Ciencia y Sociedad - Journals in Epistemopolis / Revistas en

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VOLUMEN 1 NÚMERO 2 2014
Revista Internacional de
Ciencia y Sociedad
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Heterodeterminações genéticas
Rumo ao supermercado dos genes
ALEXANDRE QUARESMA
ciencIA-SOCIEDAD.com
Heterodeterminações genéticas: rumo ao
supermercado dos genes
Alexandre Quaresma
RENANOSOMA (Rede de Pesquisa em Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente), Brasil
Resumo: O objetivo central deste artigo é refletir criticamente sobre as novas fo rmas de determinações e discriminações
genéticas, possíveis graças à maior compreensão do genoma humano, e às interferências tecnicistas profundas pass íveis de
serem realizadas a partir destes mesmos conhecimentos adquiridos, no que concerne reestruturações profundas dos signific ados do que seja a pessoa humana, o indivíduo, seus direitos, seus valores, sua existência e ontologia, acontecimentos estes que,
de certo modo, são prejudiciais à própria humanidade. Tentaremos demonstrar que uma interferência arbitrária em nossas
bagagens genéticas poderia acarretar um empobrecimento e não um pretenso enriquecimento e ‘melhoramento’, e que, de
igual maneira, tais intervenções, de extrema intrusividade, determinismo e reduci onismo, podem ser fonte de novas crises e
dilemas para as próprias sociedades que se instrumentalizam por meio delas (i ntervenções), e, neste caso, pela genética.
Palavras-chave: genética, tecnicização, crítica da tecnologia
Abstract: The central purpose of this article is to critically reflect on the new forms of discrimination and genetic determinations, possible thanks to greater understanding of the human genome, and the deep tecnicists interference that can be made
from these same acquired knowledge concerning major restructuring of meanings of what the human person, the individual,
their rights, their values, their existence and ontology, that these events, in a way, are detrimental to humanity itself. We will
try to show that an arbitrary interference in our genetic baggage could result in an impoverishment and not an alleged
enrichment and 'improvement', and that, in like manner, such interventions, extreme intrusiveness, determinism and reductionism, can be a source of new crises and dilemmas companies themselves that instrumentalize through them (interve ntions), and in this case, by genetics.
Keywords: Genetics, Technicisation, Criticism of Technology
Introdução
Tanto quanto se pode julgar, todos os grupos étnicos são semelhantemente dotados no que se refere a
potencialidades biológicas e mentais. [...] se tiver oportunidades convenientes, qualquer população
poderá criar o seu futuro e escolher a forma que deve ser dada à sua cultura, concentrando a sua
atenção nas forças biológicas, tecnológicas e sociais que afetam o desenvolvimento humano. (René
Dubos 1972:130)
D
“Uma pessoa geneticamente modificada [...] sofrerá com a consciência de ter de partilhar com outrem
a autoria do destino de sua própria vida”. (Jürgen Habermas 2004:112)
esde o surgimento da vida no planeta, há mais ou menos quatro milhões de anos atrás, a
autodeterminação genética tem sido a maneira sistêmica extremamente funcional e inteligente que a própria vida natural encontrou para se constituir, se preservar e se reproduzir
através dos tempos imemoriais, sempre por meio de sua própria riqueza evolutiva diversa, frise-se,
calcada única e fundamentalmente na diferença. O prefixo “auto”, juntamente com o termo “determinação”, significa que o próprio ‘esquema’ filogenético, dinâmica e sistemicamente, se organiza
por si, autorefere-se e se auto gere autonomamente, ou seja, sem a necessidade de interferências
exteriores, e a troca de diferenças é o que aumenta sempre as possibilidades de êxito nas próprias
trocações genéticas que se constituem. Quanto a isso, todos os estudiosos do assunto pesquisados
afirmam categoricamente, e nós aqui também corroboraremos, que é justamente a diferença (no
Revista Internacional de Ciencia y Sociedad
Volume 1, Número 2, 2014, <http://ciencia-sociedad.com>, ISSN 2340-9991
© Common Ground España. Alexandre Quaresma. Todos os direitos reservados.
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REVISTA INTERNACIONAL DE CIENCIA Y SOCIEDAD
caso aqui, genética) que determina e mantém a saúde da própria evolução humana sempre em andamento, no sentido de poder prosseguir, se diversificar e se reproduzir, livre, harmoniosa e naturalmente, como sempre foi. É o que nos confirma Marie-Genevieve Pinsart (1993:274):
A singularidade biológica é o resultado de uma mistura móvel de genes com as mais diversas funções
e os mais diversos efeitos. Aplicar-lhe, por intermédio de manipulações, a categoria da normalidade é
correr o risco de causar o desaparecimento do singular, colocando uma exigência sobre o que é, essencialmente, indeterminado.
Gilbert Hottois e Charles Susanne (1993:217) também concordam e ainda afirmam que “... os
maiores geneticistas de populações sublinham que o que caracteriza e que é igualmente bom para as
populações (e, portanto, para as sociedades) é a diversidade. O que é bom do ponto de vista biológico, genético, para uma população, é ser diferente”. Tal postulação parece ser um consenso entre
diversos autores Jean-Yves Goffy (1993:224), em seu artigo intitulado Eugenismo, defende que
o polimorfismo genético é uma vantagem seletiva para o indivíduo e tem consequências evolutivas
importantes pelo fato de permitir a diferenciação de novas espécies. (...) A natureza produz diversidade e diferença que devem ser respeitadas. O artificial é redutor onde o natural é criador, a analogia
operante talvez deva ser procurada do lado da extinção das espécies, na qual se sabe que atuam pr ocessos destrutivos de diversidade, uma vez que a extinção de uma espécie faz pesar uma ameaça de
extinção sobre as espécies que interagem com ela.
Sobre a extraordinária ambivalência e multimodalidade de atuação genética de nossas bagagens
genômicas, ou seja, à sobreposição de funções que elas exibem num mesmo organismo, o sociobiólogo Edward O. Wilson (2001:114-115) escreve que
um exemplo clássico é o da anemia falciforme, cujo gene ocorre nas áreas de malária, da África à Índia. Dois genes de célula falciforme resultam em anemia grave, com alto risco de morte. Dois genes
normais deixam você em alto risco de contrair malária. Um gene de célula falciforme e um gene
normal juntos (a condição heterozigota) protegem você das duas coisas.
O mesmo autor (2001:105) acrescenta que “a humanidade é fortalecida por um amplo portfólio
de genes capazes de gerar talentos novos, resistências adicionais às doenças e talvez até novos meios
de ver a realidade”. Edgar Morin (2001:173-174) também corrobora tal postulação quando afirma
que “cada ser é singular no seu capital genético é talvez único para sempre em toda a sua espécie”.
Hans Moravec (1988:212) engrossa a lista dos que concordam com essa ideia e co mpreensão de que
a singularidade genética é sempre benéfica às coletividades vivas, quando escreve que
cada indivíduo é o resultado de uma distribuição única de genes extraídos de um grande baralho e é,
em geral, diferente de todos os outros. Um parasita que possua a chave de uma fechadura descobrirá
que a seguinte já é ligeiramente diferente, sendo, por isso, mais difícil de abrir.
De fato, atentemos, nunca houve outro modo de organização filogenética para a vida que não
fosse a auto-organização e a autodeterminação. Há, e nós podemos vislumbrar claramente, uma
espécie de padrão natural ancestral que nos permeia, transcende, e que precede até mesmo à nossa
própria existência e hominização. Um padrão dinâmico sempre a fluir e refluir através das infindáveis trocas e combinações genéticas nada triviais que fazemos ao nos reproduzirmos e perpetuarmos
a nossa hereditariedade através das incontáveis Eras a se seguirem umas às outras. Junte-se a isso a
riqueza de outras sobredeterminações importantíssimas, indissolúveis de nossa existência, que de
fato são reais e fazem de nós o que somos, as sócio-culturais (fenon) e ecológicas (oikos), e teremos
a extraordinária riqueza de formas e especificidades humanas individuais e distintas existentes que,
por si mesma (riqueza), caracteriza nossa espécie.
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QUARESMA: HETERODETERMINAÇOES GENÉTICAS
Tecnicização acelerada
O problema central é: “nunca houve outro modo”, afirmamos acima, porém, estejamos atentos e
vigilantes, agora já há! Quanto a isso, é sabido (1) que a humanidade sempre desejou interferir em
sua própria natureza interna, ou seja, desde sempre quis influenciar sua constituição biológica, e de
fato, de diversas maneiras e formas diferentes, o faz, como está na literatura, e que (2) depois do
mapeamento do genoma humano nesta última década, o nível de bioprospecção e biointerferência
cresce exponencialmente a cada dia, enquanto que as ambiguidades e paradoxos idem, ou seja, os
problemas bioéticos, biopolíticos, morais, humanísticos não tardam em surgir, e realmente surgem
aos borbotões, deixando (3) uma brecha epistemológica enorme, escancarada e irrefletida, no que
concerne acontecimentos-consequências desse mesmo bioprospectar e biointerferir, que, por fim
(4), vão repercutir e se ‘desdobrar’ no campo social de forma livre e retro-influenciar as próprias
sociedades (espécie) que empreendem essa mesma transformação antropotécnica que se encontra
atualmente em marcha, acelerada: a tecnicização. A tecnicização, grosseiramente falando, é a tendência milenar e de certa forma caracteristicamente humana de tornar tudo técnica ou técnico. Objetivamente, falamos de impor a lógica (logus) e a prática (práxis) predominantemente técnica
(thecné) a tudo o que existe no mundo manifesto, incluso aí natureza (oikos) e vida (bio), força essa
(tecnicização) que leva a armadilhas bioéticas e biopolíticas perigosas que, juntas, podem vir a consolidar um contexto lamentavelmente cinza e desfavorável às pessoas comuns das sociedades do
mundo, por meio de uma nova e perversa discriminação: a genética. Essa conjuntura de tecnicização
alcança um alto grau de agudeza e importância epistêmica no contexto social, justamente quando,
instrumentalizando o aviltamento da pessoa humana singular de todos e de cada um, com a manipulação genética que se produz através de experimentações intrusivas, altamente deterministas e também reducionistas, que por sua vez, redefinem parâmetros e reinstauram novos valores, irretrocedivelmente, quanto à conceituação, significação simbólica e também prática dessa mesma pessoa
humana, que agora com a genética é objetada na bioprospecção, reformulando seu estatuto, reorganizando (tecnicamente) sua ontologia, e isso, em termos de importância e significação, reflitamos,
fala por si. Jürgen Habermas, em seu livro O futuro da natureza humana, classifica como corrosivas
estas ações tecnicistas da genética que, segundo ele, e nós também concordamos, são desprovidas de
moral, e ameaçam igualdade todas as pessoas. Ele escreve (2004:128) que
contra essa corrosão desprovida de teoria, mas repleta de consequências práticas, a inserção estabil izante de nossa moral numa autocompreensão ética da espécie ajuda-nos ao menos a tomarmos consciência do valor dessa moral e de seus pressupostos, antes de nos habituarmos à revisão furtiva daquilo que, até agora, fazia com que a consciência da autonomia e a igualdade entre as gerações fossem
pensadas como evidentes.
Ou seja, valores evidentes, ou que consideramos corriqueiramente como tal, como esse autor
nos mostra, seguros e sólidos até então, em nossa cultura e sociedades, começam a cambalear tropegamente e até fraquejar diante de interferências tão profundas, intrusivas, deterministas e reducionistas. Como está em Lucien Sfez, A Saúde Perfeita – Críticas de uma utopia (1995:47),
estas questões podem, pois, levar a repensar um certo número de noções e de práticas, revelando um
problema simultaneamente existencial e metafísico. Existencial, porque é de si, da sua pertença a
uma espécie definida, que se trata em primeiro lugar. Metafísico, porque as investigações em engenharia genética põem em causa princípios até aqui considerados como certos.
Numa só palavra: Ilya Prigogine estava correto quando anunciava, há mais de duas décadas
atrás, uma época (a atualidade) onde se daria, em diversos sentidos pensáveis “o fim das certezas”.
No caso aqui, nossa percepção do que significa a vida humana se transforma, já que nos tornamos
objetos de nossas próprias prospecções. Cai por terra então a certeza de nossa aleatoriedade biológica, com relação à nossa existência e nossa estruturação biológica, enquanto que ascende a ideia
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REVISTA INTERNACIONAL DE CIENCIA Y SOCIEDAD
irrefletida de genetização. Lucien Sfez (2002:208) afirma em Técnica e Ideologia – Uma questão de
poder, e nós também assentimos, que
a crise, aqui, não é uma simples desordem no estado das coisas existentes, mas a crise do próprio real.
Falta-nos o chão e não temos outra coisa à qual ancorar as nossas crenças quotidianas, outra coisa que
não essa construção tecnocientífica com que somos confrontados.
Uma confrontação, diga-se, com a nossa própria natureza tecnicista, pois a tecnicização não nos
é imposta externa e aleatoriamente, ao contrário, nós mesmo tratamos de cultivá-la e edificá-la dia a
dia, com muita determinação e engenho, pois é assim que re-significamos o mundo, e é assim também, que agora, pretendemos re-significar a vida humana.
Técnicas genéticas: profundas, intrusivas, deterministas e reducionistas
A profundidade que o ato (nada simples ou trivial) de manipulação genética de outrem adquire torna-se um tanto evidente: pois, se os genes são a mensagem, a herança, o patrimônio e o padrão regente, a bagagem biológica singular de cada um, essa, se devassada, pode determinar uma invasão
sem precedentes de nossa privacidade genética individual mais seminal, ou seja, perderíamos a
oportunidade de nos resguardar o direito de nos sentirmos e de fato pertencermos em igual medida a
uma mesma espécie, a dos Homo sapiens, cujos membros nascem iguais em direitos e deveres,
perante a si mesmo, aos outros, o mundo, à sociedade, à justiça e à lei, sendo isso oficialmente acordado em documento, desde a Declaração Internacional dos Direitos Humanos Universais. Unidos
em torno desse ideal de igualdade humana, agora frágil diante das arbitrariedades genéticas possíveis, 192 países assinaram em 1948 a referida declaração, justamente com a intenção virtuosa de
defender essa igualdade tão importante e seminal que nos une tão fraternamente. Nós voltaremos a
esse tópico dos Direitos Humanos Universais feridos nas considerações finais. O importante, no
entanto, é salientarmos que interferir na ordem dos genes significa, inexoravelmente, interferir na
ordem da própria vida.
Dissemos que tais manipulações tecnicistas são extremamente (1) intrusivas, por que estas práticas genéticas de interferência e pretenso ‘controle’ vão ao âmago da existência biológica viva
humana, sua composição física e biomolecular, seus pré-desígnios hereditários, e podem realmente
alterar, mesmo antes de a pessoa nascer, ou mesmo ser concebida, a parte fisiológica dela, o que, de
imediato, levanta a seguinte questão: “podem realmente alterar a parte fisiológica de uma determinada pessoa”, dissemos, mas como essa pessoa ainda não existe, ainda não nasceu, o manipulador e
a sociedade que permite tais manipulações agem sempre, de ante-mão e irrevogavelmente, de maneira determinista e impositiva, vertical, mesmo que, para isso, corra-se diversos riscos filogenéticos, assunto que trataremos em mais detalhe mais adiante. Por ora cabe apenas frisar que alterar a
genética de alguém, significa, em primeiro lugar, inexoravelmente, interferir num campo muito
complexo em que se conhece muitíssimo pouco, o da estruturação da vida, onde a tecnociência está
literalmente engatinhando, pois como demonstraremos, existem, por exemplo, multimodalidades de
funções e atuações também no nível genético-celular, o que significa dizer que um mesmo gene,
pretensamente maléfico para uma determinação fisiológica, a tendência à calvície, por exemplo,
pode, a um só tempo, ser também benéfico e até imprescindível ao sistema imunológico como um
todo, no fortalecimento da membrana celular e no combate a invasores. Dizemos também, pois os
neurônios e as regiões cerebrais também funcionam assim: uma mesma área da massa cerebral de
uma pessoa ou mesmo um grupo específico de células podem apresentar várias influências sobredeterminantes num mesmo indivíduo, ou seja, elas são responsáveis por atividades distintas e complementarmente importantes num mesmo organismo de forma concomitante. Isso, quer dizer que:
mesmo que consigamos identificar quais genes fazem preponderantemente o quê, corremos o sério
risco de ignorar ou desconhecer suas múltiplas influências subjacentes e multimodais que, como já
foi dito, também podem ser responsáveis por atividades importantes dentro do nosso organismo,
sem as quais, caso suprimamos alguns deles, tenhamos mais problemas do que soluções. E, como
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QUARESMA: HETERODETERMINAÇOES GENÉTICAS
está na literatura, tais efeitos colaterais e indesejáveis só serão sentidos, de verdade e completamente, uma, duas ou até três gerações adiante, quando os possíveis efeitos cumulativos de longo prazo
de nossas interferências começarem a ser de fato percebidos. Além disso, como lemos em Edgar
Morin (2001:157), “somos determinados nos nossos genes, não pelos nossos genes”. Afinal, temos
uma relação complexa com nossa própria carga genética, e, como o mesmo autor complementa bem
humoradamente: “Possuímos genes que nos possuem” (2001:163).
Afirmamos, igualmente, (2) que a engenharia genética e a própria manipulação e design genéticos são, primordial e irreconciliavelmente, técnicas altamente deterministas por que literalmente
determinam e podem mesmo determinar parte do que chamamos atualmente de ser humano, ou seja,
a porção estritamente biológica e filogenética de sua manifestação e existência. O problema maior,
então, é: um ser humano, afirmamos, não é uma coisa, um objeto, vazio de qualquer significado
simbólico para ser produzido bioindustrial e geneticamente, como mais um produto de nossa própria
tecnicização, o que tornaria flagrante a exploração do humano pelo humano, como se coisa ou objeto esses pudessem de fato ser, o que não podemos corroborar. De um modo estranho e tosco, como
já escrevemos em Alexandre Quaresma (2012:06), em paper apresentado no IV Congresso Internacional Sobre Ciência e Sociedade, Berkeley, Califórnia, EUA, acabamos “determinados por nosso
próprio determinismo tecnológico, o que gera, segundo o nosso entender, um tecnocentrismo de
proporções civilizacionais bastante significativo, cujas consequências, infelizmente, fogem de nosso
controle”. Além do mais, poder determinar a conformação biológica e filogenética de uma pessoa
que ainda não nasceu gera problemas insolúveis, como está também na literatura. Nossas reflexões
encontram eco nos escritos de Jürgen Habermas (2004:123-124):
Qualifiquei como problemático o caso do adolescente que toma retrospectivamente conhecimento de
sua programação pré-natal e não consegue se identificar com as intenções estabelecidas geneticamente por seus pais. [...] Para tal pessoa, existe o perigo de ela não mais se compreender como a autora
única de sua própria vida e também se sentir, enquanto descendente, de pés e mãos atadas pelas decisões genéticas das gerações precedentes, que vão se condensando cada vez mais.
Ele prossegue (2004:121-122) afirmando que “as decisões irrevogáveis sobre o design genético
de um indivíduo que está para nascer são sempre pretensiosas, no sentido de julgar que sabem tudo.
O beneficiário precisa ter a chance de dizer ‘não’”. Enfim, o acirramento das práticas genetistas —
ou seja, aquelas que valorizam em demasia o genos, a despeito das indissolúveis sobredeterminações tão importantes quanto as da genética, referenciadas anteriormente, fenon e oikos —, pode
simplesmente abrir uma gigantesca eclusa antropotécnica através da qual afluirão não só pretensas
soluções e avanços, mas também toda a má sorte de conflitos, dilemas e até degenerações. Alguns
deles irresolvíveis, a tomarmos, por exemplo, essa citação de Jürgen Habermas que precedeu nossa
atual reflexão, pois esse tipo de descontentamento do manipulado em relação ao manipulador é
preponderantemente traumático e, segundo o nosso entendimento, filosoficamente irreconciliável,
do ponto de vista existencial de quem sofre as interferências e as manipulações. É também Jürgen
Habermas (2004:74-75) que nos informa que,
independentemente da extensão com que uma programação genética realmente estabelece as qualidades, as disposições e as capacidades da futura pessoa e determina seu comportamento, o conhecimento posterior que essa pessoa toma da situação que poderia intervir na sua auto-relação com sua
existência corporal e psíquica. É na cabeça que a alteração se operaria. A mudança de consciência se
realizaria em consequência da mudança de perspectiva da atitude performativa da vida vivida de uma
primeira pessoa para a perspectiva de observador, a partir da qual o próprio corpo foi transformado
em objeto de uma intervenção anterior ao nascimento. Quando o indivíduo em crescimento passa a
saber do design que outra pessoa projetou para ele, a fim de alterar características em sua constituição
genética — na sua autopercepção objetivante — , a perspectiva de ter sido produzido pode sobreporse àquela de ser um corpo vivo que cresce naturalmente e o que é fabricado alcança o modo de
existência próprio.
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Elas (técnicas de manipulação genética), afirmamos, são também (3) reducionistas, pois literalmente reduzem a própria vida a uma pretensa fórmula genética idealizada, prepotente em sua
concepção e lógica, e objetivamente também reduzem de maneira arbitraria as chances de autodeterminações e indeterminações naturais, flutuações e incertezas — como diria Ilya Prigogine, sejam
elas benéficas ou prejudiciais à coletividade, complementamos nós —, pois, ao pretensamente organizar as bagagens genéticas das pessoas individuais, e até das massas, indiscriminadamente, segundo um modelo arbitrário de conformidade higienista geneticamente impositivo, reduzem em grande
medida a incerteza estrutural que, já sabemos, organiza o universo do vivo. Além de orientar simbólica e praticamente a existência de cada um, como um integrante em igual condição com os demais
membros da espécie humana, que têm o direito de nascer, conviver e morrer com suas cargas genéticas naturais, autodeterminadas e auto-organizadas, desde sempre, pela própria diversidade biológica viva que os gerou, o que, até agora, atentemos, garantiu e ainda garante uma certa equinanimidade de oportunidades relativamente proporcional para todos os seres humanos, salvo raras exceções,
no que alguns teóricos chamam de ‘corrida’ ou ‘jogo’ natural da vida. Sem mencionar que esse
prepotente reducionismo genético, ou imperativo genético perante as demais causações das quais
emerge um ser humano vivo, não condiz de maneira nenhuma com a realidade factual de nossa
constituição plena como seres complexos que somos, pois, como já escrevemos (2013:01) em artigo
intitulado O injustificado imperativo genético (com grifos do original)
longe de conseguir resolver o mistério da existência e da individuação humanas, o imperativo dos genes (genos) também reduz arbitrariamente a realidade biológica a uma única causação isolada, injustificadamente, ignorando ainda todas as outras formas de trocações e determinações de ordem fenomenológicas (fenon) e ecoambientais (oikos).
Ou seja, somos o resultado, se é que se pode dizer assim, de nossa bagagem genética, mas somos também, de igual forma e indissoluvelmente, o resultado das consequências indeléveis de nossa interação social e cultural, bem como do ambiente que nos propicia, acolhe e sustenta, ou seja,
numa só palavra: esse reducionismo arbitrário e descabido vai contra a complexidade de nossa organicidade. Uma prova disso é a própria engenharia genética, objeto de nossa crítica, técnica que
pretende, cada vez mais, intervir e transformar justamente o resultado biogenético da vida das pessoas, que por sua vez compõem as sociedades, que por seu turno criam técnicas como a engenharia
genética, que se originam no ambiente social e cultural. Daí, o fato de depreendermos a certeza de
que as práticas genéticas ou, melhor dito, genetistas, são de fato técnicas estruturalmente intrusivas,
deterministas e reducionistas. Numa só palavra: prejudicial à vida das pessoas.
Uma perigosa brecha epistemológica que se abre
E é através dessa mesma e brutal brecha que se abre na compreensão (epistemé) daquilo que fazemos por força das tecnociências, como Jürgen Habermas afirma “essa corrosão desprovida de teoria,
mas repleta de consequências práticas”, que, reversamente, devemos enxergar e antever as possíveis
degenerações (termo que se encaixa muitíssimo bem ao contexto analisado), e também antecipar
possíveis complicações sociotécnicas e biopolíticas que estarão emergindo juntamente com essa
tecnicização acrítica e galgante, por muitos idolatrada, que com sua força impositiva atinge em
cheio e até mesmo confunde pretensas verdades absolutas como autonomia e liberdade individual,
subjetivo e objetivo, sujeito e objeto, pois, com tais explorações e intervenções, o ser humano, sem
embargos, passa a fazer parte do menu de possibilidades do próprio humano em sua galgante e acéfala tecnicização. O sapiens, hiper-empoderado com suas tecnociências, no caso aqui, especificamente com o seguimento genético, tem diante de si a possibilidade, em muitos aspectos temíveis, de
retroagir em sua própria consubstanciação biomolecular, e as consequências disso, dessa verdadeira
disrupção histórica, e até filogenética na história da vida no planeta, serão, como não poderiam
deixar de ser, em tudo neoparadigmáticas, com tudo de indeterminado que a expressão exprime em
termos de paradoxos e ambiguidades possíveis e plasmáveis. Jürgen Habermas (2004:56) escreve
que “os desenvolvimentos notórios e temidos da tecnologia genética afetam a imagem que havíamos
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QUARESMA: HETERODETERMINAÇOES GENÉTICAS
construído de nós enquanto ser cultural da espécie, que é o ‘homem’ [leia-se: ser humano], e para o
qual parecia não haver alternativas”. Se por um lado enxergar trivialmente os genes possibilita um
pretenso controle tecnicista intrusivo e determinador, redutor mesmo, especialmente quando o assunto inclui a vida, ou seja, o vivo, por outro traz também a possibilidade já bastante factível de uma
nova forma de discriminação social irrevogável e igualmente intrusiva, determinadora e reducionista, podendo até ser mais prejudicial à humanidade e à civilização humana do que de fato edificante.
O supermercado genético
As tendências e horizontes que se avizinham da humanidade são radiantes, por um lado, onde as
tecnociências facilitam e beneficiam a vida das pessoas, ou pelo menos de uma minoria, e sombrios
no que tange essa tecnicização exacerbada, que já detalhamos anteriormente, que esvazia o simbolismo do vivo vulgarizando e reduzindo sua existência simplesmente a sequências de letras nas abas
das ‘fitas’ de nosso DNA. Se esquecermos o futuro, algo sempre perigoso em se tratando de tecnologias, e nos ativermos ao contexto atual, veremos que já existem atrofias e distopias a rondar o
velho, distraído e milenarizado sapiens. Um destes lamentáveis descaminhos que sempre ameaçam
qualquer projeto ‘grandioso’ já vai se tornando uma dura realidade no que se refere às consequências desfavoráveis do mapeamento, interferência e controle genético, a que Jürgen Habermas cinicamente chamou, e nós certamente concordamos come ele, de supermercado genético, onde nos
inspiramos para sub-intitular este artigo, ora em tela. Em suas próprias palavras (2004:126):
Hoje ainda é assustadora a perspectiva de que a auto-instrumentalização otimizante da espécie, que
será desenvolvida para satisfazer as preferências diversificadas dos clientes no supermercado genético (e a consolidação social de certos hábitos), modifique o status moral das futuras pessoas.
Relativamente a isso, Lucien Sfez (2002:210,211) escreve que: “nos Estados Unidos, depois de
testes pré-natais, os seguradores ameaçaram não cobrir as despesas médicas de uma criança cuja
mãe teria sido advertida do fato daquela vir a ser vítima de uma doença genética”. “... o risco genético da doença é materializado – nos informa ele –como a própria doença, na ausência de todo o
sintoma evidente. (...) Definiu-se, assim [nos Estados Unidos da América], uma nova categoria de
doentes, os ‘doentes pré-sintomáticos’”, ou seja, estamos diante de uma conjuntura disruptiva e
totalmente nova, onde valores podem sucumbir e ser substituídos por outros novos, e, de certa maneira, até nefastos para as coletividades humanas. Enfim, a capacidade de ‘enxergar’ os genes de
alguém, parece vir acompanhada de uma categorização e classificação quase que automática por
parte de quem enxerga, o que mostra que, nesse caso, poder ver e mapear o genes de alguém, significa, de uma forma direta, classificar esse alguém, segundo um parâmetro subjetivo, arbitrário e
impositivo, predeterminados sempre por quem observa, e essa discriminação, se imposta à sociedade como um todo, de forma irrestrita, poderia confluir, como também está na literatura, em uma
conjuntura higienista, genetista e vertical, onde o indivíduo será julgado não por aquilo que ele faz
ou pensa, ou poderia fazer, mas por aquilo que ele é, em seu substrato essencial. Na verdade, infelizmente, isso já é uma realidade de certa forma posta, como está em Lucien Sfez (2002:210), pois
“... os médicos das companhias de seguros pretendem obter informação genética, a fim de calcular a
extensão da cobertura e os preços” das mazelas que um dia talvez possam se manifestar no associado-dependente. Segundo Bruno Leclerc (1993:287), em artigo intitulado Medicina preditiva,
ao permitir o alargamento dos métodos de rastreamento sistemático já acessíveis aos organismos estatais e às empresas privadas (seguradoras, nomeadamente), o desenvolvimento das técnicas de diagnósticos ‘preditivo’ vem acentuar os problemas éticos ligados ao rastreio sistemático. Os desafios
maiores da medicina preditiva são, neste caso, a confidencialidade dos dossiês médicos e a proteção
da vida privada, bem como o respeito pelos princípios de justiça e de equidade.
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Não estamos sozinhos quando o assunto é a previsão de um futuro cinza e degradante para a
humanidade, desde a perspectiva da manipulação e exploração genética. Nesse sentido, Lucien Sfez
(1995:303) acredita, e nós também concordamos com ele, que
a decodificação do código genético pode fazer nascer um universo novo onde a evolução artificial
poderá substituir a evolução natural. Uma vez que real gerado e real revelado não se opõem. Podemos criar genes novos, uma vez compreendidos os mecanismos dos genes naturais.
Em resumo, tomar as ‘rédeas’ do processo evolutivo por meio da genética significa dizer que
estaríamos, supostamente, ‘sentindo-nos’ mais aptos e preparados (empoderados certamente) para
sermos os responsáveis últimos por uma dinâmica muitíssimo complexa (a auto-organização genética), já que, dessa forma, retiraríamos o poder e a responsabilidade das auto-determinações genéticas aleatórias, constituídas nas livres trocas singulares de genes entre as pessoas, interpondo em
seu lugar um ‘esquema’ impositivo, arbitrário e até perigoso, pois pode fazer, num par de gerações,
o que o processo evolutivo natural demorou centenas de milhares, e até milhões de anos para constituir e desenvolver. Nossas reflexões encontram eco nas de George F. Kneller (1980:293), em seu
livro A ciência como atividade humana, onde afirma, e nós também enfatizamos, que
a tecnologia do DNA promete dar ao homem um poder sobre a natureza que é, ao mesmo tempo,
mais criativo e mais perigoso do que tudo o que foi adquirido até hoje. Trata-se do poder de planejar
novos organismos imediatamente, em vez de aguardar o lento e aleatório remanejamento de genes
que ocorre na natureza. Até agora, a evolução parecia tão irrevogável quanto a entropia ou o tempo.
Doravante, o homem participa na força que o fez.
Além de inusitada e sem precedentes, essa nova condição de participação “na força que o fez”,
como escreve George F. Kneller, de tamanha interferência no nível biomolecular dos genes dos indivíduos em meio à massa social, também é paradoxal, já que traz às mãos humanas, ou pelo menos de
uma elite humana, poderes extraordinários de interferência e controle, e os fins para que são destinados esses poderes, como sabemos, nem sempre são os mais dignos ou mesmo os esperados socialmente. Axel Kahn e Dominique Lecourt (2007:70) observam pertinentemente que, caso se imponha
a alguém seu invólucro corporal, a cor de seus olhos, a textura de seus cabelos, a forma de seu rosto,
seu tamanho médio, a idade de início de sua calvície e de sua miopia, os detalhes deste corpo no qual
será preciso viver dias e dias, alguns aspectos do hardware cerebral — e portanto certos traços de caráter —, isso ele não poderá mudar. Ora, não se trata de suportar os resultados da sorte, da grande loteria da hereditariedade, mas as consequências da vontade de outrem.
Para complicar nosso contexto ainda mais, como nos informa Francis Fukuyama
(2003:167,169), em livro intitulado Nosso futuro pós-humano – Consequências da revolução da
biotecnologia: “... a ideia de aperfeiçoamento pode se tornar atraente demais para ser abandonada,
ou pode se provar difícil impor uma regra que impeça as pessoas de melhorar a carga genética dos
filhos”. “É difícil ver — continua ele — como a desigualdade genética crescente poderia deixar de
se tornar uma das principais controvérsias da política do século XXI”.
Considerações finais
Tememos a perspectiva de que os homens projetem outros homens, pois essa possibilidade desloca a
fronteira entre o acaso e a decisão, que está na base de nossos critérios de valor. (R. Dworkin apud J.
Habermas 2004:40)
O que consideramos fundamental, em toda essa reflexão acerca de valores e as atividades tecnocientíficas da genética, como uma forma simbólica de concluir um assunto tão complexo e vasto como
este, seria admitir que a humanidade se encontra num momento ímpar de sua história bioevolutiva, e
que as decisões de agora, sejam sábias sejam insanas, irão reverberar nos dias vindouros, confor-
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QUARESMA: HETERODETERMINAÇOES GENÉTICAS
mando e constituindo o ambiente antropossocial que acolherá as futuras gerações. Como lemos em
Gilbert Hottois (1993:160),
a preocupação com as gerações vindouras justifica-se, pelo menos filosoficamente, pelo seguinte: força-nos a refletir acerca do que fazemos hoje, a distanciarmo-nos relativamente às nossas evidências, às
nossas inelutabilidades e às nossas urgências, a dizer a nós próprios que talvez pudéssemos ou d evêssemos agir de outra forma. Reforça, desse modo, a nossa própria lucidez e a nossa própria liberdade.
Consoantes com esse autor, acreditamos que seria esse o adjetivo mais pertinente e importante a
ser perseguido (lucidez) em termos de virtude e meta a ser alcançada, principalmente, quando se
trata de saber avaliar técnicas tão determinantes e estruturais de nossa própria existência psicossocial e até filogenética, que, ameaçadoramente, colocam em jogo o próprio estatuto ontológico do
sapiens. Como escreve Lucien Sfez (2002:207)
o que é transformado, em contrapartida, é a ideia de uma natureza que já não é de reler, reformar ou
descobrir, mas de construir. O estatuto do real muda completamente. Não há realidade senão construída e as tecnologias que a constroem tornam-se as qualidades intrínsecas daquilo que constroem. A
realidade é o que as tecnologias a fazem.
Nesse sentido tumultuoso e incerto, a passagem de uma auto-organização e autodeterminação,
autônomas e independentes, para uma outra condição — onde há uma heterodeterminação (diferentes forças determinando a genética do indivíduo), intrusiva, determinista e reducionista, onde outros
interesses se interpõem perante os interesses das próprias pessoas afetadas por essas mesmas heterodeterminações genéticas, sempre a posteriore, desde uma perspectiva existencial inexorável, irrevogável, como demonstramos estar acontecendo —, traz ainda uma preocupação extra: é importante
percebermos a velocidade e a maneira acrítica com que produzimos e implementamos tais projetos e
programas de mapeamento, interferência, controle e exploração da vida ou do vivo (bioprospecção),
neste caso, a genética. O exemplo hipotético que nos traz Jürgen Habermas (2004:113) é emblemático, e reflete muito bem o universo complexo de ambiguidades que vão emergir juntamente com
estas controversas técnicas genéticas, pois
a expansão do poder de dispor do material genético de uma futura pessoa significa que cada pessoa,
tenha ela sido programada ou não, pode considerar, a partir de então, a composição de seu genoma
como resultado de uma ação ou omissão passível de críticas. O adolescente pode pedir explicações ao
seu designer e querer saber das razões que levaram este último a decidir dotá-lo de dons matemáticos
e recusar-lhe uma capacidade atlética ou um dom musical, que lhe teria sido muito mais útil para a
carreira de atleta de alto nível ou de pianista a que ele de fato aspira.
Se não bastasse tudo isso mencionado até aqui, e a convergência de importantes autores, suas
citações e livros, em uníssono a avalizar nossas prospecções epistemológicas, afirmamos que a
prática de engenharia e manipulação genéticas fere o Artigo 1º da Declaração dos Direitos Humanos
Universais que diz expressamente o seguinte: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir uns para com os outros num
espírito de fraternidade”, vejamos bem, “nascem”, e não “são gerados ou genética e artificialmente
programados sob influência e controle de outrem”. Da mesma forma, a expressão: “devem agir uns
para com os outros num espírito de fraternidade” não parece fazer sentido para os entusiastas destas
práticas genetistas, já que é exatamente o contrário que o manipulador faz com relação ao manipulado geneticamente. Eis aqui, segundo o nosso entendimento, o ponto nevrálgico da questão genética em contraposição à questão de nossa humanidade. Como já escrevemos em Alexandre Quaresma
(2013:06), em paper intitulado O injustificado imperativo genético,
outra armadilha perigosa que ‘armamos para nós mesmos’, enquanto civilização tecnológica — essa
de ordem biopolítica e bioética — é que estes processos invasivos, reducionistas e deterministas de
rastreio, controle e manipulação, podem fomentar uma situação social desfavorável de discriminação
genética, onde a igualdade entre os humanos estaria drasticamente ameaçada.
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REVISTA INTERNACIONAL DE CIENCIA Y SOCIEDAD
Quando os horizontes de ‘aposta’ e ‘jogo’ incluem nossa própria condição humana, nossa igualdade simbólica e até mesmo o nosso bem estar, como riscos eminentes de uma determinada ação
qualquer, seja ela técnica ou política — ou ainda biopolítica, no nosso caso —, a ponto de ameaçar
seu futuro e sua dignidade, o melhor certamente é estancar, o quanto antes, e refletir profunda e detidamente, e só se por em marcha de novo quando estiver ciente de todas as possibilidades plausíveis
de concretização, sejam elas boas ou más, e que não se arrisque, nunca, jamais, em tempo algum —
reiteramos enfaticamente perante os colegas do V Congresso sobre Ciência e Socied ade, Varsóvia,
Polônia — o futuro e a dignidade da própria civilização humana, sob pena de perdermos o controle
de nosso próprio controle tecnicista, criando, mesmo que distraída e involuntariamente, um contexto
social vertical desfavorável e panóptico, onde o próprio humano se torna objeto de sua manipulação,
tornando-se, há um só tempo, o criador e a própria criatura. “A seleção deliberada – explica-nos
Jürgen Habermas (2004:131) – orienta-se pela avaliação da qualidade de um ser humano e, nesse
sentido — continua ele —, obedece a um desejo de otimização genética”, ou seja, reduz a totalidade
do ser humano às suas frações e partes genômicas teoricamente intercambiáveis, manipuláveis e
reprogramáveis, pretensamente para ‘melhorar’ suas qualidades e suprimir suas ‘falhas’ e ‘defeitos’,
características foram geneticamente predeterminados pela competente e harmoniosa ‘dança da precisão do acaso’ que, em segurança, lembremo-nos, nos trouxe até aqui, no que tange a nossa bioevolução. No mais, poder interferir na ordem genética humana, preestabelecida (naturalmente), autodeterminada e auto-gerida, totalmente harmoniosa, do ponto de vista das livres trocações filogenéticas
interpessoais, significa empreender uma ação irreversível em meio à corrente de ações retrointerativas do cotidiano, e uma vez neste contexto de múltiplas interações e trocas sócio-ambientais,
não há mais a menor possibilidade do sujeito (ou grupo), que iniciou a referida ação, controlar a
mesma, ou seja, a ação que o sujeito (ou grupo) empreendeu inicialmente foge ao controles de seus
iniciadores, pois ela (ação) recai na torrente autônoma dos acontecimentos, e, uma vez nesta, torna-se
pura imprevisibilidade. Sobre isso, Edgar Morin (2001:101) escreve que,
contrariamente à visão na qual a ação se encarna no ator [crítica à Bruno Latour, e sua Teoria AtorRede], abre-se um fosso desde os primeiros instantes entre o ator e a ação, e este fosso alarga-se a si
próprio, a menos que a ação possa ser incessantemente ‘seguida’, alcançada, corrigida, mas isso,
numa corrida desenfreada, onde a ação finalmente se distanciará do perseguidor e irá perder-se no
amálgama das inter-retroações do Unwelt social e natural. A ação voluntária escapa quase imediatamente à vontade; foge, começa a copular com outras ações em profusão e volta, por vezes desfigurada e desfigurante, à cabeça do seu iniciador.
Além disso, como enfaticamente escrevemos em Alexandre Quaresma (2012:11), em artigo intitulado Crítica sobre a origem e os fundamentos da nova desigualdade entre os homens,
há que se resguardar também o conjunto dos Direitos Humanos Universais como bem de altíssima estima e como marco intransponível, além do qual, empresários irresponsáveis e cientistas alienados e
até mesmo nações prepotentes e beligerantes, como os EUA, por exemplo, não possam se atrever,
sob pena de serem rigorosamente punidos segundo os ditames dessas mesmas leis internacionais
conquistadas a tão duras penas pela humanidade.
Conclusivamente, citaremos Paul Feyerabend — em seu livro A ciência em uma sociedade livre, cujo título certeiro e emblemático é totalmente convergente com as nossas reflexões –, num
trecho específico onde ele nos propõe esta última e suprema questão estrutural, cuja importância
central nós também reconhecemos, sem vacilar, e assim encerramos este paper sobre a questão de
nossa humanidade em relação às impositivas e prepotentes técnicas genéticas: “Suponha que o homem tem ingredientes que podem ser revelados, um a um, por meio da pesquisa progressiva (...)
usando a Matemática e os modelos da Física, da Química, da Microbiologia [ou seja, através das
tecnociências]”. A pergunta é: “Devemos ir em frente e revelá-los? E, tendo-os revelado, devemos
então ver o homem à luz deles? Ou será que esse procedimento não iria substituir pessoas pelos
constituintes não humanos da humanidade e nos fazer ver tudo em termos destes últimos?”
(2011:79).
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QUARESMA: HETERODETERMINAÇOES GENÉTICAS
REFERÊNCIAS
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— (2012). “Crítica sobre a origem e os fundamentos da nova desigualdade entre os homens”. Artigo
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SOBRE O AUTOR
Alexandre Quaresma: Escritor, ensaísta, pesquisador de tecnologias e consequências socioambientais, com especial interesse na crítica da tecnologia. Autor do livro Nanotecnologias: Zênite ou Nadir? e Humano-Pós-Humano - Bioética, conflitos e dilemas da Pós-modernidade. É colunista de
Cibercultura na Revista Sociologia Ciência e Vida, de circulação nacional no Brasil, além de contribuir com artigos para Revista Filosofia Ciência e Vida e Sociologia Ciência e Vida.
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