PrEfácIo - Bertrand

Propaganda
Prefácio
Um livro a não perder
Este é um livro a não perder, a mais do que um título. Resultando da adaptação da tese de doutoramento da autora no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, que tive o grato prazer de orientar, constitui o primeiro
estudo académico sistemático publicado por um autor português sobre a vida e a
obra de Alexis de Tocqueville. Fornece por isso uma excelente análise crítica que
também constitui um guia para descobrir esse grande pensador francês, tão ignorado no seu país e tão cultivado na cultura política de língua inglesa. Trata-se de uma
reflexão e de um guia particularmente abrangentes, dado que integra a vida e a obra
de Tocqueville no contexto da sua época, dando ainda conta da extensa bibliografia internacional, e das correspondentes controvérsias, sobre o autor em análise.
Sendo um estudo pioneiro entre nós, esta obra enfrenta as perplexidades que
o pensamento original de Tocqueville necessariamente produz numa cultura política
em que ele é praticamente desconhecido. E vale a pena enfrentar as perplexidades
geradas por Tocqueville. Elas exprimem de forma intrigante as diferenças entre a
cultura política de língua inglesa – que Tocqueville, sendo francês, tanto admirava
– e a cultura política continental, sobretudo francesa. Estas diferenças tornam-se particularmente evidentes quando se procura classificar o pensamento de Tocqueville
no quadro das famílias políticas continentais. Será Tocqueville um conservador, um
liberal, ou um republicano? Este excelente trabalho da Doutora Lívia Franco permite
compreender as dificuldades de uma resposta unívoca a esta clássica interrogação.
Vários traços aproximam Tocqueville do conservadorismo. Desde logo, como
aponta Lívia Franco, porque ele sublinha a importância da religião. Depois, porque
ele enfatiza o papel das instituições intermédias entre o indivíduo isolado e o Estado.
Finalmente, porque denuncia os perigos da igualdade. Contudo, à luz da cultura política continental, Tocqueville dificilmente pode corresponder ao que no continente
–5–
se espera de um conservador. Ao defender a importância da participação política
de todos, sobretudo no autogoverno local, Tocqueville defende a democracia política em detrimento do governo de alguns ou de um só. Por outro lado, a principal
ameaça que Tocqueville deteta na igualdade não reside na ameaça à desigualdade
em si mesma, mas na ameaça à liberdade.
Esta constante preocupação de Tocqueville com a liberdade leva muitos autores
a classificá-lo como liberal, como também recorda Lívia Franco. Mas é bem patente
que o liberalismo de Tocqueville também não se enquadra confortavelmente no liberalismo continental. Os traços acima citados para o aproximar do conservadorismo
exprimem a sua distância do liberalismo continental. De todos esses, o mais importante traço distintivo relativamente ao liberalismo consiste, em meu entender, na sua
enfática defesa da arte de associação, ou da hoje chamada sociabilidade espontânea,
como uma das principais (juntamente com a religião) trincheiras da liberdade. Por
outras palavras, enquanto o liberalismo continental colocou a defesa da liberdade
sobretudo no indivíduo isolado, Tocqueville detetou nas associações espontâneas
entre indivíduos, na chamada sociedade civil, a principal âncora da liberdade.
Este ceticismo de Tocqueville relativamente a um individualismo atomizado,
bem como a sua ênfase na participação política levaram vários autores a classificá-lo como republicano – o que, mais uma vez, é ponderado pela autora deste livro.
Mas, de novo, existe uma distância oceânica entre a atitude de Tocqueville e o republicanismo continental. Em primeiro lugar, pela sua enfática defesa da religião
cristã e da sua autonomia, contra qualquer pretensão de criar «religiões civis» ou de
Estado. Em segundo lugar, pela sua defesa do «interesse próprio bem entendido»,
contra qualquer pretensão de opor o interesse privado ao interesse público. Finalmente, e mais uma vez, pela sua insistência no pluralismo da sociedade civil como
limitação fundamental ao poder político centralizado.
Estas dificuldades classificatórias exprimem as profundas diferenças entre a
cultura política de língua inglesa e a cultura política continental. Por isso mesmo,
Tocqueville foi em regra associado à chamada «escola inglesa» do pensamento francês – uma escola de nobres tradições em que geralmente se integram Montesquieu,
Guizot, Élie Halévy e Raymond Aron, para citar apenas alguns. Talvez uma das mais
importantes dessas profundas diferenças resida entre uma predisposição pluralista e
uma predisposição monista. Na cultura política de língua inglesa existe uma predisposição para aceitar a tensão incontornável entre uma pluralidade e uma variedade
de princípios e motivações numa ordem social. Em vez de ser procurado um princípio ou uma motivação únicos que possam reconciliar geometricamente a variedade, aceita-se a variedade e procura-se apenas domesticar, ou suavizar, a tensão. Isto
implica aceitar uma certa «desarrumação» na ordem social – uma «desarrumação» que
o racionalismo cartesiano continental não pode aceitar, porque ela gera desconforto
na aspiração racionalista à perfeição geométrica.
–6–
O presente livro de Lívia Franco constitui um excelente contributo para descobrir uma cultura política diferente da continental através de um grande autor
continental. Trata-se de um trabalho de grande rigor, resultante de uma prolongada
e exigente investigação, também ele escrito num estilo pouco continental: preciso,
devidamente fundamentado, evitando abstrações insuscetíveis de teste, recusando a
linguagem hermética de tantos tratados académicos. Numa palavra, trata-se de um
livro a não perder.
João Carlos Espada
–7–
Prefácio
De entre os ramos das Humanidades, a Ciência Política é aquele de que mais
distante me sinto. Como se a presunção do título não bastasse, há ainda a prosa
em que muitas das obras incluídas nesta disciplina são escritas. Redigido num estilo claro e atraente, o livro de Lívia Franco é uma exceção. Um dos aspetos que me
impressionou foi o uso de correspondência privada, a qual, além de nos ajudar a
situar o homem, nos auxilia na compreensão do seu pensamento. Veja-se o que, a
15 de dezembro de 1850, Tocqueville escrevia a Louis de Kergolay: «Não tenho tradição, não pertenço a partido algum, não tenho outra causa se não as da liberdade
e da dignidade humanas»; ou, em outubro de 1836, a Eugène de Stoffels: «Sempre
considerei que a república era um governo sem contrapeso, que prometia sempre
mais, mas dava sempre menos liberdade do que a monarquia constitucional».
A autora vinca não só a influência dos Pais Fundadores da República Americana, mas também a de Montesquieu. Como este, Tocqueville gostava de analisar
experiências políticas concretas, como este partia da ideia do poder como ameaça
à liberdade e como este admirava a aristocracia inglesa. Por pretender que a melhor
forma de garantir o respeito pelos direitos individuais residia no seu exercício, Tocqueville afastou-se dos liberais franceses, como Royer-Collard ou Guizot. O ideal,
na sua opinião, seria um regime capaz de harmonizar o espírito aristocrático e os
direitos universais.
A liberdade era, para Tocqueville, o valor supremo. Para ele, a República devia
consistir num regime que, partindo da igualdade, garantisse a liberdade política e
consequentemente o autogoverno e o exercício do poder limitado, opondo-se quer
às ameaças do pensamento igualitário (Rousseau), quer às do conservadorismo autocrático (De Maistre). Em Da Democracia na América (pp. 69-70), defendia haver
uma paixão legítima pela igualdade, mas advertia que, a seu lado, existia um outro
sentimento, negativo, o qual consistiria na tentação, por parte dos mais fracos, para
–9–
rebaixar os mais fortes, desta forma convidando os homens a preferir «a igualdade
na servidão à desigualdade na liberdade»1.
Apesar da admiração pelos EUA, Tocqueville temia o despotismo das suas
maiorias. «Não há pois sobre a terra», argumentava, «autoridade tão respeitável em
si mesma, ou revestida de um direito tão sagrado que eu quisesse deixá-la agir sem
controlo e dominar sem obstáculos» (pp. 229-230). Se ele tivesse podido observar
o que hoje se passa, não teria ficado admirado de ver que foi naquele país que o
«politicamente correto» teve a sua origem.
Ao comparar os historiadores da Antiguidade Clássica e os da era moderna,
Tocqueville alertou para os perigos de uma abordagem positivista. Naquela obra,
referiu a tendência existente nas democracias para se pensar que as sociedades
obedeceriam a uma força superior: «Os historiadores que vivem nos tempos democráticos não recusam pois somente a alguns cidadãos o poder de agirem sobre o
destino do povo, mas tiram também aos povos a faculdade de eles próprios modificarem a sua própria sorte, e sujeitam-nos assim ou a uma providência inflexível ou
a uma espécie de fatalidade cega. […] Não lhes basta mostrar como aconteceram os
factos; comprazem-se ainda em fazer ver que não podiam ter acontecido de outro
modo» (p. 472).
É contra o determinismo, que minimiza o papel do homem, que se insurge,
sendo curioso que o tenha feito antes de Marx ter apresentado ao mundo o seu Capital e muito antes de os departamentos universitários, de direita ou de esquerda,
terem criado gerações de jovens treinados a considerar que só as estruturas contam.
Para estes, a leitura de Tocqueville revelar-se-á uma lufada de ar fresco. A obra de
Lívia Franco é uma excelente introdução ao pensamento deste aristocrata que, tendo
nascido sob o Antigo Regime, procurou compreender as sociedades democráticas.
Maria Filomena Mónica
1
Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, Lisboa, Relógio d´Água, 2008.
– 10 –
Agradecimentos
O trabalho que agora se dá à estampa resultou da investigação realizada durante a preparação de uma tese de doutoramento defendida no Instituto de Estudos
Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Não se tratando da tese, a presente
obra beneficiou todavia enormemente desse processo. Consequentemente, agradecimentos são devidos em primeiro lugar ao orientador, Professor João Carlos Espada,
a quem estou profundamente grata pelo exigente acompanhamento ao longo do
doutoramento e, mais ainda, pela honra que me deu ao prefaciar este livro.
Agradecimentos são igualmente devidos ao júri que presidiu à defesa da
tese, Professores Manuel Braga da Cruz, Maria Filomena Mónica, Viriato Soromenho
Marques, Rui Ramos e João Cardoso Rosas, pelas críticas e o incentivo. À Doutora
Maria Filomena Mónica devo igualmente agradecer o segundo prefácio deste livro.
Cumpre-me também dirigir umas palavras de agradecimento a outros grandes académicos com quem tive o privilégio de descobrir a história do pensamento
político: a Harvey Mansfield, que tantas vezes me recebeu em Harvard e me guiou
na investigação bibliográfica sobre Tocqueville, e a Christopher Kelly, em Boston
College, pelas entusiasmantes sessões de estudo de Do Espírito das Leis; mas também, no Boston College, recordo agradecida o constante entusiasmo com que Robert
Faulkner e Susan Shell respondiam às minhas intermináveis dúvidas, bem como as
intensas leituras semanais de A Política com Christopher Bruell.
Pela paciência e as sugestões cruciais, mas especialmente pela sua amizade,
quero agradecer ao editor, o Dr. Henrique Mota, que desde o início acolheu com
entusiasmo a ideia de publicar este estudo.
Por fim, o meu mais sentido agradecimento vai para a minha família: para
os meus pais, o Pedro e os nossos filhos. Sem eles e o seu apoio inquebrantável,
não me teria sido possível enfrentar este e outros desafios que a vida me reservou.
– 11 –
Download