bearer of the name N does
not exist’, for the latter statement has sense only if the sign N has meaning”. (Baker,
2003, p. 461).
O argumento acima poderia ser assim reconstruído: (i) assuma que o significado é
29
uma relação binária, entre um nome e um objeto (nSo); (ii) uma relação binária só tem sentido
se ambos objetos da relação estiverem presentes (pois senão seria uma relação de outra
ordem, unária, etc); (iii) suponha que o objeto referido pela relação tenha sido aniquilado ou
não exista mais; (iv) por (ii), a relação extinguir­se­ia; (v) por i, o significado também
extinguir­se­ia. Assim sendo, o significado não poderia ser confundido com o portador de um
nome (referência), pois o portador pode deixar de existir, ao passo que o significado não.
Outro modelo a ser analisado por Wittgenstein é o da Psicologia, que apresenta a
compreensão como representação. Este modelo concebe a compreensão como um estado
mental, no sentido de um processo psicológico privado, um estado da consciência do sujeito.
Dessa forma, a compreensão seria algo que acompanharia o conteúdo proposicional, tal como
se este causasse uma representação mental daquilo que é expresso pela proposição. Neste
contexto, o problema da compreensão como processo psicológico é analisado por
Wittgenstein a partir de duas questões: (i) qual estrutura do processo psicológico, e, por
conseguinte, da compreensão; e (ii) como tal estrutura se relaciona com o significado.
Para a questão (i), sobre qual a estrutura da compreensão como processo
psicológico, o argumento de Wittgenstein tem por base a ideia de que processo pressupõe
temporalidade, uma vez que o conceito de temporalidade é uma nota do conceito de processo.
Se a estrutura da compreensão fosse a de um processo ou estado psicológico, teríamos de
conceder que ocupa um intervalo de tempo. Tal ideia pode ser exemplificada pela pergunta:
“Quando eu o compreendo? Já no som da primeira letra? Ou apenas depois da primeira
sílaba? Ou apenas no fim da palavra completa?” (Cf. Baker, 2003, p. 439). Com relação a
isso, segundo Wittgenstein, pode­se concluir que não faz sentido pensar a compreensão como
“sem interrupção” ou “continuamente”, algo que deveria fazer sentido, uma vez que o
conceito de processo pressupõe o de temporalidade.
Considerando a pergunta sobre a estrutura da compreensão, esta não pode ser a de
um processo que corre em paralelo com a sequência das palavras que ouvimos, uma vez que a
compreensão não é um processo que se estende ao longo do tempo. A posição de Wittgenstein
sobre tal questão tem por base a ideia de que quando aprendemos a usar uma palavra,
aprendemos as regras do seu uso e por meio de tais regras adquirimos um padrão que
contempla as possibilidades do correto emprego da palavra, de acordo com o qual seu
30
significado se efetiva. Sendo assim, compreender o significado de uma palavra não tem a
forma de um estado, mas de uma disposição, relativa a uma capacidade, qual seja, a de usar a
palavra.
O segundo aspecto da tese de que compreensão seria um estado mental diz
respeito diretamente ao tópico de nosso interesse, o conceito de intencionalidade. O interesse
em recorrer à análise desse conceito por parte de Wittgenstein nesse contexto é clara, pois
intencionalidade foi concebida por Brentano como a característica distintiva do que é mental
(Cf. Baker, 2003, p. 443­449). A ideia central em torno da noção de intencionalidade consiste
em uma capacidade da mente de estar voltada a, direcionada a, no sentido de que para cada
ato mental há um objeto pressuposto, e esta pressuposição se dá na forma de uma
representação do objeto. Neste aspecto, a primeira questão de Wittgenstein diz respeito a que tipo de
relação subsiste entre a figura e o objeto representado, ou, sobre qual a natureza da relação de
visar/intencionar algo. A postura contra a qual ele se posiciona é a de afirmar que não há
conexão real entre a representação e o objeto representado, sendo a relação uma criação da
mente, produto da consciência – a mente é que confere sentido à figura, correlacionando
objetos a signos. Seria, assim, o mesmo caso da definição ostensiva, uma vez que se trata de
uma relação binária, extralinguística, agora, porém, 'residente' na mente, 'dentro' da cabeça do
sujeito (Baker, 2003, p. 443).
Relativo à pergunta sobre “como se estrutura a relação entre signo e objeto?”, a
resposta oferecida pelos representacionalistas visa sustentar que a mesma se dá por meio da
vinculação da representação do objeto e o objeto representado, ao afirmarem que tal relação
ocorre por meio de atos mentais, de intencionar, visar algo. No entanto, como se daria esse ato
de apontar para além de si mesmo? Considerando ato como experiência, e esta como parte da
realidade: como pode uma porção da realidade visar outra? Como pode um evento ser sombra
do outro? É esse tipo de questionamento que importa a Wittgenstein nesse contexto.
O primeiro argumento de Wittgenstein pode ser mais bem explicitado pelo
exemplo de escrever num papel o nome de alguém, no caso, de João: 'João'. Um
representacionalista poderia afirmar que não é o signo, mas o pensamento que faz uso do
signo que se conecta ao significado; trata­se de um processo que se dá por detrás do signo, e
31
se for possível observar o processo, algo é visto nisso que não é visto nas marcas da grafia,
isto é, a conexão com o objeto 'João'. Nesse sentido, pode­se perguntar se 'há conexão entre o
nome (no ponto de vista das partículas físicas do papel em que é escrito) e a pessoa?' Não.
Então entre a imagem visual (Gestalt) dos símbolos escritos e a pessoa? (representação
pictórica). A primeira é uma relação tipo­tipo (físico material), a segunda uma relação de
representação 'pictórica'/figurativa (tal como se dá, por exemplo, entre o signo '4' e o objeto, o
número que ele representa). (Cf. Baker, 2003, p. 445).
A despeito das possibilidades aventadas pelos modelos acima, para Wittgenstein,
a compreensão é uma habilidade de operar com proposições em um contexto de uso, de
acordo com certas regras. Portanto, Wittgenstein interpreta a questão brentaniana da
intencionalidade como a busca por uma “ponte” ou relação entre a realidade (mundo) e o
pensamento. Para Wittgenstein, essa abordagem não é satisfatória para explicar, por exemplo,
a significação, pois reduz este a uma relação extralinguística, tal como apontado acima. Um
dos problemas que se pode entrever com tal crítica consiste no fato de que, como sugerido
com a argumentação de Wittgenstein, relações extralinguísticas não seriam fortes o
suficientes para estabelecer a significação, isto é, não poderiam ser vistas como relações de
necessidade.9 Esse é o cerne do modelo pragmático contextualista, cujo desenvolvimento mais
maduro é encontrado nas Investigações Filosóficas, que passamos a examinar na sequência.
2. 2. Intencionalidade nas Investigações Filosóficas
9
Infelizmente não há espaço para desenvolver esse aspecto da argumentação de Wittgenstein; como nota vale
dizer que Wittgenstein faz uso de um conceito tradicional (kantiano) de necessidade, segundo o qual algo é
necessário se analítico, isto é, trivial (no caso, linguisticamente trivial). Por outro lado, poder­se­ia interpretar tal
questão seguindo a ideia de que a aplicação adequada de uma palavra por meio de um objeto tornaria este uma
espécie de modelo (cf. Investigações, §16) que caracterizaria a normativa subjacente ao contexto linguístico em
uso. Vendo por esse lado, faria mais sentido falar em “relação interna” justamente porque se trata de uma
questão intralinguística, isto é, de como a linguagem é operada por nós, do que propriamente a respeito do objeto
referido.
32
Em consonância com alguns intérpretes (Cf. Hacker, 1996; Crane, 2013),
identificamos no trecho relativo aos §§428­465 das Investigações Filosóficas o cerne da
discussão relativa ao tema da intencionalidade no pensamento maduro de Wittgenstein.
Explicitamente, a discussão que se dá nesses trechos é sobre a relação entre pensamento e
realidade, traduzida em termos da relação entre expectativa e seu cumprimento ou satisfação.
A tese de Wittgenstein é a de que o cumprimento ou satisfação de uma expectativa já deve
estar contido na expressão da mesma. Poderíamos sumarizar a argumentação de Wittgenstein da seguinte forma: se a
satisfação não estivesse prevista na expressão, então não pertenceria ao domínio do que é
compreendido como significativo no contexto do jogo linguístico, que, afinal, instaura o
padrão normativo que institui a significação (se não pode ser compreendido, então não reflete
uma regra que pode ser seguida). Os §§428­429 iniciam a discussão:
“O pensamento, este estranho ser” ­ mas não nos parece estranho, quando pensamos.
O pensamento não nos parece misterioso enquanto pensamos, mas apenas quando
dizemos retrospectivamente: “Como isso foi possível?”. Como foi possível que o
pensamento tratasse ele mesmo desse objeto? Parece­nos como se tivéssemos, com
ele, captado a realidade.” (Wittgenstein, 1999, §428).
“O acordo, a harmonia, entre pensamento e realidade repousa no fato de que, quando
digo falsamente que algo é vermelho, esse algo, mesmo assim, não é vermelho. E se
quero explicar a alguém a palavra “vermelho” na frase “isto não é vermelho”,
aponto, com esse fim, para algo vermelho.” (idem, §429).
O primeiro trecho releva a temática, qual seja, do pensamento e sua relação com a
realidade, isto é, como é possível que o pensamento “atinja” ou “capte” a realidade. A perple­
xidade relativa ao pensamento consiste justamente no fato de como ele possa tratar ou falar a
respeito de algo que está para além dele, ou seja, a realidade, o mundo que lhe é alheio. A fonte de harmonia, no sentido de acordo, entre pensamento e realidade reside
na possibilidade de a realidade retratar o pensamento tal como é, por meio de sua concordân­
cia ou discordância com a realidade. Wittgenstein parece remeter nesse trecho ao princípio da
bipolaridade proposicional: uma proposição pode ser ou verdadeira ou falsa; se verdadeira, o
fato se obtém, se falsa, não se dá. No entanto, deve­se notar, ademais, que enunciar que “P é
verdadeiro” não torna “P” verdadeiro, isto é, o ser ou não de P (dar­se em termos de estados
de coisas) independe do pensamento – é esse o mistério, o que se passa de estranho, quando o
pensamento se volta para a realidade e a “obtém”. Por fim, tem­se que a definição ostensiva
33
como uma forma de exemplificar ou demonstrar pertence à tipologia do conceito de “verme­
lho” (idem. §443). O ponto consiste em notar diferentes perspectivas para a definição de um concei­
to: de um lado, pode­se defini­lo ostensivamente, funcionando como um modo de apresenta­
ção de um objeto (“este a”), por outro, ao defini­lo por via negativa, o objeto é tomado como
modelo ou norma para a explicitação do significado. Assim, Wittgenstein parece indicar que a
forma gramatical que usamos para nos remeter a um objeto apresenta suas possibilidades
(dentro do espaço “gramatical”), não necessariamente algo a respeito do objeto em si (relativo
à identidade metafísica do objeto).
A questão da linguagem, do signo, aparece logo após:
“Todo signo sozinho parece morto. O que lhe dá vida? ­ No uso, ele vive. Tem então
a viva respiração em si? ­ Ou o uso é respiração?”. (idem, §432).
Wittgenstein recorre a uma metáfora entre vida e morte para explicar como que o
signo (ou a linguagem numa perspectiva mais ampla) adquire seu papel, sua função: no uso.
Isso quer dizer que o que justifica uma proposição a respeito de algo é o uso que esta possui
num determinado contexto ou prática. Tal linha de pensamento parece ficar mais clara quando
colocada em termos da problemática acerca da prescrição de uma ordem e sua execução:
“Quando damos uma ordem, pode parecer que a última coisa que ela deseja deve
permanecer inexprimível, pois sempre permanece um abismo entre a ordem e a sua
execução. Desejo, por exemplo, que alguém faça um determinado movimento, que
levante o braço. Para que isto se torne perfeitamente claro, faço o movimento diante
dele. Esta imagem parece inequívoca; até se coloque a questão: como ele sabe que
devo fazer esse movimento? ­ Como sabe como deve usar os signos que lhe dou,
quaisquer que sejam? Tentarei, por exemplo, completar a ordem por meio de outros
signos, apontando o outro, e fazendo gestos de encorajamento, etc. Aqui parece que
a ordem começa a balbuciar.
É como se o signo pretendesse produzir uma compreensão em nós, por meios
incertos. ­ Mas, se agora o compreendemos, em que signo o fazemos?” (idem,
§433). O mencionado abismo entre a ordem e sua execução trata justamente do “elo” que
vincularia um ao outro. A resposta aventada já aparece no §431, a compreensão. Nesse con­
texto entra em questão uma temática central nas Investigações Filosóficas, qual seja: a ideia
de seguir regras. Neste caso, deve­se evitar a regressão infinita de que, para cada regra, há
uma regra anterior que lhe condiciona, gerando o paradoxo de que “uma regra não poderia de­
terminar um modo de agir, pois cada modo de agir deveria estar em conformidade com a re­
gra” (idem, p. 93, §201 – cf. Kripke, 1982). Como já notamos no início do capítulo, se para
34
Wittgenstein a questão da compreensão do conteúdo proposicional não pode repousar numa
relação extralinguística, então fica fácil entender porque a ideia apresentada acima não nos
leva muito longe – não há abismo entre pensamento e realidade, justamente porque não há o
“lado de lá”, ou seja, o problema deve ser elucidado a partir de uma solução intralinguística.
Sendo assim, a resposta aparece em seguida:
“O desejo parece já saber o que o satisfaz ou satisfaria; a frase, o pensamento
parecem saber o que os torna verdadeiros, mesmo quando isto não se faz presente!
De onde vem esse determinar daquilo que ainda não existe? Esta exigência
despótica? (“A força do 'deve' lógico.”)”. (idem, §437). É neste ponto que a tese de Wittgenstein fica clara: as condições de satisfação de
uma ordem ou desejo já devem estar contidas na expressão das mesmas. O ponto aqui é simi­
lar ao mencionado acima: a estranha relação entre pensamento e realidade igualmente aparece
quando se fala de um desejo e do que o satisfaz – como se por um “feliz acaso” algo que dese­
jamos “acontece” como um evento, objeto ou fato do mundo.
Deve­se, no entanto, notar um ponto importante no trecho citado: Wittgenstein
fala em “determinação” da satisfação do desejo por sua expressão. Contextualmente, a nota
mais próxima que nos permitiria qualificar a noção de “determinação” é o que ele menciona
logo após como “A força do 'deve' lógico”. Infelizmente, tal menção é igualmente enigmática
e pouco esclarecedora; o que poderíamos conjecturar para oferecer um esclarecimento mais
preciso é o seguinte: que a lógica se afigura basicamente como a manipulação normativa de
proposições (ou signos em geral). Em sentido “lógico”, dizer que uma proposição “q” deve
seguir­se de “p”, é dizer que existe uma norma segundo a qual dado “p”, permite­me concluir
que “q”. Poderíamos ainda cogitar outros exemplos, mas o ponto parece se resumir ao seguin­
te: a norma que nos permite concluir “q” de “p” já está dada na gramática da linguagem com a
qual operamos, sendo, portanto, pré­condição para nosso juízo. Talvez essa forma seria a mais
adequada para entendermos o sentido de “contido” no que tange às condições de satisfação de
uma expectativa (pois as condições de satisfação de “q” já estão contidas, pela gramática, em
sua vinculação com “p”). Aparentemente, tal ideia nos geraria um paradoxo, pois a descrição
da expectativa ou de um desejo parece prefigurar a existência do mesmo. Disso, Wittgenstein
escapa da seguinte forma: “se eu sei o que eu desejo antes que meu desejo seja satisfeito – é
uma questão que não pode entrar neste jogo” (idem, p. 130, §441 ­ tradução alterada)
35
Sobre a questão das condições de satisfação, diz Wittgenstein:
“Direi “Se alguém pudesse ver a expectativa, o processo espiritual, deveria ver o que
é esperado. ­ Mas, na verdade, é assim: quem vê a expressão da expectativa, vê o
que é esperado. E como se poderia ver isso de outro modo, em outro sentido?”
(idem, §452).
Trata­se, portanto de negar que haja um “conteúdo” implícito (um “fantasma na
máquina”) no sentido psicológico do termo (por exemplo, numa entidade chamada “consciên­
cia”, de acesso privilegiado do sujeito que a possui). O objeto da expectativa, o que é espera­
do, diz Wittgenstein, está anunciado, descrito, na própria expressão da mesma. Por fim,
“Posso procurá­lo, se ele não está aí, mas não posso segurá­lo, se ele não está aí.
Poderíamos dizer: “Quando o procuro, ele precisa também estar presente”. ­ Neste
caso, ele deve também estar presente quando não o encontro, e também se ele nem
mesmo existe.” (idem, §462).
Nesse ponto, entra em questão o problema de o fato estar determinado pela expec­
tativa, porém, a solução é a mesma já indicada acima: se sabemos como usar a linguagem, en­
tão a usamos de maneira adequada e, ao expressar nossa expectativa a respeito de algo, este, o
que é esperado, já deve estar prefigurado em sua expressão, pois uma expectativa só é en­
quanto tal porque é a respeito de algo determinado.
No capítulo que se segue, apresentaremos a leitura de Tim Crane a respeito dessas
passagens, nas quais os intérpretes identificam a temática da intencionalidade nas Investiga­
ções Filosóficas. Veremos que os esforços de Crane estão voltados para mostrar que a solução
“gramatical” de Wittgenstein à questão da intencionalidade (traduzida na questão do objeto da
expectativa) não é suficiente, ou, ao menos, não ocorre pelo emprego das observações grama­
ticais tal como usadas por Wittgenstein nas seções das Investigações Filosóficas, pois o pen­
samento de que “p” pode ser feito verdadeiro pelo fato de que “q” e isto não é uma observa­
ção gramatical, levando à conclusão de que a verdade de uma proposição não é redutível à
gramática da linguagem. Crane defenderá, então, a necessidade de se re­incorporar o conceito
de representação para a temática da intencionalidade. 36
Capítulo 3
Críticas ao modelo pragmático de Intencionalidade
Neste capítulo apresentaremos uma crítica à possibilidade de uma interpretação da
intencionalidade no contexto da pragmática da linguagem. A crítica a que nos referimos é
desenvolvida por Tim Crane (2013) e seu principal objetivo é examinar o lugar que o conceito
de intencionalidade ocupa na filosofia de Wittgenstein, avaliando a correção do uso da
'análise gramatical' como solução para o problema da relação entre pensamento e realidade. O principal ponto de interesse para Crane em seu artigo “Wittgenstein and
Intentionality” é o papel que a noção de gramática desempenha na tentativa de dissolver
problemas específicos relacionados ao tema da intencionalidade, particularmente na obra
tardia de Wittgenstein. Circunscrito a esse contexto, o tema da intencionalidade será
qualificado em termos da relação entre pensamento e realidade, ou, de modo mais especifico,
em termos da relação entre expectativa e cumprimento e seu paralelo com a relação entre uma
ordem e sua execução e a relação entre uma proposição e o que a torna verdadeira (Cf. Crane,
2013, p.2). Relativo ao contexto de tratamento do tema da intencionalidade na obra tardia de
Wittgenstein, a noção de gramática desempenha papel fundamental e por essa razão torna­se
principal objeto de análise de Crane. Uma vez que os problemas filosóficos, inclusive o da
intencionalidade, não têm origem em nosso desconhecimento da estrutura metafísica do
mundo, ou de nossas próprias mentes, sua solução não poderá consistir em teorias explicativas
para tais fenômenos. O propósito da filosofia, para Wittgenstein, deveria ser uma espécie de
“clarificação” de conceitos, a assim chamada investigação gramatical, cujo sentido não é o
que remete à sintaxe ou morfologia, mas ao modo como usamos as palavras. É
especificamente essa solução, que se estende a todos os problemas filosóficos, dentre eles, o
problema da intencionalidade, que Crane tem por objetivo examinar e restringir seu alcance
(Cf. Wittgenstein, 1999, §§109­132; 248).
37
Ainda que tenha circunscrito sua análise à investigação gramatical, que é a expli­
cação para o problema da relação entre pensamento e realidade adotada por Wittgenstein a
partir da década de 30, Crane realiza um excurso às obras anteriores com objetivo de reforçar
a hipótese de substituição de uma abordagem metafisica por uma gramatical. 3. 1. Intencionalidade nas Investigações Filosóficas.10
Crane entende que é no contexto das Investigações Filosóficas que se pode
encontrar a mais qualificada discussão de Wittgenstein sobre a relação entre pensamento e
realidade. Especificamente sobre o tema da intencionalidade, as notas de interesse estão
concentradas em §§428­465. Relativo a esses trechos, o ponto para Crane consiste em
clarificar como a relação entre expectativa e o que a satisfaz (igualmente, as relações entre a
proposição e o que a torna verdadeira e entre uma ordem e aquilo que a executa) pode ser
explicada em termos da investigação gramatical, tal como proposta por Wittgenstein.
Metodologicamente, a estratégia adotada por Crane consiste em analisar o caso da expectativa
e em seguida aplicar as conclusões alcançadas aos outros de interesse para ele, a saber, a
ordem/execução e proposição/verofuncionalidade. Iniciando com o caso da expectativa,
considera­se o seguinte:
""O plano é, enquanto plano, algo insatisfatório." (Como o desejo, a expectativa, a
conjetura, etc.)
10
O problema da relação entre pensamento e realidade é observado também no Tractatus, a partir da teoria da
figuração que visa explicar a representação linguística, por meio da ideia de que a proposição compartilha um
tipo de estrutura com o fato que representa. A proposição e o fato se relacionam um com o outro pela relação
figurativa, que é interna à própria relação. (Cf. Wittgenstein, TLP § 4.014). O sentido em que a expressão
"relação 'interna" é empregada nesse contexto é relativo às propriedades, pois uma propriedade seria 'interna'
quando é impensável que o objeto não a possua. A definição de propriedade interna é aquela sobre a qual é
impensável que o objeto não a possua. Isso parece remeter ao conceito kantiano de analítico em que o predicado
já está contido no sujeito. Por exemplo, o conceito de corpo, cujo predicado 'ser extenso' já está contido nas
notas do conceito que definem o sujeito. Tal definição de 'interno' é diferente do sentido atualmente associado à
expressão, uma vez que uma relação interna não mais pressupõe necessidade. Por exemplo, há casos de relação
interna em que há necessidade ('x é filho de y') e casos em que não há ('x é mais alto que y'). Tal característica
não se aplica apenas a propriedades, mas a relações, tal como, por exemplo, a relação 'ser mais escuro que'.
Sobre essa segunda categoria também seria impensável que os objetos não estivessem em tal relação (idem, §
4.123). Assim, poder­se­ia dizer que uma relação 'interna' é aquela que é essencial ao que está em relação. (Cf.
Beaney 2006, p. 45). Crane resume a essência da teoria da figuração do Tractatus na afirmação de que a
proposição e a realidade estão internamente relacionadas. À parte disso, considera que a ideia de relação
'gramatical' é mais detalhadamente elaborada nas Investigações Filosóficas, contexto em que se encontram as
mais emblemáticas expressões de Wittgesntein acerca do tema da intencionalidade.
38
E aqui quero dizer (meine): a expectativa é insatisfatória, porque é a expectativa de
algo; a crença, a opinião insuficiente, porque é a opinião sobre algo que ocorre, algo
real, algo fora do processo de opinar." (Wittgenstein, 1999, §438).
Relativo a essa passagem, observa­se que a expectativa é expectativa de algo, o
que quer dizer que, aparentemente, são duas as coisas de que estamos falando, ademais,
parecem ser duas coisas distintas. Desse modo, faz todo sentido perguntar: como estão
relacionadas? Para responder a esta pergunta, Wittgenstein deixa de lado ao menos duas
abordagens. A primeira consiste em afirmar que aquilo que é esperado deve estar de alguma
maneira 'misteriosa' contida na expectativa:
"Vejo alguém apontar a arma e digo: "Espero um estampido." O tiro é disparado. ­
Como você esperou? Este estampido já estava, de alguma forma, em sua
expectativa? Ou sua expectativa concorda com o que aconteceu apenas sob outro
aspecto? Ou esse barulho não estava contido em sua expectativa e surgiu apenas
como acidente, quando esta foi satisfeita? ­ Mas, não, se o barulho não tivesse
ocorrido, minha expectativa não teria sido realizada; o barulho a realizou; o barulho
não se somou à realização como um segundo convidado a outro que eu já esperava. ­
Não estava no resultado aquilo que também estava na expectativa, ­ um acidente,
uma dádiva da providencia? ­ Mas e o que não era dádiva? Aparecia então alguma
coisa desse tiro já na minha expectativa? ­ E o que era dádiva, ­ pois não esperava o
tiro inteiro?
"O estampido não foi tão forte quanto esperava." ­ Detonou, pois, mais alto em sua
expectativa?"" (Wittgenstein, 1999, §442).
A outra posição a que se refere Wittgenstein, e a qual considera como não muito
explicativa, é a de que a expectativa e aquilo que a satisfaz estariam conectadas por um
ato/estado mental de querer dizer algo. Esta posição parece igualmente não resolver o
problema. Assim sendo, a situação que se coloca é a seguinte: há a expectativa (de que x
ocorra), há o que a satisfaz (a ocorrência de x) e há algo que os une. O que seria tal ligação?
Wittgenstein começa a responder essa questão em §444, descrevendo uma situação na qual
podemos falar da expectativa de algo:
"Temos talvez a impressão de que, na frase "espero saber se ele vem", nos servimos
das palavras "ele vem" numa outra significação que na afirmação "ele vem". Mas se
fosse assim, como poderia falar que minha expectativa foi realizada? ­ Se quisesse
elucidar ambas as palavras "ele" e "vem", por exemplo, por meio de elucidações
ostensivas, então as mesmas elucidações dessas palavras valeriam para ambas as
frases.
Mas poder­se­ia perguntar: que se passa quando ele vem? ­ A porta abre­se, alguém
entra etc. ­ Que se passa quando espero que ele venha? ­ Ando no quarto de um lado
para outro, olho para o relógio de vez em quando e etc. ­ Mas um processo não tem
com o outro a menor semelhança! Como se pode então usar as mesmas palavras para
a sua descrição? ­ Mas talvez diga, ao andar de um lado para outro: "Espero que ele
entre". ­ Agora há uma semelhança. Mas de que espécie?!" (Wittgenstein, 1999,
§444).
39
De acordo com Crane, o que Wittgenstein está apontando nessa passagem é
simplesmente que as palavras "Espero que ele entre" podem ser usadas com uma expressão da
expectativa, e por conterem a sentença "que ele entre", elas contém a descrição do que satisfaz
a expectativa. (Cf. Crane, 2013, p. 14). Tal interpretação pode ser melhor entendida se levar
em consideração o conteúdo do parágrafo seguinte ao §444, a saber, "Na linguagem,
expectativa e realização tocam­se." (Wittgenstein, 1999, §445). A conclusão que Crane extrai dessas afirmações é que não haveria a necessidade
de qualquer elemento extralinguístico necessário para explicar a relação entre expectativa e
satisfação, pois ela poderia ser resumida em termos do uso das mesmas palavras tanto na
expressão do que é esperado, quanto na descrição do que satisfaz a expectativa. Assim, ao que
parece, se observarmos o uso da linguagem (a gramática da "expectativa") o problema será
dissolvido. (Cf. Crane, 2013, p. 15).
Desse modo, a ligação entre expectativa e o que a satisfaz não consistiria em uma
ligação entre um estado/ato mental e algo 'misterioso' que ainda não aconteceu, nem
consistiria em uma relação interna entre a proposição que descreve a expectativa e o evento
(estado de coisas) que a satisfaz (Tractatus). Em vez disso, o que liga a expectativa à sua
satisfação é o fato de que usamos a mesma sentença 'p' tanto na descrição da expectativa 'que
p', como na descrição do que satisfaz a expectativa, 'p'. A solução gramatical empregada por Wittgenstein para o caso específico da
expectativa poderia ser aplicada também à relação entre a ordem e sua execução, tal como
observado em:
""A ordem ordena sua execução." Então conhece sua execução, mesmo antes que ela
ocorra? ­ Mas isto foi uma frase gramatical e diz: se uma ordem afirma "faça isto e
aquilo", então chama­se "fazer isto e aquilo" de executar a ordem." (Wittgenstein,
1999, §458).
Neste contexto, Crane observa que a proposição "A ordem ordena sua execução" é
uma proposição gramatical, quer dizer, significa que ela especifica certas regularidades para o
uso dos termos "ordem" e "execução". Desse modo, quem não compreender que uma ordem
ordena sua própria execução, não saberia como usar a palavra 'ordem' ou 'a execução de uma
ordem'. Segundo Crane, o ponto central em questão para Wittgenstein consiste em
40
eliminar a ideia de que há um elemento extralinguístico entre o pensamento e a realidade,
relação esta exemplificada pelo caso da expectativa e da ordem. Se no Tractatus afirmava­se
que tal relação era assegurada por uma estrutura metafísica, em termos de uma relação
interna, nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein visa elucidar a intencionalidade da
relação entre pensamento e realidade em termos intralinguísticos. Crane questiona sobre como pode a relação entre o pensamento e um fato ser algo
intralinguístico, uma vez que o pensamento é uma coisa, e o fato, outra. O pensamento é algo
que pode ser verdadeiro ou falso, algo sobre o que alguém acredita, nega, duvida. O fato, por
sua vez, não é algo sobre o que alguém acredita ou nega, não é verdadeiro, mas trata­se de
algo que ocorre no mundo. Não se trata de coisas da mesma natureza. (Cf. Crane, 2010, p.18).
Ademais, Crane questiona a não existência de uma relação entre pensamento e
realidade, uma vez que a proposta de Wittgenstein consistiria em afirmar que existem apenas
relações gramaticais entre sentenças que descrevem pensamentos (expectativas, ordens, etc) e
sentenças que descrevem aquilo que os torna satisfeitos, cumpridos, etc, de tal modo que a
explicação para todas as questões que envolvem a intencionalidade consistiria apenas em uma
regra "gramatical" para o uso de signos que ligam expressões. Para Crane, tal possibilidade de
redução da intencionalidade à linguagem é questionável por ser uma alternativa que simplifica
excessivamente o tema. Consideremos, especificamente, o caso da expectativa. Para Wittgenstein, tudo
que precisamos para resolver o problema sobre como expectativa e realização se relacionam,
consiste em uma frase na forma de "a expectativa que p", que pode ser usada para descrever a
expectativa, quanto àquilo que a satisfaz. Vejamos o exemplo: Tenho expectativa de que o
carteiro me trará uma carta pela manhã. Vamos supor que eu não saiba que há dois carteiros
no meu bairro: João e Pedro e que a cada dia um deles entregue minhas cartas. Na segunda­
feira, quem traz minha carta é João; na terça­feira, é Pedro. Assim, na segunda­feira, minha
expectativa é satisfeita por João me trazer a carta, de modo que, na segunda­feira, parece ser
verdadeiro o seguinte: minha expectativa de que o carteiro me trará uma carta pela manhã é
satisfeita por João me trazer uma carta. Na terça­feira, minha expectativa de que o carteiro
me trará uma carta pela manhã é satisfeita por Pedro me trazer uma carta. De ambos os
41
modos, é verdadeiro dizer que: minha expectativa de que o carteiro me trará uma carta pela
manhã é satisfeita por o carteiro me trazer uma carta. (Cf. Crane, 2013, p. 20).
Frente a isso, pode­se concluir que diferentes eventos podem satisfazer a mesma
expectativa. Assim, não estaríamos obrigados a descrever o que satisfaz nossa expectativa
pela expressão que p. Uma expectativa pode ser cumprida por um evento que não estava
previsto, cuja ocorrência não era esperada. Além disso, é possível que a expectativa seja
atendida por eventos que não eram previstos. Por exemplo: Suponha que José é padre em
nosso bairro e, sem que saibamos, trabalhe como carteiro para complementar sua renda,
fazendo com que minha expectativa de que o carteiro me trará uma carta pela manhã é
satisfeita por o padre do bairro me trazer uma carta. O que se pode concluir desse exemplo é
que podemos descrever o que satisfaz a expectativa de modo independente da descrição da
expectativa mesma, diferentemente do que propõe Wittgenstein, de acordo com o qual o
objeto da expectativa deve ser descrito apenas pelo modo especificado na descrição da
expectativa mesma, o que parece problemático, pois não era esperado que José, o padre do
bairro, viesse trazer a carta, mas é precisamente isso que cumpre a expectativa de que o
carteiro traga uma carta. (Cf. Crane, 2013, p. 21).
De acordo com Crane, "What satisfies the expectation is an event, and not an ‘event under a description’.
For there are no events ‘under descriptions’, there are only events and descriptions
of events; and descriptions of events do not fulfil expectations." (Crane, 2013, p.
22).
Quer dizer, é necessário distinguir entre o que satisfaz a expectativa – o objeto da
expectativa – e como os sujeitos se referem a tal objeto. Se chamarmos a forma como o
sujeito pensa o objeto de o que é esperado, então podemos descrever, sem paradoxo, como a
expectativa de alguém pode ser satisfeita por algo que não era esperado. O esperado era que o
carteiro me traga a carta. Não sabíamos que José, o padre do bairro, era também carteiro,
então, naturalmente, não esperávamos que o padre do bairro entregasse a carta. No entanto,
foi exatamente isso que satisfez a expectativa. A conclusão é que não se pode pensar que o que é esperado e o que satisfaz a
expectativa seja a mesma coisa. O que é esperado é o conteúdo da expectativa; já o que
satisfaz a expectativa é o objeto da expectativa. O conteúdo da expectativa é a descrição da
42
expectativa de um sujeito, sob um ponto de vista. O conteúdo da expectativa é uma
representação do seu objeto: uma representação do que a satisfaria. Assim, a minha
expectativa geral de que o carteiro vai trazer uma carta é uma representação de um tipo de
estado de coisas: o seu conteúdo. Qualquer evento que corresponda a essa descrição poderá
satisfazer a expectativa, podendo, assim, ser chamado de objeto da expectativa. (idem, p. 22­
23).
A ligação entre a expectativa e o que a satisfaz é mais complicada do que a
descrição de Wittgenstein, baseada nas regras do uso da linguagem, pois estas não explicam o
fato de José, o padre do bairro, me entregar a carta, satisfazer a expectativa de 'que o carteiro
me trará uma carta'. Assim, pode­se saber da gramática da palavra "expectativa", mas nem por
isso, necessariamente, saber o que satisfaz uma expectativa. Saber em que consiste a
expectativa exige um tipo de conhecimento distinto, aquele que nos permite saber sobre algo
do mundo. (idem, p. 25).
Tendo considerado o caso da expectativa, pode­se estender os resultados da
análise para outros casos de relação entre pensamento e realidade, tais como a ordem e a
proposição. Com respeito à relação entre a proposição e aquilo que a torna verdadeira, Crane
dirá que o pensamento de que p pode ser feita verdadeira pelo fato de que q, e isto não é uma
observação gramatical, isto significa que a verdade de uma proposição não é redutível à
gramática da linguagem.
Em suma, a argumentação de Crane tem por objetivo afastar a ideia de que o
problema da relação entre o pensamento e realidade tenha sido resolvido pelo método de
investigação gramatical, ou, ao menos, tal solução não ocorre pelo emprego das observações
gramaticais tal como usadas por Wittgenstein nas seções das Investigações Filosóficas. Nesse
sentido, considera­se que Hacker e outros seguidores de Wittgenstein estariam equivocados
ao afirmar que tal análise proporcionaria a dissolução dos problemas relativos à
intencionalidade.
A proposta positiva de Crane, caso tenha conseguido afastar a solução proposta
nas Investigações Filosóficas, consiste em reconsiderar a ideia de que há algo mais que
explique a conexão entre pensamento e realidade. A ideia que lhe parece mais natural é a de
representação: 43
"The very natural idea which was briefly mentioned in the previous section is the
idea of representation. The statement of an order represents its execution, an
expectation represents what is expected, a judgment represents what it judged, and
so on. An appeal to the notion of representation is not supposed to be a solution to
the problem of intentionality, since ‘representation’ is arguably just another word for
the same phenomenon. (For instance, representation, like intentionality, is not a
relation to its objects since one can represent what does not exist.)." (idem, p. 27).
O objetivo de Crane na passagem é propôr uma solução por meio do conceito de
representação, pode nos fazer recordar do “representacionalismo clássico” de Brentano, o
mesmo que foi objeto de crítica por parte de Wittgenstein, especialmente, nas anotações de
seus ditados a Waismann (The Voices of Wittgenstein). O conteúdo detalhado da proposta de
Crane não é diretamente objeto de análise do presente trabalho, mas certamente alguém que
queira oferecer a ideia de representação mental, não só como noção fundamental no estudo da
intencionalidade, mas como solução mais adequada para o problema, terá necessariamente de
lidar com críticas anteriormente levantadas à noção de representação, tais como a de que tal
posição envolve algo como um “Hocus Pocus na alma”.
No capítulo a seguir, apresentaremos a leitura de um defensor da proposição de
Wittgenstein, cuja defesa consiste em atacar os pontos do artigo de Crane elencados no pre­
sente capítulo. Trata­se de Peter Hacker e sua crítica é apresentada no artigo “Intentionality
and the harmony between thought and reality: A rejoinder to Professor Crane”.
44
Capítulo 4
Hacker sobre Intencionalidade, Gramática e Pragmática As notas de Wittgenstein sobre o problema da relação entre pensamento e realida­
de, aqui entendida como o problema da intencionalidade, tem sido alvo de críticas, mas tam­
bém encontram defensores. No capítulo anterior apresentamos a crítica de Tim Crane, discuti­
da em seu artigo “Wittgenstein and Intentionality”, cujo propósito central é mostrar que o pro­
blema da relação entre pensamento e realidade não é adequadamente resolvido por meio da
noção de gramática da linguagem, tal como pensava Wittgenstein.
No presente capítulo, nos propomos a apresentar um defensor das ideias de Witt­
genstein, Peter Hacker. Para tal, iremos nos deter no artigo em que é apresentada a crítica
mais direta e contundente às observações de Crane, a saber, “Intentionality and the Harmony
between Thought and Reality: A Rejoinder to Professor Crane”. Nosso propósito será desen­
volvido ao pontuarmos os argumentos de Hacker e Crane seguidos de uma análise circunscrita
ao alcance que as observações de Hacker possam ter em relação ao conteúdo da crítica que
Crane faz a Wittgenstein eu seu artigo acima mencionado. Hacker inicia seu artigo afirmando que a crítica de Crane é resultado de má inter­
pretação, tanto das ideias de Wittgestein, quanto de sua própria posição como defensor das te­
ses de Wittgenstein:
“Indeed, he supposes my statement of the problem of intentionality as the young
Wittgenstein saw it to be a statement of his solution to it.” (Hacker, 2011, p.1). Crane teria entendido mal a interpretação de Hacker sobre como Wittgenstein
tratou o problema da intencionalidade, atribuindo uma perspectiva diferente daquela que
Hacker teria sobre o alcance das observações de Wittgenstein.11 Em seguida, Hacker observa que a leitura de Crane seria pontual e circunscrita a
apenas uma referência:
“Professor Crane has not read my primary examination of Wittgenstein’s
investigations into intentionality in Wittgenstein: Mind and Will, but only the brief
11
“Indeed, P.M.S. Hacker has claimed that the topic of intentionality is central to Wittgenstein’s later critique of
the Tractatus’s account of meaning: ‘Wittgenstein’s detailed criticism of the picture theory was conducted by
way of an investigation of intentionality’ (1996:79).” (Crane, 2010, p.1).
45
discussion in my Wittgenstein’s Place in Twentieth Century Analytic Philosophy
and an article ‘An Orrery of Intentionality’. That was written for readers familiar
with Wittgenstein’s work, and may have proved too compressed.” (Hacker, 2011,
p.1). O ponto em questão no trecho diz respeito ao fato de que Crane considera em seu
artigo apenas as notas e argumentos apresentados em duas das obras de Hacker. Poderíamos
pensar a respeito dessa observação, em que medida um artigo, onde o conteúdo é apresentado
de modo mais concentrado, ou até mesmo mais resumido, apenas pela característica de ser
uma apresentação mais breve das ideias, não seria um bom exemplar do pensamento de um
autor que dedica boa parte de sua obra a defender determinadas teses e interpretações. Em ou­
tras palavras, poderíamos nos perguntar se deveríamos considerar o artigo “An Orrery of In­
tentionality” uma fonte não fidedigna das teses defendidas por Hacker, unicamente por seu
caráter “resumido”? Outro problema que Hacker aponta refere­se ao conhecimento de Crane acerca do
uso que Wittgenstein faz do termo “intencionalidade” (intentionality/intentionalität):
“Professor Crane begins by remarking that the word ‘intentionality’ is not ­ to his
knowledge ­ used in Wittgenstein’s writings. Since Wittgenstein wrote in German,
that is not surprising. But his German term of art ‘Intention’ (which is connected to,
but does not mean the same as ‘Absicht’) is Wittgenstein’s expression for the Latin
intentio, from which our ‘intentionality’ and Brentano’s ‘Intentionalität’ are derived.
According to the Bergen transcription, this term occurs 224 times in Wittgenstein’s
writings, most of which concern the intentionality of thought and language, and not
simply Absicht.” (Hacker, 2011, p.1­2).12 Nesse contexto, poderíamos pensar sobre se a não observância da repetição de
determinado termo na obra de um autor afetaria o entendimento por parte de um crítico sobre
o ponto em questão para Wittgenstein. Ademais, se considerarmos as duas passagens, ao que
parece, não há uma diferença entre o entendimento de Crane e de Hacker quanto à
centralidade do tema da intencionalidade na obra de Wittgenstein. Outro ponto que Hacker observa criticamente diz respeito à origem e ao significa­
do da expressão que descreve o problema da intencionalidade, “a harmonia entre pensamento
e realidade”. Nota Hacker:
“Professor Crane notes correctly that Wittgenstein sometimes characterized the core
12
“Although the word ‘intentionality’ is not (to my knowledge) used in the English translations of
Wittgenstein’s philosophical writings, the idea it expresses was central at all stages of his philosophical
development. This should be obvious on a little reflection, not least because the philosophical notion of
intentionality is closely related to the notion of meaning, and questions about meaning are, of course, central to
both the Tractatus and Wittgenstein’s later work.” (Crane, 2010, p. 1).
46
problem of intentionality as the problem of the ‘harmony between thought and
reality’ (e.g. PI §428). Indeed Wittgenstein also characterized it, with a deliberately
Leibnizean allusion, as the ‘pre­established harmony between thought and reality’
(e.g. BT 189). The moot question is what he meant by this enigmatic phrase.
Professor Crane (pp. 88f., 93) takes it to refer to the observations that the wish for it
to be the case that p is the wish that is fulfilled by its being the case that p, that the
thought that p is the thought that is made true by the fact that p, or that the order to
V is the order that is obeyed by Ving. But that is mistaken. […] The agreement or
harmony between thought and reality is not (as Professor Crane supposes) an
agreement of truth (satisfaction, obedience). It is an agreement that obtains (is
preestablished) between thought and reality no matter whether the thought is true or
false, the wish fulfilled or not fulfilled, the order obeyed or disobeyed.” (Hacker,
2011, p. 2).13
A crítica de Hacker nesse sentido pode ser observada a partir de dois pontos: (1) a
respeito da origem da expressão que descreve o problema da intencionalidade como o proble­
ma da relação entre pensamento e realidade, e (2) a respeito do significado de tal expressão.
Considerando (1), Hacker reivindica que tal expressão usada por Wittgenstein para referir­se à
intencionalidade seja uma alusão a Leibniz. Esse primeiro ponto inicialmente não parece tão
problemático, especialmente se entendermos que a alusão ou não a Leibniz não altera substan­
cialmente o conteúdo das passagens. Já o segundo ponto, sobre o significado da expressão “o problema da intencionali­
dade é o problema da relação entre pensamento e realidade”, parece mais emblemático, uma
vez que Hacker discorda veementemente da postura de Crane, de associar a relação entre pen­
samento e realidade a outras relações, entre a expectativa e aquilo que a satisfaz, entre a or­
dem e aquilo que a cumpre, por exemplo. A principal razão para Hacker discordar da aborda­
gem de Crane nesse sentido consiste no fato de que, para Hacker, tal relação, entre pensamen­
to e realidade, é dada preliminarmente, independentemente de o pensamento ser verdadeiro ou
falso (de a expectativa ser realizada ou não; de a ordem ser obedecida ou desobedecida).
Cabe aqui ressaltar que esse é um ponto central na discussão entre Hacker e Cra­
ne, pois diz respeito à interferência de elementos exteriores à linguagem na relação entre pen­
samento e realidade. Cabe ainda adiantar que a posição de Hacker, enquanto defensor das te­
ses de Wittgenstein, tende a ser a de alguém que igualmente defende a posição de que não há
espaço para “algo mais” do que a gramática da linguagem na explicação de tal relação. 13
“In particular, I want to restrict myself to the discussion his later remarks about the relationship between
expectation and fulfilment, and the parallels with the relationship between an order and its execution, and
with the relationship between a proposition and what makes it true. These relationships all exhibit what
Wittgenstein once called ‘the harmony between thought and reality’.” (Crane, 2010, p. 2).
47
Em seguida, o ponto para Hacker diz respeito à continuidade do uso dos termos
“propriedade/relação interna” na obra de Wittgenstein:
“The terms ‘internal property’ and ‘internal relation’ were common philosophical
jargon of the day, not special Wittgensteinian terms of art. Professor Crane (p. 92
and note 4) suggests that after 1929, Wittgenstein ceased using this terminology
(although he cites two loci known to him in which Wittgenstein does use the terms).
In fact Wittgenstein used the terms approximately 180 times after 1929 according to
the Bergen transcriptions.” (Hacker, 2011, p. 5).14
O ponto nessa passagem diz respeito à substituição (ou não) do termo “relação in­
terna” por “relação gramatical” já no assim chamado período intermediário de Wittgenstein. É
interessante notar que, se for convincente a posição de Crane de que há uma substituição do
termo “relação interna” por “relação gramatical”, poderíamos pensar que há mais algum ele­
mento que evidencie o fortalecimento do caráter linguístico/gramatical referente ao fato de o
problema da intencionalidade poder ser entendido como um problema a ser resolvido via gra­
mática da linguagem, independentemente de fatores extralinguísticos, posição que Crane
apresenta detalhadamente, para que possa argumentar contra ela em seu artigo. A seguir, o ponto diz respeito à centralidade da relação entre o pensamento e o es­
tado de coisas que o torna verdadeiro no contexto do Tractatus. Pode­se entender, como ponto
complementar, a preocupação acerca da própria natureza de tal relação, como uma relação in­
terna:
“To put matters in the terms of the 1910s (as Wittgenstein unsurprisingly did), the
thought that p is internally related to the fact that p that makes it true. That is: the
thought that p would not be the thought that p were it not the thought that is made
true by the fact that p. So too, the thought that p would not be the thought it is, were
it not the thought that is made false by its not being the case that p. This internal
relation is not (as Professor Crane suggests (p. 96)) a postulate of the Tractatus. It is,
or was conceived to be, undeniable Wesensschau.” […] Professor Crane attributes to
me the suggestion that the idea that the thought that p and the state of affairs the
existence of which makes it true are internally related is THE fundamental insight of
the Tractatus (p. 91). Of course it is not, and I did not suggest that it is. What I wrote
was that it is A fundamental insight (Wittgenstein’s Place in Twentieth Century
Analytic Philosophy, p. 31). According to Wittgenstein himself, his fundamental
thought (his Grundgedanke) was that the ‘logical constants’ are not representatives
(TLP 4.0312)! I have suggested elsewhere that the idea of the bipolarity of the
proposition is no less fundamental.” (Hacker, 2011, p. 5).15
14
“In abandoning the metaphysics of the Tractatus, Wittgenstein abandoned the idea that thought and reality
stand in an internal relation, and in fact the term does not seem to appear in his later writings. In his so­called
middle period of the 1930s, the notion of an internal relation seems to be replaced in places with the notion of a
‘grammatical relation’ (see Moore 1954).” (Crane, 2010, p. 8).
15
“The essence of the picture theory, then, is that the proposition (or thought) and reality are related internally.
P.M.S. Hacker has called this the ‘fundamental insight’ of the Tractatus.” (Crane, 2010, p. 6);
48
Relativo a essa passagem, sobre o tema da relação entre pensamento e realidade,
seja sobre sua natureza como relação interna, seja referente à posição que ocupa no contexto
do Tractatus, Hacker demonstra maior preocupação com a centralidade do tema para Witt­
genstein. Nesse sentido, o autor tem por principal objetivo assegurar sua posição, como a de
quem não afirma a centralidade do tema no contexto do Tractatus. Em vez disso, pretende as­
segurar que a interpretação correta seria de que esse é um dos pontos que interessam a Witt­
genstein no referido contexto, não o único, nem o de maior relevância.
Sobre isso, cabe notar os seguintes pontos, a saber: O primeiro diz respeito ao al­
cance da afirmação/negação de Hacker sobre a centralidade do tema no contexto da obra de
Wittgenstein. O segundo, e não menos importante, diz respeito às possíveis consequências
que isso teria sobre a crítica que Crane faz a Wittgenstein, e sobre inviabilizá­la. Pode­se adi­
antar que, ao menos inicialmente, não nos parece que o fato de Hacker afirmar (ou não) a cen­
tralidade do tema no contexto do Tractatus invalidaria o ponto central da crítica de Crane a
Wittgenstein, porque o ponto central da discussão de Crane é a eficácia da solução gramatical
para o problema da intencionalidade, no contexto específico das Investigações Filosóficas. É importante notar que o interesse de Crane no Tractatus consiste em um excurso
à obra anterior às Investigações Filosóficas, não sendo o ponto central de sua crítica. Para
mostrar a insuficiência da crítica de Hacker, basta notar que sua alegação permanece apenas
no nível da exegese textual, sobre qual seria exatamente o ponto central do Tractatus (como
se quisesse dizer o que o autor real e unicamente visou com seu texto). Isso, no entanto, não é
suficiente para mostrar que a interpretação de Crane sobre o Tractatus seja errônea, ao mesmo
tempo em que não toca no argumento aventado por Crane. Ou seja, Hacker não discute as pre­
missas do argumento de Crane, apenas desqualifica seu discurso, se apresentado como o por­
tador da verdadeira intenção do texto de Wittgenstein.16
“In all these cases we might be tempted to think that there is some kind of special metaphysical
relationship between the state of mind and its object, just as the Tractatus had postulated an internal relation
between the proposition and the fact it represents.” (idem, p. 16).
16
Pensemos o caso por meio de um exemplo mais abstrato: Seja T uma teoria que é satisfeita por meio de três
modelos ou interpretações (I , I , I ). Basicamente, Crane diz que a interpretação de T diz que P (tese de Crane
1
2
3
sobre relações internas). A “crítica” de Hacker resume­se a dizer, apenas, que Crane não escreveu que T tem
uma única interpretação ou que, por exemplo, I , seja a central. Isso, no entanto, não é suficiente para tocar no
3
49
Em seguida, Hacker refere­se ao problema da relação entre pensamento e mundo,
no que diz respeito à questão da verdade:
“Professor Crane attributes to me the idea that when one thinks truly that p what one
thinks is identical with the fact that p. Indeed, he suggests that I ascribe this idea to
Wittgenstein. The supposition that there is an identity here is part of the problem,
not of the solution (It has to be identical and yet it cannot be identical!). Professor
Crane rightly says that I hold that if what one thinks is true then what one thinks is
what is the case – and immediately goes on ‘In other words, the true thought is
identical to the fact: this is how thought “reaches right up to reality”.’ But these are
his words, not mine. There seems to be an identity here, but there cannot be – that is
the problem, not its solution!” (Hacker, 2011, p. 7).17
Nessa passagem, na qual está em questão a relação entre pensamento e mundo, es­
pecialmente, se entendida na perspectiva da teoria da verdade tal como expressa no Tractatus,
Hacker igualmente não toca no argumento de Crane, apenas desqualifica sua interpretação em
termos exegéticos, negando­a como “inverossímil”.
Outro ponto em questão é o seguinte:
“Wittgenstein never suggested that a true thought or proposition is identical with the
fact that makes it true. […] This is confused. These are not usages, but misuses – the
first being the misuse of Frege (repeated by Strawson), the second a misuse of the
young Wittgenstein in the Tractatus (repeated by Austin and Searle). These are
philosophical blunders, not alternative usages.” (Hacker, 2011, p. 9).18
Relativo a essa passagem, na qual se discute a pressuposição de que o pensamento
é figuração da realidade, o ponto em questão é o seguinte: se assumirmos que o pensamento é
figuração da realidade, como poderíamos pensar o falso, uma vez que um pensamento falso
geraria uma realidade falsa? (!). Para melhor entender, pode­se esquematizar este raciocínio
da seguinte forma: 1. o pensamento se dá na relação figuradora; 2. a relação de figuração só
acontece com estado de coisas e proposição, uma a uma; 3. para existir pensamento é
necessário figuração; 4. a relação figuração só existe quando a proposição é verdadeira e o
argumento da crítica, nem a inviabiliza, justamente porque, implicitamente, aceita que a interpretação evocada
por Crane é válida e representa/satisfaz (ao menos em parte) o conteúdo da teoria T.
17
“But Hacker also expresses this idea by saying that that what one thinks (the thought) is what is the case if
one’s thought is true, and that this is what it means to say that thought ‘reaches right up to reality’ Someone
might understand this idea along the lines of the so­called ‘identity theory of truth’, in terms of the thesis that the
true thought is identical to the fact.” (Crane, 2010, p. 6­7).
18
“Of course, ‘fact’ can mean a number of different things. In one usage, a fact is just a truth—a fact is ‘a
thought [Gedanke] which is true’ as Frege puts it (1918–1919: 35). On another usage, a fact is something in the
world, something on an ontological level with objects and properties (McTaggart 1921), something that makes
truths true. If we adopt this second use of ‘fact’, the Platonic problem arises: how is falsity possible?” (Crane,
2010, p.7)
50
estado de coisas a confirma; 5. se proposição é falsa, então não há um estado de coisas que a
confirme; 6. se o estado de coisas não é alcançado, não existe relação figuradora; 7. se não
existe relação figuradora do falso, não há pensamento do falso. De fato, o argumento de Crane poderia ser enfraquecido ou por apresentar­se
outro conceito de pensamento ou por assumir uma noção de pensamento não necessariamente
vinculada à relação figuradora. Faz­se notar que nenhuma dessas posturas é a adotada por
Hacker, o que deixa intocado o argumento crítico de Crane. Outro ponto de interesse para Hacker é:
“Professor Crane further errs in suggesting that some facts, like the fact that
Magellan circumnavigated the globe, ‘take place’ or ‘go on in the world’, and that
some facts are parts of ‘what happened’ (p. 97). But it is events that take place or go
on – not facts. Facts obtain, but they do not go on, occur or happen. While events
have a temporal and usually also a spatial location – facts have neither. Events
commonly begin, go on for a while, may have different phases that are indeed part
of what happened, and then come to an end. Facts neither begin nor go on, they do
not have phases, and they do not come to an end.” (Hacker, p. 10).19
Nesse sentido, podem­se avaliar as duas posições no que se refere ao entendimen­
to das noções de fato e evento. Para Hacker, há uma distinção entre fato e evento, ao passo
que Crane os trata indistintamente. Nesse caso, parece uma questão de ajuste terminológico –
parece claro que, de acordo com a visão de Crane, todo fato (em termos objetivos) passa por
um evento em sua gênese (pensemos, por exemplo, o caso da História: a História, como escri­
ta, nada mais é do que o registro de fatos que se passaram como eventos num determinado
contexto e época. A partir do momento em que eles são “registrados”, tornam­se “fatos histó­
ricos”, deixam de ser eventos no sentido temporal, tal como criticado por Hacker).
Por fim, a observação de Hacker que se refere diretamente à crítica de Crane:
“It is amusing to note that Wittgenstein was well aware of this issue. He mentions it
en passant in Investigations §441. In our language­games with expressions of
wishes, the question of whether I know what I wish before my wish is fulfilled
cannot arise. It would be absurd to suppose (as Russell did in Analysis of Mind) that
I don’t know what I wish until something puts paid to it. For then it might turn out
19
“It is tempting to say: how can the relationship between thought and fact be an ‘intralinguistic matter’? After
all, the thought is one thing, the fact quite another! The thought that Magellan’s voyage of 1519–1522 was the
first successful circumnavigation of the globe is something which is true, something which people can think,
deny, or doubt. It might have been false. The fact that the voyage was the first circumnavigation of the globe is
something else altogether: the fact is not something one can think or doubt or deny. The fact is not true; the fact
is something that obtains, something which involved other facts, like the fact that Ferdinand Magellan sailed
through the Magellan straits, that he was killed in the Philippines; these are facts about events that happened on
this voyage. These events are things that went on in the world; they are what is described by, or conceived of in,
the thought. They are not the same kind of thing as the thought itself, of course.” (Crane, p. 18).
51
that my wish for an apple is satisfied by a punch in the stomach that makes the wish
disappear (PR 64). On the other hand, Wittgenstein notes, ‘the word “wish” is also
used in this way: “I don’t know myself what I wish for”.’ He does not comment on
this, but the required elaboration is obvious: this is not a case of ignorance (of my
having a wish but not knowing what it is), but of indecision (I need to make up my
mind, not peer into it). Wittgenstein then adds a further parenthesis directly pertinent
to Professor Crane’s ‘objection’: ‘(“For wishes themselves are a veil between us and
the things wished for.”)’” (Hacker, 2011, p. 17).
A partir dessa passagem, podemos entender a leitura de Hacker da seguinte forma:
digamos que C represente uma ordem, definida por meio de um conceito 20 (ex: 'sair de'). De
acordo com Wittgenstein, C está atrelada a um conjunto D de descrições que satisfaz o (caem
sob o escopo do) conceito C – por exemplo: as n formas (D) de se sair de uma sala (ordem C).
No entanto, pode­se pensar num caso em que haja uma descrição d, que não esteja contida em
D, e também satisfaça C, tal que a satisfação de C seja dada por ({D} U d). O ponto é que D é
formado por aquilo que Wittgenstein chamou de instituições, ou seja, a solidificação, em
termos de hábitos, de parâmetros normativos de uma comunidade. Ora, é perfeitamente
possível pensar num caso em que dois indivíduos de culturas distintas, sem relação prévia, se
comuniquem efetivamente (por exemplo, um índio brasileiro pré­cabraliano e um português),
de forma tal que expectativas ou ordens sejam realizadas sem que a descrição de tal realização
esteja necessariamente contida em D. O problema em questão é que se se encontra uma descrição d (ou fato) que
satisfaz a expectativa e que não estava contida no conjunto D (descrições de) de expectativas,
então a abordagem de Wittgenstein sobre intencionalidade falha, não sendo suficiente; se se
mantém isso, e se considera a abordagem suficiente, então d teria que pertencer ao conjunto D
(descrições de) de expectativas. Porém, se d pertencer a D, então ambos referem­se ao mesmo
contexto C (“cultura”/instituições), o que contradiz a hipótese inicial de indivíduos de
contextos diferentes e não compatíveis.
Reformulemos tal ideia: suponha que haja dois indivíduos, I e I , e suas respecti­
i p
vas culturas (indígena e portuguesa). Cada cultura implica (pressupõe/gera/origina) um con­
junto D de pensamentos ou descrições a respeito de fatos (D e D ). Considere ainda que am­
i
p
20
A palavra “conceito” é usada de modo genérico e amplo a ponto de dar conta de descrever fatos ou eventos
relativos ao cumprimento de uma ordem.
52
bas são distintas e incomensuráveis (ou seja, cada qual possui um conjunto particular de pen­
samentos, formados a partir dos hábitos e instituições próprias). Suponha que haja uma expec­
tativa E de D , e uma descrição d de D ; se E é satisfeita por d (como imagina Crane), então
p
i
i
i as respectivas culturas não são incomensuráveis, mas compartilham uma “bagagem” de pen­
samentos, o que pareceria contraintuitivo, dado que ambas culturas nunca estiveram em con­
tato antes. Se se leva a cabo tal linha de raciocínio, a consequência que extraímos disso é um
inatismo, por meio do qual procura­se justificar a “semelhança” do conjunto de descrições de
diferentes culturas ao apelar para similaridades entre características biológicas. Por outro lado,
se fossem comensuráveis, e d satisfaz E, do mesmo modo teríamos um problema, pois d não
i
i
pertence a D e consequentemente, não poderia ser “previsto” (contradizendo a hipótese inici­
p
al).21
Finalmente, a conclusão de Hacker é que Crane erra ao afirmar que o problema da
relação entre pensamento e realidade não é resolvido pela assim chamada “investigação
gramatical”. Ademais, Crane falharia ao sugerir reconsiderar a ideia de que há algo mais para
explicar a conexão (ou aparente conexão) entre expectativa e satisfação, a saber, a ideia de
representação.22 Se considerarmos a conclusão do artigo de Crane, tal como apresentado no
capítulo 3, observa­se que sua postura é crítica no que se refere à solução gramatical, tal como
apresentada por Wittgenstein (e defendida por Hacker), considerando­a insuficiente para lidar
com o problema da relação entre pensamento e mundo. Pelo fato de tal abordagem não
oferecer um esclarecimento para a questão da intencionalidade, Crane depreende a
21
Gostaria de agradecer ao Thiago Carreira por ter me ajudado a reinterpretar a crítica de Crane nesses termos,
auxiliando na formulação do exemplo.
22
“Hacker and his followers are wrong to think that these passages provide a dissolution of the problems of
intentionality identified by Wittgenstein. No satisfactory general account of intentionality is offered here. If this
argument is right, then we should be prepared to reconsider the idea that there might be something else that
explains the connection, or apparent connection, between an expectation and what fulfils it, a proposition and
what makes it true, an order and what executes it, and so on.” (Crane, p. 26)
53
necessidade de pensar tal relação em termos da noção de representação, abrindo espaço para
seu assim chamado “representacionalismo”. É justamento essa tentativa de Crane que Hacker
classifica como tendenciosa no sentido de buscar resgatar a “antiga” noção de representação
mental, justamente aquela com a qual Wittgenstein havia se detido no período das
Investigações Filosóficas, e à qual direcionou as observações críticas que apresentamos no
capítulo 2. (Cf. Hacker, 2011, p. 18).
54
Conclusão
O propósito inicial deste trabalho foi analisar o papel que as intenções do falante
desempenham para a compreensão do significado linguístico, restrito ao domínio de uso a
linguagem ordinária, em seu contexto pragmático. Essa abordagem consiste em considerar o
significado linguístico como algo instituído culturalmente, fundamentado no modo como a
linguagem é usada por uma comunidade de falantes. Em termos linguísticos, diz­se que um
pragmatista defende que os significados linguísticos são socialmente instituídos e que sua
compreensão repousa na habilidade do falante em operá­los de modo adequado num contexto
linguístico específico. Nesse sentido, o ponto central de nosso trabalho seria examinar o
fenômeno da intencionalidade para além do domínio mental, ou seja, analisar em que medida
uma noção operacional de significado levaria a uma abordagem pragmática de
intencionalidade, de acordo com o qual o que é visado por meio um estado intencional não é
um objeto ou sua representação, mas uma função a ser cumprida em um contexto linguístico.
A despeito desse nosso objetivo inicial, faz­se notar que o trabalho caracterizou­se também
por abordar a intenção como fenômeno psicológico, por trás das ações e expectativas e não
somente relativa a compreensão do significado linguístico. No primeiro capítulo, vimos a leitura de Brentano sobre a intencionalidade e sua
tese sobre a identidade entre estados mentais e estados intencionais, a qual consiste na
afirmação de que todos os estados mentais, e somente os estados mentais, são intencionais,
estando vetada a possibilidade de estados mentais não intencionais e estados intencionais não
mentais. Nesse sentido, para Brentano, o domínio mental é definido por meio da noção de
intencionalidade, entendida como a capacidade da mente de referir­se a um objeto ou
conteúdo. Assim, por exemplo, em uma representação, há algo representado, sobre um juízo,
algo é afirmado ou negado, sobre uma expectativa, algo é esperado. O ponto central para
Brentano é que sempre há algo a que os estados mentais estão direcionados, algo de que são
sobre e é isso que os caracteriza como intencionais. A teoria de Brentano encontra desenvolvimentos e críticas, dentre as quais, a
apresentada por Searle. Tal crítica repousa sobre a primeira parte da tese de Brentano (todos
55
os estados mentais são intencionais) ao afirmar a existência de estados mentais cujo objeto
não está determinado, violando o critério de direcionalidade, distintivo dos estados
intencionais. Esse critério é adotado por Searle para determinar quais estados mentais são
genuinamente intencionais e prevê a capacidade do sujeito de responder a perguntas do
seguinte tipo: “a que se refere tal estado mental?”. Caso não seja possível responder tais
perguntas, não se pode afirmar que o estado mental em questão seja intencional. A
consequência da correção do contraexemplo de Searle seria a perda da identidade entre mente
e intencionalidade e teria como consequência a necessidade de revisar a tese de Brentano,
especificamente o conceito de intencionalidade, ou em seu melhor esclarecimento,
dissolvendo o problema. Há igualmente críticas direcionadas à segunda parte da tese (todos os
estados intencionais são mentais), cogitando a possibilidade de existirem estados intencionais
não mentais, mas, como vimos, diferentemente das críticas apresentadas à primeira parte da
tese, neste caso, os exemplos são bastante controversos. Por outro lado, a teoria de Brentano encontra também defensores. Tim Crane, por
exemplo, afirma que as críticas apresentadas às teses de Brentano tem origem numa confusão
histórico/exegética. O argumento dos críticos sobre a existência de estados mentais não
intencionais é de que uma relação (no caso, intencional) não existe quando um dos relata é
indeterminado no tocante à sua natureza, ou não pode ser representado. O que Crane visa
mostrar é que da impossibilidade de se poder determinar a natureza de um dos relata, não se
segue que a própria relação não exista ou não faça sentido (algo que poderia ser efetivado
apenas por meio de um juízo a respeito da subsistência ou não da relação). Referindo­se
diretamente a Searle, a resposta de Crane é mais direta: do fato de que não possamos sempre
estar em condições de oferecer uma descrição ou nos expressar a respeito do objeto de nossa
ansiedade, não se segue que a mesma não tenha um relata intencional. Neste caso, o relata
intencional, nem precisa ser algo atual ou determinado, representável descritivamente – pode
ser um estado de crença a respeito de um evento futuro, uma expectativa a respeito de um
fato.
No segundo capítulo, apresentamos uma abordagem “gramatical” dos conceitos
mentais, fundamentada numa concepção pragmática da linguagem, de acordo com a qual o
significado dos termos linguísticos é instituído pelo modo como o mesmo é usado num deter­
56
minado contexto linguístico. A orientação filosófico­metodológica que fundamenta essa análi­
se deve­se a Wittgenstein e nos interessou na medida em que interpretamos a teoria dos jogos
de linguagem de Wittgenstein como um caso da concepção pragmática, contextualista de sig­
nificado. Nesse contexto, nosso interesse foi duplo: primeiro, saber como Wittgenstein enten­
de a significação linguística, especificamente numa perspectiva pragmática, e, em relação a
isso, qual o significado do ato intencional dada sua concepção acerca da significação linguísti­
ca.
Relativo a primeira questão, consideramos dois modelos explicativos, um baseado
na ideia de representação e outro na noção de uso em um dado contexto. O primeiro modelo é
apresentado no Tractatus por meio da noção de Figuração e tem por princípio a ideia de que
representamos um estado de coisas no mundo por meio de uma proposição, uma vez que esta
compartilha com a realidade uma mesma estrutura lógica. Já o segundo modelo tem por base
a noção de uso e consiste na tese de que operamos com proposições, e que seu significado é
compreendido na medida em que demonstramos habilidade para usá­las de acordo com certas
regras. Referente à segunda questão, sobre como determinar o significado do ato intenci­
onal dada sua concepção acerca da significação linguística, a compreensão inicial consistiria
em afirmar que o que é visado por meio de um estado intencional não é um objeto ou sua re­
presentação, mas uma operação, no sentido de uma função a ser cumprida num determinado
contexto sociolinguístico, tal que o papel desempenhado por cada componente linguístico seja
determinado pelas regras dessa estrutura intencional, caracterizada pela habilidade em “jogar
o jogo” em questão. Disso decorre a ideia de que os signos linguísticos adquirem significado
no contexto em que os aplicamos, de acordo com o papel que desempenham nesse contexto,
diferentemente de uma posição que sustenta que os significados são instituídos psicologica­
mente (à la Brentano), mas também diferentemente do modelo da Figuração a la Tractatus. Wittgenstein interpreta a questão brentaniana da intencionalidade como a busca
por uma “ponte” ou relação entre a realidade (mundo) e pensamento, considerando a teoria de
Brentano insuficiente para explicar, por exemplo, a significação, pois reduz este a uma rela­
ção extralinguística. Um dos problemas que se pode entrever com tal crítica consiste no fato
de que relações extralinguísticas não seriam fortes o suficientes para estabelecer a significa­
57
ção, isto é, não poderiam ser vistas como relações de necessidade. Esse é o cerne do modelo
pragmático contextualista, cujo desenvolvimento mais maduro é encontrado nas Investiga­
ções Filosóficas. Neste contexto, a tese de Wittgenstein é a de que a questão da compreensão
do conteúdo proposicional não pode repousar numa relação extralinguística, não havendo as­
sim abismo entre pensamento e realidade, justamente porque não há o “lado de lá”. Para Witt­
genstein, o problema deve ser elucidado a partir de uma solução intralinguística, ou seja, as
condições de satisfação de uma ordem, expectativa ou desejo, enfim, para um pensamento, já
devem estar contidas na expressão do mesmo. No terceiro capítulo, analisamos uma crítica à possibilidade de uma interpretação
da intencionalidade no contexto da pragmática da linguagem. A crítica, apresentada por Tim
Crane, consiste em negar que a abordagem gramatical de Wittgenstein seja suficiente para
explicar como se dá a relação entre pensamento e realidade, exemplificada pela relação entre
expectativa e o que a satisfaz. A contribuição de Crane, nesse sentido, consiste em uma
tentativa de eliminar concepções como a de Wittgenstein, entendido como um externalista (no
sentido da determinação do conteúdo dos estados mentais), ao mesmo tempo em que
apresenta uma defesa do representacionalismo clássico, inspirado em Brentano, que por sua
vez tem sido classificado como uma abordagem de cunho “internalista”. Segundo Crane, o ponto para Wittgenstein consiste em eliminar a ideia de que há
um elemento extralinguístico entre o pensamento e a realidade. Se no Tractatus afirmava­se
que tal relação era assegurada por uma estrutura metafísica, em termos de uma relação
interna, nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein visa elucidar a intencionalidade da
relação entre pensamento e realidade em termos intralinguísticos. Ademais, Crane questiona a
não existência de uma relação entre pensamento e realidade, uma vez que a proposta de
Wittgenstein consistiria em afirmar que existem apenas relações gramaticais entre sentenças
que descrevem pensamentos (expectativas, ordens, etc) e sentenças que descrevem aquilo que
os torna satisfeitos, cumpridos, etc, de tal modo que a explicação para todas as questões que
envolvem intencionalidade consistiria apenas em uma regra "gramatical" para o uso de signos
que ligam expressões. Para Crane, a possibilidade de redução da intencionalidade à linguagem é
58
questionável por ser uma alternativa que simplifica excessivamente o tema, uma vez que não
haveria a necessidade de qualquer elemento extralinguístico para explicar a relação entre
expectativa e satisfação, pois poderia ser resumida em termos do uso das mesmas palavras
tanto na expressão do que é esperado, quanto na descrição do que satisfaz a expectativa.
Assim, ao que parece, se observarmos o uso da linguagem (a gramática da "expectativa") o
problema seria dissolvido. A conclusão de Crane é que não se pode pensar que o que é
esperado e o que satisfaz a expectativa seja a mesma coisa. O que é esperado é o conteúdo da
expectativa; já o que satisfaz a expectativa é o objeto da expectativa. O conteúdo da
expectativa é a descrição da expectativa de um sujeito, sob um ponto de vista. O conteúdo da
expectativa é uma representação do seu objeto: uma representação do que a satisfaria. Crane
afirma que o pensamento de que p pode ser feito verdadeiro pelo fato de que q, e isto não é
uma observação gramatical; isto significa que a verdade de uma proposição não é redutível à
gramática da linguagem. Em suma, a argumentação de Crane tem por objetivo afastar a ideia de que o
problema da relação entre o pensamento e realidade tenha sido resolvido pelo método de
investigação gramatical, ou, ao menos, tal solução não ocorre pelo emprego das observações
gramaticais tal como usadas por Wittgenstein nas seções das Investigações Filosóficas, razão
pela qual Crane defende a necessidade de se re­incorporar o conceito de representação na
temática da intencionalidade.
No quarto capítulo, nos dedicamos à discussão entre Crane e Hacker sobre
questões de interpretação relativas ao tema da intencionalidade, especificamente a defesa de
Hacker frente a crítica apresentada por Crane a obra de Wittgenstein. Hacker visa mostrar que
a interpretação de Crane seria parcial e não tocaria os pontos centrais da proposta de
Wittgenstein relativos a questão da intencionalidade, considerando a crítica de Crane
resultado de má interpretação, não só das ideias de Wittgestein, mas igualmente de sua
própria posição como defensor das teses de Wittgenstein. As observações críticas de Hacker
referem­se ora à possível má interpretação de Crane com relação ao tratamento que Hacker dá
à obra de Wittgenstein, ora à questões interpretativas, tais como, a consideração de que a
leitura de Crane é excessivamente pontual, ou de que o conhecimento de Crane acerca do uso
que Wittgenstein faz de determinados termos, tal como “intencionalidade” seria insuficiente
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para sustentar uma crítica. A despeito dessas observações de caráter interpretativo, a crítica de
Hacker diz respeito à continuidade do uso dos termos “propriedade/relação interna” na obra
de Wittgenstein e à centralidade do tema da relação entre o pensamento e o estado de coisas
que o torna verdadeiro, especialmente no contexto do Tractatus. Há, no contexto do debate, ainda alguns pontos mais específicos, que incidem di­
retamente sobre o tratamento da questão da intencionalidade. Por exemplo, para Hacker, há
uma distinção entre fato e evento, ao passo que Crane os trata indistintamente. Nesse caso, pa­
rece uma questão de ajuste terminológico – parece claro que, de acordo com a visão de Crane,
todo fato (em termos objetivos) passa por um evento em sua gênese (pensemos, por exemplo,
o caso da História: a História, como escrita, nada mais é do que o registro de fatos que se pas­
saram como eventos num determinado contexto e época. A partir do momento em que eles
são “registrados”, tornam­se “fatos históricos”, deixam de ser eventos no sentido temporal, tal
como criticado por Hacker). Esse ponto é relevante para a interpretação de Hacker, pois se a
distinção entre fato e evento se solapa, a solução gramatical de Wittgenstein para a questão da
intencionalidade, tal como apresentada em termos da expectativa e do desejo, é comprometi­
da.
Ao nosso ver, a parte mais importante da discussão refere­se à crítica de Crane ao
modelo da “expectativa/desejo” de Wittgenstein, baseado na tese de que o objeto que satisfa­
zer uma expectativa ou desejo já deve estar contido na expressão dos mesmos. Crane apresen­
ta uma crítica a esse modelo a partir do exemplo do carteiro, no qual joga com a ambiguidade
do contexto para mostrar que a expectativa a respeito de quem ou qual carteiro entregará a
carta não pode ser sempre e totalmente preenchida – provando assim que o modelo de Witt­
genstein é insatisfatório.
Gostaríamos de reconstruir esse exemplo crítico de Crane a partir de elementos
mais formais, a fim de explicitar seu ponto (não observado por Hacker). A leitura de Hacker sobre a ideia de cumprimento de uma ordem poderia ser res­
crita nos seguintes termos: digamos que O represente uma ordem, definida por meio de um
conceito (ex: 'sair de'). De acordo com Wittgenstein, O está atrelada a um conjunto D de des­
crições que satisfaz o (caem sob o escopo do) conceito O – por exemplo: as n formas (D) de
se sair de uma sala (ordem O: “saia desta sala agora!”). No entanto, pode­se pensar num
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caso em que haja uma descrição d, que não esteja contida em D, porém, que também satisfaça
O, tal que a satisfação de O seja dada por ({D} U d). Esse é, em termos mais formais, o ponto
central da crítica de Crane a Wittgenstein.
Considerando que D é formado por aquilo que Wittgenstein chamou de institui­
ções, ou seja, a solidificação, em termos de hábitos, de parâmetros normativos de uma comu­
nidade (por meio de sua cultura), poderíamos pensar num caso em que dois indivíduos de cul­
turas distintas, sem relação prévia, se comunicassem efetivamente (por exemplo, um índio
brasileiro pré­cabraliano e um português), de forma tal que expectativas ou ordens sejam rea­
lizadas sem que a descrição de tal realização esteja necessariamente contida em D. O problema é que se se encontra uma descrição d (ou fato) que satisfaz a expecta­
tiva e que não estava contida no conjunto D (descrições de) de expectativas, então a aborda­
gem de Wittgenstein sobre intencionalidade falha, não sendo suficiente. Por outro lado, se
considerarmos a abordagem suficiente, então d teria que pertencer ao conjunto D (descrições
de) de expectativas. Porém, se d pertencer a D, então ambos referem­se ao mesmo contexto O
(cultura/instituições), o que contradiz a hipótese inicial de indivíduos de contextos diferentes e
não compatíveis. Essa é a “sacada” de Crane em sua crítica à Wittgenstein, e que Hacker não
consegue perceber nem analisa em sua crítica.
Ilustremos um pouco mais o exemplo acima: suponhamos que haja dois indivídu­
os, I e I , e suas respectivas culturas (indígena e portuguesa). Cada cultura implica (pressu­
i p
põe/gera/origina) um conjunto D de pensamentos ou descrições a respeito de fatos (D e D ).
i
p
Considere ainda que ambas são distintas e incomensuráveis (ou seja, cada qual possui um
conjunto particular de pensamentos, formados a partir dos hábitos e instituições próprias). Su­
ponha que haja uma expectativa E de D , e uma descrição d de D ; se E é satisfeita por d
p
i
i
i
(como imagina Crane), então as respectivas culturas não são incomensuráveis, mas comparti­
lham uma “bagagem” de pensamentos, o que pareceria contraintuitivo, dado que ambas cultu­
ras nunca estiveram em contato antes. Por outro lado, se consideramos tal alternativa, a con­
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sequência que extraímos disso é um naturalismo/inatismo, por meio do qual procura­se justifi­
car a “semelhança” do conjunto de descrições de diferentes culturas ao apelar para similarida­
des entre características biológicas. Ademais, se fossem comensuráveis, e considerássemos
que d satisfaz E, do mesmo modo teríamos um problema, pois d não pertence a D e conse­
i
i
p
quentemente, não poderia ser “previsto” (contradizendo a hipótese inicial).
Independente dessa interpretação da crítica de Crane “minar” ou não a abordagem
gramatical do problema da intencionalidade, cremos que ao menos ela mostra como os intér­
pretes de Wittgenstein (senão o mesmo) deveriam fundamentar melhor sua posição, por meio
de uma argumentação mais sólida e menos dogmática (como Hacker).
De fato, parece­nos que da forma como é apresentada nas Investigações e expres­
sa por seus intérpretes, a solução gramatical de Wittgenstein é no mínimo incompleta como
explicação para a temática da intencionalidade e, em grande medida, da mente, justamente
porque sua plausibilidade demanda uma ubiquidade da linguagem que a mesma parece não
possuir. Ademais, ficamos um pouco desorientados ao imaginar qual seria a “psicologia” re­
sultante da “limpeza” gramatical promovida por Wittgenstein, isto é, se os conceitos psicoló­
gicos seriam reduzidos à quimeras filosóficas ou à uma espécie de neurofuncionalismo (natu­
ralismo). Crane parece também não oferecer uma alternativa para muito além do representa­
cionalismo clássico, a la Brentano. Nesse quesito, parece que adentramos num dilema filosófi­
co, pois se por um lado não há interesse em retomar um representacionalismo clássico psico­
logista (muito menos idealista), por outro lado, devemos lidar com abordagens naturalistas,
fundamentas nos desenvolvimentos da neurologia, etc.
Avaliamos que a abordagem gramatical de Wittgenstein traz aspectos relevantes
para se entender a questão da intencionalidade no domínio da pragmática, os quais estão vin­
culados ao papel normativo dos jogos de linguagem e sua institucionalização, enfim, do modo
como a linguagem é usado como um modelo para a realidade. No entanto, a solução gramati­
cal torna­se insatisfatória na medida em que parece desmanchar o castelo de cartas criado com
a teoria dos jogos de linguagem. Entendemos que a elaboração de uma visão pragmática da
intencionalidade seria imensamente profícua justamente para lidar com contexto ambíguos, os
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quais são frequentes, por exemplo, na prática jurídica. Determinar, em um deter­
minado contexto, quais são ou foram as intenções de um agente pode ser crucial na prescrição
de uma pena ou julgamento no Direito. É nesse sentido que pretendemos desenvolver as idei­
as discutidas nesse trabalho.
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