Corte Portuguesa no

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2º Centenário das Invasões Francesas
A Corte Portuguesa no Brasil (1808 – 1821) – 2ª Parte
29 de Outubro e 5 e 12 de Novembro 2008
A chegada da Corte ao Rio de Janeiro.
Já anteriormente, Julho do ano corrente, havia aqui referido, que a 22 de
Janeiro de 1808, após 54 dias de mar e cerca de 6400 quilómetros percorridos, D
João chegara finalmente a terras brasileiras, fazendo escala numa das primeiras
cidades que os portugueses fundaram no Novo Mundo e que, até 1763, fora a sede do
governo da América lusitana e a maior do Vice Reino: S. Salvador, na Baía de Todos
os Santos. Aqui se manteve até 26 de Fevereiro, data em que partiu para o seu
destino, o Rio de Janeiro, onde a Corte iria permanecer durante treze anos.
A 14 de Janeiro, precisamente uma semana antes do Príncipe Regente ter
chegado à Baía, o brigue «Voador», (pequeno navio de guerra de dois mastros),
aportava na Guanabara, transmitindo a notícia de que as tropas de Junot haviam
invadido Portugal e que a Família Real, com a protecção de Sua Majestade Britânica,
decidira transferir-se, juntamente com a Corte, para o Rio de Janeiro até que a
conjuntura europeia, em convulsão, normalizasse.
Ao saber que o brigue «Voador» chegara ao Rio com a notícia de que os
franceses invadiam Portugal, e que a Família Real se dirigia para o Brasil, o cronista
anotou:
«Nunca correio algum trouxe notícias mais tristes e, ao mesmo tempo, mais
Carlos Jaca
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lisonjeiras. Eu não sei explicar o assombro, a consternação, e o sentimento de todos
por causa das desgraças da mãe pátria. As lágrimas corriam dos olhos de todos, e
muitos ficaram sem articular uma só palavra ao ouvir tão infausta novidade. Se tão
grandes eram os motivos de mágoa e aflição, não menores eram as causas de consolo
e de prazer: uma nova ordem de coisas ia principiar nesta parte do hemisfério austral.
O império do Brasil já se considerava projectado, e ansiosamente suspirávamos pela
mão poderosa do Príncipe Regente nosso senhor para lançar a primeira pedra da
futura grandeza, prosperidade e poder do novo império».
O autor do extracto acabado de transcrever é Luis Gonçalves dos Santos, uma
fonte da maior importância para o estudo do
período em que a Corte permaneceu no Brasil.
Cónego da Igreja Católica, Luis Gonçalves dos
Santos, mais conhecido por Padre “Perereca”,
devido à estatura baixa e franzina, «não era
jornalista de profissão, mas cronista por vocação».
Era um homem versado em latim, grego e filosofia,
aparentando a idade de cerca de quarenta anos a quem os cabelos grisalhos davam um
aspecto intelectual. O Padre Perereca registava tudo o que observava, defendendo as
suas ideias de forma apaixonada, vindo a ser o melhor e mais completo repórter dos
acontecimentos ocorridos entre 1808 e 1821, período em que a sede do Governo se
fixou no Rio de Janeiro. Após o regresso da Corte a Lisboa, o Padre “Perereca”
publicava, em 1825, os dois volumes do seu livro «Memórias para servir à história do
reino do Brasil, divididas em três épocas de felicidade, honra e glória; escritas na
corte do Rio de Janeiro no ano de 1821, e oferecidas a S. Majestade El-rei nosso
senhor D. João VI». Apresenta um tom laudatório, de lisonja e “deslumbramento”,
porém, os pormenores demonstram um observador atento e curioso.
Ao tomar conhecimento que a cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro se
tornaria, dentro em pouco, a sede da monarquia portuguesa, o Vice-Rei do Brasil, D.
Marcos de Noronha e Brito, Conde dos Arcos, (filho do outro Conde, a quem um touro
matou na arena de Salvaterra, nas últimas touradas que se correram no reinado de D.
José e que levou Rebelo da Silva a escrever «A Última Corrida de Touros em
Salvaterra», uma das mais célebres narrativas do nosso Romantismo) desconhecendo
ainda a decisão do Príncipe Regente fazer escala em Salvador, não perdeu tempo e
Carlos Jaca
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passou, rapidamente, a preparar a entrada da Corte numa cidade que, apesar de ser
capital de colónia, deixava muito a desejar. Encarregado de organizar a recepção, urgia,
igualmente, ir resolvendo o sério problema do alojamento, bem como a subsistência
daqueles que chegavam de Portugal.
Contudo, para além das questões práticas e mais imediatas, não podia deixar de
ser considerado prioritário tomar
medidas no sentido de receber tão
ilustres
personalidades,
condignamente, e com o ritual que
lhes era devido. Assim, dois dias
depois, a 16 de Janeiro, o Senado da
Câmara, espécie de vereadores do
Brasil colonial, constituído pelas
pessoas mais influentes da sociedade, reuniram e decidiram decretar a programação da
recepção à Família Real. Os festejos incluíam cerimónias religiosas e civis, danças e
diversões populares, as casas teriam de ser iluminadas e as janelas enfeitadas em todo o
percurso; além da procissão, do Te Deum, das luminárias, das alegorias, o povo
aguardava ansioso pelas touradas, cavalhadas, foguetórios, récitas, conjuntos musicais
e danças, «como era comum no tempo dos vice-reis», a que era acrescentado o repicar
dos sinos de todas as igrejas e o troar dos canhões na barra da Baía de Guanabara.
A programação seria divulgada por funcionários do Governo que, a cavalo e em
grupos, percorriam ruidosamente as ruas da cidade, seguidos pelo povo em alarido,
parando nos locais de maior movimento e, «entre foguetes, soar de clarins e rufares de
tambores» era anunciado o edital de convocação.
Surpreendentemente, e mal os planos tinham sido traçados, no dia seguinte à
publicação do edital, 17 de Janeiro, o Conde dos Arcos ficou, justificadamente,
apreensivo, quando um aviso enviado pelo sistema telegráfico de semáforos da costa
transmitiu a notícia de que a esquadra real fora avistada na embocadura da baía de
Guanabara e o vice-rei não tivera tempo de concluir os preparativos, provocando
grande alvoroço no Governo e na população do Rio de Janeiro, porquanto, pensava-se
que era o próprio Regente que chegava. Só que, e para tranquilidade de D. Marcos de
Noronha, o alarme era falso.
De facto, quando os navios, ao final da tarde do dia 27, entraram a barra,
verificou-se que sete embarcações portuguesas e três inglesas faziam parte da armada
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que se havia perdido da comitiva real por altura do arquipélago da Madeira e chegara
ao Rio, depois de ter feito a escala prevista em Cabo Verde. Numa das naus, a «Rainha
de Portugal», viajavam
apenas as irmãs de D.
Maria
I,
D.
Maria
Benedita e D. Maria Ana,
e
as
princesas
Maria
Francisca e Isabel Maria,
filhas
de
Carlota
D. João
e
Joaquina.
Convidadas pelo Conde
dos Arcos a desembarcar, as princesas preferiram continuar a bordo até receber a
confirmação de que a restante família estava a salvo na Baía, o que veio a acontecer a
22 de Fevereiro, quando a Família Real já se aprontava para viajar a caminho do Rio.
Afinal, a permanência da Família Real na Baía não deixou de constituir um
alívio para o vice-rei, uma vez que lhe permitiu dispor de mais tempo para dar à
recepção o luzimento que pretendia.
Finalmente, a 7 de Março, depois de três meses e uma semana de viagem,
incluindo a escala em S. Salvador da Baía, a esquadra que transportava o núcleo mais
importante da Corte, a Rainha, o Príncipe Regente, a sua família mais próxima e uma
parte da sua comitiva, entrava na barra do porto do Rio de Janeiro.
Ao contrário do que sucedeu em S. Salvador, onde a surpresa da chegada não
permitiu manifestações de regozijo, todas as fortalezas que defendiam a barra e todas as
naus portuguesas e inglesas, fundeadas no porto, saudaram a esquadra onde viajava o
Príncipe Regente com salvas de vinte e um tiros que ecoavam pela baía e abalavam os
morros da cidade, ao mesmo tempo que em todas as capelinhas, igrejas e mosteiros os
sinos repicavam continuamente.
Luis Gonçalves dos Santos, o conhecido Padre “Perereca”, como se fosse um
repórter, registava o espectáculo da chegada:
«Eram duas para as três horas da tarde, a qual estava muito fresca bela e
aprazível. […] Desde a aurora o sol nos havia anunciado como o mais ditoso (dia)
para o Brasil: uma só nuvem não ofuscava os seus resplendores, e cujos ardores eram
mitigados pela frescura de uma forte e constante viração. Parecia que este astro
Carlos Jaca
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brilhante, apartando a si todo o obstáculo, como se regozijava de presenciar a
triunfante entrada do primeiro soberano da Europa na mais afortunada cidade do
Novo Mundo, e queria ser participante do júbilo, e aplausos de um povo embriagado
no mais veemente prazer» …Rio de Janeiro, aí tens a tua augusta rainha e o teu
excelso príncipe com a sua real família, as primeiras majestades que o hemisfério
austral viu e conheceu. Estes são os teus soberanos e senhores, descendentes e
herdeiros daqueles grandes reis que te descobriram, te povoaram e engrandeceram, ao
ponto de seres, de hoje em diante, a princesa de toda a América e Corte dos senhores
reis de Portugal. Enche-te de júbilo, salta de prazer, orna-te dos teus mais ricos
vestidos, sai ao encontro dos teus soberanos, e recolhe com todo o respeito, veneração
e amor o príncipe ditoso, que vem em nome do Senhor visitar o seu povo».
Logo que a armada fundeou, D. João fez saber que permaneceria a bordo e só
desembarcaria no dia seguinte, pelo que partiram ao seu encontro alguns escaleres
formando em cortejo que lhe foram apresentar felicitações e cumprimentos de boasvindas: os membros da Família Real e os nobres que haviam já chegado, uma comissão
do Senado da Câmara e outra constituída por elementos do Cabido, por magistrados e
oficiais do Exército, seguiram atrás do Vice-Rei, Conde dos Arcos. Depois de beijarem
a mão do Príncipe Regente, deslocaram-se as mesmas comissões à nau «Afonso de
Albuquerque», onde foram cumprimentar a Princesa D. Carlota Joaquina como
mandava o protocolo.
Quando começou a escurecer, diz o nosso cronista, «toda a cidade se iluminou
de tal sorte, que não se fazia sensível a retirada do Sol, pois não houve casa, ainda do
mais pobre, que por meio de luzes não manifestasse exteriormente a alegria interior
dos seus moradores».
O desembarque. Cerimónias festivas.
O desembarque da Família Real no Rio de Janeiro, aos 8 de Março de 1808, foi
mais do que uma cerimónia oficial, foi uma festa popular, porquanto os seus habitantes
saudaram o futuro D. João não, propriamente, como determinavam os editais,
respeitosa e carinhosamente, mas sim com um entusiasmo transbordante.
Sempre em cima do acontecimento, Gonçalves dos Santos fazia a cobertura do
desembarque como se fosse, nos dias de hoje, uma reportagem em directo:
«…Finalmente amanheceu o suspirado dia 8 de Março, tão formoso e claro como o
Carlos Jaca
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antecedente; e, estando as coisas dispostas para a recepção de Suas Altezas, pelas
quatro horas da mais bela e serena tarde, por entre repetidas e alegres salvas das naus
portuguesas e inglesas, e por entre vivas que os respectivos marinheiros postos em
parada sobre as vergas davam em altos gritos, desceu o Príncipe Regente Nosso
Senhor, da nau «Príncipe Real», que o conduzia, e se meteu no bergantim com a
Sereníssima Senhora Princesa do Brasil, e com os Sereníssimos Senhores Príncipe da
Beira, Infantes e Infantas, e acompanhado de toda a Corte, com que saíra de Lisboa e
de outras personagens distintas, que de terra o foram buscar a bordo, ou que das naus
desembarcaram (o que tudo fazia uma comitiva muito numerosa e brilhante de
escaleres, lanchas e outras embarcações menores) se dirigiu para a cidade em
direitura do lugar do desembarque…».
Continuando a descrever as comemorações festivas com base nos relatos do
Padre “Perereca”, o celebrado cronista registava que o bergantim real avançou à frente
do cortejo, passou em frente da Ilha das Cobras e alcançou, finalmente, a rampa do
cais. Então, do Morro do Castelo «precipitou-se para o desembarcadouro uma
multidão ovante, (orgulhosa) gritando e gesticulando todo o entusiasmo que a
exaltava».
Na parte mais alta da rampa do cais havia sido, nesse dia, armado,
especialmente para a ocasião, um altar. Ao pisar terra, o Príncipe Regente beijou a
Santa Cruz nas mãos do Chantre Filipe da Cunha e Sousa; depois ajoelhou com toda a
Família Real e recebeu as turificações (incensação) e a água benta, rodeado pelo
Cabido da Catedral, todo paramentado de pluviais (capas) de seda de ouro branca.
Finda esta cerimónia organizou-se a procissão solene em direcção à Sé
Catedral: o Príncipe Regente, a Princesa D. Carlota Joaquina, toda a Família Real foi
recolhida sob um «precioso pálio de seda de ouro encarnada, cujas varas eram
sustentadas pelo juiz de fora, presidente do Senado da Câmara, Agostinho Petra de
Bettencourt, pelos vereadores Manuel José da Costa, Francisco Xavier Pires, Manuel
Pinheiro Guimarães, procurador José Luis Álvares, escrivão António Martins Brito e
cidadãos Anacleto Elias da Fonseca e Amaro Velho da Silva».
À frente do cortejo seguiam as autoridades do Rio de Janeiro, as mais distintas
pessoas civis e militares que não se encontravam em serviço, «vestidas de corte».
Juntamente, seguiam os religiosos de S. Francisco, os Barbadinhos, seminaristas de
José, de S. Joaquim e da Lapa, os magistrados sem lugares determinados; depois vinha
o estandarte da Câmara, empunhado por um cidadão, «o qual trajava vestido de seda
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preta, capa da mesma, colete e meias de seda branca, chapéu meio abado com plumas
brancas, e presilha de pedras preciosas, e cuja capa era ornada com bandas de seda
ricamente bordada». Era ladeado por duas compridas fileiras de homens trajados da
mesma maneira, que formavam a «guarda do estandarte». Atrás da Cruz do Cabido da
Sé ia todo o clero da cidade, também em duas alas com o próprio Cabido a fechar,
«todos de sobrepelizes muito ricas». Vinha, então, o pálio, sob o qual caminhava
lentamente o Príncipe D. João e a Família Real
Ao longo do percurso, do cais à Catedral, as ruas estavam cobertas de fina areia
branca, folhas e ervas odoríferas; as portas das casas estavam escondidas por cortinados
de damasco e de todas as janelas e varandas, decoradas com colchas e tapeçarias eram
lançadas flores à passagem da comitiva real. O povo, que se apinhava nas ruas Direita e
do Rosário, saudava D. João, gritando: «Viva o nosso Príncipe, viva o imperador do
Brasil».
Na rua do Rosário armara-se um coreto «onde melodiosas vozes, tanto
instrumentais como vocais, cantavam os músicos hinos em louvor de Sua Alteza Real,
ao mesmo tempo que uma perene chuva de mimosas e suaves flores caía sobre Suas
Altezas, lançada pelas mãos da formosura e inocência…».
O acompanhamento chegou, finalmente, à Sé, onde a Família real avançou não
sem dificuldades. Os sinos da igreja de S. Francisco e do Senhor do Bom Jesus
repicavam, incessantemente, apregoando aos quatro ventos a celebridade daquele dia
de festa.
Na Sé foi rezada missa a grande instrumental, cantaram-se os hinos «Te Deum
Laudamus», o «Hino da Graça, as Antífonas «Sub tuum poesidium», o «Beate
Sebastiane» e o «Domine salvum fac Principem», este entoado pelo Chantre.
Após as orações, e concluída a acção de graças pelo sucesso da viagem, o
Príncipe e a Família Real, acompanhados da fidalguia, Cabido, clero, câmara
municipal, magistrados, oficiais superiores e as pessoas mais distintas da cidade
dirigiram-se, em coches próprios, ao Largo do Paço Real onde Suas Altezas
concederam o beija mão antes de se recolherem ao palácio.
À noite foram surgindo as iluminações, especialmente a que fora mandada
colocar em frente do cais, ao lado do palácio, onde tinham erguido uma alegórica
arquitectura cenográfica, composta por uma série de arcadas, unidas por uma
balaustrada com ornamentos diversos – pirâmides, vasos, inscrições emblemáticas e
dedicatórias… Sobre o arco da frente elevava-se um elegante frontispício coroado com
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as Reais Quinas Portuguesas. Iluminado por milhares de lumes em copos de diversas
cores, tinha, ainda, um grande medalhão com a efígie de D. João «sustentada por dois
génios que mostravam o Brasil, o qual na figura de um gentil e engraçado índio, todo
absorto de prazer, ofertava de joelhos a S. A. os seus tesouros, para os quais apontava
com a mão esquerda; e sustentando na direita o coração, oferecia-o ao mesmo Real
Senhor com estas palavras que se liam, como saindo-lhe da boca: «Mais que tudo o
coração…».
Fazia ainda parte da mesma alegoria, representado noutro medalhão, o
panorama da entrada do porto com a nau «Príncipe Real» entrando na Baía de
Guanabara. Nas ruas à volta, a festa continuou pela noite dentro, com fogos, músicas e
declamações em homenagem aos que acabavam de chegar ao Rio de Janeiro.
Devido ao seu estado de saúde a Rainha só desembarcou dois dias depois, na
tarde do dia 10. Ao chegar a terra, acompanhada do filho e dos Infantes foi recolhida
debaixo de um pálio e transportada «em uma cadeirinha de braços que levavam os
criados da Casa Real, por entre mil vivas dos vassalos, repiques dos sinos, e ruído
estrondoso de centenas de fogos volantes, que de várias partes ao mesmo tempo se
lançavam no ar, até à entrada principal do Palácio; e, saindo pela porta lateral, foi
conduzida com a mesma comitiva pela praça até à entrada do quarto, que se achava
preparado para Sua Majestade…Ali ficou com um olhar incerto de idiotia e senilidade,
rodeada por D. Carlota Joaquina, pela Infanta D. Mariana, por todas as suas netas,
damas e criadas que a vieram receber com lágrimas de ternura e amor…».
Nas primeiras noites, uma multidão, sempre extasiada, saía ao largo do Paço e
contemplava o Palácio, para ver o Príncipe Regente e as pessoas reais que chegavam às
janelas e algumas vezes saíam em passeio até à rua Direita, por entre o povo que
ajoelhava religioso e feliz, à passagem «daquela família quase divina». Os festejos
foram encerrados, oficialmente, em 15 de Março, terminando com mais uma cerimónia
de acção de graças na Igreja do Rosário e um beija-mão no Paço.
Sublinhe-se que a notícia da chegada da Corte ao Rio de Janeiro teve enorme
propagação, provocando largas e espontâneas manifestações de regozijo. E mais,
quando houve conhecimento que a Corte estava a caminho do Brasil, algumas regiões
não deixaram de aplaudir e vibrar com tal facto. Assim, ainda em Janeiro de 1808, em
S. Paulo, antes mesmo do desembarque, o comerciante inglês, John Mawe,
testemunhou as orações diárias realizadas na Sé Catedral pelo Bispo D. Mateus de
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Abreu Pereira, para que o Príncipe Regente e a sua comitiva chegassem a bom porto e
pelo rápido estabelecimento do Império brasileiro: «Vinde reinar nos corações de
vossos fieis americanos, ainda mais do que no seu vasto continente. Um novo Império,
novo mundo, novo céu e nova terra vos desejam e vos chamam, […] Em meio de tanta
perturbação e tantas calamidades o bom Senhor lançou vistas piedosas sobre nós;
livrou o nosso bom príncipe de cair nas sanguinosas mãos dos inimigos […]».
A ilha de Santa Catarina, já depois da Família Real ter aportado ao Rio, em
Abril de 1808, homenageou o Príncipe na missa realizada no dia 24, quando um orador
ousou compará-lo a D. Sebastião, «felicitando-o por sua melhor fortuna». Nesse
mesmo dia um espectáculo de pirotecnia deixava o povo boquiaberto: «…pelas onze
horas [da noite] começou a latada de fogo [que se] havia armado no meio da Praça,
cujo elegante princípio foi por este modo: uma pomba por uma corda correu de um
lado cheia de fogo a acender um letreiro que mostrou muito tempo estas iniciais – V. S.
A. R. (Viva Sua Alteza Real), o que teve imensos vivas. Outra pomba por outro lado da
mesma sorte correndo fez iluminar outro letreiro que dizia – Feliz o Brasil. Depois
apareceu um bonito fogo, à imitação de luminárias, que durou muito vivo mais de dez
minutos […]. Seguiu-se depois entrar na praça um navio de fogo, seguindo-se depois
disso rodas, chafarizes, pistolas etc. Finalmente concluiu esta brilhante função
aparecendo na Praça um vistoso carro enramado que, dando volta em roda da mesma
praça, deitou ao ar cento e tantos foguetes de respostas».
Ao fim e ao cabo era a monarquia que se instalava na nossa antiga colónia
americana e os festejos pareciam dar a entender que, sob o ponto de vista local, teria
vindo para ficar; talvez, por isso o dia 7 de Março se tivesse tornado memorável sendo
considerado feriado até 1820.
Instalação da Corte. A lei das “aposentadorias”.
Após as cerimónias festivas da recepção, uma outra realidade se deparava não
só àqueles que tinham acabado de entrar na capital da colónia, mas também aos seus
residentes.
De facto, a chegada da Família Real ao Rio de Janeiro acompanhada da Corte,
bem como de milhares de portugueses criava, de imediato, um complicado problema de
instalação e alojamento que não seria fácil resolver, porquanto o afluxo de reinóis
(naturais do Reino) constituía um considerável aumento da população do Rio que, de
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um momento para o outro, passou de sessenta para setenta mil, não deixando de causar
um natural impacto nos residentes. Era o preço a pagar pelo «enobrecimento e a
distinção que a presença da Corte e a sua elevação a sede da monarquia conferiam à
cidade do Rio de Janeiro».
Urgia, pois, tomar providências rápidas. Antes de mais, era necessário proceder
à acomodação da Família Real que, na circunstância, teria que se adaptar a habitações
mais modestas, longe da sumptuosidade e dos amplos espaços como o Palácio de
Mafra, preferido de D. João, e Queluz, residência de D. Maria.
Nos primeiros dias o Príncipe Regente, D. Carlota Joaquina e os filhos ficaram
alojados no remodelado paço dos vice-reis, agora Paço Real, no Largo do Carmo, o que
não terá agradado nada à Princesa, pois estava habituada a viver apartada do marido e,
assim, só descansaria quando a situação “normalizasse”, o que, de facto, em breve viria
a acontecer.
Devido à reduzida dimensão do Palácio, foi necessário adaptar o Convento do
Carmo, a Casa da Câmara e a cadeia, ligando-os por um passadiço improvisado, o que
era, naturalmente, uma forma engenhosa de aumentar o espaço habitável e, ao mesmo
tempo, resguardar a privacidade real, pois que para passar de um prédio para outro não
era necessário sair à rua. O referido Convento, a parte mais nobre, que dava sobre o
Largo do Paço, ficou destinado aos aposentos da Rainha e das suas aias, pelo que os
carmelitas foram transferidos para o Seminário da Lapa.
A residência de D. João parece ter sido temporária. Com efeito, não tardou que
se tivesse mudado para um palácio mais amplo e confortável, (e longe da mulher)
situado no actual Bairro de S. Cristóvão, próximo do Morro da Mangueira e do Estádio
do Maracanã. Um grande negociante português, Elias António Lopes, «resolveu ceder
ao Príncipe Regente uma casa de campo nos subúrbios da cidade, a Chácara do Elias,
em S. Cristóvão, dizendo não ter outro interesse senão o bem-estar de Sua Majestade.
De toda a maneira, ajeitavam-se as coisas: Elias Lopes receberia de volta mais tarde,
devidamente inflacionado, o valor da sua “oferta”, e a Princesa Carlota Joaquina
permaneceria no Paço real, bem no centro da Corte e, principalmente, afastada do
marido».
Depois de instalada a Corte, o mais complicado seria encontrar habitações para
aqueles que com ela tinham feito a viagem, nomeadamente nobres, magistrados,
militares, oficiais-maiores, homens de negócio, etc.
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Mesmo antes da chegada da frota, pouco tempo antes da sua entrada na Baía de
Guanabara, a notícia de que a comitiva se dirigia para o Rio de Janeiro, pôs o Vice –
Rei, Conde dos Arcos, em alvoroço que, perante a falta crónica de casas, determinou
medidas, algumas delas consideradas violentas, requisitando edifícios públicos e
particulares, bem como desalojando, por vezes, os seus legítimos proprietários e
inquilinos. Aqueles que ocupavam as melhores casas foram intimados a largar mão
delas aos fidalgos e mais senhores da comitiva real, ordenando que se afixassem nesses
prédios editais para o despejo sumário, escrevendo a giz, nas portas, as iniciais P. R.
(Príncipe Regente), que a ironia popular, em breve, começou a interpretar como
«Ponha-se na Rua», ou «Prédio Roubado». Era o odiado regime de “aposentadoria”.
Hipólito da Costa, editor do «Correio Braziliense» (jornal que se publicava em
Inglaterra), sem “papas” na língua, afirmava que o sistema de “aposentadorias” era um
regulamento anacrónico, desfasado, «medieval», um «ataque directo ao sagrado
direito de propriedade», que «poderia tornar o novo governo num Brasil odioso para o
seu povo». Com efeito, era uma lei rudimentar, uma espécie de recolonização, uma
nova onda de colonos a substituir os antigos.
O recurso ao famigerado regime das requisições e da “aposentadoria”, não
deixou de, a curto prazo, agravar a crise. Como muitas casas eram requisitadas sem
mais explicações, não eram poucos aqueles que suspendiam os planos para a
construção de novos prédios, retirando os seus investimentos da cidade, havendo,
também, proprietários que paralisavam as obras, ou defendendo-se, «simulando ou
mesmo realizando obras perfeitamente dispensáveis nas suas residências. Obras
eternas […] nas quais os andaimes passavam a constituir parte integrante das
fachadas, paredes que nunca mais se levantavam ou derrubavam, e nos telhados havia
sempre um ou outro reparo a fazer». Outros, ainda, faziam-se desentendidos e não
davam andamento aos pedidos do Governo.
Obviamente, que os habitantes locais, como se prova pelos seus testemunhos,
não viam com bons olhos este serviço que lhes era pedido; além de se tratar de uma
arbitrariedade, os novos moradores não só regateavam o preço das rendas, como
também consideravam as moradias mal construídas e desconfortáveis. E, assim, se iam
criando ressentimentos em relação aos recém-chegados, os quais abusando do sistema
de “aposentadorias” manifestavam-se arrogantes, prepotentes e até violentos. Como a
gente de maior nobreza e distinção necessitava de grandes casas para se instalar, era
forçoso despejar duas ou três. D. Gabriela de Sousa Coutinho, esposa do ministro,
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Rodrigo de Sousa Coutinho, refere-se, por tal motivo, às «violências para alojar todos
os recém-chegados, tanto grandes como pequenos».
Um, entre vários casos de prepotência, é o do Conde de Belmonte, o qual se
apoderou de uma casa acabada de construir pelo comandante do porto, e nunca fora
habitada. Durante cerca de dez anos ali se aboletou, sem nada pagar, enquanto o
proprietário se viu obrigado, com a sua numerosa família, a mudar-se para uma
pequena moradia ao lado da mansão ocupada pelo Conde, que chegou ao extremo de se
apoderar dos escravos do comandante, sem dizer “água vai”, isto é, sem lhe dar
qualquer satisfação.
Também a duquesa de Cadaval, cujo marido tinha morrido durante a escala em
S. Salvador da Baía, ocupou uma chácara (propriedade rural com casa de habitação), do
coronel de milícias Manuel Alves da Costa e por lá se manteve sem sequer pagar um
tostão de renda. Quando o proprietário resolveu reclamar a casa, a duquesa respondeu
que não tinha lugar para onde ir, oferecendo, 600 mil réis mensais, que o legítimo dono
considerou pouco. O certo é que a nobre inquilina fez-se de surda e lá foi
permanecendo. Em 1821, quando voltou para Portugal na companhia de D. João VI,
mandou depositar no Banco a importância de 600 mil réis, sem agradecer ou dar
explicações ao coronel.
Ao fim e ao cabo, esta situação provocada pelo sistema de “aposentadoria”, que
só seria suspenso ao fim de dez anos, não deixou de gerar impasses e conflitos de maior
monta. Acrescente-se, finalmente, que este movimento migratório, em relação ao Rio
de Janeiro, não podia deixar de transformar a cidade na sua fisionomia urbanística e
social.
Novo elenco ministerial.
A mudança da Corte portuguesa para os seus domínios da América do Sul, em
1808, transformou, profundamente, como se verá, a situação do Brasil, que de simples
colónia, embora denominada Estado e geralmente considerada Vice-Reino, passou, de
um momento para o outro, à condição de sede da monarquia lusitana, resultando daí a
necessidade de uma ampla reorganização administrativa das Secretarias de Estado,
Tribunais e Repartições antes situadas em Lisboa e, também, a adaptação à nova ordem
de coisas já existentes no Rio de Janeiro.
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Ainda no decorrer das comemorações festivas, três dia após o desembarque de
D. João, foi constituído o Ministério que devia fundar os alicerces capazes de poder
sustentar a nova situação da monarquia. O cenário do novo Ministério não deixaria de
ser previsível: embora a ruptura com a França não tivesse sido, ainda, declarada, o
novo alinhamento internacional do País apontava para objectivos bem definidos, tanto
mais que o Ministério que se encontrava em funções no momento da passagem para o
Brasil, havia sido formado por pressão do embaixador francês, que exigiu a demissão
de D. João de Almeida de Melo e Castro e D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ambos
anglófilos assumidos.
Reforçados os laços com a Inglaterra e repudiada a tutela francesa, a que
Portugal se tinha visto obrigado pela «dura Ley da necessidade», e proclamado
abertamente as suas sinceras predilecções britânicas, o Príncipe Regente ao organizar o
seu primeiro Ministério, na antiga colónia, não podia deixar de abrir as portas do poder
aos estadistas mais devotados à Inglaterra.
Certamente ainda em Lisboa, e durante a viagem, seriam já várias as figuras,
nomeadamente aquelas que se inclinavam para a velha aliada, a perfilar-se para os
lugares mais apetecidos. Antes da chegada ao Rio, ainda em S. Salvador da Baía, o
Marquês de Belas, que gozava de alguma influência junto do Príncipe, numa memória
que lhe dirigiu, sugeria que o Gabinete adoptasse uma forma diferente, ficando apenas
um ministro com a tutela de todas as secretarias de Estado e também com a Junta da
Fazenda, acrescentando que a responsabilidade desse cargo deveria ser atribuída a D.
Fernando José de Portugal e Castro.
As intrigas palacianas desenvolviam-se, e difundiam-se comportamentos
movidos por ambições pessoais e políticas, bem como os projectos de governo. Neste
aspecto era “mestre” D. Rodrigo de Sousa Coutinho, que não deixou de lançar mão da
intriga para realizar as suas ambições. Desejoso de afastar Araújo de Azevedo do
Ministério, e porque visava ser Secretário de Estado no novo elenco a formar no Rio de
Janeiro, redigiu, por seu próprio punho, um escrito, com a finalidade de chegar ao
conhecimento do Príncipe em que «denunciava não só a política, mas a própria pessoa
de António de Araújo de Azevedo, o seu principal adversário, que acusava de sustentar
que se a marinha não estivera pronta mais cedo para a retirada da Família Real era
porque o Príncipe só mesmo no fim se resolvera a largar o Reino. Mais tarde acusá-loia também de manter uma correspondência cifrada com o seu antigo secretário, que
permanecia em Paris». Aliás, era hábito de D. Rodrigo denunciar e criticar, junto de D.
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
13
João, a acção, as atitudes ou até o carácter de outros membros do Governo e
conselheiros de Estado. É certo que D. Rodrigo acabou por fazer parte do “staff”
ministerial, como seria natural, mas não no lugar que ambicionava.
O novo Ministério passou a ser constituído por D. Fernando José de Portugal e
Castro, futuro Conde e Marquês de Aguiar, que foi nomeado presidente do Erário
Régio e ministro assistente ao despacho, que equivalia ao de primeiro ministro, com
precedência sobre os colegas e conhecimento dos assuntos de todas as pastas. A
indicação do Marquês de Belas ao Príncipe Regente, já referida, e o facto de ter
conhecimento do Brasil, como governador da Baía e depois vice-rei entre 1801 e 1806,
terão sido argumentos de peso para a sua nomeação. Formado em Leis pela
Universidade de Coimbra, homem de cultura, acerca das suas faculdades se pronunciou
favoravelmente Laura Junot, nada “meiga” e, muitas vezes, verrinosa nas suas
apreciações, colocando-o, a par de D. Rodrigo como um dos dois homens mais capazes
para o governo do País.
Esta preferência de modo nenhum agradava a Sousa Coutinho, pois além de não
ter conseguido a chefia do Governo, significava a subordinação a uma personalidade
que, quando o próprio D. Rodrigo era ministro da Marinha e Ultramar, estivera sob a
sua tutela na qualidade de Governador da Baía, situação que chegou mesmo a constar
junto do Príncipe Regente.
Entre outros factores, a
aproximação com a Inglaterra
implicava,
pelo
menos,
temporariamente, a colocar na
“prateleira”, ou num lugar de
pouca
visibilidade
política,
António de Araújo de Azevedo,
que
muitos
acusavam
de
demasiado receptivo à influência
francesa,
conseguindo
D.
Rodrigo tomar para si a gerência das pastas que Araújo sobraçara, Estrangeiros e
Guerra.
Entrando para o Governo, D. Rodrigo, que o Príncipe Regente, pouco depois,
elevava a 1º Conde de Linhares, era tido «com razão pelo principal e corifeu do
partido inglês».
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
14
Descendente de Martim Afonso de Sousa, neto de brasileira, discípulo e
afilhado do Marquês de Pombal, D. Rodrigo de Sousa Coutinho era formado em
Direito pela Universidade de Coimbra, iniciando a sua carreira diplomática com pouco
mais de vinte anos, tornando-se o principal responsável pela mudança da Família Real
para o Brasil.
Como reformador e legislador político estudou «com largueza inteligente»,
executando, em parte, um vastíssimo plano que incluía a defesa e o desenvolvimento de
Portugal e dos seus domínios nos quadros de política nacional e internacional, que mais
convinha aos portugueses. Para além de, ao longo dos anos, ter mostrado estofo de
governante, Sousa Coutinho conhecia a fundo os problemas do Brasil. Antes de
embarcar para o Rio de Janeiro, o Conde de Linhares havia já escrito sobre o Brasil
uma memória completa para a transformação da nossa colónia da América num estado
imperial. Foi ele, na opinião da historiadora americana Kirsten Schultz, quem «retomou
o projecto de Pombal de compensar a fraqueza de Portugal na Europa promovendo o
desenvolvimento dos seus territórios na América».
O progresso do Brasil desde 1808 a 1812, ano do seu falecimento, em todos os
campos da administração, parece dever-se a este político realista e dinâmico; D.
Rodrigo não só trabalhava como fazia os outros trabalharem, obrigando todos os que o
cercavam a esforçarem-se em prol do bem público, e para isso afastava os ociosos e os
corruptos. Com uma alta noção de Estado, há quem tenha afirmado que, em muitos
aspectos, possuía uma craveira de estadista comparável a Pombal.
Deve sublinhar-se que para o ascendente de Linhares muito contribuiu a
influência de seu irmão, D. Domingos de Sousa Coutinho, nosso embaixador em
Londres, nomeadamente do relacionamento privilegiado que qualquer deles mantinha
com Lord Strangford, chegado ao Rio em Agosto de 1808, como representante de Sua
Majestade Britânica. Também o apoio do Príncipe Regente terá sido decisivo para
sustentar a posição de Sousa Coutinho, perante as intrigas que propalavam a fim de o
afastar do Governo, acusando-o daquilo que era mais do que evidente, o seu pendor
anglófilo.
O novo Governo do Rio de Janeiro integrava, ainda, João Rodrigues de Sá e
Meneses, Visconde de Anadia, antigo ministro na Holanda e Nápoles, que foi
reconduzido na pasta da Marinha. Conquanto não se lhe reconhecessem dons de
estadista, era um homem culto e estava a par dos grandes problemas da Europa do
tempo.
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
15
Por motivos que, agora e aqui, não interessa trazer a “lume”, as suas
competências estavam muito reduzidas, além de que a sua recondução parece ter
causado alguma surpresa, uma vez que a viagem para o Brasil pusera a descoberto o
estado em que se encontrava a marinha nacional, não deixando de pôr em “xeque” a
sua reputação.
Segundo Oliveira Lima, este primeiro Ministério, que fazia questão em
implantar uma estrutura administrativa nas terras de Santa Cruz, foi confiado a pessoas
mais preparadas do que as que cercavam o Príncipe Regente em Lisboa. Certamente, o
terá sido. Porém, o juízo popular, transposto em estilo joco-sério para o «Correio
Braziliense», comparava a trindade ministerial a três relógios diferentes, o que,
naturalmente, foi motivo de caçoada: um atrasado (D. Fernando de Portugal); outro
parado (Visconde de Anadia) e o terceiro sempre adiantado (D. Rodrigo de Sousa
Coutinho).
Se bem que os colegas do Conde de Linhares não fossem, nem de longe nem de
perto, simples “verbos de encher”, o ministro e secretário dos Estrangeiros e Guerra era
sem dúvida, e foi-o até à sua morte prematura, a figura orientadora e inspiradora do
novo Governo.
Reorganização administrativa.
Com o Reino sob ocupação francesa e não sendo possível prever o tempo de
regresso, o Gabinete tinha de agir com urgência e resolver a montanha de problemas
administrativos que a transferência da Corte para o Brasil não podia deixar de ter
provocado. Assim, durante os primeiros meses, a máquina governamental trabalhou em
ritmo acelerado, produzindo leis em série, revogando restrições coloniais e emitindo
decretos.
Logo à partida, deparava-se com o grande número de funcionários que iam
emperrando a máquina administrativa por via dos muitos cargos criados para satisfazer
aqueles que vieram com o Príncipe Regente, pretextando lealdade e devoção à sua
pessoa, reclamando agora fartos meios de subsistência, em troca dos que, lembravam,
haver abandonado no Reino à cobiça francesa. Naturalmente, os cargos mais rentáveis
eram atribuídos, quase exclusivamente, a nobres portugueses, muitos deles a “leste”
dos problemas da colónia, criando-se, ou recriando-se, departamentos que pouco
tinham a ver com a realidade brasileira, porquanto as disposições apontavam mais para
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
16
uma questão de conseguir emprego para os milhares de burocratas, acabados de chegar
do Reino, do que propriamente para servir as necessidades do Brasil.
No entender do sociólogo Raymundo Faoro, os fidalgos de alta linhagem e que
dispunham de bens próprios de vida não acompanharam, salvo raras excepções, o
Príncipe Regente. A maior parte,
«a chusma de satélites: monsenhores,
desembargadores, legistas, médicos, empregados da Casa Real, os homens do serviço
privado e protegidos de D. João, eram vadios e parasitas que continuariam no Rio de
Janeiro o ofício exercido em Lisboa: comer à custa do Estado e nada fazer para o bem
da nação». Em jeito de parêntesis, direi que esta “coisa” de comer à mesa, ou à conta
do orçamento, e não dar a cabeça ou o corpo ao “manifesto”, parece, repito, parece, não
me ser de todo estranha e, se calhar, nestes nossos tempos, já em edição… “correcta” e
“aumentada”.
Diga-se a este propósito, que também a fraude, o enriquecimento ilícito, enfim a
corrupção, eram situações “normais” por todo o nosso império, embora tenham surgido
de forma mais notória na nova capital portuguesa devido à entrada súbita de milhares
de burocratas, criando, assim, condições favoráveis, especialmente às pessoas ligadas à
Corte, para abusos e acumulação de várias fortunas cuja origem não podia oferecer
quaisquer dúvidas. Apenas dois exemplos bem significativos: Joaquim José de
Azevedo, o tesoureiro da Casa Real que, em Novembro de 1807, organizou o embarque
da nobreza e familiares do Príncipe Regente para o Brasil, enriqueceu tão rapidamente
que se tornou banqueiro da Corte, chegando a fornecer «um empréstimo sem juros ao
tesouro…que enchia cinco carruagens cheias de prata e onze escravos carregados de
ouro». Bento Maria Targini, de origem italiana, iniciou o serviço público num cargo
menor da burocracia, porém, sendo inteligente e organizado foi nomeado escriturário
do Real Erário. Ao conseguir tornar-se muito próximo de D. João e de D. Carlota
Joaquina, e convivendo na intimidade da Família Real, depressa chegou ao topo da
referida repartição, sendo o encarregado de administrar as finanças públicas, o que
incluía todos os contratos e pagamentos da Corte. Aqui, de facto… a ocasião fez o
ladrão.
O poder de Azevedo e Targini, nos seus departamento era tal, que ambos foram
promovidos, pelo Príncipe Regente, de barão a visconde. Esta situação, como não podia
deixar de ser, foi aproveitada pela proverbial “gozação” dos “cariocas”:
«Quem furta pouco é ladrão
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
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Quem furta muito é barão
Quem mais furta e esconde
Passa de barão a visconde.
Furta Azevedo no Paço
Targini rouba no Erário
E o povo aflito carrega
Pesada cruz ao Calvário».
Os próprios estrangeiros que viviam na Corte denunciaram o desregramento da
vida “carioca”, a corrupção dos funcionários e a desordem moral dos serviços públicos,
como ressalta no «Lundú de Pai João», reproduzido numa interessante monografia de
Artur Ramos, «O Folclore Negro do Brasil»:
«Baranco dize – preto fruta,
Preto fruta co razão;
Sinhô baranco também fruta
Quando panha ocasião
Nosso preto fruta garinha
Fruta saco de feijão;
Sinhô baranco quando fruta
Fruta prata e patacão.
Nosso preto quando fruta,
Vai pará na correcção;
Sinhô baranco quando fruta
Logo sai sinhô barão».
Não foram poucos aqueles que, em breve, passaram a viver muito acima dos
meios que poderiam ter conseguido legitimamente, pois a roubalheira em nome da
Coroa tornou-se prática generalizada.
A transferência da sede da monarquia para o Rio de Janeiro determinou a rápida
criação ou a reforma de organismos de apoio, não apenas para o Governo do Brasil,
mas também para manter a ligação oficial com o Conselho de Regência, em Lisboa.
Além das Secretarias de Estado, já referidas, o Governo teria de instalar e pôr a
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
18
funcionar os sectores das suas principais áreas de actuação: segurança e polícia, justiça,
fazenda e área militar. Sublinhe-se que não se tratava de partir do zero, porquanto a
Coroa sempre administrou e controlou o Brasil com base nas «Ordenações Filipinas»,
código legal que vigorava em Portugal desde o século XVII vindo a encontrar, por
conseguinte, no Rio de Janeiro e demais capitanias, instituições e repartições
vinculadas e basicamente réplicas das que havia no Reino. Até então, a administração
da metrópole estendia-se à colónia num organograma hierárquico, e que abarcava o
Governo-Geral do Brasil, o governo das capitanias e o das câmaras municipais. Assim,
o processo de implantação foi tanto de sobreposição e fusão como de adequação e
sendo do interesse da Coroa, também de inovação, uma vez que as «Ordenações»
deixavam bem claro que «o rei é lei animada sobre a terra e pode fazer lei e revogá-la
quando vir que convém assim fazer».
Sobre a estrutura judicial, vejamos o que nos diz o Padre Luiz Gonçalves dos
Santos:
«Tendo agora o Brasil com a augusta presença do Príncipe Regente Nosso
Senhor uma elevada graduação política, e por consequência devendo ter tribunais
superiores, a que os povos possam recorrer, especialmente naqueles negócios, que
imediatamente dependem das reais resoluções, depois das consultas, dos mesmos
tribunais, Sua Alteza Real houve por bem pelo alvará de 22 de Abril criar nesta Corte
do Brasil um tribunal superior, denominado Mesa do Desembargo do Paço, e da
Consciência e Ordens[…]. A este régio tribunal competirão todos os negócios, que
anteriormente pertenciam ao Desembargo do Paço mesa da Consciência e Ordens, e
Conselho do Ultramar em Lisboa; e os seus desembargadores gozarão das mesmas
honras, e privilégios, que gozam os desembargadores, e conselheiros daqueles
tribunais».
A estrutura judicial já dispunha no Brasil do Tribunal da Relação e
desembargadores dos agravos e apelações e ouvidores gerais do cível e do crime,
vinculado à Casa da Suplicação, em Lisboa, e que era o grande tribunal de todo o
Reino. A partir de agora, a própria Casa da Suplicação tinha a sua sede no Rio e
absorvia o Tribunal da Relação local; outros antigos tribunais portugueses vieram
também com a Corte, como o Desembargo do Paço, instância superior que encabeçava
o organograma e Mesa da Consciência e Ordens que mantinha o vínculo com o
Arcebispado do Brasil.
Outra necessidade premente era a formação e reorganização de instituições, ou
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
19
estabelecimentos, respeitantes à administração económica e financeira. Deste modo, o
Príncipe Regente, entendendo «ser indispensável estabelecer-se nesta Corte do Brasil
um erário, ou tesouro geral público, e um conselho de sua Real Fazenda para a mais
exacta administração, arrecadação, distribuição, assentamento e expedição das rendas
do Estado», determinou, pelo alvará de 28 de Julho de 1808, a criação do Real Erário e
do Conselho da Fazenda com as mesmas atribuições que tinham em Lisboa e passando
a administrar de perto as já existentes Junta da Fazenda, Alfândega, Intendência da
Marinha e Armazéns Reais. Por alvará de 12 de Outubro de 1808 foi fundado o Banco
do Brasil, instituição que ainda não havia em Portugal, sendo os objectivos referidos no
diploma: «para fomentar e engrandecer o crédito público e animar a riqueza do
comércio e da população». Assim se facilitava o uso das operações de câmbio e
integravam-se os usos de descontos e rebates, como se fazia nas «Nações cultas e
iluminadas». A fim de dotar a instituição bancária com pessoal qualificado para o seu
bom funcionamento, o Príncipe Regente decidiu, quando ainda estava em S. Salvador,
criar uma cadeira de Economia Política no Rio de Janeiro, entregando a sua regência ao
Dr. José da Silva Lisboa, deputado da
Mesa da Inspecção da Agricultura e
Comércio da Baía.
Além
referidas
das
de
questões
administração
já
geral,
justiça e organização económica e
financeira do Estado, era também
prioritária
uma
estruturação
em
matéria de defesa e segurança. Apesar
da abertura dos portos ter sido uma “machadada” no sistema colonial, o Governo
mantinha-se no firme propósito de defender o ideário absolutista, embora já fragilizado,
bem como o seu território americano e o seu trono.
Conquanto, as ameaças mais temidas na Europa fossem provenientes do
exemplo da Revolução Francesa, no Brasil, além dos ideais iluministas e daqueles dos
Estados Unidos, «os ventos que sopravam da própria vizinhança precisavam ser
desviados». Recorde-se que as colónias espanholas se encontravam envolvidas no
processo revolucionário que as levaria à independência e que, nesse ano de 1808,
Simão Bolívar tomava o poder em Caracas, ao mesmo tempo que rebentavam revoltas
contra a Espanha no Equador e na Bolívia.
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
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Assim, e por isso mesmo, um alvará de 10 de Maio criava a Intendência Geral
da Polícia da Corte e do Estado do Brasil, à semelhança da que existia em Portugal
desde 1760, e cujo regulamento deveria ser rigorosamente cumprido por todas as
autoridades criminais e civis existentes nas cidades e vilas das capitanias.
Como se torna bem claro, os objectivos eram em grande parte de ordem
política: salvaguardar a estabilidade das instituições tradicionais da monarquia, tratando
de vigiar e perseguir «os espiões e partidistas dos franceses, de prevenir os crimes
secretos, forjados nas trevas em clubes e lojas que minavam o Estado e a religião, e
limpar a cidade de vadios que perturbassem a ordem civil e a tranquilidade públicas».
O desembargador Paulo Fernandes Viana foi nomeado Intendente Geral da
Polícia, cargo que exerceu até 1821 e com amplos poderes, porquanto, quase tudo era
considerado caso de polícia: «a guarda da pessoa real, a organização da guarda real e
o estabelecimento de quartéis, as obras municipais, a fiscalização dos teatros e
diversões públicas, a matrícula dos veículos e embarcações, o registo dos estrangeiros
e a expedição de passaportes, a promoção e o policiamento de festas públicas, a
detenção de escravos fugidos, a perseguição e prisão de pessoas ou grupos que
criticassem o Governo ou a ele se opusessem».
Com todos os melhoramentos já mencionados e outros que serão ainda
referidos, o Brasil deixou, praticamente, de ser uma colónia de Portugal desde a
chegada da Família Real a terras de Santa Cruz. Esta nova situação acabaria por ser
confirmada quando o Príncipe Regente elevou o Brasil à condição de Reino Unido aos
de Portugal e Algarves, modificando-se, por esse motivo, as respectivas armas e títulos
dos soberanos e príncipes herdeiros.
O «manifesto» do Rio de Janeiro. Nova orientação na política externa.
Segura a Corte no Brasil, após a Casa de Bragança como Casa reinante ter sido
considerada extinta por determinação de Bonaparte, o Gabinete do Rio definiu
igualmente uma nova atitude em face da agressão e dos agravos do Governo francês.
Efectivamente, pouco depois da sua entrada para o Governo, na qualidade de
Ministro dos Estrangeiros e Guerra, D. Rodrigo de Sousa Coutinho tomou por si só,
(com o próprio Strangford ainda ausente em Inglaterra) a iniciativa de propor em Abril
de 1808, a publicação de um «manifesto, ou exposição justificativa do procedimento da
Corte de Portugal a respeito da França», e que viria a servir de referência formal da
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
21
viragem da política portuguesa.
Os pretextos imediatos da publicação do «manifesto», em 1 de Maio de 1808,
terão sido, por um lado, o conhecimento, através dos jornais ingleses (onde se
transcreve o “Moniteur”) dos relatórios do Ministro dos Negócios Estrangeiros francês
em que se explicava a ocupação de Portugal pela má fé e duplicidade do Governo de
Lisboa; e, por outro, a notícia de que Junot abolira em 1 de Fevereiro o Conselho de
Regência nomeado em Lisboa pelo Príncipe Regente. Esta situação impedia, desde
logo, qualquer hipótese de diálogo com a França, reforçando, assim, a posição política
de Sousa Coutinho.
A proposta do “manifesto” apresentada ao Príncipe Regente propunha-se fazer a
«exposição verídica e exacta da sua conduta, sustentada por factos incontestáveis, a
fim de que os seus vassalos, a Europa imparcial e ainda a mais remota posteridade
pudessem julgar da firmeza da […] conduta de Portugal».
O «manifesto» começava por fazer a história do posicionamento de Portugal,
traçando o quadro geral da política externa portuguesa desde o princípio da Revolução
Francesa até à época da invasão do Reino, não se restringindo apenas à análise dos
acontecimentos que a haviam imediatamente precedido.
Assim, não deixava de acusar, veementemente, o procedimento da França e de
Napoleão pelo apresamento de navios portugueses sem declaração de guerra e as
permanentes e arbitrárias exigências pecuniárias logo a seguir à paz de 1801; também
os abusos do General Lannes não eram esquecidos, bem como o menosprezo por uma
neutralidade cujo reconhecimento fora obtido à custa de enormes sacrifícios e, até a
pilhagem de todos os géneros coloniais e matérias primas.
Em síntese, creio poder considerar-se que o «manifesto» se apoiava em três
pontos base:
O primeiro vincava a incontestável neutralidade portuguesa durante todo o
período em questão, o que tinha por objectivo demonstrar a injustiça da guerra movida
a Portugal pela França. Porém, a defesa deste ponto apresentava alguma fragilidade em
relação à década de 1790, por via da participação portuguesa na Campanha do
Rossilhão. No entanto, a dificuldade foi, ou julgava-se, ultrapassada pelo recurso à tese
então apresentada pela nossa diplomacia: Portugal considerava, apenas, ter-se limitado
a prestar à Espanha os socorros exigidos pela aliança que vigorava entre os dois países,
não se podendo encarar tal participação como um acto de guerra contra a França.
A segunda ideia base consistia em demonstrar a constante fidelidade à aliança
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
22
inglesa; mesmo no período “nebuloso” que decorreu entre Agosto e Novembro de
1807, Portugal não deixou de manter «uma plena confiança na amizade do seu antigo e
fiel aliado Sua Majestade Britânica» e, até quando o Governo português acedeu à
clausura dos portos, terá sido um facto que, por uma questão de estratégia política, a
própria Inglaterra deu o seu “agreement”.
O terceiro ponto do texto de Sousa Coutinho destacava o carácter benéfico da
aliança com a Grã – Bretanha, referindo quer a disponibilidade do Governo de S. M. B.
para oferecer a Portugal «toda a qualidade de socorros», na iminência de uma invasão
francesa, em 1806, quer as melhores condições que a Inglaterra conseguira para
Portugal no tratado de Londres de 1801, comparando-as com aquelas estipuladas no
tratado de Badajoz e de Madrid, firmado pouco antes.
Após a exposição histórica, o «manifesto» apresentava uma «declaração» onde
se determinava a ruptura de «toda a comunicação com a França», autorizando os
súbditos portugueses a «fazer guerra por terra e mar aos vassalos do Imperador dos
franceses» e se afirmava a nulidade de todos os tratados que Napoleão «obrigou» a
assinar, nomeadamente os de Badajoz e de Madrid em 1801 e o de neutralidade em
1804.
Finalmente, explicitava os princípios gerais que orientariam a política externa
portuguesa: «Sua Alteza Real não deporá jamais as armas, senão de acordo com o seu
antigo e fiel aliado Sua Majestade Britânica; e não consentirá em caso algum na
cessão do reino de Portugal, que forma a mais antiga parte da herança e dos direitos
da sua augusta família Real». Apenas quando o Imperador dos franceses anuísse
concordar «sobre todos os pontos às justas reclamações de Sua Alteza o Príncipe
Regente de Portugal e abandonasse o tom absoluto e imperioso com que dominava a
Europa oprimida», seria possível reatar as relações com a França.
Aparentemente o «manifesto» limitava-se a formalizar os princípios que a
própria situação impunha, tornando, assim, difícil a sua contestação. Porém, o certo é
que, quando apresentado e discutido em Conselho de Estado, o texto de D. Rodrigo de
Sousa Coutinho mereceu reservas de quase todos os Conselheiros.
Curiosamente, de todos os Conselheiros, foi Araújo de Azevedo, grande rival de
Sousa Coutinho, que apresentou um dos pareceres menos críticos, baseado
exclusivamente na exposição histórica e sem nunca abordar o conteúdo político do
«manifesto». Talvez o tivesse feito por uma questão de estratégia política com vista,
num futuro próximo, a regressar ao lugar de que tinha sido apeado pelo Conde de
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
23
Linhares, Sousa Coutinho o que, de facto, veio a acontecer.
Consideremos, agora, alguns dos pontos de vista discordantes:
A Corte de Lisboa quebrou efectivamente a neutralidade, dadas as convenções
que então fizera com a Espanha e a Grã-Bretanha, envolvendo-se em guerra com a
França; quanto à oferta de socorros disponibilizados pelo Governo inglês em 1806,
contesta-se ter havido qualquer perigo iminente de invasão francesa por esse tempo; em
relação ao Tratado de Londres consideram que as suas condições não foram favoráveis
ao interesse nacional; sublinhavam que, se se declarava guerra à França, também seria
lógico fazê-lo igualmente à Espanha, que participara da invasão, concluindo porém,
que «seria melhor em tal caso não fazer nenhuma dessas declarações».
Todos os Conselheiros concordavam em moderar a linguagem do «manifesto»,
evitando expressões injuriosas relativamente a Napoleão e aos seus generais, a fim de
não irritar, ainda mais, a sua animosidade e prováveis retaliações, atendendo à
ocupação do Reino e que o principal objectivo era a sua restauração. E mais, essa
moderação seria necessária, porquanto era conveniente que o «manifesto» a publicar se
abstivesse «quanto for possível da mais leve parcialidade, que traga consigo a ideia de
uma futura predilecção política a favor de qualquer das Potências principais
beligerantes, segundo o axioma inegável em política, que a utilidade e o interesse do
Estado deve [sic] única e exclusivamente dirigir o seu sistema político». Convinha, de
facto, deixar uma “porta” aberta para preservar as possibilidades de um diálogo futuro
com Paris.
Apesar de no final, o Conde de Linhares estar em minoria, se não mesmo
isolado no seu projecto, foi a sua proposta que prevaleceu, vindo o «manifesto » a ser
publicado com a data de 1 de Maio de 1808 e correspondendo quase por completo ao
texto inicial, tanto no que respeita à forma como ao conteúdo. Neste aspecto, apenas
teve algum significado a supressão da referência ao episódio do afastamento do próprio
Sousa Coutinho e de D. João de Almeida de Melo e Castro do Governo, por pressão do
embaixador Lannes sobre D. João, o que num documento a ser divulgado nas Cortes
europeias seria algo desprestigiante para o Príncipe Regente.
Como hipótese provável, para impor a sua proposta, não é de rejeitar que D.
Rodrigo tenha argumentado com a necessidade premente de manter, e até reforçar, o
apoio do Governo inglês, o que exigia uma posição sem tibiezas, clara e firme, em
relação à França. E talvez seja bom lembrar que Sousa Coutinho era amigo de
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
24
Strangford e irmão do nosso embaixador em Londres, D. Domingos de Sousa
Coutinho.
A nova orientação da política externa portuguesa no «manifesto», ao mesmo
tempo que marcava o ascendente de Sousa Coutinho na Corte do Rio, funcionava no
sentido de que a aliança inglesa retomasse uma importância decisiva na sobrevivência
da monarquia portuguesa. Mesmo considerando que a sua transferência para o Rio de
Janeiro a pudesse, no imediato, pôr a salvo de qualquer ataque estrangeiro, do apoio
britânico dependia não só a possibilidade da sede do Governo regressar a Lisboa, mas
também a própria cobertura da navegação no Atlântico sem a qual o Brasil, que vivia
essencialmente do comércio de exportação, não tardaria a ficar à beira do colapso
económico.
Mas…esta forte ligação à Inglaterra (leia-se dependência) não deixava, e não
deixou, também, de apresentar sérios problemas. Para além de outras situações lesivas
do interesse nacional, a intervenção militar inglesa no País e a autonomia com que foi
conduzida provocando situações abusivas de toda a ordem, e em todos os sectores da
sociedade portuguesa, depressa deu azo às maiores dificuldades e desentendimento
com as autoridades do Reino. Daí que a prepotência britânica em Portugal, durante a
presença da Corte no Brasil, possa ser considerada como um factor de primeira linha na
conspiração abortada de 1817 e na revolução vitoriosa de 24 de Agosto de 1820, levada
a cabo pelas tropas rebeladas contra o domínio inglês e que levou à implantação do
liberalismo e consequentemente à primeira Constituição Portuguesa, em 1822.
Tratados com a Inglaterra.
Tratados com a Inglaterra, ou…”tramados” pela Inglaterra? Bom, suponho, ou
melhor, sei, que ao longo da nossa história, uma coisa implicava a outra – “tramas” que
o imperialismo inglês tecia. De facto os Tratados de 1810, um de Amizade e Aliança e
outro de Comércio e Navegação constituem, não só a prova de uma ascendência
britânica, como também o reflexo da sua política imperialista. Aproveitando-se de uma
situação crítica, tanto no Reino como no Brasil, a Inglaterra punha e dispunha a seu
belo prazer de tudo o que servisse os seus interesses
Já vinha de longe a ambição da Grã-Bretanha no sentido de estabelecer um
tratado de comércio com Portugal, que pusesse termo à proibição da entrada de alguns
produtos e que lhe permitisse o acesso directo aos mercados brasileiros. Não poucas
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
25
vezes, em finais do século XVIII, Londres havia pressionado Lisboa a fim de se
iniciarem negociações visando a concretização de um tal tratado. Em 1776, na
sequência de um tratado anglo-francês, o Tratado de Éden, a Inglaterra apertou o cerco,
tornando-se mais insistente, só que a resistência da diplomacia portuguesa e depois as
convulsões resultantes da Revolução Francesa frustraram as pretensões britânicas. A
ocasião surgia agora, (guardado estava o “bocado”) com a mudança da situação político
– diplomática e que obrigou a Corte a transferir-se para o Brasil.
Situação político - diplomática obriga Portugal a aceitar um tratado
“leonino” – desleal e oportunista.
Antes de mais, por razões de ordem política, a Inglaterra tinha sido a potência
que, através da sua esquadra naval, apoiou a retirada para o Brasil, além de que a sua
protecção seria sempre fundamental a fim de conservar o império luso-brasileiro
intacto e na posse dos Braganças, quando se concertasse a paz geral.
Convém recordar que já no artº 6º da Convenção de Outubro de 1807, esteve
expressa a garantia de que Sua Majestade Britânica nunca reconheceria como rei de
Portugal «Príncipe algum que não fosse «o herdeiro e representante legítimo» da Casa
de Bragança, mas…tendo como contrapartida e condição implícita a obrigação
estipulada no artº 7º, de se negociar um tratado de auxílio e comércio entre o Governo
português e a Grã-Bretanha.
Posteriormente, em Abril de 1808, a vinculação entre o auxílio político-militar e
a assinatura de um acordo de comércio com a Inglaterra é claramente assumido no
parecer do Marquês de Belas, quando consultado, como Conselheiro de Estado, sobre o
projecto do «manifesto», sugerindo: «Bom remédio e único; não se perca tempo; façase com a Inglaterra um Tratado de Comércio, ou com outro qualquer pretexto, e seja o
artigo principal: Que Inglaterra não há-de fazer a Paz sem o Príncipe de Portugal ser
restituído ao seu Trono na Europa com todas as respectivas indemnizações: Publiquese este Tratado: nada sobre este ponto de vista secreto: na publicidade consiste o
maior interesse». Praticamente tratava-se da concessão de facilidades comerciais em
troca de garantias políticas.
Mesmo para além de qualquer pressão política, existiam motivos de ordem
económica suficientemente consideráveis para imporem ao Governo do Rio uma
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
26
concertação com a Inglaterra, embora este país apenas representasse um comprador de
certa monta quanto ao algodão e, em menor aquisição, os couros brasileiros.
Dos géneros produzidos no Brasil, quase todo o açúcar, o cacau, o tabaco, e o
café, bem como metade do algodão eram, até 1807, exportados para os mercados da
Europa, nomeadamente Hamburgo e portos italianos. Acontece que, com o Bloqueio
Continental imposto por Napoleão, os referidos mercados tornaram-se inacessíveis,
sendo a conjuntura ainda agravada pelo bloqueio marítimo britânico; deste modo, só
com muita dificuldade, e por vias indirectas, se poderiam atingir.
Em tais circunstâncias, pairando a ameaça de asfixia sobre a economia
brasileira, o único mercado alternativo era a Grã-Bretanha. Porém, com excepção do
algodão, a Inglaterra não tinha por hábito importar as produções brasileiras, uma vez
que consumia os artigos dos seus próprios domínios coloniais. Em relação ao açúcar e
café brasileiros as taxas aplicadas tornavam a sua importação proibitiva, e isto com a
finalidade de proteger os géneros similares das colónias inglesas que beneficiavam de
uma elevada protecção alfandegária.
Havia, no entanto, algum campo de manobra que justificava a esperança de
conseguir a entrada de, pelo menos, certos produtos brasileiros, enquanto que naqueles
onde tal se afigurava inviável, (caso sobretudo do açúcar) se tornaria vital que a
Inglaterra os adquirisse para posterior reexportação a partir dos portos britânicos para
o continente europeu – por via legal, nas zonas eventualmente não controladas por
Napoleão e, por contrabando, nas outras.
Obviamente, tudo isto impunha como necessidade imperiosa a negociação de
um acordo com a Grã-Bretanha, a quem esse acordo não interessaria menos, como
forma de assegurar a entrada no mercado brasileiro de produtos ingleses até então
também proibidos, sobretudo os tecidos de algodão e, mesmo, igualmente importante,
garantir a posição do domínio e privilégio no comércio externo brasileiro.
Carta Régia de 28 de Janeiro 1808. O fim do «Pacto Colonial».
A negociação de um tratado levaria o seu tempo, pelo que a pressão das
circunstâncias obrigou a que fosse definido um novo regime mercantil ainda antes de
concluído qualquer acordo comercial.
O primeiro e decisivo passo foi dado, de imediato, a 28 de Janeiro, uma semana
após a chegada do Príncipe Regente a S. Salvador da Baía, pela Carta Régia que
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
27
decretava a abertura dos portos do Brasil ao comércio dos navios estrangeiros – medida
promulgada «interina e provisoriamente», enquanto não fosse consolidado «um sistema
geral que efectivamente regule tais matérias», como registava o preâmbulo da referida
carta.
A Carta Régia foi assinada por D. João, com a ausência de Araújo e Azevedo e
Rodrigo de Sousa Coutinho, embarcados em navios que aportaram directamente ao Rio
de Janeiro, pelo que «o projecto, suscitado talvez, certamente ponderado em viagem
amadureceu ao contacto das necessidades locais, visíveis para todos e sobre que o
Conde da Ponte, Governador da Baía, não teria deixado de chamar a atenção do
Regente. Como havia a escassa marinha nacional, parte sequestrada pelo inimigo nos
portos do reino, de prover às faltas da colónia, maiores agora, pela presença da Corte
e inevitáveis urgências da administração?...».
O fim do «pacto colonial» acabava de dar origem a um vazio que tinha de ser
preenchido por novo conjunto de regras, que visasse outro processo de articulação das
economias brasileira e portuguesa em relação aos mercados internacionais.
Porém, as concessões previstas, ainda em Lisboa, na Convenção de 22 de
Outubro, onde se previa a hipótese de bloqueio dos portos do litoral metropolitano,
estabelecia que se facultaria ao comércio inglês um único porto (em princípio o de
Santa Catarina), tinham uma amplitude muito inferior àquelas que foram estipuladas
na Carta Régia de 28 de Janeiro de 1808. É provável que este facto tivesse a ver com a
pressão dos interesses locais na causa do abandono de todas as restrições à abertura dos
portos e, com José da Silva Lisboa, advogado e baiano, o seu porta-voz que, «como
bom discípulo que era de Adam Smith, terá defendido com êxito a necessidade de se
baixarem os direitos de entrada, para facilitar todo o giro do comércio».
Entretanto, uma outra medida, o alvará de 28 de Abril de 1808, lançou o último
golpe no sistema do «pacto colonial», abolindo «toda e qualquer proibição» que no
Brasil e nos domínios ultramarinos vigorasse sobre o exercício da actividade industrial,
sendo permitido desde então, a qualquer dos seus habitantes «estabelecer todo o género
de manufacturas, sem exceptuar algumas, fazendo os seus trabalhos, como entenderem
que mais lhes convém […]».
Ao mesmo tempo, mas independentemente do que se passava no Brasil, o
monopólio mercantil português ia abrindo brechas por outro lado: em Londres, o nosso
embaixador, Domingos de Sousa Coutinho, logo a seguir à abertura dos portos
brasileiros, pressionado por inúmeros avisos, impressos, cartas, petições, visitas, tudo
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
28
com a finalidade de o convencer a permitir autorização para que os navios ingleses se
pudessem dirigir directamente aos portos brasileiros. Igualmente assediado pelo
Governo britânico, D. Domingos acabou por ceder, emitindo as licenças pedidas,
mesmo no caso dos tecidos de algodão, cuja importação era proibida tanto na
metrópole como nos domínios portugueses. Diga-se que os ingleses acorreram
imediatamente ao Rio a abrir casas comerciais e, três anos depois, em 1811, já
contavam com setenta e cinco.
Certamente, o nosso embaixador, com as referidas concessões pretendia obter
contrapartidas, preparando o terreno para o tratado. Aliás, foi D. Domingos, irmão de
D. Rodrigo, quem redigiu o primeiro esboço do Convénio. Este documento veio a
constituir a matriz de todos os projectos subsequentes, porém, foi sendo alterado ao
longo dos meses que se seguiram, acrescentando várias cláusulas pelas quais a Coroa
portuguesa assumia novos compromissos, quase sempre favoráveis (ou nunca
desfavoráveis) à Inglaterra, o que não deixava de ser uma situação “normal”.
Tratados de 1810. Negociações. Cláusulas.
As negociações com a Inglaterra previstas pelo Convénio de 1807, realizadas
em Lisboa, foram iniciadas a partir de Março de 1808 e prosseguiram em Agosto do
mesmo ano, agora já com a presença de Strangford, plenipotenciário inglês, e que
viajara acompanhado do projecto.
Aparentemente, o plenipotenciário português, D. Rodrigo de Sousa Coutinho,
ainda procurou dar-lhes uma base diferente daquela que estava consagrada na minuta e
redigida, como se disse, por seu irmão, ao solicitar «alguma reciprocidade a favor dos
géneros e produções do Brasil, em consequência das facilidades, favores e graças que
Sua Alteza Real, o Príncipe Regente, seu amo, tinha concedido às produções e
manufacturas da Grã-Bretanha […]». Strangford não afastou de imediato tal hipótese,
ao sugerir na sua resposta que «as disposições necessárias para favorecer o comércio
se fizessem por meio de uma Convenção ou Tratado, e não por uma simples e
recíproca declaração, que não bastaria a procurar a derrogação (revogação, abolição)
das leis, ou proibitivas ou onerosas pelos direitos que estabelecem e por ora opõem na
Grã-Bretanha um grande obstáculo à venda dos géneros do Brasil, e concorrem assim
a diminuir a mútua comunicação e extensão que o comércio deve ter».
Por esta altura não se conhecia ainda o «bill» (a nota) do Parlamento britânico
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
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datado de 25 de Junho (Strangford saíra da Grã-Bretanha em Maio e a notícia só em
Setembro poderia ter chegado ao Rio de Janeiro). Essa resolução do Parlamento
permitia a entrada dos produtos vindos do Brasil, desde que não proibidos por lei,
pagando os mesmos direitos de importação e sisa que recaíam sobre os de outros países
estrangeiros. Tratava-se da extensão ao Brasil do princípio de nação mais favorecida;
por outro lado, o mesmo «bill» concedia ainda facilidades de depósito e armazenagem,
para exportação exterior.
A Convenção assinada a 28 de Fevereiro de 1809 por Sousa Coutinho e
Strangford, como plenipotenciários de Portugal e da Grã-Bretanha, mantinha a mesma
estrutura e os princípios que já constavam do projecto de D. Domingos, no que dizia
respeito às relações mercantis bilaterais.
Assim, o artº 5º estabelecia uma «livre, inteira e recíproca liberdade de
comércio entre os respectivos vassalos das duas Altas Partes Contratantes, e em todos
e cada um dos territórios e domínios de ambas»; o artº 7º determinava «uma perfeita
reciprocidade nos direitos e impostos», a pagar pelos navios dos dois países; o artº 19º
declarava a admissão de todos os produtos britânicos nos portos e domínios da Coroa
portuguesa, mediante o pagamento de direitos de 15% «ad valorem» (segundo o valor
das mercadorias declaradas no despacho) e taxa de 16% para as portuguesas ou para as
estrangeiras transportadas em navios portugueses; o artº 21º concedia o tratamento de
nação mais favorecida conferido às exportações portuguesas para a Grã-Bretanha e, no
seguinte, a concessão de facilidades na reexportação daqueles produtos que não tinham
entrada no mercado brasileiro, por fazerem concorrência aos das colónias inglesas.
A reciprocidade era imperfeita e, até, totalmente aparente neste quadro livrecambista e muito prejudicial, especialmente, para a antiga metrópole. A este respeito as
reivindicações dos sectores brasileiros pouco se fizeram sentir e …compreende-se. Para
esta orientação livre-cambista não deve ter sido estranho o “dedo”, e até a “mão” de
Canning, Ministro dos Estrangeiros britânico, com quem Domingos de Sousa Coutinho
mantinha laços muito estreitos, de tal modo que submetia à sua aprovação uma grande
parte dos ofícios remetidos para o Rio, não sendo, pois, de rejeitar que os artigos sobre
as relações comerciais entre a Grã-Bretanha e o Brasil tivessem a sua orientação. A sua
influência, ou melhor, prepotência, era tal que, como veremos já adiante, se recusou a
ratificar o tratado enquanto a cláusula respeitante à Inquisição não fosse retirada,
cláusula que excluía os súbditos de S. M. B. da alçada do Santo Ofício.
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
30
Também a cláusula que transformava o porto de Santa Catarina em porto
franco, local privilegiado para o comércio, legal ou por contrabando, com as colónias
espanholas e que vinha facilitar os interesses britânicos na bacia do Prata não foi
excluída, passando a constituir o art. 25ºdo Tratado.
O artº 28º viria a tornar-se um dos mais importantes nas futuras relações
diplomáticas portuguesas, porquanto tocava um ponto muito sensível para os sectores
dominantes do Brasil: o tráfico negreiro. No sentido de cooperar com Sua Majestade
britânica, o rei Jorge III, D. João comprometia-se a adoptar os mais eficazes meios de
conseguir uma gradual abolição do comércio de escravos em toda a extensão dos seus
domínios.
Já depois da ratificação do tratado, o nosso representante, o Conde de Linhares,
em nota dirigida a Strangford pedia que «se declarasse que não se impediria este
comércio em todos aqueles portos onde os vassalos de Sua Alteza Real actualmente o
fazem, pois que o mesmo augusto senhor não pode deixar de assim o permitir, não só
para satisfazer às urgentes instâncias dos seus vassalos, que julgam que sem este meio
não poderiam continuar as suas culturas no estado actual das cousas; mas porque os
negociantes desta parte dos Estados de Sua Alteza Real se julgam assim espoliados de
um comércio a que estão acostumados e que reputam o mais essencial para a
prosperidade do país» … pois a substituição dos escravos por «uma povoação de
brancos livres e bons cultivadores» só poderia fazer-se gradualmente, como «fruto das
sábias providências» que já se haviam tomado para «chamar colonos europeus» – pelo
que D. João não poderia «deixar de sustentar um ramo de comércio que detesta, mas
que é necessário e indispensável […]».
Outras cláusulas há
no tratado que revelam as
imposições e prepotência
britânica, mandando, descaradamente, a reciprocidade às “malvas”. Vejamos: o
projecto do nosso embaixador em Londres previa a possibilidade de se manterem os
juízes conservadores – a quem cabia julgar, em território português, as questões em que
se envolvessem súbditos britânicos – mas com a condição de, em reciprocidade, se
criar no Tribunal do Almirantado uma comissão especial, com funções semelhantes em
relação aos portugueses residentes na Grã-Bretanha. Obviamente, esta reciprocidade
nunca se veio a verificar.
Muito importante para as relações entre os dois países era uma cláusula do art. 8º
do Tratado de Aliança, que anulava a limitação a seis navios de guerra britânicos
admissíveis simultaneamente nos portos portugueses. A nova cláusula imposta pela
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
31
Inglaterra autorizava os navios ingleses a ancorar nos portos brasileiros, sem limitação
do seu número, proibindo que idêntico privilégio fosse concedido a outra nação. Esta
imposição equivalia a proibir ao Estado luso-brasileiro qualquer estatuto de neutralidade
em caso de conflito internacional, transformando o país numa base de apoio à frota de
guerra inglesa e colocava Portugal na dependência política da Inglaterra.
Este mesmo tratado previa ainda que, em caso de guerra, os navios de ambos os
países contratantes não poderiam transportar os produtos ou mercadorias de qualquer
país inimigo de algum deles, porém, tratava-se de mais uma disposição imposta pela
Inglaterra.
Tudo corria, inequivocamente, a favor da Inglaterra e nem o prazo de validade
do tratado escapou. Em Londres, D. Domingos de Sousa Coutinho, tinha em projecto
um acordo provisório a vigorar por um número restrito de anos, ou até à paz geral,
porém, acabou por estipular-se, isto é, os ingleses estipularam, que o tratado seria
«ilimitado no ponto de vista da sua duração», podendo ser revisto de quinze em quinze
anos por acordo mútuo, mantendo a sua vigência mesmo que a Família Real
regressasse a Lisboa. Diga-se, a este propósito que, em consequência da evolução dos
acontecimentos no Congresso de Viena, (1815), foi declarado nulo o Tratado de 1810,
contudo, os ingleses conseguiram iludir a sua prática aplicação, de modo que a
anulação formal de tal diploma só veio a ser possível em 30 de Maio de 1836.
Quanto à cláusula referente à Inquisição foi modificada devido à pressão de
Strangford. Inicialmente, D. Domingos apenas admitia que os comissários do Santo
Oficio procedessem a sequestros de bens na América, porém, o art. 19º do tratado de
1809 obrigava o nosso Governo a «jamais criar ou estabelecer este Tribunal no
Brasil». Como não era costume, causou alguma surpresa o facto de esta situação
provocar, do lado português, forte resistência à ratificação do tratado. Como Strangford
participará, mais tarde, em carta a D. Domingos, o Núncio – em conluio com D. João
de Almeida, que desejaria o afastamento de D. Rodrigo – teria feito crer ao «bom do
Príncipe Regente que ele iria direito ao inferno se se deixasse corromper por um
plenipotenciário herético». O certo é que à última hora, a pressão teve, neste caso,
força suficiente para conduzir a uma renegociação, conseguindo de Strangford a
introdução no tratado de um artigo adicional secreto em que Inquisição conferia
imunidade aos súbditos britânicos residentes no país.
O Príncipe Regente acabou por ratificar o tratado, porém, Canning, ao tomar
conhecimento do «artigo adicional e secreto» anulando a cláusula sobre o Santo
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
32
Ofício, decidiu-se a não conceder a ratificação ao tratado concluído no Rio, preparando
novo projecto que foi logo enviado para o Brasil e que previa a assinatura não de um
mas de dois tratados, um de aliança e amizade e outro de comércio e navegação. A
ratificação só veio a acontecer em Fevereiro de 1810, quando o nosso Governo assumiu
o compromisso de, através do art. 9º do tratado de aliança, jamais vir a instalar no
Brasil o Tribunal da Inquisição.
Oliveira Lima, uma fonte obrigatória no estudo deste período, refere que o
Tratado de 1810 foi franca e inequivocamente favorável à Grã-Bretanha, se bem que
diga o preâmbulo ter ele por fito «adoptar um sistema liberal de comércio, fundado
sobre as bases da reciprocidade, e mútua conveniência, que pela descontinuação de
certas proibições, e direitos proibitivos, pudesse procurar as mais sólidas vantagens de
ambas as partes, às produções e indústria nacionais, e dar ao mesmo tempo a devida
protecção tanto à renda pública, como aos interesses do comércio justo e legal».
Como eles dizem, os ingleses, “no comment”…
Finalizando este capítulo, e à margem do Tratado, mas, ainda em pleno período
negocial, a 21 de Abril de 1809, foi assinada uma Convenção sobre um empréstimo de
600.000 libras esterlinas. Este apoio da Grã-Bretanha exigia garantias vexatórias, não
sendo muito perceptível no documento qual a taxa da operação. Sabe-se que, no art. II
da Convenção constava o seguinte: «Sua Alteza Real, o Príncipe Regente de Portugal
obriga-se a pagar o juro deste empréstimo pelo preço que for acordado…».
As garantias eram constituídas «pela porção dos rendimentos da Ilha da
Madeira necessários à liquidação de amortização e juros e, como segurança adicional,
o penhor mercantil do pau-brasil vendido em Inglaterra, para onde o Brasil se
obrigava a mandar vinte mil quintais desse produto, até à extinção do empréstimo…».
Os prazos de pagamento de amortizações eram semestrais.
Em artigo separado deste contrato de financiamento, ficava acertado que os
adiantamentos pecuniários efectuados por Jorge III ao Príncipe Regente desde a sua
partida para o Brasil, seriam reembolsados ao monarca britânico fora dos referidos
empréstimos.
Era assim, explorando-nos até ao “tutano”, que o nosso antigo e “fiel” aliado
auxiliava um país, obrigatoriamente atento, venerador e obrigado.
Críticas ao Tratado.
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
33
Ao organizar o plano respeitante à presença da Corte portuguesa no Brasil
(1808-1821), não estava no meu espírito que o capítulo referente às negociações que
levaram ao Tratado de 1810 passasse para além do essencial, ou simples enumeração,
das suas disposições. Embora sem grande pormenorização, passou. E passou, porque
considerei que algum desenvolvimento do processo negocial e respectivo clausulado,
na sua descrição, seriam suficientes para pôr a nu os malefícios do Tratado.
Porém, atendendo a que o Tratado foi, talvez, o acto mais importante do
domínio colonial, por via das enormes consequências que gerou, julgo, justificar-se
uma abordagem às críticas de um convénio que foi aquilo que os ingleses quiseram,
claramente apoiados por D. Rodrigo de Sousa Coutinho e seu irmão, D. Domingos,
“pai” do projecto e, sem dúvida, bem orientados (ou desorientados!) por Canning e
Strangford.
Que o Tratado foi ruinoso para Portugal, foi, o que, aliás, ficou bem patente nas
cláusulas referidas no capítulo anterior,
Note-se que, de início, os efeitos do convénio até foram benéficos para o Brasil,
porquanto a grande quantidade de produtos britânicos que enxamearam o mercado
brasileiro, a preços sem concorrência, fizera baixar o custo de vida; no entanto, tal
situação prejudicava o comércio português, provocando grande desfasamento entre a
política seguida pela Coroa relativamente ao desenvolvimento da colónia e as
exigências da metrópole.
Porém, este período de baixa de preço foi “sol” de pouca dura, uma vez que, em
breve, surgia uma inversão provocada pelo facto de o Brasil, devido ao seu atraso
industrial e às limitações impostas aos seus produtos agrícolas por parte da GrãBretanha, não conseguir exportar produção suficiente para equilibrar o peso da
importação originando, assim, uma balança comercial deficitária.
Sublinhe-se que, as manufacturas eram proibidas no Brasil exceptuando os
«artigos de grosseria próprios para escravos», pelo que as medidas económicas
inscritas nos tratados com a Inglaterra impediram o desenvolvimento de qualquer surto
manufactureiro quando a proibição foi abolida, pois não havia hipótese de concorrência
entre uma indústria nascente e a principal potência industrial da época.
Poucos dias depois da ratificação dos tratados com a Grã-Bretanha, o Príncipe
Regente sentiu-se na obrigação de explicar, pela Carta Régia de 7 de Março, as razões
que o levaram a firmar o acordo, dirigindo-se ao Clero, Nobreza e Povo» de Portugal:
[…] Para criar um Império nascente, fui servido adoptar os princípios mais
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
34
demonstrados de sã economia política, quais os da liberdade, e fraqueza do comércio,
o da diminuição dos direitos das alfândegas, unidos aos princípios mais liberais, de
maneira que promovendo-se o comércio, pudessem os cultivadores do Brasil achar o
melhor consumo para os seus produtos […], que é o mais essencial modo de o fazer
prosperar, e de muito superior ao sistema restrito, e mercantil […]. Os mesmos
princípios de um sistema grande, e liberal do comércio são muito aplicáveis ao Reino
[…]. Estes mesmos princípios ficam corroborados com o sistema liberal de comércio
que, de acordo com o meu antigo, fiel, e grande aliado, Sua Majestade Britânica,
adoptei os Tratados de Aliança e Comércio, que acabo de ajustar com o mesmo
Soberano».
Considerado sob o ponto de vista da colónia, o Tratado apresentava-se muito
mais desfavorável para Portugal, pois o Brasil lucraria sempre com qualquer acordo
mercantil que lhe permitisse estabelecer relações comerciais directamente com outros
países e libertar-se do monopólio metropolitano.
Mesmo assim, entre aqueles que, no Brasil foram convidados a pronunciar-se
sobre o Tratado, dando o seu parecer, (em Portugal a ninguém foi dada esta
oportunidade) alguns não deixaram de manifestar certas reservas. A generalidade dos
pareceres apontava para o facto de se ter ido longe de mais nas cedências às pretensões
britânicas; as cláusulas acertadas (desacertadas para nós) concediam à Inglaterra
vantagens de tal ordem que iam para além dos «justos limites», como até reconheciam
os que tinham a concertação por conveniente ou, mesmo, aqueles que eram os mais
“ferrenhos” adeptos do livre cambismo
O parecer do desembargador Luis José de Melo acentuava o facto de que a
ocasião era pouco propícia para se efectivar um compromisso de ordem comercial a
longo prazo e acrescentava: «Portugal estava numa situação de dependência», era a
Grã-Bretanha quem defendia o litoral português, afiançava e assegurava «a nossa
existência política», competindo-lhe ainda «no ajuste da Paz geral» negociar os nossos
interesses. O desembargador parece querer dar a entender que o Tratado nos seria
sempre mais desfavorável, mas… é precisamente a situação por ele descrita, que não
permite outra saída, senão, independentemente das condições, aceitar o Tratado.
Apanhando-nos na “mó de baixo”, a Inglaterra iria explorar, e bem, essa situação.
Pressão da imprensa portuguesa em Londres.
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
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Desde a sua ratificação que o Tratado de 1810 foi alvo de violentas críticas no
«Correio Braziliense». O seu editor, Hipólito da Costa, reprovava a falta de
reciprocidade verdadeira do estipulado, as superiores condições permitidas aos ingleses
no território brasileiro, em contraste com os próprios naturais do país, bem como a sua
influência «em retardar ou impedir a prosperidade do nascente império do Brasil».
Acrescente-se que, já nível oficial, o Tratado dera origem, quase de imediato, a
questões de «interpretação e de aplicação», reflectindo-se na correspondência
diplomática.
Influência do «Correio Braziliense» ou não, entre os primeiros a queixar-se
estão os negociantes portugueses em Londres. Associados num “clube”, e vendo
goradas as suas esperanças de beneficiarem com o acordo, protestaram, desde logo,
junto do nosso embaixador na cidade do Tamisa e, através do diplomata, enviaram para
a Corte do Rio de Janeiro várias notas e memórias, onde se insurgiam contra o não
cumprimento do Tratado, por parte das autoridades britânicas.
Posteriormente, em carta de 25 de Agosto de 1913, estas diligências e
reclamações, foram dirigidas pelo”clube” ao jornal «Investigador Português em
Inglaterra», sendo depois publicada noutros periódicos de origem portuguesa que,
então, saíam a lume na capital britânica.
A referida carta fazia saber que os comerciantes portugueses continuavam a
suportar as mesmas restrições e os mesmos encargos de todos os outros estrangeiros,
apesar do acordo os ter colocado em pé de igualdade com os britânicos. E mais, «não
lhes concediam a possibilidade de abrir conta no Banco de Inglaterra, para
descontarem letras no giro comercial; não gozavam dos prazos facultados aos ingleses
para liquidação dos direitos de alfândega; e pesavam ainda sobre os navios
portugueses tributos e despesas que os nacionais da Grã-Bretanha não pagavam».
Tudo isto contrariava a letra e o espírito do Tratado, contrastando com as condições
que se ofereciam aos súbditos britânicos em Portugal, que cumpria, ou era obrigado a
cumprir, estritamente, o acordado.
Mais complicada se apresentava a situação para a burguesia mercantil de
Lisboa, lesada pelos princípios básicos do Tratado. Embora não dispondo de um campo
de manobra (no domínio da liberdade) tão alargado como o dos negociantes de
Londres, também os negociantes lisboetas se movimentaram, associando-se, no sentido
de levar o Governo a tomar «as medidas necessárias nas actuais circunstâncias a bem
dos dois pontos – facilitar e suscitar o melhoramento e aumento da navegação
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
36
nacional e poupar por isso mesmo toda a necessidade de ingerência da estrangeira; e
promover todo o comércio, remediando todos os danos que ao do Continente ameaça a
mudança de todo o sistema político da Europa».
Os documentos enviados pelos negociantes portugueses em Londres e da praça
de Lisboa ao Governo, através dos canais diplomáticos, não constituíram as únicas
represálias discordantes do Tratado de 1810. Entre 1813 e 1814, toda a imprensa
nacional livre, isto é, a que se publicava em Inglaterra, é rica em correspondência de
leitores e artigos de opinião dos próprios redactores dos jornais, que põem a descoberto
os efeitos nefastos do acordo e, fazem-no em ataques mais incisivos e directos do que
nos requerimentos dirigidos às instâncias superiores que, necessariamente, teriam de
ser mais moderados.
Todos estes movimentos, associados a outros vindos a público, exerciam uma
clara pressão sobre a Corte portuguesa que não deixava de ter o seu peso. Note-se,
porém, que neste caso do «Investigador Português», era uma pressão consentida visto
que, então, o jornal era subsidiado pela embaixada portuguesa em Londres e, que, por
esta razão, poderia usar o “lápis azul” da época, isto é, silenciando os comentários tidos
por inconvenientes.
O certo é que o Governo do Rio de Janeiro passou a assumir como suas as
críticas à Grã-Bretanha pelo incumprimento do acordo.
O Conde das Galveias, D. João de Almeida, que substituíra nos Negócios
Estrangeiros, Linhares, falecido em 1812, respondendo ao embaixador português, em
Londres, D. Pedro de Sousa Holstein, Duque de Palmela, (que substituíra, seu tio D.
Domingos) à comunicação de que não havia «em Inglaterra um só artigo do Tratado
executado como devia ser em favor dos portugueses», fez-lhe chegar um despacho,
datado de 6 de Outubro de 1813, ordenando-lhe que procedesse a «todas aquelas
representações que convém para que se efectuem as estipulações do Tratado que se
acham por observar». Precisamente três meses depois, a 7 de Janeiro de 1814, outro
despacho, agora num tom mais inflamado, lamentava «as desagradáveis negociações
que com tantas e tão inesperadas variações se prosseguem e têm prosseguido em
tantas localidades diferentes para ajustar as intermináveis altercações que se tem
suscitado sobre a inteligência e disposições do complicado tratado de comércio que
tantos trabalhos e desassossego nos tem causado, e quiçá possa ocasionar outros
ainda maiores e de gravíssimas consequências».
Forte, forte, foi a acção desenvolvida pelo ex-ministro Araújo de Azevedo,
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
37
agora na posição de Conselheiro de Estado, que se opôs formalmente à celebração do
Tratado, constituindo, efectivamente, o pólo de resistência às manobras do grupo
liderado por Sousa Coutinho / Strangford, como comprovam os documentos publicados
por Ângelo Pereira.
Araújo de Azevedo, Conde da Barca, lutou quanto lhe foi possível contra a
assinatura do Tratado, apercebendo-se das perniciosas consequências no comércio e
indústria nacionais. Foi uma luta intensa a que se travou entre os que favoreciam a
conclusão do famoso documento e
aqueles que a contestavam.
Strangford, que dominava D.
Rodrigo, conforme se pode deduzir
do próprio relatório que Linhares
enviou ao Príncipe, chegou ao ponto
de
caluniar
os
adversários,
insinuando, por mais de uma vez,
que eram «estranhas» as relações da
Princesa com o Almirante Smith,
«este amigo e cúmplice de Araújo».
Para Londres, queixava-se a D.
Domingos, do comportamento de
alguns ingleses, de Sidney Smith,
do 2º Marquês de Pombal, do
Núncio, de Araújo de Azevedo e de Gambier, em cuja casa se reuniam os elementos
opositores («C´est là où s´est formée cette nouvelle opposition») aos seus interesses.
Para Strangford era Araújo que movia esta oposição. Pedia, ainda, ao embaixador que,
«em nome do Céu», fizesse tudo quanto lhe fosse possível «pour ouvrir les yeux du
Ministère Anglais sur la conduite que tiennent ici quelques uns le leurs Agents». Neste
caso, visava particularmente Sir Sidney Smith, que lhe fazia “sombra”, não
descansando, de facto, enquanto não conseguiu que o Governo londrino o recambiasse
para Inglaterra.
À medida que a Inglaterra impunha as cláusulas do acordo, Portugal estava cada
vez mais nas mãos do Governo de Londres, nunca ficando tão marcada uma relação de
dependência como aquela que resultou do Tratado, negociado no Rio de Janeiro, e do
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
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qual escreveu o Duque de Palmela ter sido «na forma e na substância o mais lesivo e o
mais desigual que jamais se contraiu entre duas nações independentes».
Não era fácil a conclusão de um tratado equitativo, porquanto, para além de
interesses que eram inconciliáveis, existia uma forte ansiedade pelo futuro político da
metrópole, muito generalizada na Corte do Rio e que, obviamente, predispunha às
maiores concessões à potência protectora. Deste modo, o Brasil tinha caído numa
situação que o Tratado de 1810 confirmava: uma colónia britânica.
Carlos Jaca
A Corte Portuguesa no Brasil
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