Relato de Caso Síndrome de Fanconi com evolução para insuficiência renal crônica Fanconi syndrome evoluing to chronic renal failure Luciana Frizon Gabrielle Scattolin André Frizon Acadêmicos de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Denise Marques Motta Nefrologista pediátrica da UTI Neonatal da Sociedade Portuguesa de Beneficência de Pelotas (SPBP) - Pelotas - RS. Trabalho realizado no Serviço de Pediatria da Sociedade Portuguesa de Beneficência de Pelotas (SPBP), com colaboração do Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Faculdade de Medicina da UFPel. Endereço para correspondência: Luciana Frizon - R. Álvaro Chaves, 319 apto 401/A - CEP 96010-760 - Pelotas - RS - Tels.: (53) 222-3350 e 9112-4636 - Email: [email protected] Unitermos: síndrome de Fanconi, insuficiência renal, tubulopatia proximal. Unterms: Fanconi syndrome, renal failure, proximal tubular dysfunction. Numeração de páginas na revista impressa: 523 à 526 Introdução A síndrome de Fanconi (SF) é uma tubulopatia proximal complexa e se caracteriza por importantes alterações no transporte e na reabsorção de glicose, aminoácidos, fosfato e bicarbonato, em presença de função renal normal. Ocorrem ainda proteinúria tubular, perda urinária inadequada de Na+ e K+, diminuição na capacidade de concentração urinária e acidose metabólica(1,2). A SF pode iniciar-se na infância (forma infantil) ou na terceira ou quarta década (forma adulta) e na maioria dos casos é descrita como distúrbio sistêmico(3). As manifestações clínicas mais comuns incluem raquitismo em crianças e osteomalácia em adultos, sendo que as crianças apresentam vômitos esporádicos, anorexia, fadiga, retardo de crescimento, retardo na idade óssea, paralisia (por hipofosfatemia), poliúria, episódios de desidratação e obstipação intestinal(1,4,5). Os autores relatam os achados clínicos, laboratoriais e evolução para IRC de um caso de síndrome de Fanconi, destacando a importância da suspeita diagnóstica em crianças com os sintomas acima descritos, a fim de evitar insuficiência renal e retardo do desenvolvimento. Relato do caso Os autores relatam o caso de D.A.S., feminina, branca, atualmente com seis anos e cinco meses de idade, admitida no Serviço de Nefrologia da Sociedade Portuguesa de Beneficência de Pelotas ( SPBP) com um ano e seis meses (fevereiro de 1996), para tratamento de disfunção renal. Através da revisão dos prontuários de suas internações prévias em outros Serviços, verificou-se que no primeiro ano de vida a paciente fora internada várias vezes por vômitos, poliúria, polidipsia, desidratação de difícil controle, pneumonia, pouco de ganho de peso, desnutrição grau III e acentuado retardo de desenvolvimento neuropsicomotor. Com um ano e seis meses se apresentava com peso de 6.080 g, descorada, com depleção do espaço extracelular de segundo grau (DEEC II), sem dismorfismos, lúcida e hipotônica. Os exames laboratoriais desse período se encontram nas Tabelas 1 e 2. Baseados neste quadro foram solicitadas dosagens dos eletrólitos urinários, que mostraram glicosúria, hiperfosfatúria, aminoacidúria e hipercalciúria, obtendo-se o diagnóstico de síndrome de Fanconi. Foi realizada uma investigação etiológica para SF secundária, através de triagem para erros inatos do metabolismo, cistinose (por avaliação de fundo de olho), diarréia crônica e cariótipo (46,XX), que foram normais, afastando as principais causas secundárias. Nefrocalcinose foi afastada por ausência de hipercalcemia e calcificações renais à radiologia. Com base no diagnóstico de SF idiopática se iniciou o tratamento puramente sintomático com vitamina D3 e carbonato de cálcio, para correção do raquitismo e normalização da calcemia; hidroclorotiazida, para tratar a hipercalciúria; citrato, bicarbonato e solução de Shohl, para correção da acidose metabólica, bem como sulfato ferroso para a anemia. Com o tratamento a paciente obteve recuperação nutricional, mas persistiu com vômitos alimentares. Foram solicitados estudo radiológico contrastado de esôfago, estômago e duodeno (REED) e endoscopia digestiva alta, que evidenciaram refluxo gastroesofágico e esofagite enantematosa leve, mantendo-se em regular estado geral até os cinco anos de idade, quando foi internada em coma por desidratação e distúrbios hidroeletrolíticos. Houve recuperação, mas evoluiu com diminuição da função renal, anemia grave e acidose de difícil controle (Tabela 1). Aos seis anos de idade houve nova parada do crescimento (Gráfico 1), sendo instalado um cateter de Tenckhoff e iniciada diálise peritoneal ambulatorial contínua (CAPD). A indicação de diálise foi baseada na parada do crescimento (percentil altura/idade < 3), retardo grave do desenvolvimento neuropsicomotor, dificuldade na manutenção da homeostasia do cálcio e fósforo, com conseqüente raquitismo sem resposta à vitamina D, permanente acidose, apesar da medicação e TGF < 15 ml/min/1,73 m2. Após a terapia dialítica cessaram os vômitos, houve ganho de peso e altura e a paciente se manteve estável. Encontra-se atualmente com peso de 11.200 g, altura de 82 cm, apresentando alterações ósseas em extremidades superiores e inferiores e caminhando com dificuldade (Figura 1). A pressão arterial vem mantendo-se em torno de 70/40 mmHg e os exames laboratoriais, conforme Tabelas 1 e 2. Está há seis meses em diálise peritoneal, com trocas adequadas e sem intercorrências. Discussão No presente caso, o que chamou a atenção para o diagnóstico foi o grande número de internações no primeiro ano de vida e a persistência de desidratação e desnutrição, acompanhadas de sinais laboratoriais indicativos de distúrbio tubular renal. O diagnóstico tardio contribuiu consideravelmente para o retardo de crescimento, desenvolvimento e fatores prognósticos. A acidose metabólica associada ao quadro raquítico é uma situação que ocorre apenas na IRC, acidose tubular distal e SF. A presença de glicosúria, fosfatúria, aminoacidúria, acidose metabólica e pH urinário elevado caracterizam o quadro de SF e descartam acidose tubular distal(1,3). Ao diagnóstico, a TFG era >75 ml/min/1,73 m2, uréia e creatinina eram normais, portanto excluiu-se IRC. Os achados laboratoriais descritos na literatura são compatíveis aos apresentados pela paciente. Observa-se hiperfosfatúria, hipercalciúria, hiperuricosúria e respectivas hipofosfatemia, hipocalcemia e hipouricemia; bicarbonatúria, aminoacidúria, proteinúria, glicosúria sem diabetes, hipopotassemia, aumento da fosfatase alcalina e acidose metabólica hiperclorêmica(6). O pH urinário também pode apresentar-se elevado(1). Gráfico 1 - Crescimento ponderal no período. Figura 1 - Deformidades ósseas importantes principalmente em epífises de MMII: joelho valgo, alterações de volume, contorno e mobilidade articulares. Tórax cariniforme. A etiologia da doença é pouco esclarecida. Pode ser classificada como primária ou secundária a inúmeras patologias. Na forma infantil, as principais etiologias da SF secundária incluem erros inatos do metabolismo (cistinose, glicogenose, galactosemia, tirosinemia, síndrome de Lowe, doença de Wilson, intolerância hereditária à frutose, síndrome de Kearns-Sayre), doenças adquiridas (mieloma múltiplo, síndrome nefrótica) e intoxicações (metais pesados e tetraciclina com prazo vencido)(1,3). Em contraste, a SF com início na fase adulta está associada a desordens adquiridas que afetam o compartimento túbulo-intersticial, tais como nefrite intersticial, síndrome de Sjögren, amiloidose e nefropatia por linfoma(3,7). A cistinose, causa mais freqüente de SF em criança(1,8) foi afastada visto que a pesquisa de cristais de cistina no globo ocular (com lâmpada de fenda) foi negativa. A patogênese da SF envolve um dos seguintes mecanismos básicos: 1) a membrana tubular renal se torna mais permeável, permitindo menor efetividade na reabsorção dos solutos; 2) falência no mecanismo intracelular das células tubulares renais em produzir energia suficiente para o transporte(3,4). A lesão é túbulo-intersticial, produzindo diminuição da capacidade de concentração da urina com conseqüente redução do hormônio antidiurético e poliúria por diminuição da reabsorção de água no túbulo coletor(1,3,8). O tratamento proposto para SF é apenas sintomático, baseandose na correção da acidose metabólica, pela utilização de soluções de citrato de sódio ou potássio (para reposição de Na+ e K+), correção da hipofosfatemia conseqüente à fosfatúria, administração de vitamina D3 ou seu metabólito ativo - 1,25 diidroxivitamina D3 - e ainda soluções de fosfato. A hemostasia do cálcio sérico é obtida através de soluções de carbonato de cálcio, evitando a hipercalcemia. O uso de diuréticos tiazídicos contribui com isso ao aumentar a reabsorção tubular de cálcio e diminuir a hipercalciúria, evitando, assim, o hiperparatireoidismo secundário(9,10) . A recuperação do peso e do crescimento, de uma forma geral, iniciou-se após o diagnóstico e uso das medicações (Gráfico 1). Entretanto, neste caso o déficit estatural e as deformidades ósseas foram acentuadas devido ao tratamento tardio (Figura 1). A evolução para tratamento dialítico (CAPD) foi inevitável, já que houve parada no crescimento, acompanhada por piora na função renal e acidose, agravada pela não aceitação de alimentação por via oral, devido a uma gastrite erosiva diagnosticada endoscopicamente. Conclusão Pretendeu-se demonstrar a importância do reconhecimento e do diagnóstico precoce desta síndrome, para que seja possível evitar a IRC, a ocorrência de deformidades ósseas e a menor sobrevida dos pacientes. Estas graves alterações se tornam ainda mais relevantes na infância, período em que ocorre o desenvolvimento neuropsicomotor dos indivíduos.