Memória, aprendizagem e formação docente

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Revista Diálogos Interdisciplinares
2016 vol. 5 n° 2 - ISSN 2317-3793
Memória, aprendizagem e formação docente
Danielle Girotti Callas1
Lea Nunes de Assis2
Luciana Andréa Afonso Sigalla3
Vera Maria Nigro de Souza Placco4
Resumo: Este ensaio apresenta os resultados de uma revisão teórica realizada sobre o tema “memória humana”, a
partir do qual buscou-se identificar as contribuições desta para a aprendizagem e a formação docente. Para essa
discussão, o estudo foi organizado em três partes: a primeira apresenta as diferentes concepções de memória coletiva,
elaboradas ao longo do tempo por autores como Bergson, Halbwachs, Bastide, Bartlett, Stern e Hirsch, aqui sintetizadas
por Bosi (1994) e Santos (2013); a segunda parte traz as ideias elaboradas por Bosi (1994) acerca da substância social
da memória, na qual estão presentes elementos como interação, tempo, espaço, objetos e sons; a terceira parte discute a
memória como ferramenta de aprendizagem e formação docente, a partir de concepções desenvolvidas por Placco e
Souza (2006). O presente estudo mostrou-nos que a memória é um importante elemento de qualquer grupo, seja ele
familiar, social, escolar ou profissional. Ela é constitutiva da identidade dos humanos. Apoiando-se em distintos
elementos, como: objetos, sons, aromas, pessoas e sentimentos, as memórias individuais se cruzam com a memória
coletiva de um grupo em determinado tempo e espaço. No contexto da aprendizagem, é a memória que nos permite a
multiplicação do conhecimento, a partir de seus mecanismos de ressignificação e de construção. Alunos e professores,
em seu encontro formativo, constroem seus percursos a partir de suas histórias, resgatadas emocional e racionalmente
por recursos mnemônicos. É necessário, portanto, potencializar a memória no ato de ensinar e aprender. Para isso,
existem recursos metodológicos, como elaboração de sínteses e devolutivas, que podem nos auxiliar na empreitada da
formação, tanto docente como discente. Tomar consciência desse processo fortalece as estratégias da sala de aula,
visando à verdadeira essência do aprendizado. Nessa direção, ensinar é compartilhar, é significar e é transformar.
Palavras-chave: memória, aprendizagem, formação docente, identidade.
Abstract: This article shows the results of a theorical revision done about the theme "human memory", which
searched to identify the contributions of memory to learning and teacher training. For that discussion, the study was
organized into three parts: the first presents the different concepts of collective memory developed over time by authors
as Bergson, Halbwachs, Bastide, Stern and Hirsch, here synthesized by Bosi (1994) and Santos (2013); the second
brings the ideas purposed by Bosi (1994) about the social substance of memory, in which elements such as interaction,
time, space, objects, and sounds are present; the third discusses memory as a tool for learning and teacher training,
considering the concepts developed by Placco and Souza (2006). The present study showed us that memory is an
important element of any group, whether family, social, school, or professional. It is a building block of human identity.
Supported by different elements as objects, sounds, smells, people and feelings, the individual memories cross the
collective memory of a group in a determined time and space. In the context of learning, it is memory that allows us to
multiply knowledge, from its mechanisms of reframing and construction. Students and teachers, during their training
meeting, build their routes from its histories rescued emotionally and rationally by mnemonic ressources. It is
necessary, therefore, to maximize memory in the act of teaching and learning. For this purpose, there are
methodological features, such as the preparation of synthesis and feedback, which can assist us in the task of training
1
Mestra em Educação: Psicologia da Educação (PUC-SP), graduada em Relações Internacionais (PUCSP), especialista em Psicodrama (PUC-SP/ SOPSP) e em Marketing (ESPM). Atualmente, trabalha no
SENAC São Paulo, unidade Jundiaí, na Coordenação Técnica das Áreas de Saúde, Bem-estar, Segurança
do Trabalho e Meio Ambiente.
2
Mestra em educação: Psicologia da Educação (PUC-SP), graduada em Serviço Social (PUC-SP), e em
Psicologia (Centro Universitário Paulistano). Atualmente, é professora de Educação Infantil e Ensino
Fundamental na Prefeitura Municipal de São Paulo.
3
Doutoranda e mestra em Educação: Psicologia da Educação (PUC-SP), licenciada em Letras (USJT), com
especialização em Psicopedagogia (UNIMARCO) e em Educação Social (UNISAL). Atualmente, ministra
aulas em cursos de pós-graduação lato sensu e atua como tutora do curso de Mestrado Profissional em
Educação: Formação de Formadores da PUC-SP.
4
Possui pós-doutorado em Psicologia Social na École Des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) France. É doutora e mestra em Educação: Psicologia da Educação (PUC-SP) e graduada em Pedagogia
(USP). Atualmente, é professora titular de dois Programas de Estudos Pós-Graduados em Educação da
PUC-SP: Psicologia da Educação e Formação de Formadores.
214
both teachers and students. Becoming aware of this process strengthens classroom strategies, aimed at the
very essence of learning. In that direction, teaching is sharing, is meaning, and is transforming.
Keywords: memory, learning, teacher training, identity.
Introdução
“A memória é ponto de partida e de chegada: ela nos
enche de sentidos.”
(PLACCO e SOUZA, 2006, p. 27)
Quem não se recorda do nome de uma professora que marcou sua vivência
pessoal no conhecido “primário”? Quem não se lembra de sua lancheira escolar? E
daquele estojo de canetinhas coloridas? De seu primeiro livro de leitura... De seu lugar
preferido na infância... Falamos de aromas, sons, tons, pessoas, lugares, objetos que nos
remetem a um determinado momento de nossas vidas. E assim se formam as diversas
experiências e interações que nos ajudaram (e nos ajudarão) a ser o que somos hoje e o
que seremos amanhã e depois.
Para Placco e Souza (2006), a memória é um processo tanto individual como
coletivo. É engrenagem constituinte da identidade no que ela tem de singular e de
coletivo. Sem ela, simplesmente não se aprende. Isso não significa que ela seja um
grande baú de armazenagem. Mais do que isso, a memória é ressignificação e
reconstrução; é uma grande receptora de estímulos.
O que distingue os seres humanos dos demais animais, no que diz respeito ao
acesso ao conhecimento, é que apenas os primeiros são capazes de refletir e agir sobre a
realidade (MOROZ e GIANFALDONI, 2006). Nesse sentido, a memória é uma grande
aliada no processo de transformação e ação, pois o sujeito avalia, confirma ou altera o
conteúdo da memória. Portanto, ao tratarmos da memória coletiva, estamos fazendo-o
apenas no contexto humano.
Podemos, aqui, retomar Vygotsky (1999, apud PLACCO e SOUZA, 2006), que
considera a memória como “função psicológica superior”. Para ele, memória, atenção e
percepção são responsáveis pelo desenvolvimento do pensamento e pelo processo de
humanização.
Dito isso, por que então discutir sobre esse tema? Quais seriam as contribuições
da memória para a aprendizagem e a formação docente?
215
Na tentativa de contribuirmos com essa discussão, elaboramos o presente
trabalho, dividido em três partes: a primeira apresenta as diferentes concepções de
memória coletiva elaboradas ao longo do tempo e da história; a segunda trata da
substância social da memória, na qual estão presentes elementos como interação, tempo,
espaço, objetos e sons; a terceira discute a memória como ferramenta de aprendizagem e
formação docente.
1 As diferentes concepções de memória coletiva ao longo do tempo e da história
“[...] a memória tem uma força de gravidade; ela
sempre nos atrai. Os que têm memória são capazes de
viver no frágil tempo presente; os que não a têm não
vivem em nenhuma parte.” 5
(GUZMÁN, 2010 apud DUTRA, 2013, p. 72)
Embora os estudos sobre memória coletiva tenham se multiplicado a partir dos
anos 1980, décadas antes, importantes estudiosos já se debruçavam sobre esse assunto
(SANTOS, 2013).
O primeiro que podemos citar é Henri Bergson, filósofo francês cuja obra
Matière et mémoire, publicada em 1896, pode ainda ser considerada uma obra da
atualidade. Nela, Bergson valoriza as visões de conservação do passado e fala sobre os
saberes consolidados pela experiência e pela prática diária.
É comum pensarmos que cada ato perceptual é um ato presente. Dessa forma,
cada ato é um novo ato. No entanto, “novo” supõe que antes dele aconteceram outros
atos, ou seja, outras experiências, outros movimentos, outros estados do psiquismo.
“Como enfrentar o problema da vida psicológica já atualizada se, em termos de
5
Dutra (2013) traz em seu texto três abordagens da memória, de natureza distintas: fílmica, literária e
hermenêutica. Na abordagem fílmica, o suporte material é o documentário Nostalgia de la luz (roteiro e
direção de Patrício Guzmán, 2010), cujo cenário é o deserto de Atacama, que guarda não apenas “animais
petrificados, múmias, rochas com pinturas rupestres, restos de cadáveres dos trabalhadores nas minas de
salitre e de soldados mortos no século XIX na disputa pelo controle das minas”, mas também “pedaços de
corpos de presos políticos assassinados pela ditadura de Pinochet e para ali deportados e abandonados, na
expectativa de ficarem para sempre ocultados na sua imensidão” (Dutra, 2013, p. 72).
A epígrafe que abre o tópico 1 deste trabalho é a frase empregada pelo cineasta ao final do documentário,
que tem como intuito “[...] mostrar a importância do passado – do qual, ele [o cineasta] insiste, tudo
procede – e esconjurar o esquecimento [...]” (Ibidem, p. 72).
O trailler oficial do documentário encontra-se disponível em: http://vimeo.com/33794301. Acesso em: 24
mai. 2015.
216
percepção pura, só existe o presente do corpo, ou, mais rigorosamente, a imagem aqui e
agora do corpo?” (BOSI, 1994, p. 45)
Diante disso, Bergson vai opor vigorosamente a percepção atual àquilo que ele
chama de lembrança, cujo universo não se constitui do mesmo modo que o universo das
percepções e das ideias. Para ele, há, portanto, uma diferença entre perceber e lembrar.
Bergson (apud BOSI, 1994, p. 46) afirma que: “Na realidade, não há percepção
que não esteja impregnada de lembranças”. Tal afirmação desconstrói a ideia de que a
percepção seja mero resultado de uma interação do ambiente com o sistema nervoso.
Talvez a etimologia francesa do verbo “lembrar-se” seja a que traga mais
significado para esta discussão. Em francês, “lembrar-se” é “se souvenir” (sous: abaixo
de, sob; venir: vir). Portanto, em francês, “lembrar-se” significa “trazer à tona o que
estava submerso”6.
[...] a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao
mesmo tempo, interfere no processo “atual” das representações. Pela
memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se
com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas
últimas, ocupando o espaço todo da consciência (BOSI, 1994, p. 46-47).
Não existe a “percepção pura” do presente, sem sombra nenhuma da memória. O
que há é o que Bergson chama de “percepção concreta”, que se vale do passado que, de
algum modo, se conservou.
Segundo Bergson (apud BOSI, 1994), há dois tipos de memória:
 Memória-hábito: esquemas de comportamento guardados pelo corpo
num processo que se dá pelas exigências da socialização (movimentos que
exigem: comer segundo as regras de etiqueta, escrever, falar uma língua, dirigir
um automóvel...); trata-se, portanto, de um exercício retomado até a fixação;
 Memória-sonho: lembranças independentes de quaisquer hábitos; tratase da lembrança pura, que traz à tona da consciência um momento único, singular,
6
Segundo o dicionário Larousse de Poche (2002), souvenir (se) significa exatamente “avoir mémoire de”
(ter memória de) e oferece diferentes interpretações: “1 rapel, volontaire ou non, par la mémoire, d´un
événement, d´une sensation passée. 2 Ce qui rappelle la mémoire de quelqu´un ou de quelque chose. 3
Objet vendu aux touristes sur le lieux particulièrement visités” (Tradução livre: 1. Lembrança/recordação,
voluntária ou não, pela memória, de um evento, de uma sensação passada. 2. Aquilo que recorda a
memória de alguém ou de algo. 3. Objeto vendido aos turistas de lugares visitados).
217
não repetido, irreversível da vida; aparece por via da memória; de caráter
evocativo, e não mecânico.
O que Bergson deixou – em síntese: a concepção de memória como conservação
do passado – será relativizado pela teoria psicossocial de outro grande nome, Maurice
Halbwachs, sociólogo francês e principal estudioso das relações entre memória e
história pública, aluno de Bergson e de Durkheim.
Influenciado pelo estruturalismo e pela fenomenologia, Halbwachs foi o
primeiro sociólogo a se dedicar ao tema da memória coletiva ou social. Seu trabalho de
referência nos estudos sobre memória é Les cadres sociaux de la mémoire, publicado
em 1925, no qual abordou, de forma ampla, as construções coletivas de pessoas e de
grupos relacionadas ao passado: lugares, datas, palavras, formas de linguagem
(entendidas como representações partilhadas por todos aqueles que têm lembranças).
Diferentemente de Durkheim, que considerava a história como memória
coletiva, cuja função era manter as sociedades em estado de recordação do passado,
Halbwachs considerava-a uma construção coletiva do passado realizada pelos
indivíduos de determinada coletividade.
Segundo Bosi (1994, p. 54), a “lacuna” observada em Bergson – que não trouxe
“[...] uma tematização dos sujeitos-que-lembram, nem das relações entre os sujeitos e as
coisas lembradas [...]”, deixando ausentes os nexos interpessoais, o tratamento da
memória como fenômeno social – será preenchida por Halbwachs, que não estudou a
memória, mas os quadros sociais da memória. Assim:
[...] as relações a serem determinadas já não ficarão adstritas ao mundo da
pessoa (relações entre o corpo e o espírito, por exemplo), mas perseguirão a
realidade interpessoal das instituições sociais. A memória do indivíduo
depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a
escola, com a igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os
grupos de referência peculiares a esse indivíduo (BOSI, 1994, p. 54).
Bosi (1994, p. 54) aponta que se, para Bergson, “o espírito conserva em si o
passado na sua inteireza e autonomia”, para Halbwachs, “se lembramos, é porque os
outros, a situação presente, nos fazem lembrar”, realçando, assim, as instituições
formadoras do sujeito. Nessa segunda perspectiva, portanto, a maioria de nossas
lembranças vem quando os outros (pais, amigos, colegas de trabalho...) as provocam em
nós. Nem sempre o processo de lembrar ocorre de maneira espontânea.
218
Halbwachs nos traz, ainda, a ideia de que lembrar não é reviver, mas, nas
palavras de Bosi (1994, p. 55), “[...] refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias
de hoje, as experiências do passado”.
A lembrança é, assim, uma imagem construída no momento presente e, por mais
nítida que ela nos pareça, trata-se da lembrança de um fato antigo. Ela não é a mesma
imagem que experimentamos quando da ocorrência do fato, porque nós não somos os
mesmos, assim como nossa percepção, nossas ideias e juízos de valor. “O simples fato
de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de
outro e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista” (BOSI, 1994, p. 55).
Então, de que modo vai se formando a reconstrução do passado, concepção de
memória deixada por Halbwachs (em oposição à conservação do passado, de Bergson)?
Para responder a essa questão, o autor nos dá como exemplo a situação da releitura, por
uma pessoa, de um livro de narrativas lido em sua distante juventude. É apenas um
exemplo, entre muitos, da dificuldade, senão da impossibilidade, de reviver o passado
tal e qual; impossibilidade que todo sujeito que lembra tem em comum com o
historiador. A cada leitura, uma nova “leitura”.
Outro teórico que queremos citar é o sociólogo francês Roger Bastide. No
processo de produção de sua obra As religiões africanas no Brasil, de 1971, Bastide
recorreu ao conceito de “quadros sociais da memória” proposto por Halbwachs,
conceito este que considera o indivíduo no processo de transmissão das tradições
(SANTOS, 2013).
Contudo, Bastide, a partir do pluralismo teórico de Gurvitch, fez ressalvas
consideráveis a Halbwachs, subordinando as lembranças, tradições e legados do passado
à possibilidade de adaptação às circunstâncias do presente por grupos estruturados. O
que importava não era o grupo em si, mas sua organização, sua estrutura simbólica,
garantidora da transmissão das tradições. Poderiam ser lembradas as experiências
anteriormente vivenciadas que encontrassem um canal de expressão no presente, ou
seja, no novo quadro social da memória. Para Bastide, o passado é acionado por
determinadas práticas que se repetem, o que deu origem ao conceito de “bricolagem”
criado por ele (SANTOS, 2013).
Outro estudioso importante é o psicólogo cognitivista inglês Frederic Charles
Bartlett, que trouxe o conceito de “convencionalização” (criado pelo etnólogo inglês
219
William Rivers). Segundo Bosi (1994, p. 64), para Bartlett, “[...] a ‘matéria-prima’ da
recordação não aflora em estado puro na linguagem do falante que lembra; ela é tratada,
às vezes estilizada, pelo ponto de vista cultural e ideológico do grupo em que o sujeito
está situado”.
Como vemos, o que Bartlett e Halbwachs buscam é fixar a pertinência dos
“quadros sociais da memória”, das instituições e das redes de convenção verbal no
processo que conduz à lembrança.
Bartlett faz uma distinção entre a matéria da recordação (o que se lembra) e o
modo da recordação (como se lembra). De acordo com Bosi (1994, p. 65):
A matéria estaria condicionada basicamente pelo interesse social que o fato
lembrado tem para o sujeito. Quanto ao modo, o problema complica-se,
porque entrariam como variáveis importantes alguns fatores tradicionalmente
associados à psicologia da personalidade, como o temperamento e o caráter
do sujeito que lembra. (Destaque nosso)
Enquanto Halbwachs atém-se às relações vividas pelo sujeito (relações estas
familiares, profissionais, políticas...) como suficientemente capazes de articular a
atividade mnêmica e sua forma narrativa, Bartlett julga possível tentar uma análise dos
estilos narrativos em função das diferenças pessoais dos sujeitos.
Bartlett admite a existência de um “contínuo”, um processo no qual, segundo
Bosi (1994, p. 66):
[...] sempre “fica” o que significa. E fica não do mesmo modo: às vezes quase
intacto, às vezes profundamente alterado. [...] novos significados alteram o
conteúdo e o valor da situação de base evocada. [...] se a vida social ou
individual estagnou, ou reproduziu-se quase que só fisiologicamente, é
provável que os fatos lembrados tendam a conservar o significado que
tinham para os sujeitos no momento em que os viveram. (Destaque
nosso)
Não podemos deixar de citar, neste estudo, o psicólogo e filósofo alemão
William Stern, cujo pensamento, muito próximo do de Bergson, traz considerações
sobre a memória de um ponto de vista psicológico. Para ele, as percepções podem
passar por um “período latente” para, depois, por diversos motivos, reaflorarem na
consciência.
Bosi (1994, p. 67-68) aponta que, para Stern:
220
[...] a unidade pessoal [a pessoa] conserva intactas as imagens do passado,
mas pode alterá-las conforme as condições concretas do seu
desenvolvimento. A memória poderá ser conservação ou elaboração do
passado, mesmo porque o seu lugar na vida do homem acha-se a meio
caminho entre o instinto, que se repete sempre, e a inteligência, que é capaz
de inovar. De onde resulta uma concepção extremamente flexível da
memória: “A lembrança é a história da pessoa e seu mundo, enquanto
vivenciada”.
Stern aponta que a função da lembrança é conservar o passado do indivíduo na
forma que é mais apropriada a ele. Assim:
[...] o material indiferente é descartado; o desagradável, alterado, pouco claro
ou confuso simplifica-se por uma delimitação nítida; o trivial é elevado à
hierarquia do insólito; e no fim formou-se um quadro total, novo, sem o
menor desejo consciente de falsificá-lo (STERN apud BOSI, 1994, p. 68).
(Destaque nosso)
Diante disso tudo, vem-nos a pergunta: qual a forma predominante de memória
de um dado indivíduo? Para Bosi (1994, p. 68): “O único modo correto de sabê-lo é
levar o sujeito a fazer sua autobiografia. A narração da própria vida é o testemunho mais
eloquente dos modos que a pessoa tem de lembrar. É a sua memória”.
O historiador francês Marc Bloch criticou Halbwachs por ele, em sua opinião,
não considerar a complementaridade entre tradição e sociedade, no sentido proposto por
Bergson.
Já para Hobsbawm e Ranger, as tradições não se perpetuam, nem sobrevivem,
mas são reconstruídas, inventadas, a partir de uma ação consciente de determinada
classe ou grupo social para manter ou criar determinados privilégios e hierarquias.
A partir do exposto, novas teorias da memória foram influenciadas pela
fenomenologia de Husserl, mediadas por Alfred Schutz e pela fenomenologia
hermenêutica de Heidegger, por intermédio de Gadamer.
Avançando brevemente nesta exposição, convém falarmos sobre o conceito de
“pós-memória”, proposto pela autora norte-americana Marianne Hirsch, em sua obra
The generation of postmemory: writing and visual culture after the holocaust, de 2013,
conceito esse que, segundo Santos (2013), trata da transmissão das emoções e
sensações, podendo ser compreendido como a experiência daqueles que crescem
dominados por narrativas que antecedem seu nascimento, moldadas por acontecimentos
traumáticos que não podem ser totalmente compreendidos, como no caso dos filhos de
221
pessoas que sofreram com o Holocausto. Falamos da experiência daqueles que têm suas
próprias histórias afastadas pelas histórias de gerações anteriores. Afinal, a cultura pode
transmitir aspectos mnemônicos por milhares de anos.
Esta breve apresentação das diferentes concepções de memória coletiva ao longo
do tempo e da história demonstra a importância da abordagem multidisciplinar no que
tange aos estudos sobre a memória coletiva.
Propomos, aqui, algumas reflexões:
 Um grupo de aprendizagem constrói uma memória coletiva?
 As experiências vivenciadas em um grupo de aprendizagem marcam a
memória do indivíduo?
 Conseguimos refazer as experiências passadas com as imagens e ideias
de hoje?
 Consideramos a memória cultural do aluno que está na sala de aula e a
do professor em processo de formação?
 Vivenciamos casos traumáticos de “pós-memória” no Brasil?
2 A substância social da memória: interação, tempo, espaço, objetos e sons
“As lembranças se apoiam nas pedras da cidade.”
(BOSI, 1994, p. 439)
Torna-se imprescindível recorrer a Ecléa Bosi quando optamos por explorar a
substância social da memória. A memória coletiva dá conta da lembrança individual?
De acordo com a autora:
Somos, de nossas recordações, apenas uma testemunha, que às vezes não crê
em seus próprios olhos e faz apelo constante ao outro para que confirme
nossa visão. [...]
Muitas de nossas lembranças não são originais e foram inspiradas nas
conversas dos outros (BOSI, 1994, p. 407).
Primeiramente, nos deparamos com a reflexão sobre a necessidade de interação
com o outro para “lembrarmos”. Para Bosi (1994), lembranças não passam por
processos do consciente. A memória coletiva é desenvolvida a partir de laços de
222
convivência familiares, escolares e profissionais, ou seja, depende da interação entre as
pessoas e seus grupos de pertencimento. O grupo nos ajuda a lembrar.
Bosi (1994) traz que, para Halbwachs, a memória coletiva é constituída do ponto
de vista de cada memória individual. Cada indivíduo recorda e retém objetos
significativos.
Pensemos nas lembranças que temos a respeito de nossos tempos de escola. O
que acontece quando nos encontramos com velhos amigos daquela época? Será que
conseguimos narrar “fielmente” mais de um episódio marcante envolvendo colegas de
escola? Conseguimos citar “corretamente” pelo menos três nomes de professores e nos
lembrar do local onde nos sentávamos na sala de aula? Levando essas reflexões para o
trabalho com nossos alunos, será que os motivamos a criar vínculos significativos que
os ajudem a se lembrar, no futuro, da escola, de seus colegas e de nós, seus professores?
Encontramos em nosso grupo familiar a mais forte das coesões. É na família
que surge a matriz axiológica da identidade e na qual o indivíduo compõe sua memória
una e diferenciada. A casa materna é, para Bosi (1994, p. 435), “o centro geométrico do
mundo”.
Não seria a escola o segundo grupo mais forte de coesão e o “segundo centro
geométrico do mundo”?
Bosi (1994, p. 417) aponta que é fundamental considerar o tempo social, que é
um tempo diferente do tempo solar: “O ciclo dia e noite é vivido por todos os grupos
humanos, mas tem, para cada um, um sentido diferente”.
As festas de Natal, em geral, são mais recordadas do que o aniversário de
alguém. Você se lembra do seu primeiro dia de aula? E de uma formatura marcante? O
tempo individual é consumido pelo tempo social. Cada grupo vive diferentemente o
tempo da família, o tempo da escola, o tempo do trabalho. Certamente, já utilizamos a
seguinte frase em alguma ocasião: “No meu tempo de escola, as coisas eram
diferentes...”.
Quando compreendemos a escola como um espaço de relação, de interação, um
tempo social, enxergamo-la como um espaço da memória individual e coletiva que é
fundamental para a constituição identitária. Passamos então a ter um olhar diferenciado
para todo o processo de ensino-aprendizagem.
223
Espaços, objetos e sons falam sobre pessoas e fatos e nos ajudam a reviver
lembranças.
Se a mobilidade e a contingência acompanham nosso viver e nossas
interações, há algo que desejamos que permaneça imóvel, ao menos na
velhice: o conjunto de objetos que nos rodeiam. [...] Mais que um sentimento
estético ou de utilidade, os objetos nos dão um assentimento à nossa posição
no mundo, à nossa identidade. Mais que da ordem e da beleza, falam à nossa
alma em sua doce língua natal. O arranjo de sala cujas cadeiras preparam o
círculo das conversas amigas, como a cama prepara o repouso e a mesa de
cabeceira os instantes prévios, o ritual antes do sono. A ordem desse espaço
povoado nos une e nos separa da sociedade: é um elo familiar com
sociedades do passado, pode nos defender da atual revivendo-nos outra. [...]
São esses os objetos que Violette Morin chama de objetos biográficos, pois
envelhecem com seu possuidor e se incorporam à sua vida. Cada um desses
objetos representa uma experiência vivida. [...] Penetrar na casa em que estão
é conhecer as aventuras afetivas de seus moradores (BOSI, 1994, p. 441).
(Destaque nosso)
Privar o indivíduo de lembrar-se de seu passado e de suas raízes pode ser
considerado, portanto, um ato de violação de seus direitos.
3 Memória como ferramenta de aprendizagem e formação docente
“Desprende as bolhas da memória e vai além...
porque tem horizontes...”
(PLACCO e SOUZA, 2006, p. 39)
Quanto nossa memória depende das relações que estabelecemos em nosso viver
e dos vínculos que fomentamos?
Quando falamos em “vínculos”, podemos pensar nas memórias política e social,
que estão sempre amparadas por um grupo no qual existe forte identificação afetiva e
ideológica.
Não é fácil distinguir a memória histórica da memória familiar e pessoal.
Acontecimentos históricos impactam as histórias pessoais. E, como já vimos, o que
significa, fica na memória.
Na fase adulta, o trabalho passa a ocupar parte significativa da vida do sujeito,
inserindo-o no sistema das relações econômicas e sociais. O trabalho é o espaço do agir.
O trabalho pode ser o fio condutor de toda uma biografia de vida.
224
Propomos que a escola seja vista como laboratório preparatório para o agir e o
vir a ser; o laboratório humano para a vida em sociedade.
Como afirmam Placco e Souza (2006), a memória, dentre outras dádivas,
armazena um pouco de tudo o que foi vivido, experimentado, enriquecendo-nos com
seus conteúdos.
Ao narrarem a produção do livro “Aprendizagem do adulto professor”, de 2006,
as autoras e seus colaboradores chamam nossa atenção para um poderoso recurso de
aprendizagem e formação docente: os exercícios de escrita, a partir dos quais são
narrados os momentos vividos para reativar o sentido das propostas de ação.
Recuperar o passado por meio da escrita requer um exercício presente e
intencional de registrar hoje o vivido e o pensado. Essa intencionalidade de
registrar e escrever para não esquecer implica uma organização do
pensamento e um comprometimento com a formalização de desejos,
expectativas e experiências, que fornecem elementos para a continuidade da
história (PLACCO e SOUZA, 2006, p. 27). (Destaque nosso)
As autoras apresentam, ainda, uma visão de como a memória interfere na
aprendizagem dos adultos, que operam, em seu dia a dia, um vasto reservatório de
lembranças, utilizando-o de várias formas: “[...] ora para rejeitar, dissecar, comparar,
descartar; ora para se aproximar de novas informações e experiências” (PLACCO e
SOUZA, 2006, p. 29).
Ao se comportar dessa forma diante de suas lembranças, o adulto abre-se para
novas percepções e novos pontos de vista, agrega saberes, ressignifica experiências,
encoraja-se, ousa... Por outro lado, as sombras da memória também podem nos trazer
dissabores, lembranças que preferiríamos esquecer. “Nesse sentido, a oportunidade de
rememorar nos assusta, traz desequilíbrios, destrói certezas e nos fragiliza para enfrentar
situações que parecem conquistadas” (PLACCO e SOUZA, 2006, p. 31). De uma forma
ou de outra, isso tudo pode provocar no indivíduo momentos de grandes
transformações.
No caso dos adultos professores, como podemos tornar a memória uma aliada de
sua aprendizagem? De acordo com Placco e Souza (2006, p. 33), evocando-a, ou seja,
provocando-a.
225
O adulto aprendiz, no ato de evocar, remexe os conteúdos da memória e
nesse processo interno pode acolher seus próprios significados e os dos
outros que relatam e compartilham.
Nesse movimento, ao reconhecer diferenças, proximidades e
distanciamentos, confrontam-se realizações e lacunas. Do saldo das
aprendizagens passadas, nasce a oportunidade de futuras investidas no
contínuo ato de aprender. Ao tomar para si essa investida, redefine-se a
própria busca.
Unindo a importância dos exercícios de escrita ao que acabamos de expor,
podemos pensar na importância de o professor recorrer à sua memória profissional
docente e, por meio de autobiografias, diários de bordo, narrativas reflexivas, depurar o
vivido e decidir sobre como pretende dar continuidade à sua história. Esse exercício
pode possibilitar o redirecionamento de ações, reafirmando seu processo identitário.
Outra ferramenta importante apontada pelas autoras para a formação de
professores é fazer referência às histórias deles, ou seja, os professores em formação
precisam contar suas histórias e ouvir as histórias de seus colegas, pois, ao acessarem
suas memórias de como se tornaram professores e vêm atuando ao longo dos anos e
terem acesso às memórias dos colegas, todos poderão observar aspectos comuns e
distintos entre as histórias.
Segundo Placco e Souza (2006, p. 36): “Essas histórias contêm pistas
importantes, em seus embates e oportunidades, do que fazemos agora, do que nos
motiva ou paralisa, das condições com que nos deparamos”.
As autoras chamam nossa atenção para um cuidado especial com os educadores
que se instalam no passado, negligenciando novas tecnologias aplicadas à educação e
mantendo-se presos à nostalgia dos anos que se foram, nos quais a memória era
considerada um grande arquivo de mera armazenagem. Agindo assim, esses educadores
cristalizam sua atuação e “[...] enfraquecem a condição preciosa de ousar novas formas
de ensinar e de pensar [...]” (PLACCO e SOUZA, 2006, p. 36).
Esse processo de contar e ouvir histórias permite que os professores interajam e
entrem em contato com sensações, sentimentos e palavras, ativando e recriando os
conteúdos de suas memórias. “O afeto e a aprendizagem estão profundamente
relacionados” (PLACCO e SOUZA, 2006, p. 38). Mais uma vez: “só fica o que
significa...”.
Considerações finais
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“[...] o presente do passado, a memória, e o presente do
futuro, a espera, são momentos correlatos do presente
do presente, ou seja, do momento da ação.”
(DUTRA, 2013, p. 84)
A memória é um importante elemento de qualquer grupo, seja ele familiar,
social, escolar ou profissional. Ela é constitutiva da identidade dos humanos.
Apoiando-se em distintos elementos como objetos, sons, aromas, pessoas e
sentimentos, as memórias individuais se cruzam com a memória coletiva de um grupo
em determinado tempo e espaço.
No contexto da aprendizagem, é a memória que nos permite a multiplicação do
conhecimento, a partir de seus mecanismos de ressignificação e de construção.
Alunos e professores, em seu encontro formativo, constroem seus percursos a
partir de suas histórias, resgatadas emocional e racionalmente por recursos mnemônicos.
É necessário, portanto, potencializar a memória no ato de ensinar e aprender.
Para isso, existem recursos metodológicos, como elaboração de sínteses e devolutivas,
que podem nos auxiliar na empreitada da formação, tanto docente como discente. Tomar
consciência desse processo fortalece as estratégias da sala de aula, visando à verdadeira
essência do aprendizado. Nessa direção, ensinar é compartilhar, é significar e é
transformar.
Fica aqui nosso convite para que todos nós, educadores, possamos aprimorar os
recursos mnemônicos no processo educacional.
Referências bibliográficas
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3.ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
DUTRA, Eliana de F. A memória em três atos: deslocamentos interdisciplinares. In:
Revista USP. Dossiê memória. n. 98, jun/jul/ago 2013. São Paulo: Universidade de São
Paulo. (p. 69-86).
MOROZ, Melania; GIANFALDONI, Mônica H. T. A. O processo de pesquisa:
iniciação. 2.ed. Brasília: Plano, 2006.
PLACCO, Vera M. N. de S.; SOUZA, Vera L. T. de. (Orgs.). Aprendizagem do adulto
professor. Loyola: São Paulo, 2006.
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SANTOS, Myrian S. Memória coletiva, trauma e cultura: um debate. In: Revista USP.
Dossiê memória. n. 98, jun/jul/ago 2013. São Paulo: Universidade de São Paulo. (p. 5168).
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