Parte I - LARPSI

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Parte I
PSICOPATOLOGIA
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1
O conceito histórico
da esquizofrenia
Helio Elkis
Remontam à Antiguidade os primeiros relatos
Remontam à Antiguidade
de quadros psiquiátricos com início na adolesos primeiros relatos de
quadros psiquiátricos
cência ou na juventude e que levavam a uma decom início na adolesterioração global das funções mentais. Porém, a
cência ou na juventude
publicação sistemática desses relatos começou a
e que levavam a uma
deterioração global das
ser feita apenas a partir do século XIX por autofunções mentais.
res como Haslam. A hebefrenia, um quadro psicótico deteriorante, foi descrita por Hecker em
1871, e a catatonia, por Kalhbaum, em 1874. Para distingui­‑las de quadros
demenciais associados ao envelhecimento, o psiquiatra belga Benoit Morel
englobou-as sob o termo démence precoce em 1860. No entanto, o que hoje
denominamos esquizofrenia baseia­‑se nas diferentes visões de Kraepelin, Bleuler e Schneider, elaboradas entre o final do século XIX e a metade do século XX.1 Tais visões ou
O que hoje denominamos
esquizofrenia baseia-se
conceitos influenciaram também os critérios
nas diferentes visões
2
diagnósticos modernos de esquizofrenia. Na Fide Kraepelin, Bleuler e
Schneider, elaboradas
gura 1.1, é apresentada uma síntese da evolução
entre o final do século
histórica desses conceitos.
XIX e a metade do século
XX.1
KRAEPELIN
Kraepelin retomou o conceito de Morel, rebatizou­‑o com seu nome latino –
dementia praecox – e forneceu a primeira descrição do quadro na quarta edi-
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18961908/111913 1930/40 1948 1965-73 1974-5 1978-80 1993-4
Expansão do
conceito
Kasanin, 1933
Langfeldt, 1939
Kraepelin
(5a ed)
Dementia
Praecox
Bleuler
Esquizofrenia
Kraepelin (8a ed)
2 síndromes da
Dementia Praecox
Schneider
Sintomas de
primeira
ordem
Projetos
US-UK
IPSS
Critérios
Feighner
Síndromes
positiva e
negativa
RDC
DSM-III
Sintomas
positivos e
negativos
CID-9
CID-10
DSM-IV
FIGURA 1.1 Evolução do conceito de esquizofrenia – séculos XIX e XX.
Fonte: A partir de Elkis.1
ção de seu tratado, publicado em 1893. Kraepelin observou pacientes jovens
que, após um período psicótico, sofriam um “enfraquecimento psíquico”
(Verblödung, em alemão), mas não necessariamente se tornavam demenciados no sentido pleno do termo. De fato, apesar do nome desfavorável para o
prognóstico da doença, Kraepelin observou uma evolução favorável em mais
de um quarto dos casos.
A descrição do quadro na quinta edição do tratado de Kraepelin, em
1896, é considerada fundamental, uma vez que situou a demência precoce em
um grupo de transtornos definidos como “degenerativos” (i.e., com certa influência ambiental), distinto de outro grupo com transtornos denominados
“endógenos” (de etiologia essencialmente genética, sem influência ambiental). Entre estes, estava a “insanidade maníaco­‑depressiva”, nascendo, assim, a
famosa noção de “dicotomia kraepeliniana”, que consiste na oposição etiológica entre demência precoce e insanidade ma­
níaco­‑depres­siva.
Kraepelin considerava
Kraepelin considerava os transtornos menos transtornos mentais
como entidades clínicas
tais como entidades clínicas discretas e que podiscretas e que podederiam ser definidas de acordo com sua evoluriam ser definidas de
acordo com sua evolução e por meio de um conjunto de sintomas cação e por meio de um
racterísticos.3 Assim, por exemplo, na oitava
conjunto de sintomas
edição do tratado (cujo último volume foi pucaracterísticos.3
blicado em 1913 e, em inglês, alguns anos de-
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pois),4 há uma descrição detalhada de todos os sintomas que hoje observamos na esquizofrenia, porém nenhum deles foi definido como patognomônico. As ideias de Kraepelin influenciaram vários autores que criaram os
novos critérios diagnósticos e as classificações internacionais das doenças
mentais (ver a seguir). Esses autores, que se autodenominavam “neokraepelinianos”, no caso da esquizofrenia, consideraram os sintomas psicóticos –
como delírios e alucinações – como característicos do transtorno.3
Na última edição de seu tratado, Kraepelin propôs que duas grandes
síndromes caracterizariam a demência precoce:4
• “O enfraquecimento das atividades emocionais que formam as molas propulsoras da vontade”.
• “A perda da unidade interna das atividades do intelecto, emoção e volição”.
Assim, a chamada “síndrome avolicional” foi identificada por muitos
autores como a primeira descrição de um conjunto de sintomas posteriormente rebatizados com o nome de “negativos”. Já a “síndrome da perda da
unidade interna” foi descrita por Kraepelin da seguinte forma: “apresenta­‑se
como no distúrbio das associações descrito por Bleuler, na incoerência do
pensamento, nas mudanças intensas do humor e na inconstância do pragmatismo”. Tal afirmação, aparentemente surpreendente, mostra que, na realidade, o conceito de esquizofrenia elaborado por Bleuler influenciou a última
concepção de demência precoce proposta por Kraepelin.
BLEULER
O conceito de esquizofrenia foi proposto por Bleuler em 1908,5 portanto antes de Kraepelin publicar a última edição de seu tratado. Assim, os conceitos
de demência precoce e de esquizofrenia coexistiram por certo período. O
conceito de esquizofrenia consolidou­‑se com a publicação do livro Dementia
Praecox – o grupo das esquizofrenias em 1911, portanto há mais de 100 anos.
Tal obra só foi traduzida para o inglês 40 anos
A esquizofrenia de Bleuler
depois;6 não há tradução para o português, e a
não representa um contradução para o espanhol não é datada.
ceito em oposição ao de
A esquizofrenia de Bleuler não representa
demência precoce, e sim
uma mudança na concepum conceito em oposição ao de demência preção da doença em relação
coce, e sim uma mudança na concepção da
a alguns aspectos.1,3
doen­ça em relação a alguns aspectos:1,3
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1. A esquizofrenia representava uma cisão de várias funções psíquicas (Spaltung, em alemão); daí, portanto, a origem do termo (esquizo = cisão;
­phrenos = alma).
2. Alguns sintomas foram definidos como “fundamentais” para o diagnóstico, em oposição aos chamados sintomas “acessórios”. Os principais sintomas fundamentais são os famosos 6 “As” (e não 4): distúrbios das associações do pensamento, autismo, ambivalência, embotamento afetivo, distúrbios da atenção e avolição.
3. Sintomas como delírios, alucinações, distúrbios do humor ou sintomas
catatônicos eram considerados não essenciais ao diagnóstico e, portanto,
acessórios.
Os sintomas da esqui4. Os sintomas da esquizofrenia também foram
zofrenia também foram
diferenciados entre primários – que reprediferenciados entre
sentam a expressão de uma alteração cerebral
primários – que representam a expressão de
subjacente – e secundários, que representauma alteração cerebral
riam uma consequência, ou uma reação aos
subjacente – e secundáprimários (como os delírios e as alucinações).
rios, que representariam
uma consequência, ou
5. Inspirado muito mais em Pierre Janet e Jung
uma reação aos primádo que em Freud, Bleuler propôs que sintorios (como os delírios e
as alucinações).
mas acessórios ou secundários (como delírios e alucinações) representariam uma reação da personalidade às manifestações orgânicas. O conteúdo dos delírios
representaria os “complexos afetivamente carregados”. Assim, nas palavras
do próprio Bleuler, “alucinamos ou deliramos com o que mais queremos
ou mais tememos”.
Inicialmente, a concepção bleuleriana foi muito aceita, sobretudo nos
Estados Unidos, devido à aparente influência da psicanálise. Foi, depois, muito rejeitada pelo movimento neokraepeliniano e, recentemente, foi retomada
sob a perspectiva das neurociências.7 Como exemplos, podemos citar os casos de Andreasen, que propôs os conceitos de esquizencefalia8 e de dismetria
cognitiva9 para explicar a interação entre as alterações cerebrais e o aparecimento dos sintomas psicóticos. Podemos citar também Kapur, que, com o
conceito de “saliência aberrante”, apesar de não explicitado, é de clara inspiração bleuleriana: ideias distorcidas, inerentes ao psiquismo do paciente,
transformam­‑se em delírios (sintoma secundário) em função de um aumento da atividade do sistema dopaminérgico.10,11
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SCHNEIDER
A necessidade clínica de identificar sintomas característicos da esquizofrenia
marcou a década de 1940: a ideia de “sentimento precoce” (Praecoxgefühl) foi
criada pelo psiquiatra holandês Rümke em 1941. Já os “sintomas de primeira
ordem” (SPOs) foram publicados em 1948 por Kurt Schneider na primeira
edição de Klinische Psychopathologie,1,12 e são assim descritos:2,13
•
•
•
•
•
•
Ouvir os próprios pensamentos soando alto (sonorização do pensa­mento)
Escutar vozes sob a forma de argumento e contra­‑argumento
Escutar, com comentários, vozes que acompanham as próprias atividades
Ter vivências de influência corporal
Ter roubo do pensamento e outras formas de influência do pensamento
Sentir tudo como sendo feito ou influenciado pelos outros no campo dos
sentimentos, pulsões e vontade
• Ter percepção delirante
Os SPOs de Schneider exerceram grande influência sobre a psiquiatria
britânica, sobretudo na elaboração do diagnóstico de esquizofrenia pelo Present State Examination (PSE). O PSE foi o insApesar de sua grande
trumento utilizado para o exame de pacientes
influência sobre a psicom esquizofrenia em nove países do Estudo Piquiatria britânica, novos
loto Internacional da Esquizofrenia (Internatioestudos mostraram que
os SPOs não eram exclunal Pilot Study of Schizophrenia – IPSS), um essivos da esquizofrenia,
tudo transcultural patrocinado pela Organizaocorrendo com frequência em outras psicoses.
ção Mundial da Saúde (OMS), que concluiu que
a esquizofrenia é um transtorno psiquiátrico
universal que tem alguns sintomas comuns independentemente da cultura
local: falta de insight, alucinações auditivas e verbais, sonorização do pensamento, embotamento afetivo, ideias e delírios de referência.1 No entanto,
apesar de sua grande influência sobre a psiquiatria britânica, novos estudos
mostraram que os SPOs não eram exclusivos da esquizofrenia, ocorrendo
com frequência em outras psicoses e em transtornos dissociativos, não tendo
valor prognóstico ou preditivo.3
Os conceitos de Kraepelin, Bleuler e Schneider e seus respectivos sintomas
(ver Tab. 1.1) formam a base para a compreensão da esquizofrenia e fazem parte do conjunto de conhecimentos dos psiquiatras, estando presentes nos crité-
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Tabela 1.1
Sintomas kraepelinianos, bleulerianos e schneiderianos
Kraepelin, 1913
Síndromes
1. Avolicional
“O enfraquecimento das
atividades emocionais que
formam as molas propulsoras da volição.”
2. Síndrome da perda
da unidade interna
“A perda da unidade interna
das atividades do intelecto,
emoção e volição.”
Bleuler, 1911
Fundamentais (6 “As”)
Distúrbios das Associações
do pensamento
Autismo
Ambivalência‑
Embotamento Afetivo
Distúrbio da Atenção
Avolição
Acessórios
Delírios
Alucinações
Sintomas do humor
Sintomas catatônicos
Schneider, 1948
Sintomas de Primeira
Ordem (SPOs)
Sonorização do pensamento
Escutar voz sob forma de
argumento e contra­
‑argumento
Escutar vozes que comentam os atos
Vivências de influência
corporal
Roubo de pensamentos
Sensações de influência
Percepção delirante
Fonte: A partir de Elkis e colaboradores.14
Os conceitos de
Kraepelin, Bleuler e
Schneider e seus respectivos sintomas formam
a base para a compreensão da esquizofrenia e
fazem parte do conjunto
de conhecimentos dos
psiquiatras, estando
presentes nos critérios
diagnósticos que operacionalizam o conceito da
doença.1,2
rios diagnósticos que operacionalizam o conceito
da doença1,2 como será visto a seguir. Na Tabela
1.1 é apresentada uma síntese dos sintomas descritos.
A EXPANSÃO DO CONCEITO
A expansão do conceito de esquizofrenia deu­‑se
predominantemente nos Estados Unidos devido
às influências de Meyer e Sullivan, sobretudo às
deste último, que interpretava os conceitos bleulerianos à luz da psicanálise. Outros autores expandiram o conceito de diferentes formas, como Kasanin, que propôs o conceito de psicose esquizoafetiva, sugerindo a existência de um continuum da psicose, e não uma dicotomia.
Já Hoch e Polatin aproximaram a esquizofrenia dos transtornos da personalidade por meio do conceito de esquizofrenia “pseudoneurótica”, levando
muitos pacientes que hoje seriam diagnosticados como bipolares ou com
transtornos da personalidade a serem diagnosticados como portadores de esquizofrenia.1 A segunda edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM­‑II), classificação de transtornos mentais da American
Psychiatric Association feita em 1968, foi influenciada por esses conceitos,
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definindo a esquizofrenia de forma muito ampla, com uma descrição de sintomas pouco elaborada, sendo considerado psicótico todo paciente “incapaz
de atender às demandas da vida diária”.15
Embora autores como Langfeld, em 1939, tenham descrito formas “esquizofreniformes” em oposição àquelas deteriorantes kraepelinianas, na Europa, o conceito de esquizofrenia manteve­‑se dentro de limites mais restritos,
em especial na Inglaterra, devido à influência dos critérios de Schneider e
Kraepelin. O projeto US­‑UK (1996­‑1970), um estudo colaborativo entre Estados Unidos e Reino Unido, mostrou que os psiquiatras norte­‑americanos
diagnosticavam a esquizofrenia de forma muito mais ampla do que os psiquiatras britânicos, incluindo no conceito casos de transtornos da personalidade e do humor.1,15
A restrição do conceito: critérios diagnósticos modernos
A reação à expansão do conceito de esquizofreA reação à expansão
nia ocorreu no início da década de 1970, quando
do conceito de esquizofrenia ocorreu no início
pesquisadores da Universidade de Washington
da década de 1970,
publicaram os primeiros critérios diagnósticos
quando pesquisadores
16
estruturados para pesquisa psiquiátrica. Nesda Universidade de
Washington publicaram
ses critérios, a definição de esquizofrenia tornou­
os primeiros critérios
‑se restrita, pois, para preencher os critérios do
diagnósticos estrututranstorno, era necessária a presença de sintorados para pesquisa
psiquiátrica.16
mas schneiderianos e bleulerianos, assim como
de um período mínimo de doença de seis meses,
em uma clara retomada do conceito evolutivo kraepeliniano. Esses critérios
foram sucedidos pelo Research Diagnostic Criteria (RDC), que enfatizava a
necessidade da presença de SPOs para que o diagnóstico de esquizofrenia pudesse ser feito.1
A publicação da terceira edição do DSM – o DSM­‑III –, em 1980, representa a evolução do conceito a partir dos critérios anteriores. Nessa classificação, para preencher o critério A, era necessária a presença tanto de sintomas
bleulerianos como schneiderianos. O critério B define com clareza que há necessidade de que o paciente apresente uma “deterioração a partir de um nível
prévio”, uma noção claramente kraepeliniana. No critério C há dois aspectos
essencialmente kraepelinianos: a sintomatologia deve estar presente há pelo
menos seis meses e a doença maníaco­‑depressiva deve ser excluída.1 As
­edições seguintes do DSM, incluindo a edição revisada do DSM­‑III (DSM­
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‑III­‑R) em 1987 e o DSM­‑IV­‑TR,17 mantiveram basicamente o mesmo algoritmo diagnóstico com Critérios de Inclusão: A, sintomas característicos; B, disfunção social ocupacional; C, duração; D, exclusão de transtorno es­quizoafetivo
e transtorno do humor; E, exclusão de substância/condição médica geral; e F,
relação com um transtorno global do desenvolvimento. O conceito/critério
diagnóstico de esquizofrenia do DSM é considerado dos mais restritos.1
Por sua vez, o conceito de esquizofrenia da nona edição da Classificação
internacional de doenças e problemas relacionados à saúde (CID­‑9), da Organização Mundial da Saúde, era essencialmente descritivo e, em termos de descrição sintomatológica, contemplava tanto a presença de SPOs quanto a de
distúrbios do pensamento e embotamento afetivo, associados a delírios e alucinações.1 No entanto, não havia referência à duração da doença, lacuna que
foi preenchida na décima e atual edição, a CID­‑10, que fixou a duração da esquizofrenia em um mês, além de privilegiar a presença de SPOs para o diagnóstico.18 Devido a esses aspectos, certos autores argumentam que a combinação da curta duração da doença e a predominância de SPOs tornou o conceito de esquizofrenia da CID­‑10 novamente muito amplo.19
Diferentemente do que ocorre com o conDiferentemente do que
ceito de depressão, que é relativamente homogêocorre com o conceito
neo ou monotético, a dificuldade em conceituar
de depressão, que é rea esquizofrenia está no fato de que esta possui
lativamente homogêneo
ou monotético, a difium conceito politético, heterogêneo, que abranculdade em conceituar
ge outros subconceitos, às vezes conflitantes ena esquizofrenia está no
tre si.1,19 Talvez por essa razão, Hoenig, que trafato de que esta possui
um conceito politético,
duziu a Psicopatologia geral de Karl Jaspers para
heterogêneo, que abrano inglês, tenha afirmado que o capítulo final da
ge outros subconceitos,
às vezes conflitantes
história do conceito de esquizofrenia ainda não
entre si.1,19
fora concluído.20
Em 1974, pesquisadores que haviam
participado do IPSS
propuseram uma simplificação dos tipos de
sintomas da esquizofrenia e subdividiram­‑nos
em três grandes grupos:
positivos ou psicóticos,
negativos ou deficitários
e de alteração das relações interpessoais.
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DIMENSÕES PSICOPATOLÓGICAS
Em 1974, pesquisadores que haviam participado
do IPSS propuseram uma simplificação dos tipos de sintomas da esquizofrenia e subdividiram­
‑nos em três grandes grupos: positivos ou psicóticos (p. ex., delírios e alucinações), negativos ou
deficitários (p. ex., embotamento afetivo e avolição) e de alteração das relações interpessoais, os
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27
quais permitiram as primeiras especulações a respeito dos processos subjacentes a esses sintomas.21,22
Surgiu, assim, a noção de sintomas positivos e negativos, a qual teve
grande influência sobre o conceito de esquizofrenia, sobretudo a partir de
1980, quando Crow23 e Andreasen e Olsen,24 quase simultaneamente, introduziram as noções de subtipos ou dimensões positivas e negativas. De fato,
Crow foi o primeiro a conceituar a dimensão ou síndrome positiva (tipo I de
Crow), caracterizada por um quadro agudo, reversível, com boa resposta ao
tratamento antipsicótico, sem dilatação ventricular observável pela tomografia e cuja fisiopatologia poderia estar relacionada a um aumento de receptores dopaminérgicos. A dimensão negativa (tipo II de Crow), por sua vez,
associava­‑se a má resposta ao tratamento, cronicidade, provável redução de
receptores dopaminérgicos e alterações cerebrais estruturais, como dilatação
do sistema ventricular (Tab. 1.2). Esse modelo influenciou de certa forma autores como Andreasen e Olsen, que propuseram os subtipos de esquizofrenia
“positivo”, “negativo” e “misto”,24 e Robin Murray, o primeiro a propor uma
classificação etiológica da esquizofrenia.25
Tais modelos representaram um grande avanço na concepção da esquizofrenia, permitindo que autores como Liddle propusessem novos modelos
Tabela 1.2
Os tipos I e II de Crow
Tipo I
Tipo II
Sintomas
característicos
Delírios, alucinações,
distúrbios do pensamento
Embotamento afetivo,
pobreza do discurso,
avolição
Formas clínicas
Esquizofrenia aguda
Esquizofrenia crônica
Defeito esquizofrênico
Resposta
ao tratamento
antipsicótico
Boa
Ruim
Evolução
Reversível
Irreversível (?)
Deterioração
intelectual
Ausente
Às vezes presente
Processo
patológico postulado
Aumento dos receptores
dopaminérgicos
Morte celular
Alterações cerebrais
e estruturais
Fonte: A partir de Crow.23
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para a doença, como, por exemplo, o modelo das três dimensões (positiva,
negativa e de desorganização) que se correlacionavam com alterações funcionais cerebrais observadas por meio de técnicas como o fluxo sanguíneo cerebral (FSC) e a tomografia computadorizada por emissão de fóton único
(SPECT).26 Ver Figura 1.2.
Nos anos de 1960, análises fatoriais de escalas utilizadas para avaliação
das psicoses, como a Brief Psychiatric Rating Scale (BPRS), de 18 itens, mostravam quatro dimensões psicopatológicas:27 alterações do pensamento,
­afastamento social/retardo motor, ansiedade/depressão e hostilidade/des­
confiança. A Positive and Negative Syndrome Scale (PANSS),28 escala que
surgiu nos anos de 1980, foi composta por 30 sintomas: 18 da BPRS e 12 da
Comprehensive Psychiatric Rating Scale. As evidências provenientes das
­diversas análises fatoriais da PANSS permitiram conceber a esquizofrenia
como um transtorno de múltiplas dimensões psicopatológicas: positiva ou
psicótica, de desorganização, negativa, depressivo­‑ansiosa e cognitiva.14 Ver
Tabela 1.3.
Nas últimas décadas, essas dimensões foram extensamente replicadas e
passaram a influenciar não só a concepção de esquizofrenia, mas também seu
tratamento.29
Desorganização
conceitual do
pensamento
Desorganizada
Distorção
da realidade
(positiva)
Delírios
e alucinações
Negativa
•
•
•
•
Avolição
Apatia
Alogia
Embotamento afetivo
FIGURA 1.2 As síndromes psicopatológicas da esquizofrenia proposta por
Liddle.
Fonte: A partir de Liddle e Barnes.26
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Esquizofrenia: avanços no tratamento multidisciplinar
29
Tabela 1.3
Dimensões psicopatológicas da esquizofrenia de acordo com a Positive
and Negative Syndrome Scale (PANSS)
DimensõesSintomas
Psicótica (“positiva”)
Delírios e alucinações
Desorganização
Desorganização conceitual do pensamento, afeto
inapropriado, distúrbio da atenção e comportamento
bizarro
Deficitária (“negativa”)
Embotamento afetivo, déficit volitivo
Depressivo­‑ansiosa
Depressão, sentimentos de culpa, ansiedade psíquica
e autonômica
Cognitiva
Perda da capacidade de abstração e de insight
Fonte: A partir de Elkis e colaboradores.14
Perspectivas futuras
Para ter uma ideia do impacto das dimensões psicopatológicas, será apresentado
um esboço da futura classificação norte­‑americana dos transtornos mentais, o
DSM­‑V, a ser lançada em 2013. As modificações propostas em relação ao conceito
de esquizofrenia são, atualmente, as seguintes:*
• Os itens A a F deverão ser simplificados, mas permanecerão essencialmente
os mesmos.
• Há uma recomendação específica de que subtipos da esquizofrenia não
façam mais parte dos novos critérios.
• Os subtipos serão substituídos pelas seguintes dimensões psicopatológicas:
alucinações, delírios, desorganização, conduta motora anormal, restrição da
expressão emocional, comprometimento da cognição, depressão e mania.
• Tais dimensões serão avaliadas por uma escala (0­‑4) de forma transversal,
tendo como base o último mês.
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Esquizofrenia: avanços no tratamento multidisciplinar
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