A crise internacional e seus efeitos no Brasil

Propaganda
livre opinião
A Crise Internacional e
P
ara dimensionar os efeitos que a atual crise financeira terá sobre a economia brasileira, é preciso
entender sua natureza e elaborar um cenário provável para o seu desdobramento ao longo do ano.
A primeira parte deste artigo monta este cenário. A segunda parte examina os efeitos do provável cenário internacional sobre o Brasil e discute até que ponto vale o
argumento de que estamos protegidos contra a crise.
1. Um Cenário para a Crise
Entre 2003 e 2007, o mundo como um todo cresceu
à taxa média de 4,9% ao ano e os países em desenvolvimento à inédita taxa de 7,6%. No mesmo período, o
comércio mundial em bens e serviços expandiu à taxa
média de 16% ao ano, em dólares correntes. Essa bonança se deve a fatores estruturais, tais como a disseminação
das tecnologias de informação e os chamados efeito-China e efeito-Índia. Mas esses fatores não explicam a crise
financeira. O que a explica é o longo período de taxas
reais de juros muito baixas nos EUA e em boa parte da
economia mundial.
Resumidamente, a história é a seguinte. Em resposta à
recessão de 2001, o Fed reduziu a taxa de juros, mantendo-a abaixo do equilíbrio (estimado em torno de 2,5% ao
ano) até 2006. A fed funds ficou negativa por três anos
seguidos (2002-2004). A frouxidão monetária americana
não afetou imediatamente a taxa de inflação nos EUA,
que só começou a subir em 2005, ponto em que o Fed terminou o período de juro real negativo e caminhou para
a taxa de equilíbrio, que só foi atingida em 2006. A crise atual foi engendrada no período de seis anos de juro
real abaixo do equilíbrio. Os consumidores endividaramse fortemente. As empresas executaram projetos de investimento com taxas baixas de retorno. Os detentores de
riqueza reduziram sua aversão ao risco, buscando ativos
de maior retorno (e maior risco) para aumentar a rentabilidade de suas carteiras. Novos instrumentos financeiros foram criados para satisfazer o apetite especulativo. A
liquidez era elevada, o crédito abundante, os preços dos
ativos disparavam, a demanda crescia sem parar. Com a
36
Revista Abinee
março/2008
integração entre os mercados dos vários países, produziuse um boom na economia mundial. A reversão desse processo veio logo depois de a taxa
real de juro retornar ao seu nível de equilíbrio em 2006.
Iniciou-se o que os economistas antigos chamavam de
processo de liquidação, que nada mais é do que a correção, sempre traumática, dos excessos produzidos durante
o boom. O mercado imobiliário norte-americano foi o
pivô da crise de inadimplência, talvez por ser nele que a
especulação atingiu níveis insustentáveis. Com o passar
do tempo, a crise alastrou-se para outros mercados e gerou
um risco sistêmico, isto é, o risco de uma quebradeira generalizada no sistema financeiro e na economia em geral.
A euforia e a recessão são duas faces da mesma moeda.
Entretanto, o mundo dispõe hoje, ao contrário da
crise de 1929, por exemplo, de know how e de instrumentos poderosos de intervenção governamental capazes de
amenizar os efeitos da crise e, principalmente, de eliminar o risco sistêmico. As intervenções que vem sendo
realizadas pelo Federal Reserve, pelo tesouro dos EUA,
pelos principais bancos centrais do mundo e pelos fundos soberanos dão uma razoável garantia de que o curso
da crise será contido. Ou seja, os governos dos EUA e de
outros países deixaram claro que estão dispostos a pagar
um preço elevado para evitar uma recessão mais profunda. Como não se faz omeletes sem quebrar os ovos,
essa enorme mobilização de recursos contra a crise é, na
verdade, uma “socialização” das perdas, ou seja, é uma
maneira de chamar o contribuinte norte-americano (e
do resto do mundo) para pagar pela euforia dos incautos
e pela omissão das autoridades responsáveis.
Portanto, o cenário mais provável para este e o próximo ano é o de uma recessão nos EUA e uma aguda desaceleração da economia mundial. Num período estimado
de dois anos, o crédito permanecerá escasso e seletivo,
o volume do comércio mundial crescerá bem abaixo do
que nos anos precedentes e os preços dos ativos em geral
e das commodities em particular deverão ajustar-se fortemente para baixo. Embora os EUA tenham hoje menor
importância econômica do que no passado, ainda repre-
Celso L. Martone
e seus Efeitos no Brasil
2. Efeitos no Brasil
Para um país como o Brasil, que deveu grande parte
de seu dinamismo recente à bonança mundial, o cenário
futuro será certamente menos favorável e deverá requerer
ajustes internos. É conveniente distinguir entre os canais
financeiro e real de transmissão da crise internacional para
o país, embora os dois se misturem ao longo do tempo.
Os efeitos financeiros se transmitem mais rapidamente e alguns deles já tem sido sentidos no Brasil: queda de preços de ativos, dificuldades
de captação externa e redução do fluxo de ingresso de capital estrangeiro.
Empresas brasileiras que se financiam
no mercado internacional, por exemplo, terão dificuldade de colocar seus
papéis e só o farão a custos mais elevados. Do ponto de vista do país, a
pequena necessidade de financiamento externo deste ano e o volume de
reservas próximo a US$ 190 bilhões
certamente agirão no sentido de atenuar os efeitos do aperto de crédito.
Se a crise durasse menos do que o esperado (digamos, apenas no corrente
ano), o Brasil poderia até mesmo adotar uma estratégia
de queimar parte das reservas para financiar a rolagem
da dívida externa e o déficit em conta-corrente, ficando
fora do mercado internacional nesse período. Portanto,
é provável que os efeitos financeiros sejam menos importantes do que os efeitos reais, discutidos a seguir.
Os efeitos reais da crise vêm através do comércio exterior e dos investimentos estrangeiros diretos. Menor
ingresso de IDE e dificuldades de financiamento no exterior limitam a expansão dos investimentos no país,
que tem sido um importante componente do crescimento recente. Por outro lado, a receita de exportações
enfraquece tanto pelo efeito preço (queda de preços de
commodities) quanto pelo efeito quantidade (retração da
demanda mundial). Para sustentar o nível de atividade
interna, restam o consumo interno e o gasto do setor
público e é aqui que começam os problemas.
Em termos reais, o consumo familiar vem crescendo
à taxa de 7% ao ano, os gastos com investimento das
empresas acima de 10% e o gasto corrente do governo
federal à taxa extravagante de 8% ao ano desde 2005,
acelerando para 12% em 2007, todas bem superiores à
taxa de crescimento da produção interna. Esse excesso
de demanda manifesta-se pelo aumento da taxa de inflação e pela queda do superávit da balança comercial.
Mesmo num cenário de normalidade
internacional, esse ritmo de expansão
da demanda interna seria insustentável no médio prazo. Num cenário de
crise internacional, ele se torna insustentável no curto prazo. Nesse ritmo,
o superávit da balança comercial seria eliminado num horizonte de dois
anos e a taxa de inflação ultrapassaria com folga a meta do governo, impulsionada pela depreciação cambial,
que viria na esteira da deterioração
do balanço de pagamentos.
É provável que, para reduzir a expansão da demanda interna, o Banco Central inicie uma fase de aperto monetário ainda
no primeiro semestre, via aumento da taxa de juro e de
medidas de restrição de crédito. Um aperto da política fiscal, mediante corte de gastos correntes do governo
federal, reduziria a necessidade de aumento da taxa de
juro, permitindo uma política monetária menos restritiva, mas isso não parece estar no cenário do governo
Lula. Em resumo, o cenário para os próximos dois anos
parece ser de crescimento menor, com alguma pressão
cambial e inflacionária.
foto: Mario Cerdeira Filho/OEB
sentam quase um quarto do PIB mundial, o que garante
que todos os países importarão a crise.
Professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de
Economia e Administração da USP, eleito Economista do ano de
2007 pela Ordem dos Economistas do Brasil.
Revista Abinee
março/2008
37
Download