Prefácio à 5ª edição A presente edição deste livro, cuja versão original foi publicada há mais de duas décadas no Rio de Janeiro (Editora Obra Aberta, 1994), apresenta mudanças significativas em relação à edição anterior (Oficina do Autor, 2007). Essas alterações não decorrem apenas da aprovação do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, em vigor desde 2009, que tornou obrigatória a completa atualização do texto ora editado. Elas também assimilam as contribuições de estudos mais recentes de gramáticos e linguistas brasileiros sobre os fatos de nossa língua, além de observações bastante oportunas de alguns estudantes do Instituto de Letras e do Instituto de Aplicação da UERJ (CAp-UERJ), onde o autor ministra aulas de Metodologia do Ensino de Língua e Literatura e de Língua Portuguesa. Os objetivos gerais da obra, no entanto, ainda são os mesmos. Estabelecendo sempre um contraponto entre as variantes culta e coloquial do português brasileiro, a Gramática Crítica busca oferecer aos leitores uma súmula do sistema de regras que estrutura a escrita padrão do idioma, sem desvalorizar a competência dos falantes escolarizados, cujos usos também são descritos neste estudo. Fazendo jus ao título, o autor realiza uma revisão criteriosa das prescrições da Gramática “Normativa”, a fim de orientar os estudantes do Ensino Médio e Superior no domínio da chamada norma culta. Para isso, ele se vale dos mais renomados gramáticos do país (Celso Cunha, Celso Luft, Evanildo Bechara e Rocha Lima) e dos instrumentos oficiais que fixam e disciplinam o emprego do vernáculo no Brasil. As recomendações de Ortografia e Prosódia, por exemplo, atêm-se às formas consignadas no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (organizado em 2009 pela Academia Brasileira de Letras), que registra as mudanças ditadas pelo Novo Acordo Ortográfico, dispositivo que fez caducar a antiga Lei 5.765, de 18 de dezembro de 1971. Já na seção de Sintaxe, a referência inicial para o estudo da Oração e do Período é a terminologia e a taxionomia proposta pela Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), em vigor desde 1959, que transcrevemos na Introdução do volume. Seus pressupostos e fundamentos são rigorosamente analisados, com o intuito de realçar as contradições e lacunas existentes, assim V como sugerir acréscimos e alterações a uma futura versão do documento – tarefa já iniciada por mestres como Celso Pedro Luft, Mário Perini e Rocha Lima. Ainda na parte de Sintaxe, as regras de Colocação Pronominal, o uso da Crase e os casos de Regência Nominal e Verbal destacam, em primeiro lugar, as construções de maior prestígio na língua literária castiça (registradas por Antenor Nascentes, Evanildo Bechara e Celso Cunha, entre outros), confrontando-as, sempre que possível, com usos coloquiais que divergem da norma letrada. De outro lado, nos capítulos de Morfologia, a descrição da estrutura e das propriedades do vocábulo formal inspira-se nas contribuições prestadas pelas correntes linguísticas dissociadas da perspectiva normativa e histórica. Ela atém-se à realidade viva da língua e privilegia o sincrônico em lugar do diacrônico, atualizando a abordagem de autores do porte de Mattoso Câmara Jr., Horácio de Freitas, José Carlos de Azeredo e Maria Helena de Moura Neves. Quanto aos exemplos que ilustram boa parte dos conceitos e definições enunciados mais adiante, eles provêm, em sua imensa maioria, de duas fontes distintas, aparentemente opostas, mas, em essência, complementares. Uma é a tradição literária consagrada por escritores como Machado de Assis, Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, além dos narradores de além-mar, como o angolano Luandino Vieira ou os lusitanos Fernando Namora e José Saramago. A outra é o vasto repertório da MPB, de Noel Rosa a Chico Buarque, sem esquecer Caetano Veloso, Cazuza, Martinho da Vila, Milton Nascimento, Renato Russo e tantos outros compositores dos mais diversos gêneros musicais de Bruzundanga. Eventuais referências aos “clássicos” do idioma (Luís de Camões, Padre ­Antônio Vieira, Camilo Castelo Branco...) serviram-nos muitas vezes para consignar construções exemplares do registro literário que já se encontram em completo desuso desde o final do século XX. Em contrapartida, recorremos com frequência aos “modernos” (Mário de Andrade, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade...), a fim de abonar novos usos instituídos pela variante tropical do português, cuja larga difusão na linguagem coloquial confere um singular perfil à nossa língua. Frise-se desde já que a adoção desta ou daquela forma é livre opção do usuário, que saberá adequá-la a seus propósitos comunicacionais sem maiores constrangimentos ou discriminações, preservando, deste modo, a riqueza e a prodigalidade do português brasileiro. VI Luiz Ricardo Leitão Por fim, cabe aqui um singelo agradecimento a todos que contribuíram para esta 5ª edição, desde sua concepção até a produção final. Não há como olvidar a competente equipe da Editora Ferreira, em especial a figura única do editor Ricardo Ferreira e a diligente produtora Andrea Almeida. Tampouco é possível esquecer os estudantes da UERJ que têm acompanhado com raro interesse nossos cursos, ensejando sempre novas reflexões ao professor, entre os quais citamos Vanderson Manoel Soares da Silva (Letras), Vítor Mendonça Celane Pinheiro e Lucas Dias Castro (CAp-UERJ). Nossa gratidão, por certo, estende-se ainda aos pares acadêmicos com quem compartilhamos há duas décadas este projeto: na resistente UERJ, André Conforte, André Valente, Claudio Cezar Henriques e José Carlos de Azeredo; na UFRJ, a dileta amiga Leonor Werneck dos Santos; e, no Colégio Pedro II, Elaine Barbosa Ramos, João Ramos Filho, Manoel de Carvalho Almeida e Manuel Ferreira da Costa. Este discípulo de Noel vos saúda! O Autor Prefácio à 5ª edição VII Sumário Prefácio à 5ª edição Alvíssaras Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) V IX XXIII Parte I – Introdução Capítulo 1 – Gramática e Norma 3 1 Língua e Linguagens: o verbal e o não verbal 2 O conceito de gramática 3 Gramática x Norma Capítulo 2 – Variabilidade da Língua Portuguesa 3 4 5 7 Parte II – Morfologia Capítulo 3 – Estrutura dos vocábulos 1 2 3 4 15 O conceito de morfologia O conceito de morfema: morfema lexical e morfema gramatical Os princípios da análise mórfica Morfemas da língua portuguesa 4.1Raiz/Radical 4.1.1 Principais radicais gregos 4.1.2 Principais radicais latinos 4.2 Vogal temática 4.3Desinências 4.4Afixos 4.4.1 Prefixos de origem grega 4.4.2 Prefixos de origem latina 4.4.3 Quadro de correspondência entre prefixos gregos e latinos 4.4.4 Principais sufixos da língua portuguesa XV 15 15 17 18 18 20 22 23 24 25 26 27 28 29 4.5 Vogal e consoante de ligação 5 Vocábulo x Palavra 31 32 Capítulo 4 – Processos de formação das palavras 1 Principais processos de formação das palavras 1.1 Derivação x Composição 1.1.1 Os casos de derivação 1.1.2 Palavras simples x palavras compostas 1.1.3 Tipos de composição 2 Outros processos de formação das palavras 2.1 Conversão (derivação imprópria) 2.2Abreviação 2.3 Reduplicação e onomatopeia 2.4Siglas 2.5Hibridismo 3 Contribuições lexicais de outros idiomas para a língua portuguesa Capítulo 5 – Classes gramaticais 33 33 34 35 37 37 38 38 39 40 41 41 42 45 1 2 3 4 Identificação e reconhecimento das classes gramaticais A classificação oficial Ressalvas à NGB As dez classes gramaticais 4.1Artigo 4.2Substantivo 4.3Adjetivo 4.4Numeral 4.5Pronome 4.6Verbo 4.7Advérbio 4.8Preposição 4.9Conjunção 4.10Interjeição 5 Os diferentes papéis das partículas que e se 46 47 51 55 55 58 65 71 73 82 86 90 93 96 97 Capítulo 6 – Flexão nominal 99 1 Flexão dos substantivos 1.1Gênero 1.2Número 100 100 105 XVI Luiz Ricardo Leitão 2 Flexão dos adjetivos 2.1Gênero 2.2Número 113 113 114 Capítulo 7 – Flexão verbal 117 1 Modos, tempos e aspectos verbais 1.1Modo 1.2Tempo 1.3Aspecto 2 A conjugação das formas verbais 2.1 A estrutura morfológica padrão das três conjugações verbais 2.2 Tempos simples e tempos compostos 2.3 Tempos primitivos e tempos derivados 3 Verbos regulares, irregulares e anômalos 3.1Regulares 3.2Irregulares 3.2.1 Principais irregularidades das três conjugações 3.3 Verbos anômalos 4 Verbos defectivos 4.1 Principais casos de defectividade 5 Verbos unipessoais 6 Verbos abundantes 7 Verbos com particípio abundante 8 Vozes verbais 8.1 Voz ativa 8.2 Voz passiva 8.3 Voz reflexiva 117 117 118 119 120 121 124 125 127 127 128 129 136 136 137 139 139 140 142 142 143 144 Parte III – Sintaxe & Pontuação Capítulo 8 – Os termos da oração 147 1 Frase, oração e período 2 Tipos de oração/frase 2.1 Oração/frase declarativa 2.2 Oração/frase interrogativa 2.2.1 Interrogação direta x Interrogação indireta 2.3 Oração/frase exclamativa 2.4 Oração/frase imperativa Sumário XVII 147 149 151 151 152 152 153 2.5 Oração/frase optativa 2.6 Oração/frase indicativa 3 Os constituintes oracionais 3.1 Sintagma nominal 3.2 Sintagma verbal 3.3 Sintagma adjetival 3.4 Sintagma preposicionado 4 Os termos da oração 4.1 Termos essenciais da oração 4.1.1Sujeito 4.1.2 O verbo e sua predicação 4.1.2.1 Ressalvas à NGB 153 154 154 156 158 159 160 161 163 163 167 168 4.1.3Predicado 4.2 Termos integrantes da oração 4.2.1 Complementos verbais 4.2.1.1 Objeto direto 174 176 176 176 4.2.1.2 Objeto indireto 178 4.2.2 Complemento nominal 4.2.3 Agente da passiva 4.2.4Predicativo 4.3 Termos acessórios da oração 4.3.1 Adjunto adnominal 4.3.2 Adjunto adverbial 4.3.3Aposto 4.4Vocativo 5 A partícula se 5.1 Pronome ou partícula apassivadora 5.2 Índice de indeterminação do sujeito 5.3 Pronome reflexivo 5.4Conectivo 5.5 Parte integrante do verbo 5.6 Partícula expletiva ou de realce Capítulo 9 – O estudo do período 179 180 180 181 181 184 185 185 186 186 186 187 187 188 188 189 1 O período composto por coordenação 1.1 A classificação das orações coordenadas 2 O período composto por subordinação XVIII 190 190 192 Luiz Ricardo Leitão 2.1 A classificação das orações subordinadas 2.1.1 Orações subordinadas substantivas 2.1.2 Orações subordinadas adjetivas 2.1.3 Orações subordinadas adverbiais 3 Orações correlatas e orações justapostas Capítulo 10 – Concordância nominal 203 1 Conceito básico 2 Casos gerais 3 Casos particulares 203 204 206 Capítulo 11 – Concordância verbal 211 1 Princípio básico 1.1 Concordância ideológica 2 Verbo anteposto a sujeito composto 3 Casos particulares 211 211 212 212 Capítulo 12 – Regência verbal e nominal 1 Principais casos de regência verbal 2 Casos mais comuns de regência nominal Capítulo 13 – Crase Capítulo 14 – Colocação dos pronomes átonos 1 Recomendações básicas para a colocação pronominal em relação a um único verbo 2 Colocação das formas átonas nas locuções verbais e tempos compostos Capítulo 15 – Pontuação Sumário 223 224 239 241 1 Recomendações para o emprego do acento grave indicativo de crase 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 192 193 196 197 201 242 247 249 252 255 Os princípios básicos da pontuação O emprego da vírgula O emprego do ponto e vírgula O uso de dois-pontos O emprego do ponto O uso das reticências O emprego do ponto de exclamação O uso do ponto de interrogação O emprego do travessão O emprego de parênteses O uso das aspas 255 256 260 260 261 261 262 262 263 264 264 XIX Parte IV – Fonética & Ortografia Capítulo 16 – Noções de Fonética 269 1 2 3 4 Os conceitos de Fonética & Fonologia Fonema x Letra Os fonemas da língua portuguesa Classificação das vogais 4.1 Encontros vocálicos 4.1.1Ditongo 4.1.2Tritongo 4.1.3Hiato 5 Classificação das consoantes 5.1 Encontro consonantal 5.1.1Dígrafo 269 271 271 272 273 273 273 274 274 275 276 Capítulo 17 – Breves anotações de Prosódia 1 Classificação das palavras quanto à posição da sílaba tônica 2 Vocábulos de tonicidade duvidosa 3 Casos de dupla prosódia Capítulo 18 – Acentuação gráfica 277 277 278 279 281 1 O novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa 2 Os princípios básicos de acentuação 2.1 O princípio de economia 2.2 O princípio de tonicidade 3 Regras de acentuação gráfica 3.1 A sistematização das regras oficiais, segundo os dois Acordos Capítulo 19 – Ortografia 1: emprego de letras e expressões 1 Emprego de letras 2 Emprego de algumas expressões 2.1 Porque/porquê x por que/por quê 2.2Há/a/à 2.3 Acerca de/A cerca de/Cerca de 2.4 A fim de x Afim (a/com/de) 2.5 Mais x Mas 2.6 Mal x Mau 281 282 282 284 285 285 289 290 296 296 297 297 298 298 298 XX Luiz Ricardo Leitão Capítulo 20 – Ortografia 2: o emprego do hífen e o uso de iniciais maiúsculas 301 1 O emprego do hífen 1.1 Ocorrências básicas previstas no Acordo Ortográfico de 1971 1.2 Modificações promovidas pelo novo Acordo Ortográfico (2009) 2 O uso das iniciais maiúsculas (segundo as instruções de 1943 e 2009) 301 301 303 303 Parte V – Tópicos complementares Capítulo 21 – Semântica 309 1 Conceitos básicos 1.1Semântica 1.2 Campos semânticos 1.3Polissemia 1.4 Denotação x Conotação 1.5 Sinonímia x antonímia 1.6Homonímia 1.7Paronímia 1.8 Hiperonímia & Hiponímia 309 309 310 310 311 311 312 313 314 Capítulo 22 – Noções de Estilística 315 1 As figuras de linguagem 1.1Classificação 1.1.1 Figuras de construção ou de sintaxe 1.1.2 Figuras de pensamento e tropos 1.1.3 Figuras de harmonia Capítulo 23 – Coesão & Coerência textual 315 315 316 319 321 323 1 Os mecanismos de coesão textual 2 Coerência textual 3 Introdução ou continuação coesa e coerente de textos 324 327 331 Capítulo 24 – Gêneros discursivos & Tipologia textual 333 1 Tipologia textual 1.1 A narração 1.1.1 A estrutura da narrativa 1.1.2 Tipos de discurso 1.2 A descrição 1.3 A dissertação Sumário 333 334 336 337 338 339 XXI 1.3.1 Formas de construção do parágrafo 2 Domínios e gêneros discursivos 2.1 Tipos textuais e gêneros discursivos não literários 2.2 Tipos textuais e gêneros literários 339 341 342 343 Parte VI – Apêndice Questões de concursos, vestibulares e Enem 347 Provas de concursos públicos Provas de vestibulares (objetivas e discursivas) Provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) 347 359 370 Gabaritos comentados 377 Concursos públicos Vestibulares ENEM 377 382 385 Referências bibliográficas 387 XXII Luiz Ricardo Leitão I PARTE Introdução Capítulo 1 Gramática e Norma 1 Língua e Linguagens: o verbal e o não verbal Toda língua é um “sistema de meios de expressão” (SAUSSURE, s/d), ou seja, um sistema de signos verbais de que se valem os seres humanos para exprimir suas ideias, seus sentimentos, seus anseios e desejos. A linguagem verbal, decerto, não é a única forma de comunicação adotada pelos homens. Existem inúmeros códigos não verbais que possibilitam o estabelecimento de um intercâmbio mental entre os diversos membros de um grupo social. A linguagem dos surdos-mudos é um magnífico exemplo: privados da audição e da fala, eles empregam uma série de movimentos corporais, geralmente articulados por mãos e braços (ou, ainda, por um conjunto padronizado de sinais digitais), a fim de enviar e receber as mais variadas mensagens. Marinheiros em alto-mar manipulam bandeiras, criando assim um eficiente instrumento comunicacional. O código Morse, veiculado por sinais elétricos ou luminosos, possui difusão internacional desde o séc. XIX. Até os leques, nos ambientes palacianos, serviam, de maneira discreta e elegante, ao requintado jogo de sedução protagonizado pelas damas da Corte. Todavia, nenhuma outra linguagem se sobrepõe à verbal. A própria mímica, em última instância, representa uma função acessória da palavra. Falar sem movimentar o corpo ou sem alterar a fisionomia “é atitude inteiramente artificial e dificílima senão até praticamente impossível” (CÂMARA JR., 1978): carecemos de certos gestos característicos (mover a cabeça, virar as mãos, estender o dedo indicador) para integrar o organismo naquilo que enunciamos. O filósofo francês Michael Foucault já assinalou que os maiores prazeres do homem advêm da sua “dupla oralidade”: através da boca, literalmente absorvemos, compreendemos e reinventamos o mundo. Sugar o leite materno, mastigar e digerir os alimentos e, por fim, articular os sons da fala, confere a cada um de nós uma valiosa “carteira de identidade”. 3 A linguagem verbal é um traço distintivo da condição humana. Os outros animais não desenvolveram uma língua duplamente articulada (MARTINET, 1976), em que a mudança de posição dos fonemas e vocábulos gera, por meio de infinitas combinações, uma extraordinária gama de significações. Cf.: [Plano fonológico] pato, pata, tapa A substituição e/ou inversão de fonemas implica significados diversos. [Plano morfossintático] Um homem grande x Um grande homem A anteposição do adjetivo propicia um novo matiz semântico. Os pássaros, os cães, as ovelhas e os lobos emitem há milênios as mesmas notas, os mesmos latidos, idênticos balidos e uivos. Os macacos também não dispunham de um sistema tão bem articulado. Mas a história social do homem e a singular inter-relação que este estabeleceu com a natureza – transformando-a e, simultaneamente, sendo por ela transformado – criaram as condições para o desenvolvimento de uma linguagem mais complexa, cheia de variantes, que traduz o caráter multifacetado de nossas sociedades. 2 O conceito de gramática O estudo de uma língua examinada como sistema de meios de expressão constituiria, em última instância, o objetivo maior da gramática. Linguistas modernos, adeptos da teoria gerativo-transformacional, costumam enunciar que a gramática é o “conjunto de regras que permitem organizar as palavras de uma língua em frases” (SILVA & KOCH, 1993), isto é, “o sistema de regras segundo as quais se constroem as frases de uma língua” (LUFT, 1990). Desta forma, conhecer a gramática de uma língua (materna ou estrangeira) significa saber empregar os mecanismos de que ela dispõe para gerar sentenças compreensíveis aos falantes desse idioma. Não basta apenas decorar um razoável vocabulário para se falar português, inglês ou alemão: é preciso dominar o seu sistema de funcionamento. Na língua portuguesa, por exemplo, a ordem natural dentro de um sintagma nominal é artigo + substantivo + adjetivo; entre os anglo-saxões, no entanto, inverte-se a sequência do binômio principal, sem qualquer chance de recombinação: artigo + adjetivo + substantivo. Português → Ela é uma mulher bonita. [artigo + substantivo + adjetivo] Inglês → She is a beautiful woman. [artigo + adjetivo + substantivo] Alemão → Sie ist eine schöne Frau. [artigo + adjetivo + substantivo] Cf.: 4 Luiz Ricardo Leitão Por outro lado, ao assumir o caráter de uma disciplina científica, ela ganha uma inicial maiúscula e encarrega-se de descrever e interpretar fatos linguísticos (Gramática Descritiva), preocupando-se em abranger os três subsistemas básicos que compõem o sistema de meios de expressão: o fônico, o mórfico e o sintático, representativos das três partes da Gramática (Fonética/Fonologia, Morfologia e Sintaxe). Existe ainda a tradicional Gramática Normativa, que fixa e consagra as regras mais “adequadas” para o emprego de um idioma, estabelecendo um padrão de bem falar e bem escrever inteiramente pautado nos usos linguísticos vigentes “no lugar ou na classe social mais prestigiosa no país” (CÂMARA JR., 1978). 3 Gramática x Norma Em países como o Brasil, a Gramática Normativa tornou-se um verdadeiro fantasma para os falantes. Como boa parte da população é analfabeta ou semianalfabeta, aprofunda-se incrivelmente o fosso entre a chamada língua culta (aquela empregada pelas camadas mais instruídas da sociedade, segundo o uso modelar dos mais renomados escritores) e as linguagens coloquial e popular. Embora devessem ter acesso à modalidade de maior prestígio e, em especial, à sua expressão mais valorizada – a língua literária ‒, milhões de brasileiros encontram-se constrangidos por uma cultura semiágrafa, porque se veem privados do direito à educação. Além disso, os esquemas propostos para a interpretação dos fatos gramaticais são extremamente rígidos e anacrônicos. A Gramática Normativa do idioma português segue o modelo greco-romano, concebido por Aristóteles, subordinado às leis da lógica formal: a língua é vista como uma entidade estática, inamovível, avessa a qualquer transformação; não se admite o dinamismo, tampouco a contradição. Essa apreensão idealista dos fatos linguísticos gera graves distorções na sua descrição: o que se aplica ao português nem sempre poderá ser transposto para o francês, para o inglês ou alemão, e vice-versa. Entre nós, a expressão verbal de tempo ou fenômenos naturais dispensa a enunciação de um sujeito (cf. a oração sem sujeito), ao passo que em outros idiomas ocidentais este se faz representar por uma partícula gramatical. Cf.: São quatro horas. Chove. [Português → Sujeito = ∅] Il est quatre heures. Il pleut. [Francês → Sujeito = Il] It´s four o´clock. It rains. [Inglês → Sujeito = It] Es ist vier Uhr. Es regnet. [Alemão → Sujeito = Es] Capítulo 1 – Gramática e Norma 5 Nem a lógica aristotélica, nem a lógica simbólica podem fazer justiça à organização íntima de uma língua humana, escreveu um famoso linguista brasileiro, advertindo-nos para o fato de que “as línguas repousam numa lógica imanente e numa psicologia coletiva intuitiva, que a lógica e a psicologia clássica não tinham considerado” (CÂMARA JR., 1970). Assim, uma descrição muitas vezes incompleta e imperfeita dos fenômenos gramaticais alia-se à força coercitiva e conservadora da norma (o conjunto de hábitos linguísticos revestidos de maior prestígio), submetendo o falante comum a uma autêntica “camisa de força”, que o faz considerar a Gramática a mais horripilante de todas as matérias escolares. Cabe à escola um importante papel na superação desta antinomia. Não se deve segregar nenhum uso linguístico. Só é possível excluir da língua as construções absurdas (Ontem eu choverei, etc.), que os falantes naturalmente rejeitam. Do ponto de vista científico, afirmar que não se deve dizer encontrei ele é tão inconcebível quanto “para um astrônomo dizer que a Terra não deve girar em torno do sol” (PERINI, 1985). Ridicularizar a fala de um analfabeto é uma perigosa atitude de classe. Até porque o discurso de um lavrador ou a poesia de um cantador de cordel são incomensuravelmente mais ricos e consistentes do que a retórica vazia e inconsequente de inúmeras “autoridades” oficiais. A norma deve ser elástica e contingente, observou, com rara lucidez, Joaquim Mattoso Câmara Jr. Hoje, mais do que nunca, convém reeditar a lição do saudoso mestre. Cultivar a unidade na diversidade, garantindo a todos o acesso a quaisquer bens culturais, pode vir a ser uma excelente fórmula para que, algum dia, superemos a aguda crise político-social em que estamos mergulhados. 6 Luiz Ricardo Leitão