VER-SUS POTIGUARAS – CAICÓ/RIO GRANDE DO NORTE FABIO CONSTANTINO LOPES JUNIOR PORTFÓLIO Caicó, 2016 VER-SUS POTIGUARAS – CAICÓ/RIO GRANDE DO NORTE Caicó é a principal cidade da região do Seridó, localizada a 282 km de Natal, capital do estado, é a sétima cidade mais populosa do estado. Fez-se necessário, à primeira vista, que os alunos participantes do VER-SUS pudessem conhecer mais do território, do povo e de sua história. Para tanto, o primeiro espaço visava mostrar a construção da sociedade caicoense com base na historiografia arquitetônica do sertão. O espaço foi promovido pela arquiteta Natália Diniz, que em 2016 lançou o livro “Um sertão entre tantos outros”, no qual, ela mostra através de textos, fotografias e xilogravuras, o universo sertanejo por meio de uma viagem entre os Estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Bahia, Ceará e Piau. Por meio da apresentação dele, vimos como era organizado a sociedade na época dos grandes coronéis e pudemos refletir sobre a influência dessa organização na construção do sertanejo atual. Após conhecermos mais sobre o território e sua população, voltamos as nossas atenções à saúde. Desse modo, temos o Sistema Único de Saúde brasileiro organizado em níveis de complexidade. A atenção primária, média e terciária, as três, possuem em si, além dos princípios que norteiam a sua atuação, o cuidado como principal finalidade de suas existências. Nesse viés, o objetivo do Ver-SUS Potiguaras – Caicó foi conhecer como se organizam as várias faces do cuidado na cidade. Nesse contexto, cuidar, por si, vai além da ideia de cuidado em saúde posta no senso comum. Para corroborar com isso, trago aqui o conceito de “cuidar” como posto no dicionário Aurélio: “1 - Imaginar; supor; pensar; meditar. 2 - Ter cuidado em; tratar de. 3 - Interessar-se por; trabalhar. 4 - Julgar-se; ter-se por; tratar-se.” – AURÉLIO, 2016 Cuidar, além de tratar, curar, é dar apoio, trabalhar, construir. Assim vale a pena trazer o conceito de saúde como não apenas a ausência de doenças. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. Segundo a Lei Orgânica de Saúde, Lei 8080, para que haja saúde, alguns fatores são determinantes, tais como a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais. Busco, com a apresentação desses conceitos, introduzir o meu entendimento do Ver-SUS, e do Sistema Único de Saúde em si, como ferramenta de apoio à construção de uma mentalidade cidadã não hospitalocêntrica. Além do encontro com a arquiteta, no primeiro dia também fomos divididos em Núcleos de Base, ou NB, pequenos grupos nos quais estaríamos inseridos nas divisões de tarefas e para o qual levaríamos nossas críticas, vivência e reflexões a cada dia. O meu NB foi o NB1. No segundo dia, já postos nos nossos respectivos NBs, fomos designados a escolher um nom. Primeiramente, nosso NB pensou em pessoas que fizeram a diferença pela saúde e surgiram alguns nomes. No entanto, pedimos a cada um que nos dissesse o que era o SUS para cada um de nós. A maioria de nós disse “cuidado” como definição. Dessa forma, tentamos personificar o cuidado e chegamos a uma aldeia indígena, que possui o pajé como símbolo de cuidado e proteção. Entretanto, por ser representado por homens apenas, algumas pessoas se opuseram. Então, foi sugerido pajeia, que seria o feminino de pajé - resistência. Pajeia, além de ser o feminino de pajé, soa parecido com pangeia, que é a união de todos os continentes – união. Assim, estava feito o nome do nosso NB e o grito de guerra: Resistência e União: Pajeia! Após, fez uma dinâmica para que puséssemos no papel toda a ideia que tínhamos de SUS, segundo as coisas que ouvíamos e víamos nos meios de comunicação. Algumas palavras me vieram à mente, como humanização, universalidade, saúde acessível à população carente, equidade, controle social, cuidado... Todas elas me levaram à figura de Jesus, em uma visão muito saudosista, pois ele tinha tais princípios em seu discurso. No mesmo dia, também, nos foi apresentado o método de Josué de Castro, o qual trabalharíamos no Ver-SUS, que consiste na divisão igualitária, cíclica, conjunta e proporcional das tarefas a serem realizadas nos espaços, vivências e organizações propostas nos dias subsequentes. Um dos pontos mais positivos do Ver-SUS foi o trabalho das diferenças e a reflexão de como elas interferem no estado de saúde dos indivíduos. Foi-nos perguntado as definições que tínhamos de diferenças e vulnerabilidade e acompanhado delas, foram feitos relatos que corroborassem para reafirmar os conceitos cedidos. Para ilustrar o espaço que tivemos sobre diferenças, apresento um outro conceito que é essencial para entender como a saúde é determinada por seu contexto social: Determinantes Sociais de Saúde. De acordo com definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), os determinantes sociais da saúde estão relacionados às condições em que uma pessoa vive e trabalha. Também podem ser considerados os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e fatores de risco à população, tais como moradia, alimentação, escolaridade, renda e emprego, ou seja, são fatores e mecanismos através dos quais as condições sociais afetam a saúde e que potencialmente podem ser alterados através de ações baseadas em informação. Ainda nesse contexto de desigualdades, outro espaço importante foi tido para entendermos como funciona a dinâmica de exploração e submissão da sociedade capitalista. Foi importante entender que saber "Como funciona a Sociedade” é essencial para a compreensão dos conceitos anteriormente apresentados de vulnerabilidade, diferenças, determinantes sociais de saúde. Todos estão interligados com a maneira que a sociedade privilegia poucos às custas do trabalho de muitos. Nesse viés, por exemplo, foi-nos solicitado uma base salarial mínima para a sobrevivência digna de um trabalhador, que daria cerca de 6 mil reais, preço longe do salário mínimo definido pelo Estado e o qual é superfaturado pelos empregadores. Ainda, em outro momento, foram discutidas algumas formas de opressões existentes na nossa sociedade. Dentre elas, o racismo, o machismo e a LGBTfobia. Elas também dão base à sociedade capitalista, que se alimenta das diferenças para transformá-las em exploração. Por exemplo, o racismo surgiu junto com o neocolonialismo, base do capitalismo, que necessitava de mão-deobra para a realização dos trabalhos de plantação e mineração, que encontrou seu ponto forte na escravidão, a qual era totalmente fundamentada na ideia de que o europeu era superior ao africano, que o branco era superior ao negro. Vale a pena citar aqui a nossa primeira vivência, que foi na Aldeia Infantil SOS Brasil. Lá, a casa lar é destinada a crianças e adolescentes que sofreram abusos de alguma forma, foram explorados pelos pais e familiares, tiveram denúncias atendidas pelo conselho tutelar e foram encaminhados para as casas lares. Na casa lar, a criança terá toda a assistência possível para se sentir em sua própria casa, por no máximo dois anos, com livros, escola, acompanhamento médico e psicológico, uma mãe social, quartos, cama individual, guarda-roupa, televisão, internet etc. Se era cuidado que procurávamos, encontramos naquelas casas. A Aldeia de Caicó possui 17 casas lares, sendo que apenas 3 delas estavam ocupadas, duas com 9 crianças cada – o máximo aconselhado – e uma com 3 crianças. Busca-se, nessas casas, que, além da assistência completa oferecida à criança, ela possa se inserir corretamente na sociedade e ter o contato com a família reestabelecido. Mas em que isso se encaixa na discussão de desigualdades? Observando o perfil das crianças presentes nas casas lares, foi possível notar a majoritária presença de meninas negras – havia duas meninas brancas no total, as outras crianças eram todas negras, tanto meninos quanto meninas. Mulheres e negros: está aqui a discussão. Essa população representa, sim, a parcela mais vulnerável da sociedade. É imprescindível discutir saúde sem citar que essas diferenças reinam de forma negativa na vida desses indivíduos, tornando seu contexto uma arma. Passada essa parte introdutória, entramos na organização do Sistema Único de Saúde propriamente dito, a cada dia buscando uma vivência em um setor de saúde específico. O primeiro setor escolhido foi a atenção básica. Como eu tenho vivência cotidianas nas unidades de saúde, escolhi ir para o Centro de Zoonoses. Neste lugar, pudemos aprender como se dá o combate a zoonoses, doenças que têm o animal como vetor. Foi valioso descobrir que as atividades de promoção de saúde e prevenção de doenças ocorrem de maneira eficiente na cidade de Caicó, com os agentes de endemias, médico veterinário e centro atuando para combater tais vetores. As principais informações, dessa maneira, foram referentes ao tratamento de arboviroses, como Chykungunia, Dengue e Zika, Leishmaniose e doenças de Chagas. Uma curiosidade minha era como Caicó, que sofre de falta de chuvas, tinha arboviroses como doenças endêmicas. Na fala do médico veterinário, ficou claro que essas doenças são endêmicas justamente porque há falta de chuvas, levando a população a armazenar água e consolidar os criadouros para mosquitos. As estratégias de combate são na maioria das vezes, a eliminação do vetor. Caso haja um cão diagnosticado com leishmaniose, por exemplo, ele é sacrificado, pois é entendido como possível agente contaminante. Surgiu aí uma boa discussão sobre bioética, uma vez que um ser humano com HIV, por exemplo, não é sacrificado por estar com o vírus – de modo que a vida do cão, nesse caso, é considerada menos valiosa. No caso de o agente ser o mosquito Aedes aegypti, há o combate direto, com o uso de inseticida, mas ele só é usado em casos de epidemias, segundo a portaria usada no centro, ou combates as larvas nos reservatórios de água contaminados. Este último pode ser feito com larvicidas, usados pelos agentes de endemias nas suas visitas domiciliares ou com pequenos peixes, os quais comem as larvas. O uso de peixes está sendo cada vez mais implementado, com uma criação feita inclusive no centro de zoonoses. Os outros locais visitados foram UBS do município. Uma no bairro João 23, bairro carente da cidade, outra na zona rural e ainda uma UBS modelo. O dia seguinte foi dia de saúde mental. Esta, por sua vez, é uma área que necessita de humanização e cuidado. Até pouco tempo atrás, o doente mental não era entendido como ser humano, mas como uma bomba que a qualquer momento poderia explodir e machucar todo mundo. Esse pensamento ainda sobrevive no nosso meio. A existência de manicômios, por exemplo, confirma isso. O paciente é retirado da sociedade, da sua família, para se isolar do mundo e ser submetido a tratamentos e situações por vezes desgastantes e desnecessários. Os destinos escolhidos para as vivências foram uma residência para pacientes psiquiátricos, um CAPS 3 e CAPS AD. Eu fui para o CAPS AD. Neste, o Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas, tive a vivência que considero mais proveitosa e tocante de todo o estágio. A área de psiquiatria muito me interessa, então tive várias expectativas ao adentrar na unidade. Ela é responsável por abrigar usuários de várias cidades ao redor de Caicó e da própria cidade. Os pacientes chegam por demanda espontânea ou encaminhados e sua estadia se dá de maneira voluntária. Os usuários podem passar momentos ou o dia todo no CAPS, desenvolvendo atividades durante todo o dia. Algumas atividades pudemos contemplar, uma vez que uma artesã está disponível para ensinar os pacientes a pintarem, fazerem mosaicos e confeccionarem telhas. As obras de arte eram lindas e tocantes; uma em especial chamou a atenção do grupo de alunos: um senhor sentado sozinho em uma praça e a frase “eu só queria encontrar alguém que cuide de mim”. Além disso, existe o acompanhamento de assistentes sociais e psiquiatras na unidade. A unidade não tem uma relação muito boa com as fazendas de reabilitação como a “Manassés”, já que têm filosofia de recuperação diferentes. No CAPS, trabalha-se com a redução de danos, na qual o paciente aos poucos deixa os vícios com o decorrer do tratamento, acompanhados por profissionais capacitados. Nas fazendas, eles trabalham com a abstinência total e sem acompanhamento adequado. A saúde do trabalhador também teve foco nas vivências. A visita ao CEREST – Centro Estadual de Referência em Saúde do Trabalhador também foi muito proveitosa. Neste local, trabalhadores também vêm encaminhados ou por demanda espontânea. Na unidade tem um médico do trabalho, mas primeiramente o trabalhador faz a triagem com a assistente social, que identifica o problema e encaminha para o profissional que ele necessita – lá tem disponível fisioterapeuta, médico, enfermeiro, assistente social e fonoaudiólogo. As principais demandas são de acidentes de percursos, principalmente demandas ortopédicas, por isso o médico também é ortopedista. A unidade do CEREST é bem equipada e com salas amplas, tendo o prédio abrigado a UNIMED anteriormente. O trabalhador tem toda a assistência necessária e possível, caso precise da unidade. Se o especialista que a demanda exigir não estiver presente na unidade, o trabalhador pode ser encaminhado para outro local. A demanda maior é de trabalhadores da zona urbana, quase não havendo demanda rural. O último dia de vivência foi destinado a conhecer melhor a média e a alta complexidade do SUS. Infelizmente, devido a atrasos, a minha vivência no SAMU não pode ser efetivada, e fomos ao hospital de Caicó para conhecer a estrutura de lá. Sobre o hospital, vale a pena ressaltar que tem uma boa estrutura, mas algumas condutas me incomodaram. Por exemplo, a ala psiquiátrica não tinha pacientes psiquiátricos em crise, mas pacientes com fraturas – que provavelmente têm um histórico psiquiátrico, mas isso não justifica sua presença ali, pois ele deveria estar em uma ala comum. Essa conduta é parte daquilo que citei anteriormente, a visão de que o paciente psiquiátrico é uma bomba e poderia ser um risco para outros pacientes. Outro ponto foi a visita à UTI, na qual todos os alunos, com toda a contaminação da rua, puderam entrar na UTI – o risco de infecção na visita foi enorme. Para finalizar, gostaria de acrescentar o quanto aprendi no Ver-SUS. Como estudante de Medicina, a saúde está presente em todos os meus dias, meus momentos, meus estudos. No entanto, a faculdade tem um viés técnico e restrito à doença. No entanto, sempre que possível, busco fugir dessa forma de enxergar a Medicina e interagir realmente com meu objeto de trabalho, que é o indivíduo, que é a comunidade. Felizmente, foi uma das coisas que mais reforcei no estágio. Conhecer mais das pessoas é indispensável para um profissional que trabalhará justamente com pessoas. Experiências como a visita ao templo de candomblé foram os ápices dessa vivência – estar ali para conhecer, sem questionar, sem intervir. Ademias, eventos cotidianos me mostraram o quanto eu tenho que praticar minhas habilidades de comunicação, de escuta, de fala, de convivência. Outrossim, trabalhar em equipe foi extremamente prazeroso e eficaz, e fez de algo cansativo em momentos incríveis. Para finalizar, quero ilustrar minhas experiências com um poema, pois o Ver-SUS também é arte e luta: “DA LUTA DO POVO NINGUÉM SE CANSA A luta doí Às vezes sangra É grave Gravitacional Sem greve. Fere Arde como navalha na carne Como a chibata na pele Às vezes é tão pesada Que desanima Desafina o coro do batuque. A luta te cospe na cara Escarra E te peita com falsos argumentos Na luta se ouve nãos Perde amigas e amigos Levanta cedo Dorme tarde Cria projetos Trabalho de base Mas não se cansa Porque na luta do povo Pelo povo Tem sempre um braço que te levanta E põe de pé E põe no colo E põe no abraço Do peito de aço Que geme, e ainda assim vai no compasso De mãos dadas De almas dadas De desejo por igualdade entrelaçados. Na luta se aprende A ser forte. A ser gente da gente pela gente. Entende que não é só por você É por todas pessoas sem condições de gritar É por amor E com amor Então a ferida sara, Cicatriza vira tatuagem da história E você desiste de desistir.” Karine Bassi. REFERÊNCIAS AURÉLIO. Disponível em <https://dicionariodoaurelio.com/cuidar>. Último acesso em 25 de dezembro de 2016. BRASIL. Constituição Federal de 1988