A Argentina nos dez anos da crise de 2001 RESUMO Dez anos depois da desvalorização do peso, que deu origem à mais grave crise de sua história, a Argentina se recupera e vê sua situação social melhorar, apesar do panorama político de incertezas, da pesada intervenção governamental na economia e do desinteresse pela política às vésperas da eleição. A seguir, um retrato dessa época sob uma ótica ampla da cultura argntina: a economia, a política e o futebol. RECESSÃO Os sinais de que a economia ia mal apareceram em 1998, quando o país entrou em recessão após sete anos da conversibilidade, sistema que deu ao peso o mesmo valor do dólar. O mecanismo foi instituído no governo de Carlos Menem (1989-99) para sanar a histórica inflação. A dolarização da economia possibilitou um salto espetacular na vida da maioria dos argentinos, que trocou destinos como Florianópolis e Punta del Este por Miami. Silicone e cirurgias plásticas viraram moda. A classe média ganhou acesso a um padrão de vida que não se via desde o governo de Perón, nos anos 40, quando a classe trabalhadora foi ao paraíso -ou ao centro de Buenos Aires- montada em estilosas motonetas. Em 1999, quando De la Rúa foi eleito, o país, de tradição agrária, importava milho da França e carne de hambúrguer dos EUA. Cevada pelos artifícios dos dez anos conversibilidade, a situação se agravava e causava outras anomalias. Uma das mais imediatas, e que não parava de crescer, era o deficit fiscal. O desemprego já assolava a 20% da população. A fuga de capitais aumentava diante da crescente desconfiança internacional. A pobreza bateu recordes. Para sobreviver politicamente, o governo evitou mexer na dolarização, mas se endividava cada vez mais. Só com o FMI (Fundo Monetário Internacional), em 1999, a dívida chegava a US$ 128 bilhões. Presa a legislações de oito países, em oito moedas, a dívida tornou-se um fardo incalculável. Num mercado informal fora de controle, surgiram 18 moedas paralelas ao peso, circulando em todas as províncias. RENÚNCIA O país colapsou com a renúncia de De la Rúa, que ficou 741 dias no poder. Distúrbios deixaram mais de 30 mortos, mais da metade da população desceu à pobreza, cinco presidentes ocuparam a Casa Rosada em dez dias e foi decretado o maior calote da história, cerca de US$ 100 bilhões, que pôs no chinelo o "default" da Rússia de 1998, de US$ 32 bilhões, que até então era o maior. Assim que assumiu a presidência, em janeiro de 2002, Eduardo Duhalde anunciou a desvalorização do peso. O golpe acertou em cheio a classe média. Com a "pesificação", a poupança da população se reduziu pela metade, enquanto as dívidas duplicaram. O "que se vayan todos", palavra de ordem gritada ao som dos panelaços, mexeu com o país. "Há um paralelismo muito grande entre a história do Racing e a da Argentina. As glórias e os fracassos dos dois se entrelaçam", diz Santiago Hadida, 37, autor, com o diretor Fernando Spiner, do roteiro de "35 Años no es Nada", filme em produção que narra a história do personagem fictício Oreste García. Torcedor do Racing como o protagonista, durante a crise Hadida atuava como jornalista em uma editora. Sem receber, foi forçado a se demitir. "O filme será uma bela forma de lembrar aqueles anos." Em filmes, livros, séries, programas de TV e debates, a Argentina lembra os dez anos de sua pior crise econômica. Visto à distância, aquele momento parece o apogeu de uma condição permanente, que se confunde com a própria identidade do país. Entre as sequelas, ficou a descrença no sistema bancário: a prática de guardar dólares em casa segue em alta. Mesmo assim, a hecatombe de dez anos atrás passa por 2011 com timidez, sem esquentar o debate eleitoral. MARCIANOS No primeiro semestre deste ano, teve destaque a série de desenho animado "Marcianos", exibida no canal público "Encuentro". Foi a estreia na televisão do gibi lançado em 2006 pelo Museu da Dívida Externa. O programa chegou a ser apresentado na Casa Rosada pela presidente Cristina Kirchner, que inteirou-se da história zapeando a TV. "Marcianos" é a história de três extraterrestres que pousam em Buenos Aires em 3668, 1.400 anos depois de uma tragédia nuclear devastar a Terra. Perplexos, os ETs encontram indícios de que o holocausto nuclear não foi a causa da extinção dos seres humanos, como pensavam. "Dados recuperados mostram que, há muito tempo, agrupações humanas mostravam uma forte vocação de autoextermínio", diz um. "Essa vocação foi desencadeada, em boa medida, por nações do hemisfério Norte, responsáveis pelo holocausto final." O panfleto anti-imperialista prossegue com um economista narrando aos alienígenas os descaminhos econômicos da Argentina e a culpa a cartilha internacional -EUA, bancos e organismos como o FMI- pela formulação de políticas que geraram a elevada dívida externa e a crise de 2001. A história revisita as origens da dívida, do primeiro empréstimo, tomado em 1824 ao banco inglês Baring Brothers, passando pelos anos Perón (1946-55 e 73-74) e pela última ditadura militar (1976-83). MUSEU Universidade de Buenos Aires, só foi inaugurado em 2005. "Marcianos", diz o diretor Federico Saravia, se encaixa no objetivo do museu: discutir de "maneira didática e acessível à população toda a problemática da dívida externa". A instituição também realiza atividades itinerantes em escolas e no interior do país. O espaço é bem modesto, ocupando uma sala na nova sede da faculdade, na avenida Córdoba. A antiga sede, no subsolo do prédio ao lado, foi interditado com o desabamento do teto, há dois anos. As visitas não são muitas: cerca de 3 mil pessoas por ano. Para lembrar uma década da crise, o museu apresentou uma versão de "Marcianos" para o cinema. A estreia, em julho, foi no tradicional Gaumont, cinema na avenida Rivadavia, na praça do Congresso. Os não mais de 15 gatos pingados tiveram que deixar o local no meio da exibição, por causa de uma pane no projetor. ASSOMBRAÇÃO Para muitos argentinos, a crise é uma assombração cíclica que pode ressurgir a qualquer momento. Antes de 2001, o país viveu a crise da hiperinflação em 1989 (3.079% ao ano, medida em preços ao consumidor), que precipitou a saída de outro presidente, Raúl Alfonsín (1983-89). Nove anos antes, durante a ditadura, a política econômica (tão perversa quanto a barbaridade do regime, que fez 30 mil desaparecidos) levou ao derretimento do sistema financeiro. Bancos e outras instituições financeiras quebraram. Em 1975, no tumultuado governo de Isabelita Perón, nova crise de inflação. Regressando até a Revolução Libertadora, que em 1955 depôs Perón, a Argentina viveria diversos golpes, convulsões sociais, políticas ou econômicas. Em todas elas, houve violência. BARCELONA "As pessoas não querem falar de crise, há um medo de que tudo possa voltar. Por isso o governo não fala, a oposição não fala, a imprensa não fala e até a gente se esqueceu de falar", afirma Pablo Marchetti, 43, editor-responsável da "Barcelona", revista satírica que é uma das filhas de 2001. Idealizada naquele ano por Marchetti e um grupo de amigos jornalistas, a "Barcelona" -cujo slogan é "uma solução europeia para os problemas argentinos". Faz, nas palavras do editor "jornalismo escrachado em estado bruto". "É uma espécie de 'que se vayan todos' da imprensa argentina". Semanal desde julho, após anos com periodicidade quinzenal, a revista reconta em versão nonsense, em textos, artes, montagens e charges, o noticiário da Argentina e do mundo para um público que, para entender, precisa ler os jornais. "A ideia era lançar a revista logo em janeiro de 2002, para que no meio do fim do mundo argentino surgisse algo novo. Mas faltava papel, o custo para fazer era enorme", conta Marchetti, feliz com seus 30 mil exemplares semanais. "Sempre acreditamos ser os mais europeus dos latino-americanos, e ainda hoje é assim", diz o editor. "A crise foi a maior piada da Argentina, a renúncia, os cinco presidentes em uma semana, o corralito, a quebradeira nas ruas, Eduardo Duhalde presidente e até o Racing campeão! Veja bem, o país precisou derreter, se acabar, para o Duhalde virar presidente e o Racing, 35 anos depois, voltar a conquistar um título." EFEMÉRIDES "Na Argentina não é possível falar em dez anos", diz o economista Roberto Lavagna, ex-ministro da Economia, em seu escritório na avenida Carlos Pellegrini, no centro portenho. Responsável por medidas que ajudaram a tirar o país da crise, ele não gosta de efemérides ("nos 20 anos falaremos o quê?"), mas aproveita a data para lançar "El Desafío de la Voluntad - Trece Meses Cruciales en la Historia Argentina", livro que narra seu período à frente da economia do país. Lavagna assumiu em abril de 2002, quatro meses depois de Duhalde, o presidente da transição, ser indicado para o cargo (que deixaria em maio de 2003). Mas Lavagna ficaria no ministério até o final de 2005, quando rompeu com Néstor Kirchner (1950-2010). Em 2007, o exministro tentou se eleger presidente, mas acabou em terceiro no pleito que alçou Cristina Kirchner, mulher de Néstor, à Casa Rosada. Em tom épico e egocêntrico, Lavagna narra a recuperação econômica em 13 capítulos. Lista reuniões, debates, o rechaço ao FMI e as medidas adotadas. E, sobretudo, as pressões quando o calote concretizou-se como única opção. Afastado da vida pública, o economista de 69 anos divide o tempo entre Buenos Aires e a Europa, para onde viaja para falar do caso argentino e da relação com a atual crise do euro, sobretudo a Grécia. "É possível ver muito da crise na atual Argentina", afirma o jornalista Martín Kanenguiser, outro que acaba de lançar um livro sobre 2001. "Inflação alta, consumo alto, deficit com alguns fundos e principalmente um modelo que afugenta o capital estrangeiro." Diferentemente do relato personalista de Lavagna, Kanenguiser destrincha o período com didatismo. "El Fin de la Ilusión - Crisis, Reconstrucción y Declive" começa com os pormenores que influenciaram na crise, como os desmandos no governo Carlos Menem, nos anos 90. Jornalista de economia do "La Nación", Kanenguiser, 42, juntava há anos material para escrever sobre o período. KIRCHNER Com alta aprovação popular no primeiro mandato (2003-07), Kirchner recuperou a economia, que cresceu no período uma média anual de 8,2%. Teve êxito também na área social: 8 milhões (numa população 40 milhões) saíram da pobreza nos primeiros quatro anos "K". A intervenção do Estado na economia se acentuou com a eleição de Cristina, em 2007. O cenário mudou no ano seguinte, e não só por causa do turvo cenário da crise mundial. O governo enfrentou atritos fortes com produtores rurais ao tentar aumentar a taxa de exportação. A crispação estendeu-se ao empresariado e à imprensa, vista pelo governo como inimiga. A demanda interna já não acompanha a falta de investimentos externos. A fuga de capitais ainda é rotina, tendo chegado a US$ 60 bilhões nos últimos quatro anos. E o protecionismo virou parte da agenda nacional, efeito sentido principalmente pelas muitas empresas brasileiras na Argentina. O setor energético, subsidiado, prossegue ocioso e com baixo investimento. A inflação, negada pelo governo, saiu do controle: hoje é estimada por consultorias privadas em 25% ao ano -o índice oficial é de 10%. Não há medidas do governo para conter a subida dos preços, que acaba estimulando a alta do consumo. Apesar dos índices sociais positivos, cresce a favelização, sobretudo na capital e região metropolitana. Mesmo com programas de distribuição de renda, estima-se que 30% da população viva abaixo da linha de pobreza, cifra contestada pela Casa Rosada (que admite apenas 10%). CASE Ainda assim, o país cresce. Professor da Universidade Columbia, o Nobel de economia Joseph Stiglitz é um dos entusiastas da Argentina pós "default". "O fim da paridade cambial e o calote tiveram um alto custo, mas, logo após um período de queda, o país começou a crescer muito rápido, inclusive com a ausência do que muita gente considera as melhores práticas econômicas", disse, há duas semanas, ao debater a economia mundial com outros Nobel em Lindau, no sul da Alemanha. Para o bem ou para o mal, a Argentina virou um "case". "O problema é que tratamos tudo com superficialidade, não aprendemos com a nossa história. Virou tradição a Argentina se chocar sempre com a mesma pedra", diz José Ignacio de Mendiguren, presidente da UIA (União Industrial Argentina). "E olha que a crise foi um dos processos mais ricos de nossa história, em pouco tempo caíram todos os mitos e teorias que em 200 anos levaram a Argentina para o fracasso. É uma pena ela ficar esquecida." Ex-ministro de Produção do governo Duhalde, Mendiguren voltou neste ano à presidência da UIA, que ocupava quando eclodiu a crise de 2001. "Pelo menos voltamos a ter uma economia real. Hoje pensamos com a nossa própria cabeça, não há um órgão externo ou um banco ditando as regras. Esse foi o nosso maior ganho com a crise", afirma o industrial, fumando um "habano" em sua enorme sala na sede da entidade, num centenário prédio na avenida de Mayo. Com exceção do kirchnerismo, que se impôs como a maior força do país após a crise, os demais políticos -hoje na oposição- não conseguiram se recompor do baque. Não há nem diálogo entre eles. As eleições primárias do último dia 14 confirmaram o diagnóstico. Cristina recebeu mais de 50% dos votos e deve ser reeleita no primeiro turno, em outubro. Embalada pela popularidade crescente após a morte de Néstor e pelos bons ventos na economia, ela não fala sobre a crise. "Todos estamos otimistas, nunca ganhamos tanto como agora. E ninguém espera uma nova catástrofe", diz José Montaldo, gerente de uma transportadora de gás, após um debate na sede do Cadal (Centro para Abertura e Desenvolvimento da América Latina), em Buenos Aires. A entidade é um "think tank" dedicado a discutir a Argentina, em particular, e a América Latina, em geral. O país, dizem, poderia crescer mais que os 8,2% previstos para este ano, sobretudo por causa do bom momento econômico da região. Apesar dos avanços, há um problema de quase 200 anos a ser resolvido: a imensa dívida externa. Segundo o Ministério da Economia, ela está avaliada em US$ 128 bilhões. Não se sabe quando nem se será possível quitá-la. Já o Racing, neste 2011, completa dez anos sem conquistar um título. A situação financeira, segundo a diretoria, está bem melhor, apesar de o time não ter bala na agulha para contratar reforços. Jogadores, cartolas e torcedores estão otimistas: a Academia, embolada entre os cinco primeiros, briga pela ponta do campeonato nacional. Os sinais de que a economia ia mal apareceram em 1998, quando o país entrou em recessão após os sete anos em que um peso valia um dólar O país colapsou com a renúncia de De la Rúa. Morreram 30, mais da metade da população desceu à pobreza, cinco presidentes ocuparam a Casa Rosada em dez dias "As pessoas não querem falar de crise, há um medo de que tudo volte. O governo não fala, a oposição não fala, a imprensa não fala e até a gente se esqueceu de falar" Com exceção do kirchnerismo, que se impôs como a maior força do país, os demais políticos, hoje na oposição, não conseguiram se recompor do baque LUCAS FERRAZ ILUSTRAÇÃO LINIERS EM MEIO AO CAOS econômico, social e político da Argentina de dezembro de 2001, o administrador desempregado Oreste García, 43, uma das vítimas da maior crise do país, encontrou motivo para comemorar. O Racing, seu time, arrancou um empate contra o Vélez Sarsfield, que jogava em casa, no bairro portenho de Liniers, e sagrouse campeão argentino, quebrando 35 anos de jejum. A situação do país deu contornos dramáticos à vitória. Naquela quinta, 27 de dezembro, por pouco não houve futebol. A Argentina estava em Estado de sítio, decretado semanas antes. Os protestos nas ruas da capital eram diários, assim como os saques nos supermercados. A economia derretia, com fuga maciça de capitais e o anúncio do "corralito", medida para salvar os bancos que congelou os depósitos. Só era permitido retirar pequenas somas. No dia 20, um acossado Fernando De la Rúa havia renunciado à Presidência da República. Para conseguir a realização da partida, os torcedores do Racing fizeram um piquete nas ruas da capital até a sede da AFA (Associação de Futebol Argentino). Conseguiram. Time de Carlos Gardel, Juan Domingo Perón e Néstor Kirchner, o Racing -ou "Academía", alcunha preferida da torcida- foi fundado em Avellaneda, em 1903, e tem uma história de glórias e fracassos que em muito se parece com a da Argentina, a começar pela camisa, igual à da seleção. O clube foi uma potência até os anos 1940 -quando o país ostentava índices socioeconômicos comparáveis à Europa Ocidental. A equipe obteve nove títulos nacionais e foi o primeiro clube argentino a ganhar o Mundial Interclubes, em 1967. Nos anos 70, vieram cartolas irresponsáveis e dívidas. Em 1983, foi o primeiro dos cinco grandes clubes argentinos a despencar para a segunda divisão. Em 1999, a diretoria do Racing pediu falência, mas torcedores se juntaram e a evitaram. Em outro feito inédito, o time foi o primeiro do país a ter gestão empresarial. A ressurreição, a volta à glória, ocorreu naquela noite de 27 de dezembro de 2001, enquanto a Argentina fazia o caminho inverso.