Marcelo Veras- A Loucura Entre Nós

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PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UFRJ
Marcelo Frederico Augusto dos Santos Veras
A LOUCURA ENTRE NÓS:
A TEORIA PSICANALÍTICA DAS PSICOSES E A SAÚDE MENTAL
Rio de Janeiro
2009
ii
Marcelo Frederico Augusto dos Santos Veras
A LOUCURA ENTRE NÓS:
A TEORIA LACANIANA DAS PSICOSES E A SAÚDE MENTAL
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários para a obtenção do título de
Doutor em Psicologia.
Orientadora: Vera Lucia Silva Lopes Besset
Rio de Janeiro
2009
iii
FICHA CATALOGRÁFICA
VERAS, Marcelo Frederico Augusto dos Santos
A LOUCURA ENTRE NÓS: Teoria Lacaniana das Psicoses e a
Saúde Mental. Rio de Janeiro, 2009. 288f
Tese (Doutorado em Psicologia) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Rio
de Janeiro, 2009.
Orientador: Vera Lucia Silva Lopes Besset
1. Teoria Lacaniana. 2. Psicoses. 3. Laço Social – Teses
I.
BESSET, Vera Lucia Silva Lopes
II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
Psicologia
III. Título
iv
Marcelo Frederico Augusto dos Santos Veras
A LOUCURA ENTRE NÓS:
A TEORIA LACANIANA DAS PSICOSES E A SAÚDE MENTAL
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Psicologia, Instituto de Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários para a obtenção do título de
Doutor em Psicologia.
Aprovada em
________________________________________
Presidente, Prof. Vera Lucia SilvaLopes Besset, UFRJ
________________________________________
Prof. Aurea Maria Lovenkron, UFRJ
________________________________________
Prof. Ruth Helena Pinto Cohen, UFRJ
________________________________________
Prof. Marcus André Vieira, PUC-RJ
________________________________________
Prof. Ilka Franco Ferrari, PUC-MG
v
Aos servidores do Hospital Juliano Moreira
Aos sonhadores do CRIAMUNDO
vi
AGRADECIMENTOS
À Vera Besset, cujo feliz encontro me fez dar um passo e atravessar o rio, pela amizade e
sorriso largo sem nunca deixar adormecer a orientação segura e precisa, fundamental para
a escrita da tese;
Ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ, que criou as condições para que
essa tese pudesse se inscrever na prestigiosa série de trabalhos por ele gerados;
À Universidade Federal da Bahia pelo apoio e liberação na fase final dessa tese;
À Aurea Lovenkron, por me estimular na qualificação a correr o risco e ser um
antropólogo em marte;
A Marcus André Vieira pelos conselhos e orientações na qualificação e pela amizade de
sempre;
À Ilka Ferrari e Ruth Cohen, que antes mesmo da aceitarem estar na banca já eram
interlocutoras dessa tese;
A Stéphane Malysse, pela autorização para utilização das fotos de sua pesquisa;
A André Furtado, fiel companheiro durante toda a gestão do Juliano Moreira e que
continuou o delírio de administrar o impossível;
A Estênio El-Bayni por ter levado adiante nosso projeto do Memorial Juliano Moreira,
fundamental para esta e outras pesquisas futuras;
Às colegas Graciela, Maria de Fátima, Juliara, Bruna, Marina, Aline, Juliana e Gabriela
por tantas trocas importantes nesses anos de convívio em sala de aula;
A Marie-Hélène Brousse e Silvia Tendlarz pelas trocas e sugestões na discussão dos
casos clínicos;
A Analícea Calmon, Sonia Vicente, Tania Abreu, Marcela Antelo e Iordan Gurgel, pela
disponibilidade e encorajamento em diversos momentos durante a tese;
A Agelice e Sammy, pelo apoio logístico no Rio e pela acolhida sempre de braços abertos
no chateau da Urca;
vii
A meus pais Lúcia e Mário, à minha sogra Lucinha por me permitir ser importante para
eles;
A Juliana, cujo amadurecimento intelectual a transformou em uma colabora formal dessa
tese;
A Pilar, pela companhia e carinho em momentos difíceis, à Cecília por cuidar bem de
Mia e ter aprendido a andar de bicicleta enquanto o pai estava ausente;
À Patrícia, sem você não teria valido a pena.
viii
La inexistência del Outro inaugura
verdaderamente
lo que llamaremos la época lacaniana del
psicoanálisis – que es la nuestra – la época de
los desengañados, la época de la errancia.
Jacques-Alain Miller
ix
RESUMO
VERAS, Marcelo Frederico Augusto dos Sanos. A LOUCURA ENTRE NÓS: A teoria
lacaniana das psicoses e a saúde mental. Rio de Janeiro, 2009. Tese de Doutorado
apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009
A pesquisa foi motivada pela experiência de gestão no Hospital Psiquiátrico Juliano
Moreira em Salvador, Bahia. Constatou-se que as condições de hospitalização eram
degradantes e não se reconhecia na instituição nenhuma manobra para recuperar a
subjetividade. A partir dessa constatação, surgiu a hipótese de que a psicanálise, como
disciplina que se ocupa do particular, e não do universal da saúde mental, teria alguma
pertinência na busca de estratégias visando resgatar uma clínica que priorizasse a
subjetividade na instituição. A pesquisa se desenvolveu em três eixos. O primeiro eixo
constituiu-se no mapeamento do campo da experiência, a saber, como havia sido
elaborada, historicamente, a saúde mental no Brasil. Adicionalmente, neste eixo
investigou-se o impacto da contemporaneidade sobre esse campo. Constatou-se que é
crescente, na saúde mental, a influência de discursos que buscam tornar científico o
estudo da saúde mental, tem como custo do apagamento da condição subjetiva. O
segundo eixo da pesquisa foi a teoria lacaniana das psicoses. O estudo buscou evidenciar
que há uma única teoria das psicoses em Lacan, apesar dela poder ser escandida em, pelo
menos, três grandes marcos: os Seminários das psicoses, da angústia e do sinthoma. Uma
pesquisa inédita foi realizada a partir do esquema L, de Lacan, com o objetivo de
demonstrar as relações de alteridade presentes na teoria das psicoses, bem como para
constatar os efeitos dos comentários de Miller, no final dos anos 90, de que o gozo no
esquema L não se situa exclusivamente no eixo imaginário, mas igualmente no
simbólico. Essa afirmação de Miller permitiu uma nova chave de interpretação da relação
do sujeito psicótico com o laço social. Por fim, o terceiro eixo de nosso trabalho buscou
analisar o impacto da teoria de Lacan sobre o campo da saúde mental. Neste eixo,
inicialmente foi investigada a presença da psicanálise no próprio hospital psiquiátrico,
seus encontros e desencontros. Finalmente, através do estudo de três casos clínicos de
psicose foi possível sugerir que o psicótico pode fazer parte do laço social. O trabalho
confirmou a hipótese de que há um espaço específico para a psicanálise na saúde mental
que visa resgatar a subjetividade e a invenção particular do sinthoma, tal como Lacan o
elabora no Seminário XXIII. Este estudo reforça a proposição de Lacan que o sinthoma é
um instrumento de conexão entre o gozo privado do paciente e a linguagem pública do
laço social.
Palavras-chave: psicanálise, saúde mental, psicose, contemporaneidade, sinthoma
x
ABSTRACT
VERAS, Marcelo Frederico Augusto dos Santos. THE MADNESS BETWEN KNOTS:
The Lacan’s theory of psychosis and mental health. Rio de Janeiro, 2009. Tese de
Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009
The research was motivated by the experience of management in the Juliano Moreira
Psychiatric Hospital in Salvador, Bahia. It was found that the conditions of
hospitalization were degrading and in the institution any operation has been not
recognized in order to recover the subjectivity. From that observations, surges the
assumption that psychoanalysis is a discipline that deals with the particular and not with
the universal mental health. In addition, psychoanalysis would have some relevance in
the search for strategies to redesign a clinic that prioritize the subjectivity in the
institution. The research was developed in three axes. The first axe comprehends the
survey of the experience field, as mental health had been historically elaborated in Brazil.
Additionaly in this axe, it was investigated the impact of the contemporaniety in this
field. It was found that in mental health it is growing the influence of the discourse which
seeks to make the study of mental health scientific The establishment of this kind of
discourse has the cost of erasing the subjectivity condition. The second strand of this
research was about the Lacanian theory of psychosis. The study aim to show that
although there is a single theory of psychosis in Lacan, it can be scanned in at least three
major steps: the Seminars of psychosis, the anxiety and the sinthome. A new
investigation was performed using the scheme L of Lacan, with the aim of demonstrating
several relationships of the alterity presents in the theory of psychosis. In addition, the
study aim to show the effects of Miller`s comments at the late 90`, which says that the
enjoyment in the L schema is not located exclusively in the imaginary axis, but also in
the symbolic. This Miller`s assertion has a new key for the interpretation of the subject's
relationship with the psychotic social relationships. Finally, the third axis of our work
aimed to analyze the impact of Lacan's theory about the mental health field. In this axe, it
was initially investigated the presence of psychoanalysis in the psychiatric hospital, his
meetings and misunderstandings. At the end, using the study of three clinical cases of
psychosis, it was possible to suggest that the psychotic can be part of the social
relationships. The study confirmed the hypothesis that there is a specific space for
psychoanalysis in mental health that aims to recover the subjectivity of the particular
invention of the sinthome, which Lacan has elaborated in the Seminar XXIII. This work
reinforces Lacan`s proposition that the sinthome is a connection between the enjoyment
of private patients and public language of the social relationships.
Keywords: psychoanalysis, mental health, psychosis, contemporaniety, sinthome
xi
LISTA DE FIGURAS
01 – Pintura 01 de Escher..............................................................................................127
02 – Nó Borromeu e NP................................................................................................167
03 – Foto 1 do Solar da Boa Vista, casa do Poeta Castro Alves (BA)..........................183
04 – Foto 2 da nova sede do Hospital Juliano Moreira em 1981 (BA).........................186
05 – Foto 3 de Leonidia Fraga.......................................................................................191
06 – Foto 4 de Malysse..................................................................................................196
07 – Foto 5 de Malysse..................................................................................................197
08 – Foto 6 de Malysse..................................................................................................197
09 – Foto 7 de Malysse..................................................................................................198
10 – Foto 8 de Malysse..................................................................................................198
11 – Foto 9 de Malysse..................................................................................................199
12 – Desenho 1 de Ana..................................................................................................247
13 – Desenho 2 de Ana..................................................................................................248
14 – Desenho 3 de Ana .................................................................................................249
xii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 1
Capítulo I – CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAMPO DA SAÚDE MENTAL............ 133
I. 1 – Saúde mental no Brasil – a origem ...................................................................... 18
I. 2 – O campo e as barricadas ...................................................................................... 22
I. 2.1 – Foucault e a desrazão .................................................................................. 222
I. 2.2 - Os equívocos do Anti-Édipo........................................................................ 311
I. 2.3 – Basaglia, a derrota do hospital psiquiátrico ................................................ 377
Capítulo II – O NORMAL É O PATOLÓGICO ............................................................ 422
II. 1 – A Danação dos anormais .................................................................................. 466
II. 1.1 – O Outro e seus restos ................................................................................... 48
II. 1. 2 – Dentro e fora do laço social ...................................................................... 522
II. 1. 3 – O sujeito perdido nas normas.................................................................... 611
II. 2 – Psicanálise e saúde mental, encontros e desencontros ....................................... 68
II. 2. 1 - O objeto a e a burocracia............................................................................. 75
II. 2. 2 – O campo fora da lei..................................................................................... 79
Capítulo III – DIÁLOGOS E MONÓLOGOS NAS PSICOSES ................................... 877
III. 1 – O problema da alteridade nas psicoses.............................................................. 90
III. 2 – A solidão do gozo............................................................................................ 955
III. 3 – Algumas referências filosóficas para compreensão de uma clínica.............. 1100
III. 4 – Moldando o objeto a...................................................................................... 1200
Capítulo IV – PSICOSES LACANIANAS .................................................................... 125
IV. 1 – O esquema L ................................................................................................... 131
IV. 1.1 – A questão do tempo.................................................................................. 138
IV. 1.2 – O esquema na clínica................................................................................ 143
IV. 2 – A clínica da extração do objeto....................................................................... 154
IV. 3 – Clínica do sinthoma, mais além da saúde mental ........................................... 164
IV. 3. 1 – A virada do sinthoma .............................................................................. 166
xiii
IV. 3. 2 – Psicoses normais...................................................................................... 171
Capítulo V – A LOUCURA ENTRE MUROS............................................................. 1766
V. 1 – As desventuras da casa do poeta ...................................................................... 180
V. 2 – A casa dos objetos a ....................................................................................... 1911
V. 3 – Uma clínica da escuta........................................................................................201
Capítulo VI – A LOUCURA ENTRE NÓS ................................................................. 2100
VI .1 – Apresentação de pacientes: fazer surgir o sujeito........................................... 213
VI. 2 – A amor impossível em um caso de esquizofrenia .......................................... 221
VI. 3 – O O homem das academias.......................................................................... 2266
VI. 4 – Um corpo em anamorfose............................................................................... 236
CONCLUSÃO ................................................................................................................ 250
Referências bibliográficas............................................................................................... 261
1
INTRODUÇÃO
2
Dolores
Às vezes
A dor
Não tem alívio
É só delírio
Lilian Furtado
Para o psicanalista é um desafio afrontar o vasto campo da saúde mental, campo
em que a psicanálise ainda pode ser vista por muitos como intrusa e inoportuna. É
verdade que, em sua prática clínica, o psicanalista encontra a loucura. Há muito que o
convite lacaniano para não recuar diante das psicoses é de conhecimento público.
Contudo, ao falarmos da saúde mental percebemos que falamos de um universo do qual a
psicanálise não faz parte, apesar de termos cada vez mais psicanalistas trabalhando em
hospitais psiquiátricos, CAPS’s, ambulatórios, escolas, etc. Enfim, eles estão cada vez
mais presentes, embora sua função não seja chancelada por nenhuma instituição,
escritório ou departamento. Não existe, na burocracia das secretarias de saúde, nenhum
carimbo, código ou protocolo sobre a psicanálise. Para a burocracia, a psicanálise não
existe. Nos organogramas oficiais não há psicanalistas, apenas psicólogos, assistentes
sociais, psiquiatras, etc.
Assim, pelo fato de não poder ser contado como um elemento do conjunto de
profissionais, a presença do psicanalista na saúde mental sempre representará uma
exceção. Esse foi o ponto de partida para nossa pesquisa, há uma relação de alteridade
entre a psicanálise e a saúde mental, entre o psicanalista e o profissional da equipe
multidisciplinar. Ainda assim, a presença da psicanálise é cada vez maior. Não é raro
3
encontrarmos um serviço de saúde mental, por exemplo, um CAPS, completamente
tomado pela discussão psicanalítica, onde todos seus membros possuam forte
transferência com a psicanálise. Contudo, ela é invisível para os gestores que criaram e
acompanham os dados estatísticos desse mesmo serviço.
Essa constatação nos fará interrogar o tratamento a ser dado a essa condição de
exceção. Trata-se de eliminá-la ou de preservá-la? Nos capítulos I e II de nossa pesquisa
abordamos a condição paradoxal da exceção na contemporaneidade. Constatamos que o
campo da saúde mental está cada vez mais submetido a regulamentações e normatizações
que mostram uma intolerância ao que é anormal, desviante e exceção. A presença do
psicanalista é, portanto, questionada. Alguns acham que o melhor caminho é a
regulamentação da profissão do analista, assim ele poderia ser contado como mais um no
grupo da equipe multidisciplinar (Junior, 2000). Outros consideram a psicanálise um
método obsoleto, pouco científico, na contramão das descobertas científicas recentes
sobre o funcionamento do psiquismo humano, estas quantificáveis e reproduzíveis
(Meyer, 2007).
Se há tantas resistências, o que, então, justifica a presença da psicanálise no
campo da saúde mental? Ao buscar a resposta, fomos motivados a escrever o presente
trabalho. Nosso questionamento surgiu após uma experiência específica. Em janeiro de
2000, iniciamos uma gestão de sete anos do hospital psiquiátrico Juliano Moreira, na
cidade de Salvador. Nesse momento, nos defrontamos com o hiato entre nossa formação
psicanalítica e uma pluralidade de discursos há muito estabelecidos, em uma instituição
secular com o status de mais importante instituição psiquiátrica do estado da Bahia. O
status era pomposo, nada mais. Tantos séculos de saber acumulado, tantas disputas pela
4
melhoria dos direitos humanos, tanta luta para valer os princípios da reforma psiquiátrica
e a primeira recordação que nos veio à mente foi a pergunta de Primo Levi, “É isto, um
homem?” (Levi, 2002).
Foi possível imediatamente perceber a dicotomia entre tudo que a máquina
burocrática do estado gastava em dinheiro, todos os anos de trabalho de centenas de
profissionais das mais diversas áreas e a condição de resto intratável em que a maioria
dos pacientes se encontrava. A vida institucional era atribulada, horas de reuniões,
atividades terapêuticas, problemas sindicais, formulários e mais formulários da
burocracia, todas essas atividades acabavam por tomar tanto tempo que todos pareciam
estar habituados a conviver com os restos, eles se confundiam com os muros da
instituição. Para muitos, para a maior parte, o hospital psiquiátrico “era assim mesmo”.
Em nossa pesquisa, procuraremos mostrar que, precisamente por não se ocupar
do útil, do contábil ou do estatístico, a psicanálise é, por excelência a disciplina que pode
se ocupar dos restos. Sua presença “oficial” implicaria em uma função específica, em se
submeter à demanda de resultados dos profissionais da gestão. Ora, é exatamente por não
precisar responder por uma função oficial que ela pode atingir a singularidade do
paciente. Nosso objetivo é partir ao encontro do sujeito perdido na instituição, sujeito que
escapa aos cálculos coletivos, e que desaparece no momento em que é reconhecido
apenas pelo que tem em comum com os outros, e não pelo que tem de diferente.
Procuraremos demonstrar que não se trata simplesmente de reconhecer a
existência dos restos. Este é apenas o ponto de partida para que possamos estudar o modo
como Lacan elabora sua teoria sobre as psicoses. Por mais de quatro décadas, ele
promoveu um estudo minucioso da psicose tomando invariavelmente seus casos como
5
únicos. Gradativamente, ele constrói uma teoria da prática, que se ocupa do que não faz
sentido para o coletivo, mas que tem uma função singular e insubstituível na solução que
o psicótico pode dar a seu destino. É nosso objetivo retraçar os passos dessa teoria, para
comprovar sua pertinência diante dos casos mais árduos de psicose institucional.
Partindo do pressuposto de que o psicanalista ocupa uma posição de exceção,
percebemos que aproximar a psicanálise da saúde mental implica em transitar no campo
do Outro. Evidentemente essa afirmação pede um complemento. O que afinal é o Outro –
com maiúscula – para a psicanálise? A resposta foi dada em diversos momentos do
ensino de Lacan, em cada um deles é possível apreender uma nova dimensão do Outro.
Porém, em todos eles, podemos manter a idéia de que o Outro não é o interlocutor a
quem perguntamos as horas. O esquema L, presente nos Seminário das psicoses, talvez
seja um dos esquemas lacanianos que mais interrogam a questão da alteridade, por isso
ele será objeto de um estudo detalhado em nosso percurso. Propomos uma resposta
preliminar à questão sobre o que é o Outro, outras respostas serão acrescidas durante
nosso trabalho.
Inicialmente o Outro pode ser tomado como o simbólico, no sentido de que ele
representa tudo que pode ser dito e que preside as trocas no laço social, mas que
permanece desconhecido para o sujeito (Lacan, 1981)1. É o que nos autoriza a falar de
Outro da cultura, Outro social, Outro da Lei, etc. O Outro é o que nos determina assim
como determina os códigos de acesso a vida em sociedade.
Contudo, Lacan dirá que o Outro que nos serve de guia não é um bom timoneiro.
Ao afirmar que o Outro é barrado percebemos que estamos sós na reorganização das
relações sociais (Lacan, 1966k). O século XX, que nasceu sobre a égide da morte de
1
Lacan, J. Le séminaires III, Les psychoses, p.51
6
Deus – certamente a alteridade mais radical concebida pela cultura -, viu o seu crepúsculo
tomado por técnicas de reprodução e clonagem. É o homem que agora “se cria” à sua
imagem e semelhança. Assim, o homem contemporâneo passou a conviver com a idéia
de que o Outro não existe, e que ele deve viver por sua conta e risco.
O conceito de saúde mental é aberto a diversas interpretações, muitas delas
contraditórias. Nossa primeira tarefa será, conseqüentemente, delimitar o campo da saúde
mental que pretendemos abordar em nossa investigação. Amarante é um autor que se
debruça sobre a saúde mental, especialmente no Brasil, há vários anos. Ele considera que
“poucos campos de conhecimento e atuação na saúde são tão vigorosamente complexos,
plurais, intersetoriais e com tanta transversalidade de saberes” (Amarante, 2007)2. Assim,
qualquer delimitação esbarra em um universo de saberes que, de tão extenso, corre o
risco de perder seu foco.
No momento atual, ter boa saúde mental tornou-se algo muito complexo. Todos
os dias somos informados da existência de novas enfermidades mentais que cobrem todas
as atividades da vida humana. As novas doenças mentais são diagnosticadas na escola, no
trabalho, no trânsito, etc. Qualquer excesso ou retraimento do laço social será sancionado
com algum diagnóstico. Passamos da psicopatologia da vida cotidiana à patologia da vida
cotidiana. Para dar conta dessa tarefa, forjou-se um conceito que se ancora solidamente
nos ideais sociais da época. Propomos que a saúde mental, como a soma dos ideais da
época, é um dos nomes do Outro.
Inicialmente, saúde mental - com letras minúsculas - era um estado que se
buscava. Esse estado era deduzido de seu oposto, a doença mental. No momento em que
ela passa a se exprimir em maiúsculas, como Saúde Mental, ela se torna uma instituição
2
Amarante, P. – Saúde mental e Atenção Psicossocial, p.15
7
com pretensões de recolher a soma de todo sofrimento do humano (Amarante, 2007) 3. A
partir desse ponto, uma bifurcação de profundas conseqüências se dá no âmbito mesmo
do nosso campo de estudo.
Por um lado, a Saúde mental se converteu em dever do estado. Ela passou a ser
associada à promessa política de felicidade e espinha dorsal do Wellfare State, o estado
do bem-estar, que teve seu auge nas últimas décadas do século XX(Laurent, 2008b). O
imperativo do bem-estar, amplificado na cultura contemporânea, não deixa de ser
polêmico. Giannetti, comentando o interesse crescente dos economistas e políticos pelo
tema da felicidade, afirma que “Nenhum sistema econômico ou político resolverá por nós
o desafio ético e existencial de encontrar sentido e realização na vida. Isso só pode ser
feito pelas pessoas – por cada um de nós individualmente”. (Giannetti, 2008).
Desse modo, o momento atual é propício para que a psicanálise lacaniana se
aproxime da saúde mental. O multiculturalismo e a pulverização de muitos dos valores
absolutos na cultura ocidental impedem que haja uma abordagem unívoca do conceito.
Ou seja, se para a psicanálise o Outro é barrado a saúde mental, como um dos nomes do
Outro, também o é.
Ao delimitarmos a questão da saúde mental ao seu plano de políticas públicas e
ações governamentais percebemos facilmente que o conceito dança conforme pressões e
lobbies muitas vezes controversos. O exemplo mais eloqüente é a própria definição de
saúde mental da Organização Mundial de Saúde. Nesse relatório chama atenção que a
compreensão da Saúde mental no novo milênio é vista com otimismo graças aos avanços
das neurociências e da medicina do comportamento. O relatório explicita que o ideal de
Saúde mental é o “comportamento saudável”:
3
Amarante P., Saúde mental e atenção psicossocial, p.15.
8
É particularmente importante a compreensão dos determinantes do
comportamento saudável, devido ao papel que esse comportamento
desempenha no estado geral de saúde [...] O comportamento saudável de cada
indivíduo depende muito da saúde mental daquela pessoa. (Murthy, 2001)4
Abre-se, portanto, uma perspectiva, na saúde mental atual, para a volta dos ideais
de um comportamento mentalmente saudável versus um comportamento mentalmente
desviante. Essa vertente prioriza a norma e reduz significativamente uma reflexão sobre o
fato de que a própria imposição da norma pode ser causa de sofrimento psíquico5.
No Brasil, a atual saúde mental pública foi definida a partir de uma forte
contestação do modelo hospitalocêntrico e, por extensão, aos próprios métodos da
psiquiatria6. Os marcos históricos dessa reorientação do tratamento psiquiátrico são,
indiscutivelmente, a Declaração de Caracas - publicada em 14 de novembro de 1990, e
que serviu de parâmetro para que no ano seguinte a ONU votasse seus “Princípios para a
Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência
em Saúde Mental” – e no Brasil a promulgação da Lei Federal 10.216, conhecida como
Lei Paulo Delgado, que reorienta os direitos e deveres da assistência psiquiátrica (Silva,
Cardoso et al., 2006).
A nosso ver, não é possível dissociar a loucura de sua dimensão subjetiva, como
propõe, por exemplo, a psiquiatria biológica. Tampouco é possível, nos dias de hoje,
acreditar que a loucura é apenas uma questão de conflito entre o louco e o ambiente que o
circunda. Torna-se necessário, portanto, indagar como é possível fugir das armadilhas do
relativismo e da paixão pelas normas, que permeiam os discursos da saúde mental, para
circunscrever um campo de ação específico para a psicanálise. Rabanael afirma que a
4
Relatório da OMS 2001, p.34
Poderíamos, nesse ponto de nosso percurso, inverter a máxima que nomeia o sub-capítulo I.1 e enunciar:
A danação dos normais.
5
6
9
clínica psiquiátrica atual força a utilização, “de modo incisivo, de uma distinção entre o
normal e o patológico”. A clínica lacaniana, pelo contrário, propõe como característica
uma espécie de “igualdade de cada um a respeito do gozo e da morte”, loucos ou não
7
(Miller, 2005d).
Nossa hipótese é que a psicanálise tem uma teoria sobre a loucura que lhe é
própria e que se distingue das teorias que influenciam os discursos que guiam a saúde
mental no Brasil. Trata-se de uma teoria que aponta para o sujeito, buscando resgatá-lo da
condição de objeto a, ao qual ele é freqüentemente reduzido nos dispositivos
institucionais, para interrogar seu sintoma como criação que faz suplência ao que rateia
na constituição do laço social. Partimos da afirmação de Laurent de que a atualidade se
caracteriza por querer se desembaraçar do sintoma enquanto a psicanálise afirma que a
solução clínica para a loucura passa pela formalização de um sintoma (Laurent, 2000b)8.
Inicialmente teremos que demonstrar que o próprio conceito de saúde mental é
indissociável da condição subjetiva na contemporaneidade. O declínio dos valores
universais e o espectro de um relativismo sem limites promoveram um profundo
remanejamento do laço social onde se inscrevem os sentidos do tratamento da loucura.
A especificidade da psicanálise passa por considerar que a presença do sujeito na
loucura independe de qualquer saúde mental. É possível falar de reabilitação social do
louco, mas não do sujeito. Esse último será sempre excluído do campo do Outro e tem, na
psicanálise, a possibilidade de inscrição de um saber que, paradoxalmente, rompe essa
exclusão, legitimando o laço social. Para além do corpo biológico e do corpo em sua
7
8
Miller, J.-A., 2005, p.253
Laurent E. Pluralización actuel de las clínicas...p.15
10
dimensão social, o “sujeito psicótico” nos desafia ao falar para nós sua verdade, nos
dividindo e nos transformando em sujeitos da clínica, e não meros observadores.
Procuramos desenvolver nosso percurso observando três eixos: o campo, a teoria
e a clínica. Os dois primeiros capítulos buscam traçar um panorama do campo da saúde
mental. No primeiro, abordaremos suas raízes históricas: o início da psiquiatria no Brasil,
a chegada das novas idéias sobre o tratamento psiquiátrico e, sobretudo, o modo como as
idéias de Juliano Moreira se separam da psiquiatria dominante, cujo modelo influenciado
por Esquirol preconizava o isolamento terapêutico do louco. Juliano Moreira introduziu o
modelo de tratamento open door, em que se buscava tratar a loucura no seio mesmo da
comunidade. Partiremos em seguida para analisar os discursos que forjaram a reforma
psiquiátrica no Brasil. Escolhemos quatro autores que são fontes inesgotáveis de citações
na saúde mental, Foucault, Deleuze, Guattari e Basaglia.
Nossa escolha recaiu sobre esses autores pelo fato de que eles criticam em
diversos pontos de suas obras a psicanálise e não a reconhecem como passível de integrar
o corpo de saber que consolidará a reforma psiquiátrica. Propomos, como um de nossos
objetivos, avaliar até que ponto esses autores estão corretos em suas críticas e até que
ponto não houve desconhecimento de que a teoria psicanalítica poderia se aproximar da
clínica da loucura.
No segundo capítulo, após termos estudado os discursos que historicamente
configuraram o campo da saúde mental, abordaremos o modo como aspectos da
contemporaneidade afetam nossa percepção sobre a saúde mental. Caminhamos, cada vez
mais, pressionados pela ideologia da norma, onde a exceção sofre um patrulhamento
11
constante oriundo das mais diversas instâncias. Veremos, por exemplo, como o discurso
jurídico, progressivamente, passou a integrar o cotidiano dos gestores da saúde mental.
Para estudarmos o eixo da teoria dedicaremos os capítulos III e IV. Nosso maior
desafio será recortar os elementos da clínica que nos permitam fundamentar nossa
hipótese. Certamente, um estudo da teoria poderia ser estender em material suficiente
para diversas teses. A seleção que fizemos obedeceu aos seguintes critérios: - trazer
elementos da teoria que justificassem a pertinência da psicanálise no campo da saúde
mental; - trazer os elementos da clínica que fundam a especificidade do campo analítico
diante da clínica da loucura;- buscar aspectos da teoria menos explorados no vasto corpo
de livros, ensaios e artigos sobre a teoria lacaniana das psicoses, ou seja, priorizar o
ineditismo;- buscar a economia de matemas, esquemas e demonstrações topológicas.
Embora sejam fundamentais no ensino de Lacan, percebemos que estes devem ser usados
com parcimônia.
Escolhemos três momentos da clínica das psicoses como representativos do todo:
a clínica da foraclusão do Nome-do-Pai, a clínica do objeto a e a clínica do sinthoma.
Nosso objetivo é demonstrar que, apesar de tradicionalmente falarmos de primeira e
segunda clínica das psicoses em Lacan, podemos questionar se não há uma única e sólida
teoria das psicoses que se distribui em três momentos privilegiados.
Por fim, reservamos os capítulos V e VI para abordar o eixo clínico da nossa
pesquisa. Portanto, ao rebatimento da teoria lacaniana sobre o campo da saúde mental.
Dividimos essa parte igualmente em dois capítulos. O capítulo V é dedicado ao relato da
experiência de gestão do hospital Juliano Moreira. Nossa observação visa identificar o
modo como a subjetividade poder ser resgatada em uma instituição onde a clínica
12
sucumbiu ao esquecimento e às exigências burocráticas. O capítulo VI será dedicado à
especificidade da clínica lacaniana das psicoses a partir de um estudo sobre as
apresentações de pacientes no hospital psiquiátrico e, em seguida o relato de três casos
clínicos. Nossa expectativa é demonstrar que os desenvolvimentos teóricos dos últimos
anos permitiram ir mais além dos ideais da saúde mental e pensar a psicose dissociada do
binômio saúde/doença. É o que esperamos demonstrar a partir da clínica do sinthoma,
que abriu um espaço sem precedentes para pensar a loucura entre nós.
13
Capítulo I – CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAMPO DA
SAÚDE MENTAL
14
A partir de Lacan, é possível afirmar que, historicamente, em seus antecedentes, o
conceito de saúde mental busca dar conta da inconsistência do Outro, se propondo a
completá-lo Desse modo, trata-se de um conceito que se ancora solidamente nos ideais
sociais de cada época. Esta perspectiva agrava o risco de lançar o conceito em um
relativismo estéril, uma vez que pautar um conceito nos ideais é condená-lo a se tornar
uma meta impossível.
Sobre esse ponto, devemos à Costa a demonstração de que a fabricação do
conceito de abordagem biopsicossocial, tão caro a saúde mental, se inspirou nos ideais
históricos de um higienismo mental saturado pelos ideais do Outro (Costa, 2007). A
loucura, no apogeu do higienismo, era vista como aberração biológica, psicológica ou
social. Assim, a imperfeição representada pela incurabilidade da loucura foi
sistematicamente segregada, quando não combatida, por uma ideologia psiquiátrica
influenciada nada menos do que pela eugenia da psiquiatria alemã nazista9. A nosso ver,
a saúde mental, como a soma dos ideais que compõem a cosmogonia multidisciplinar da
loucura, é um dos nomes do Outro.
Para Amarante, inicialmente, saúde mental - com letras minúsculas - era um
estado que se buscava (Amarante, 2007)
10
. Esse estado era deduzido de seu oposto, a
doença mental. No momento em que passa a ser expressa com maiúsculas, como Saúde
Mental, torna-se uma instituição com pretensões de recolher a soma de todo sofrimento
9
Costa J., História da Psiquiatria no Brasil, p.30
Amarante P., Saúde Mental e atenção psicossocial, p.15.
10
15
do humano. A partir desse ponto, uma bifurcação de profundas conseqüências se dá no
âmbito mesmo do nosso campo de estudo.
Por um lado, a saúde mental converteu-se em dever do estado e passou a ser
avaliada a partir de critérios estatísticos, com normas e padrões instituídos. Por outro, a
saúde mental de um único cidadão passou a ser aferida a partir da conformidade a esses
mesmos critérios. Essa divisão cria impasses no momento em que se busca, como a
psicanálise o faz, levar o paciente ao que ele tem de mais singular, o seu sintoma.
Nos últimos anos, as ações dos governos, sobretudo na Europa, sobre a saúde
mental se aceleraram. A saúde mental passou a ser associada à promessa política de
felicidade, inaugurada por Saint Just após a Revolução francesa, e espinha dorsal do
Wellfare State, o estado do bem-estar, que teve seu auge nas últimas décadas do século
XX (Laurent, 2008b). Esse crescente imperativo do bem-estar não deixa de ser polêmico.
Sobre isso, Giannetti, comentando o interesse atual dos economistas e políticos pelo tema
da felicidade, afirma que “Nenhum sistema econômico ou político resolverá por nós o
desafio ético e existencial de encontrar sentido e realização na vida. Isso só pode ser feito
pelas pessoas – por cada um de nós individualmente”. O mesmo autor acrescenta,
contudo, que não deve haver, por parte do estado, deserção sobre essa matéria, já que
“sistemas econômicos e políticos desastrados podem, sim, prejudicar enormemente a vida
de um grande número de pessoas” (Giannetti, 2008).
Mesmo assim, o equilíbrio é difícil de ser alcançado. Os riscos inerentes a
presença excessiva do estado, sobretudo quando ele vincula os resultados almejados à
ordem social, podem ser muito graves. Laurent enfoca particularmente as repercussões,
no Reino Unido, do pensamento de Richard Layard, economista reputado e criador da
16
“Ciência da Felicidade”, sobre o governo de Tony Blair (Laurent, 2008b). O impacto foi
tamanho que o governo inglês votou um orçamento milionário em um programa para a
formação de dez mil terapeutas cognitivistas. A meta, contudo, é bastante duvidosa, pois
no horizonte ela vislumbra que o melhor para um será para todos: melhorar a saúde
mental dos trabalhadores na expectativa de uma redução do absenteísmo e impacto direto
nos resultados da economia (Layard, 2007).
A leitura do relatório sobre a saúde mental no mundo, lançado em 2001 pela
Organização Mundial de Saúde, nos deixa entrever que as ações governamentais variam
conforme pressões e lobbies, muitas vezes controversos. Nesse relatório, a compreensão
da saúde mental no novo milênio, é vista com otimismo graças aos avanços da psiquiatria
social, das neurociências e da medicina do comportamento. Na ocasião, o ideal de saúde
mental traduz-se como “comportamento saudável”.
É particularmente importante a compreensão dos determinantes do
comportamento saudável, devido ao papel que esse comportamento
desempenha no estado geral de saúde [...] O comportamento saudável de cada
indivíduo depende muito da saúde mental daquela pessoa. (Murthy, 2001)11
Abre-se, portanto, uma perspectiva, na saúde mental atual, para a volta dos ideais
de um comportamento mentalmente saudável versus um comportamento mentalmente
desviante. Essa vertente prioriza a norma e reduz significativamente uma reflexão sobre o
fato de que a própria imposição da norma pode ser causa de sofrimento psíquico.
Do relatório, é possível igualmente extrair a tendência da OMS, que assim ganha
mais espaço entre as políticas de saúde mental por todo o mundo, de incorporar as bases
biológicas da doença mental, reduzindo o espaço para a causalidade psíquica. Causa-nos,
assim, inquietação que um relatório indicando diretrizes em escala mundial, cujo título é
11
Murthy, R., Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança, p. 34
17
“Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança”, apresente logo no primeiro capítulo
o título “Para compreender a saúde mental”, seguido de dois únicos sub-capítulos
intitulados: “Avanços na neurociência e Avanços na medicina do comportamento”
(Murthy, 2001)12. Nada mais óbvio, portanto, que o maior avanço em saúde mental para a
OMS seja o prêmio Nobel de medicina atribuído em 2000 a Eric Kandel sobre o
funcionamento da mente. É igualmente previsível o fato de que as 170 páginas do
documento não tragam nenhuma menção à psicanálise.
Constatamos que a “nova concepção” proposta pela OMS se distancia das
questões políticas que marcaram a reforma psiquiátrica no Brasil para assumir um tom
mais científico. Os marcos históricos da reforma brasileira são, indiscutivelmente, a
Declaração de Caracas - publicada em 14 de novembro de 199013 – e no Brasil a
promulgação da Lei Federal 10.216, conhecida como Lei Paulo Delgado, que reorienta os
direitos e deveres da assistência psiquiátrica (Silva, Cardoso et al., 2006). Para que
possamos compreender melhor o campo da saúde mental no Brasil seguiremos os
seguintes passos:
- inicialmente passaremos em revista alguns aspectos históricos que julgamos
relevantes para entendimento da polarização do debate entre um modelo de atenção em
saúde mental considerado ‘hospitalocêntrico’ e um modelo que prioriza a atenção
descentralizada;
- Em seguida, faremos uma análise de três pilares incontornáveis para
entendimento da reforma psiquiátrica no Brasil, a saber, Foucault, a dupla Deleuze e
Guattari e finalmente Franco Basaglia. Nosso objetivo não é esgotar o estudo da obra
12
Idem, p.29
Texto que serviu de parâmetro para que no ano seguinte a ONU votasse seus “Princípios para a Proteção
de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência em Saúde Mental
13
18
desses autores, mas de esclarecer as razões que os levaram a criticar a psicanálise e
considerá-la incapaz de fazer face a loucura fora da tradição psiquiátrica.
I. 1 – Saúde mental no Brasil – a origem
É possível identificar uma descontinuidade histórica na Psiquiatria brasileira que
se produziu na virada do século XIX para o século XX. Pensamos em descontinuidade no
sentido que o filósofo Alain Badiou pensa o conceito de acontecimento, ou seja, a
irrupção de algo novo que faz com que o livre curso da história ceda lugar a algo novo e
sem precedentes (Badiou, 1988). Até então o modelo de tratamento da loucura era
eminentemente centrado na internação asilar. A mudança veio com a possibilidade de
tratamento da loucura fora dos asilos, em um sistema que ficou conhecido como open
door (Portocarrero, 2002). A partir deste momento, começa no Brasil a discussão sobre a
desospitalização de pacientes e o problema da loucura fora dos muros. As questões
práticas e teóricas dessa mudança permanecem ativas no debate sobre a saúde mental até
os dias de hoje.
O pensamento dominante no século XIX era de que a hospitalização e a privação,
pura e simples, do contato social do alienado, teriam um fim curativo. A prática do
isolamento terapêutico do alienado tinha, no psiquiatra francês Esquirol seu maior
defensor. Para Esquirol o asilo era um “instrumento terapêutico” fundamental. Tornou-se
uma autoridade reconhecida na sua construção, tendo sido o planejador do asilo nacional
de Charenton, na França, do qual se tornou diretor (Porter, 1998)14.
14
Porter, R., The greatest benefit to mankind, p.502
19
Para Portocarrero, coube ao baiano Juliano Moreira introduzir um saber
psiquiátrico responsável por mudanças irreversíveis na atenção psiquiátrica brasileira,
então fortemente ligada ao modelo de tratamento asilar proposto por Esquirol. Assim, é a
partir de Juliano Moreira que o conceito de anormal passa a integrar o corpo do saber
psiquiátrico como forma de psicopatologia (Portocarrero, 2002)15. O campo da psiquiatria
passa, então, a incluir não apenas a doença psiquiátrica, mas igualmente os epilépticos,
criminosos, alcoólatras etc. Como conseqüência, o asilo, fundamental para a psiquiatria
de Esquirol, cede espaço para os tratamentos open door, originando uma série de espaços
inéditos para o tratamento da loucura.
Juliano Moreira introduz no Brasil um modelo de psiquiatria diretamente
influenciado por Kraepelin (El-Bainy, 2007). As novas práticas demarcam uma clara
ruptura com o modelo precedente de tratar o alienado. A nova assistência expande seus
cuidados para um universo muito mais amplo que o espaço asilar. Passa-se a considerar a
escola, a família e mesmo as Forças Armadas como instancias da sociedade que
interessam à questão da alienação mental16.
A partir daí, surgem no Brasil modelos alternativos à internação asilar, colônias
agrícolas, manicômios judiciários e outras instituições, além de medidas específicas para
tratamento de desviantes, como os alcoólatras, delinqüentes, epilépticos etc.
Encontramos, nesse momento histórico, o embrião do modelo assistencial que as políticas
de saúde mental desenvolvem até hoje (Portocarrero, 2002). Esse modelo não conseguiu
eliminar o paradoxo, que foi bastante estudado por Foucault, tanto em sua História da
loucura (Foucault, 1972), quanto em Vigiar e Punir (Foucault, 2004): os novos
15
16
Portocarrero V., Arquivos da Loucura, p.13.
idem, p.108
20
dispositivos por um lado denunciam o fracasso da instituição asilar, mas, por outro,
expandem o poder da psiquiatria a praticamente todas as situações onde despontam na
sociedade a anormalidade (Castel, 1978; Machado, 1978; Amarante, 1996).
Costa traz um exemplo de como essa expansão do poder psiquiátrico marcou o
período da história da psiquiatria brasileira que vai dos anos 20 a 30. Nesses anos surgiu
a Liga Brasileira de Higiene Mental, movimento psiquiátrico fortemente associado aos
ideais de eugenia que dominaram a psiquiatria alemã nos anos do nazismo. Foi sob este
pano de fundo que a psiquiatria brasileira atravessou os muros do asilo e passou a se
interessar pela anormalidade em situações do cotidiano. Em suas palavras, “a eugenia foi
o artefato conceitual que permitiu aos psiquiatras dilatar as fronteiras da Psiquiatria e
abranger, desta maneira, o terreno social” (Costa, 2007)17.
Servimo-nos desse episódio para corroborar a lição de que a desospitalização não
basta para evitar que o poder institucional herdado da tradição asilar seja usado como
instrumento de segregação da loucura. Esta crítica está na base do pensamento que
estruturou a saúde mental brasileira nas décadas mais recentes. Trata-se de não confundir
desospitalização com desinstitucionalização, e tampouco esta com desassistência
(Amarante, 1996). A desinstitucionalização na saúde mental brasileira é pautada nas
idéias de Basaglia, que veremos adiante, e não visa apenas implicar os trabalhadores da
saúde mental, mas a sociedade em geral18 tal como expressa em um dos lemas do
Movimento da luta Antimanicomial, “Por uma sociedade sem manicômios”. Trata-se de
pensar a desinstitucionalização como um processo de desconstrução da lógica que levou
as instituições psiquiátricas à violência e pensar a construção de uma nova realidade para
17
18
Freire Costa J., op. cit. p.47
Amarante, P., O Homem e a serpente, p.21
21
a loucura. “Tais estratégias implicam o reconhecimento de que, se a realidade é
essencialmente construída, pode ser substancialmente modificada.” (Amarante, 1996)19
Tomando por base a teoria psicanalítica, concordamos inteiramente.
19
idem
22
I. 2 – O campo e as barricadas
Passaremos agora a estudar os heróis intelectuais de várias reformas psiquiátricas,
tanto no Brasil como em diversos países. São autores que se tornaram referências
incontestáveis na saúde mental e que marcaram toda uma geração de profissionais. São
eles, Foucault, Deleuze, Guattari e Basaglia. Nossa escolha, contudo, passa por uma outra
particularidade desses autores, a crítica à psicanálise e a visão de que ela representava
posições conservadoras ao querer centrar o Édipo como referência maior da clínica. No
Brasil, percebemos que estas idéias fizeram seguidores. Birman, por exemplo, reitera o
pensamento de Deleuze e Guattari ao afirmar que a psicanálise inscreveu a psicose na
estrutura edípica e que essa posição se tornou “uma palavra de ordem insofismável”
(Birman, 2003).
Procuraremos mostrar, nas próximas páginas, que Lacan reservou um lugar muito
diferente ao Édipo nas psicoses a partir dos anos 70, época mesma do lançamento do
Anti-Édipo, e que, portanto, a crítica não se justifica. Assim, vale rever algumas das
posições desses autores colocando como pergunta a que momento da psicanálise eles se
referem em suas críticas. Fora isso, acreditamos que os avanços promovidos por esses
autores foram cruciais para forjar o espírito necessário à reforma psiquiátrica no Brasil.
I. 2.1 – Foucault e a desrazão
A obra de Foucault tem uma relação com a psicanálise que é de aproximação e
separação, podendo ser estudada por vários aspectos. Aqui, temos um interesse
23
específico, saber de que forma o par foucauldiano razão/desrazão pode ser cotejado com
a teoria das psicoses em Lacan. Embora sua tese, História da loucura na idade clássica,
dirigida por Canguillem, tenha sido defendida em 1961 e publicada no mesmo ano, não
encontramos nela nenhuma menção explícita que nos conduza a afirmar que Foucault
tenha conhecido as idéias de Lacan sobre a psicose e a foraclusão, que lhe antecedem de
seis anos.
Quanto a Lacan, sobretudo no final dos anos 60, dá mostras de conhecer bem a
obra de Foucault. No ano mesmo em que o livro As palavras e as coisas foi lançado¸
Lacan o comenta várias vezes em seu Seminário (Lacan, 1966e)20. Eribon comenta que,
quando foi lançado, o livro Nascimento da Clínica de Foucault não havia tido grande
repercussão. Após Lacan comentá-lo em seu Seminário (Lacan, 1965)21, nas semanas
seguintes, dezenas de exemplares foram vendidos. Sem se tornarem muito próximos,
Foucault diversas vezes foi jantar na casa dos Lacan (Eribon, 1984)22.
Apesar de uma aproximação inicial, Foucault fez muitas críticas à psicanálise.
Jacques-Alain Miller, colega de departamento de Foucault na Universidade Paris VIII,
testemunha o fato de que nunca houve, por parte deste, uma paixão pela psicanálise
(Miller, 1989)23.
Contudo, para Pernod, Foucault se aproxima da psicanálise no
momento em que promoveu uma vacilação do discurso do mestre (Pernod, 2004), e nesse
sentido, seguiu na esteira do que propõe a psicanálise de Lacan. Com sua obra, torna-se
impossível dissociar a história da psiquiatria do exercício de alguma forma de poder. É,
inclusive, um dos pontos que tornou a obra de Lacan original no ambiente psiquiátrico de
20
Lacan, J., Seminário XIII, L’objet de la psychanalyse¸aulas dos dias 27 de abril e 4, 11 e 18 de maio de
1966
21
Lacan, J., Seminário XII, Problèmes cruciaux pour la psychanalyse, aula do dia 7 de abril de 1965
22
Eribon, D., Michel Foucault, p.181
23
Miller J-A., Michel Foucault et la psychanalyse, p.77
24
sua época. Ao propor que se exerça o papel de secretariar o alienado, Lacan convida o
psicanalista a abrir mão de qualquer poder na condução clínica das psicoses (Lacan,
1981)24. Essa posição é muito distinta do psiquiatra detentor do poder, descrita pelo
filósofo.
Outra aproximação entre os dois pensadores é o modo como eles percebem o
papel da loucura diante da cultura de sua época. Tomemos o seguinte fragmento de uma
entrevista dada por Foucault em 1961, comentada por Friche Passos:
A loucura só existe dentro de uma sociedade, não existe fora das formas de
sensibilidade que a isolam e das formas de repulsa que a excluem ou a
capturam. Assim, pode-se dizer que na Idade Média, e depois na Renascença,
a loucura está presente no horizonte social (grifo nosso) como um fato estético
ou quotidiano; depois no século XVII – a partir da internação -, a loucura
atravessa um período de silêncio, de exclusão. Ela perdeu esta função de
manifestação, de revelação que tinha na época de Shakespeare e de Cervantes
(...), ela se torna derrisória, mentirosa. Enfim, o século XX mete as mãos
sobre a loucura, a reduz a um fenômeno natural, ligada à verdade do mundo25.
É motivador pensar esse comentário de Foucault no momento em que a própria
psiquiatria se desfaz de seus laços com a razão, ou, pensando com Lacan, sua aliança com
um sentido sobre seu objeto – a doença mental – para buscar incluir a doença mental
como transtorno puramente biológico, desequilíbrio nas curvas de normalidade. O modo
como Lacan aborda as psicoses na cultura nos faz ver uma aproximação com este
comentário de Foucault. No fundo Foucault diz que cada época tem o louco que merece.
Merece aqui no sentido de que cada época terá um louco para anunciar que o Outro não
existe. Perguntamo-nos se, na expressão de Foucault “horizonte social”, encontramos
uma possibilidade de aproximá-lo de Lacan, supondo que ela remete ao social, assim
como ao racionalismo cartesiano, como duas ilusões de completude do Outro. Nesse
24
Lacan, J., Le Séminaire III, Les psychoses, p.233
Entrevista de Michel Foucault ao jornal Le monde, em 1961, presente na coletânea Dits et Ecrits I, Paris,
Gallimard, 1994, p.167, apud Friche Passos, 2004
25
25
caso, o louco, com sua presença desconcertante e inservível, barra a utopia da sociedade
perfeita e utilitarista assim como a desrazão, negada, isolada, segregada, barra a idéia de
que a racionalidade é um porto seguro.
Para Lacan (Lacan, 1966c), o analista deve se situar “no horizonte subjetivo de
sua época”. Acreditamos que a teoria lacaniana da foraclusão do Nome-do-Pai é
precisamente o que lhe permitiu vislumbrar esse horizonte. Cada época representa um
continente fechado em sua cultura, com seu código de referenciais simbólicos que
determinam o que faz e o que não faz sentido. Cada época institui, a seu modo, sua figura
do Outro. O horizonte subjetivo de uma época é uma metáfora que implica enxergar o
que se descortina mais além, quando o Nome-do-Pai, garantia do Outro, não é suficiente
para garantir o sentido das coisas. Ao evocar, nesse comentário, o poder de revelação da
loucura em Shakespeare e Cervantes, Foucault situa tanto os loucos, quanto os próprios
autores, como homens que falam a verdade. Lacan, igualmente, se servirá da obra de um
artista, James Joyce, para mostrar o que não pode ser dito, nem compreendido pela razão.
A obra de Foucault continua atual, sobretudo pelo fato de que o modelo
institucional, que ele tanto criticou na História da Loucura, 1972, ainda está presente em
diversas partes do mundo, inclusive em hospitais no Brasil que são alvo constante de
denúncias e punições. O debate sobre a razão, os comentários sobre o poder psiquiátrico e
sobre a anormalidade, estão no princípio de todas as críticas à instituição psiquiátrica
feitas nas últimas três décadas de reforma psiquiátrica no Brasil.
No fundo ele aponta fundamentalmente para a estrutura em jogo nas relações
entre o médico e seu objeto, o paciente. Esta crítica serviu de base para a queda do
tratamento da loucura centrado em um único saber. O mestre, encarnado na figura do
26
psiquiatra, foi destituído e, por extensão, a razão, como uma das figuras do Outro. Com
Foucault nasce a possibilidade de percepção da loucura como o que escapa ao saber
médico e à cultura em geral. A desrazão se torna um ponto de incompletude do Outro.
A grande esperança que Foucault deposita, no final da História da loucura, 1972,
na psicanálise passa precisamente pela possibilidade de resgatar o louco de sua posição
de objeto para se inscrever, com sua fala, na dialética com o Outro:
A ciência das doenças mentais, tal como ela poderá se desenvolver nos asilos,
será sempre da ordem de uma observação e classificação. Ela não será um
diálogo. E somente poderá sê-lo verdadeiramente no dia em que a psicanálise
tiver exorcizado esse fenômeno do olhar, essencial ao asilo do século XIX, e
tiver substituído a sua magia silenciosa pelos poderes da linguagem (Foucault,
1972)26.
Uma das teses centrais de Foucault é que o classicismo moderno, inaugurado por
Descartes, produz uma significação histórica da loucura como desrazão. Enquanto, até o
Renascimento, seria possível conceber o caráter trágico da loucura como potencial
enunciador de verdades (a loucura profética dos místicos seria um exemplo), com
Descartes a loucura é segregada. Essa segregação emerge inicialmente como desrazão,
onde o louco estaria aquém do ser27, para, em seguida, tornar-se conceito positivo através
do “resgate” da loucura pelo saber psiquiátrico... “mas ao preço de psicologizá-la e
humanizá-la como doença mental”28
26
Foucault, M., Histoire de la folie, p.508
Uma das possíveis leituras do Penso, logo existo. Problemática afirmação, já que o que não passa pela
razão não teria acesso ao ser.
28
Friche Passos, I.C., id. p.33
27
27
Em uma célebre conferência, pronunciada no Collège de France em 04 de março
de 1963, Derrida questionou publicamente a leitura que fez Foucault do cogito cartesiano
(Passos, 2004)29. Essa querela gerou réplica de Foucault, mas não chegou a ter tréplica30.
Para Derrida, na História da loucura, 1972, Foucault teria extrapolado a sua leitura das
Meditações, atribuindo essa oposição loucura/desrazão ao próprio texto cartesiano. O
debate permitiu que, em uma resposta de Foucault, ficasse explicitada de uma vez por
todas, e de modo bastante claro, a sua hipótese de que o principal agente da exclusão da
loucura foi a racionalidade ocidental.
Jorge III, o rei sem poder
Passamos agora a refletir sobre a obra de Foucault no contexto da saúde mental.
Seus textos foram cruciais para forjar o ambiente crítico que impulsionou a reforma
psiquiátrica e continuam sendo um manancial inesgotável para reflexão do momento
atual. Por mais que tenham sido feitas críticas a seu método (Swain, 1994), a suas idéias e
inclusive ao modo como o pensamento de Foucault se tornou um dogma intangível para
alguns intelectuais (Gauchet, 1994), não nos arriscamos a dizer que estamos em um
momento pós-Foucault.
Para pensarmos a questão do hospital psiquiátrico nos serviremos de uma fábula
exemplar, extraída de um texto de Pinel, que é citada na aula de 14 de novembro de 1973,
proferida por Foucault no Collège de France (Foucault, 2006). Trata-se da história, de
fundo verídico, do Rei Jorge III, da Inglaterra. Essa história pode igualmente ser vista no
29
30
Friche Passos, I.C., Razão e Loucura: a querela Foucault e Derrida, p.29
Derrida não fez tréplica uma vez que, após a morte de Foucault, preferiu não mais abordar a questão.
28
filme de 1994, A loucura do rei George (The Madness of King George), dirigido por
Nicholas Hytner, a partir da peça teatral de Alan Bennet.
Relata Pinel que Jorge III, rei da Inglaterra, apresentou um episódio de mania que
tornava sua permanência a frente do reino impossível. Assim, nos conta Foucault, “todo o
aparelho da realeza se desvanece”. O rei é afastado da família e de todo o seu cotidiano, e
é mantido trancado em um castelo, sozinho, acompanhado exclusivamente por dois fortes
pajens que “são encarregados de atender às necessidades e prestar-lhe todos os bons
ofícios que sua condição exige, mas também de convencê-lo de que ele está sob inteira
dependência deles e que doravante deve obedecer-lhes” 31.
Na continuação, um dia o rei, ou melhor, o louco, recebe a visita de um de seus
médicos. O médico é mal recebido pelo internado que lhe joga seus próprios
excrementos. Os pajens, então, lhe imobilizam, trocam suas roupas, limpam toda a sujeira
e “olhando para ele com altivez afastam-se logo em seguida e voltam para o seu lugar”.
São inúmeras as lições que Foucault extrai dessa história relatada por Pinel. Entre
as lições, encontra-se a estranha e subversiva dança de poderes. Temos inicialmente o rei,
como representação pura do poder do reino, que perde seu poder e deve, por prescrição
médica, ser cuidado à revelia por dois de seus pajens. Chama atenção que o médico
tampouco detém um poder especial sobre o paciente, uma vez que este não lhe reconhece
poder algum e inclusive lhe cobre de excrementos. São, justamente, dois de seus vassalos
que passam a deter um poder sobre o rei. Nesse caso, contudo, não é possível admitir que
os vassalos se reconheçam detentores de poder algum, a prova é que tratam o soberano
com a maior reverência.
31
Foucault M., O poder psiquiátrico, p.26
29
Essa situação paradoxal serve à Foucault para extrair a essência da condição da
loucura. O verdadeiro poder, que subjuga o rei e a todos na cena que se ocupam dele, é a
disciplina. No dialeto foucauldiano é o exemplo da báscula da macrofísica da soberania à
microfísica do poder.
Não escapou a Foucault o fato de que essa cena se situa no momento designado
por ele como protopsiquiátrico, ou seja, antes da lei sobre o internamento e a organização
dos grandes hospitais psiquiátricos, promulgada na França em 183832. Assim, os
elementos dessa comédia de poderes já estavam estabelecidos bem antes da apropriação
da loucura pelo dispositivo institucional.
Essa afirmação é um ponto de reflexão importante na reconfiguração dos serviços
de saúde mental, já que encontramos seus ecos na antipsiquiatria (Delacampagne, 1974) e
diversos movimentos políticos e teóricos que levaram a reforma psiquiátrica (Amarante,
2007). Não seria a instituição que determina as relações de poder, nem o surgimento de
um verdadeiro discurso ou tampouco um modelo familiar. O núcleo da prática
psiquiátrica estaria sempre atrelado a uma relação de poder disciplinar buscando dominar
o comportamento anormal.
Após a relação de poder entre o psiquiatra e o louco ter sido desnudada por
Foucault, a instituição psiquiátrica nunca mais foi a mesma. A História da loucura
promove a desconstrução do saber psiquiátrico e alavanca a emergência de outros saberes
sobre a loucura.
A história do Rei Jorge, na análise de Foucault, acaba por reinterpretar o gesto
célebre de Pinel ao libertar os doentes acorrentados. Os doentes são libertados das
correntes, porém contraem duas dívidas com a psiquiatria. Inicialmente ele deve pagar
32
Idem, p.33
30
sua liberdade com a gratidão. A segunda dívida é justamente o fato de que a cura advém
da obediência dócil à disciplina imposta pelo psiquiatra. Solto, ele deverá provar à
sociedade que ele é capaz de seguir as regras. Ao libertar o louco, espera-se dele a
gratidão e a cura pela obediência à ordem pública. Veremos, mais adiante, como a
associação liberdade/gratidão reaparece como força no texto de Franco Basaglia
(Basaglia, 2005b).
Constatamos conseqüentemente, que a psiquiatria não mais é capaz de se manter
como único pilar terapêutico após a História da loucura, 1972. A pluralidade dos
discursos emergentes não mais se organiza em torno desta. O impacto dessa nova
distribuição de saberes, porém, não dever iludir e ocultar o fato de que há, igualmente,
nova distribuição de poderes. Esta é a maior lição de Foucault. Esse confronto de poderes
é marcante na nova clínica da saúde mental, onde a pluralidade discursiva leva
invariavelmente a recolocar a questão do confronto de poderes no coração das novas
ações político-institucionais em detrimento, muitas vezes, da própria clínica.
Foucault profere uma condenação decisiva à psicanálise no final da História da
loucura: “a psicanálise não pode, e não poderá escutar as vozes da desrazão” (Foucault,
1972)33. Acreditamos que condenação está na base das críticas que se seguiram à
presença da psicanálise no campo da saúde mental. A crítica mais contundente,
certamente, foi a publicação, em 1972, do livro Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari.
33
Foucault, M., Histoire de la folie, p.530
31
I. 2.2 - Os equívocos do Anti-Édipo
Ainda hoje, por mais que o grosso de suas idéias, na prática, sejam inaplicáveis,
percebemos a extensão, para o melhor e o pior, da Publicação em 1976 do livro AntiÉdipo, de Deleuze e Guattari. No capítulo dois dessa obra é possível ler o seguinte
comentário: “O que colocamos em questão é a edipianização furiosa a que se dedica a
psicanálise, prática e teoricamente, com recursos conjugados da imagem e da estrutura”
(Guattari, 1976)34.
A nosso ver, essa crítica reflete uma visão parcial da psicanálise. É verdade que o
escândalo freudiano deveu-se em grande parte ao abalo provocado pelo complexo de
Édipo. É igualmente verdade que, nos comentários que Freud faz sobre caso Schreber, a
figura do pai é fundamental para seus desenvolvimentos (Freud, 1980). Quanto a Lacan,
ele tece sua primeira teoria das psicoses em torno da Foraclusão do Nome-do-Pai (Lacan,
1981). Trata-se, conseqüentemente, de uma clínica que tem o Édipo como referência,
uma vez que ela analisa os efeitos sobre o psiquismo do momento em que o sujeito, ao
fazer apelo ao Nome-do-pai, se defronta com a impossibilidade de extrair uma resposta.
Lacan, contudo, não recuou diante dessa impossibilidade e mostrou precisamente o que o
Anti-Édipo acusa de ter faltado à sua obra, uma teoria que não fundasse seu pilar no pai e
no Édipo. Muito antes do Anti-Édipo, em 1963, Lacan havia proferido uma aula em que
pluralizava o Nome-do-Pai, em nomes do pai, o que já demonstrava a redução do
prestígio que o pai assumira em sua teoria (Lacan, 2006a). É mesmo o que nos permite
afirmar que somente há uma clínica lacaniana das psicoses na medida em que se aposta
34
Deleuze G. e Guattari F., O anti-édipo, p.73
32
no fato de que o Nome-do-Pai não é imprescindível para que um sujeito não desencadeie
uma psicose. Há, no entanto, um cuidado na teoria lacaniana para não passar o rolo
compressor, fazendo terra arrasada do território paterno. É como entendemos o que Lacan
veicula com a tese de que é possível “dispensar o pai à condição de se servir” (Lacan,
2005b)35, que não deixa de dialogar com a tese do Anti-Édipo.
Deleuze e Guattari se tornaram referências constantes dos textos que se ocupam
da saúde mental, principalmente no que tange a reforma psiquiátrica. O Anti-Édipo nos
parece, precisamente, uma tentativa de inscrição da psicanálise no coração do relativismo
contemporâneo provocada pela queda dos valores e garantias universais (Gauchet, 1985;
Bauman, 1997; Lipovetsky, 2004; Miller, 2005b). A crítica que é feita no Anti Édipo,
vem em sintonia com a época de sua redação, o pós-maio 68. Abaixo toda forma de
poder! Livremo-nos da tirania edipiana!
Marcada pelo declínio da esperança religiosa, pela descrença no discurso dos
grandes mestres e, mesmo, pelo retraimento da família centrada na autoridade paterna, a
época atual pode ser explicada pela obra de Lacan, sobretudo nos últimos anos de seus
Seminários. Lacan fez o caminho do mais além do Édipo, e não do anti Édipo. Para tanto,
ele passou por duas escansões importantes, o Seminário XVII, em que ele chega a
comentar o “caráter inutilizável do complexo de Édipo” (Lacan, 1991)36, e o Seminário
XX, em que, hereticamente, se pergunta se a própria face de Deus não seria suportada
pelo gozo feminino (Lacan, 1975b)37. Essa trajetória o leva, através da teoria dos nós, a
fazer do Édipo meramente um sintoma entre outros.
35
Lacan, J., Le Séminaire XXIII, p.136, tradução nossa
Lacan, j., Le Séminaire XVII, L´envers de la psychanalyse, p.113
37
Lacan, J., Le Séminaire XX, Encore, p.71
36
33
As origens de um equívoco – psicanálise em intensão e psicanálise em extensão
Em nosso percurso procuramos demonstrar que o ponto principal de discórdia, a
‘edipianização da psicanálise’, já havia sido superado por Lacan no momento em que se
redigia o Anti Édipo. É no momento em que ele faz a distinção entre psicanálise em
intensão e psicanálise em extensão que se torna mais palpável a fonte da discórdia.
Acreditamos que o descompasso entre Deleuze e Guattari e a obra de Lacan foi mais
importante do que a discordância teórica, ao menos no que tange o ponto original, o
Édipo e a função paterna. Provavelmente esse descompasso se deve ao fato de que a obra
de Lacan se construiu em torno de seus Seminários, e estes apenas foram publicados,
ganhando divulgação pública, anos depois de serem proferidos. À época do Anti Édipo, o
material publicado mais conhecido de Lacan se resumia a seus Escritos, publicados em
1966, livro que não deixava o leitor entrever o modo como a teoria do sinthoma
confirmaria, de uma vez por todas, os limites - e o mais além - do Nome-do-Pai.
Ainda em 1967, um comentário célebre de Lacan no parece surgir em plena
oposição ao Anti Édipo e, inclusive, à sua própria teoria do sinthoma: “Eu gostaria de
iluminar meu ponto essencial simplesmente com o seguinte: retire-se o Édipo, e a
psicanálise em extensão, diria eu, torna-se inteiramente da alçada do delírio do presidente
Schreber” (Lacan, 2003g)38.
Essa frase se encontra no texto Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o
psicanalista da Escola, publicado pela primeira vez em pleno ano de 1968. Um dos
pontos mais importantes desse texto é o estabelecimento de uma diferença entre
psicanálise em intensão e psicanálise em extensão.
38
Lacan, J., Proposição de 9 de outubro..., p.262
34
Lemos em seu texto a seguinte distinção:
- Psicanálise em extensão: “tudo que resume a função de nossa Escola como
presentificadora da psicanálise no mundo”;
- Psicanálise em intensão: “a didática, como fazendo mais do que preparar
operadores para ela”39.
Essa divisão que faz Lacan deve ser entendida como prolongamento do texto em
que funda sua Escola. É no texto Ato de fundação¸ que foi publicado no anuário da
Escola em 1965, que ele promove a separação em psicanálise pura e psicanálise
aplicada40. No texto de 69, Lacan não menciona, e isso é importante, que o Édipo não
pudesse ser retirado da psicanálise em intensão. Parece-nos claro que a formação de um
psicanalista deveria levá-lo a ultrapassar a barreira do Édipo. No entanto, ao fundar sua
Escola, nos parece haver um entendimento, por parte de Lacan, de que apenas uma escola
de psicanalistas se sustentaria sem o apoio do Édipo. O contexto da época pode explicar
essa posição. Tudo se passava no calor das disputas que ocorriam tanto nas ruas quanto
nos bancos universitários no final dos anos 60. Ao falar, portanto, que a extensão da
psicanálise para o mundo deveria ser atrelada ao Édipo, ele nos indica que quando se quer
derrubar todos os mestres surge um mestre ainda mais feroz, tal como o Deus de Schreber
o era.
Assim, é possível observar a demarche do Anti-Édipo sob outra perspectiva. O
declínio do Édipo não foi decretado, nem pela psicanálise nem por Deleuze e Guattari,
39
40
Idem, p.251
No próximo capítulo nos deteremos na questão da psicanálise pura e psicanálise aplicada
35
ele é um dado da cultura na qual, nas palavras de Barros, o Anti-Édipo não foi mais do
que um sintoma (Barros, 2005)41.
Apesar dos ecos revolucionários persistirem em redutos isolados, nos parece que a
crítica de Deleuze e Guattari ao familiarismo da psicanálise não foi capaz de abalar a
percepção corrente de que a saúde mental tece sua concepção de reinserção social a partir
da lógica de casa, família e emprego. Ou seja, apontamos para uma situação que é no
mínimo contraditória.
1 – O Anti-Édipo inspirou e inspira inúmeros autores que impulsionam a reforma
psiquiátrica e os novos modelos de atenção à saúde mental, como Basaglia no exterior e
Jurandir Freire Costa e Joel Birman no Brasil;
2 – Acusada de perpetuadora do “Édipo soberano”
42
, e incapaz de pensar as
cadeias inconscientes fora de uma submissão a um “significante despótico”, o rechaço da
psicanálise e a inspiração revolucionária não impediram que os ideais de reinserção,
propostos atualmente, reproduzam, eles mesmos, os parâmetros da familiarização tanto
criticados.
O paradoxo é que, enquanto a psicanálise desfez-se de sua âncora ao complexo de
Édipo, ou a um significante despótico qualquer, a saúde mental não conseguiu se libertar
dos ideais coletivos para construir um saber que lhe fosse próprio. Ficou então, ela
mesma, tributária dos imperativos do homem comum moderno, ou seja, do homem
protegido pela declaração dos direitos humanos, ao qual qualquer diferença de tratamento
é imediatamente percebida como segregação, exclusão ou violência.
41
42
Barros R., O Anti-Édipo da psicanálise, p, 65.
Deleuze e Guattari, l’Anti-Oedipe, p.63
36
Daí os riscos e limites da frase que freqüentemente é utilizada como emblema da
reinserção social da loucura: “De perto ninguém é normal”. Concluímos que é nos
circuitos que levam à alienação e desalienação do significante (igualmente despótico)
“normal” que se forma o grosso do saber da saúde mental. Contudo, denunciar a exclusão
e a segregação da loucura não é suficiente para destituir o normal como “Outro” da saúde
mental.
Assim, a questão sobre a função paterna ganha novas perspectivas de indagação.
Os que pregavam o declínio da função paterna observam apenas a sua declinação em
modalidades diversas. Ao invés de eliminação do papel do pai na sociedade percebemos
sua pluralização em novas formas de família, distintas da tradicional família burguesa.
Em nossa pesquisa, encontramos no último ensino de Lacan uma referência que
reitera nossa opinião de que o Anti-Édipo estava mais próximo da psicanálise do que
costumamos julgar. Em 1976, em pleno momento de turbilhão do Anti-Édipo, Lacan,
após ter promovido a separação radical entre o real e o campo do sentido, escreveu o
seguinte comentário:
Quando o esp de um laps, uma vez que eu escrevo apenas em francês:
o espaço de um lapso, não tem mais nenhuma dimensão de sentido (ou
interpretação), somente então estamos seguros de que estamos no
inconsciente (Lacan, 2001h)43.
Miller, em seu curso intitulado Le tout dernier Lacan (Miller, 2007a), dedicou-se
a explorar o impacto desse comentário de Lacan em sua teoria. Ora, separar o
inconsciente do sentido, em um momento em que, para Lacan, a definição mesma de real
passava pela exclusão do sentido, implica em conceber o próprio inconsciente como real.
43
Lacan, J., Préface a l’édtion anglaise du Séminaire XI, p.571, tradução nossa
37
Assim, o inconsciente, que na teoria lacaniana clássica, era visto como “estruturado como
linguagem”, assume uma direção completamente distinta do inconsciente freudiano.
No mesmo ano encontramos a passagem abaixo, escrita por Deleuze e Guattari:
[...] o próprio inconsciente não é mais estrutural do que pessoal, ele
não simboliza mais do que imagina ou figura: ele maquina, ele é
maquinístico. Nem imaginário nem simbólico, ele é o Real em si
mesmo, “o real impossível” e sua produção (Guattari, 1976)44.
Esse fragmento do Anti-Édipo nos revela que não seria impossível prever um
reencontro de Deleuze e Guattari com Lacan. Um certo distanciamento do estruturalismo,
a concepção do real como impossível e a evocação do inconsciente como real seriam
assuntos de longas horas de debate.
I. 2.3 – Basaglia, a derrota do hospital psiquiátrico
Completando a tríade de mentores da saúde mental no Brasil é fundamental citar a
influência de Basaglia. Mestre idealizador do movimento social conhecido como
Psiquiatria Democrática Italiana, o psiquiatra italiano Franco Basaglia deixou um legado
que se expandiu muito além da Itália. No Brasil, sua influência foi determinante na
formatação da reforma psiquiátrica adotada pelas políticas públicas. É a partir de
Basaglia que se forma a cultura que decreta a impossibilidade de se conceber a reforma
do hospital psiquiátrico. Decreta-se a falência da pretensão terapêutica do hospital
psiquiátrico e o surgimento de um novo paradigma. Ao invés de reforma do hospital
psiquiátrico trata-se de sua superação (Amarante, 2005)45.
44
45
Deleuze G. e Guattari F., O Anti-Édipo, p.73
Amarante P., Franco Basaglia – Escritos Selecionados, p.10.
38
Basaglia vem de uma experiência clínica ligada diretamente à tentativa de
remodelação de um grande hospital psiquiátrico com mais de 600 leitos. Nesse sentido
nossa tentativa de reestruturar o Hospital Juliano Moreira, que relataremos mais adiante,
encontrou um desafio que nos aproxima da experiência de Basaglia. Os resultados de sua
experiência demonstraram o quanto é árduo e infrutífero tentar reformar uma estrutura
asilar, onde funcionários e pacientes estão completamente submetidos a uma lógica que
adoece muito mais do que cura, que preserva a sociedade muito mais do que o doente.
As vindas de Basaglia ao Brasil em 78 e 79 foram fundamentais para impulsionar
a reforma psiquiátrica brasileira. O ambiente à época de sua vinda era o pior possível.
Entre os anos de 1973 e 1976 as internações em psiquiatria haviam aumentado 350% e
96% dos recursos com assistência psiquiátrica eram destinados à rede hospitalar em 1976
(Nicácio, Amarante et al., 2005).
Como poucos, Basaglia soube identificar os mecanismos que transformaram o
louco, segundo suas próprias palavras, em uma “monstruosidade sociobiológica”
(Basaglia, 2005(1966))46. Essa condição advém de um duplo processo de exclusão:
1) negação mediante um discurso científico que, pela impotência em compreender
a loucura, a torna objeto;
2) negação social, cientificamente reconhecida, de seu estado47. Ou seja, seria o
hospital, historicamente, concebido para proteger os sãos, e não os pacientes, da loucura.
Essas constatações estão na base de sua tese de que a catástrofe da situação dos
asilos é diretamente causada pelo momento em que a ciência se desinteressou do doente
46
47
É bem evidente, aqui, a identidade com o pensamento de Foucault
Basaglia F., Um problema de psiquiatria institucional...p. 47
39
para ocupar-se com a pesquisa ideológica da doença mental (Basaglia, 2005(1967))48.
Nesse ponto o pensamento de Basaglia é perfeitamente aliado ao da psicanálise.
Discordamos, contudo, quando as conclusões de Basaglia caminham no sentido
de condenar a psiquiatria tanto quanto o hospital. Como ele mesmo afirma, essa
constatação se apóia diretamente em uma das teses principais da História da loucura, de
Foucault (Basaglia, 2005b)49.
A nascente psiquiatria do século XVIII, ao invés de
libertar os loucos, tal como suporia o gesto mítico de Pinel, na verdade “objetivou” o
conceito de liberdade. Assim, a liberdade vigiada da loucura seria apenas uma extensão
de seu poder. A obra de Basaglia oferece a Foucault, precisamente, o braço prático que o
filósofo carecia. Basaglia transpõe para sua vigorosa reestruturação do sistema de saúde
mental italiano a mesma visão foucaudiana de que a psiquiatria científica seria, na
verdade, uma estrutura de poder e, palavra de ordem do texto basagliano, exclusão.
Inscreve-se nesse movimento, podemos deduzir, uma cisão que se mantém até
hoje entre psiquiatras e demais atores da saúde mental. A relação entre o louco e o
psiquiatra passa a ser vista como relação de dívida/gratidão, extensão perversa do poder
do segundo sobre o primeiro. A passagem abaixo mostra quão inequívoca é a presença de
Foucault:
A liberdade que o médico e o novo clima hospitalar lhe deram pode agora
produzir um estado de sujeição ainda mais alienante, por estar mesclado a
sentimentos de devotamento e gratidão que ligam o doente ao médico numa
relação mais estreita, mais sólida, mais profundamente mortificante e
destrutiva do que qualquer contenção física, uma relação de devotamento e
rendição absolutos ao “bondoso” que se dedica a ele, que se inclina – de toda
a sua altura – para escutá-lo e nunca diz não (Basaglia, 2005b)50.
48
Basaglia F., Corpo e Instituição, p.73
Basaglia F., A destruição do hospital..., p.26
50
Basaglia F., A destruição do hospital psiquiátrico..., p.32
49
40
Reconhecemos facilmente o mesmo tom da análise foucaudiana do episódio do
Rei Jorge III. Essa passagem traduz perfeitamente a dificuldade, para um leitor
exclusivamente basagliano, imaginar a relação transferencial da clínica psicanalítica por
outro viés que não seja o poder e a submissão. Percebemos ainda que o alvo da crítica é,
objetivamente, aquele que procura uma abordagem clínica da loucura. Ou seja, a
condenação, assim como em Foucault, da psiquiatria científica, acaba arrastando na
mesma leva toda e qualquer experiência clínica.
Constatamos, portanto, que nesse sentido a psicanálise, por ser eminentemente
clínica, por não se reduzir ao social e por afirmar a impossibilidade de uma abordagem da
loucura que não passe pelo estabelecimento de um vínculo transferencial, possui todos os
ingredientes para ser vista com certo olhar de suspeita pelos seguidores basaglianos mais
ortodoxos.
Basaglia continua sendo uma referência fundamental. Sua morte prematura não
impediu que seu legado tenha se tornado uma referência incontornável para aqueles que
reconhecem os abusos que, ainda hoje, são praticados nas hospitalizações psiquiátricas.
Um dos pontos que mais aproximam a psicanálise do pensamento basagliano é, com
freqüência, incompreendido. Critica-se, no mesmo movimento que faz Foucault, que o
psicanalista exerce, sob transferência, uma relação de poder sobre o analisante. Contudo,
pouco se leva em consideração o fato de que somente há psicanálise quando há um
contrato entre as partes. A crítica de Basaglia à psiquiatria passa precisamente pela falta
de um valor contratual entre o louco e o psiquiatra, ou seja, o fato de que esta relação lhe
é imposta pela psiquiatria (Basaglia, 2005a)51. Nesse sentido, entendemos que a proposta
da psicanálise deve recusar o imperativo da saúde mental de que um tratamento somente
51
Basaglia F., As instituições da violência, p.101.
41
é válido se servir para todos. Ela é basagliana quando ela é ofertada exclusivamente ao
paciente que estiver de acordo ou que solicitá-la. Quer seja ao convidá-lo a falar em uma
consulta de ambulatório, ou convidá-lo a participar de uma apresentação de pacientes, o
psicanalista nunca estará em posição de imposição, sob o risco de passar da posição de
analista à posição de mestre.
42
Capítulo II – O NORMAL É O PATOLÓGICO
43
Mente
No poço
pingam gotas
Gotas que o preenchem
com um líquido
espesso
negro
e denso.
essa gotas lúgubres
são meus pensamentos
Carlos André Ybañes Nascimento
Após apresentarmos o contexto e as influências teóricas que configuraram o
panorama da saúde mental no Brasil, prosseguiremos nosso estudo destacando os efeitos
do discurso da ciência sobre o campo. A associação entre a prática psiquiátrica e o poder,
pedra angular do pensamento de Foucault, passa a ser vista no contexto do novo
panorama contemporâneo. Inicialmente abordaremos a queda dos grandes valores
universais, marca da contemporaneidade, e a migração da autoridade e do poder, antes
atribuídos a esses valores, para os enunciados de base científica. Como valores
universais, citamos a crença em Deus e na religiosidade, a imago paterna, os grandes
ideais da família, da união monogâmica, do altruísmo e da renúncia ao gozo.
Buscaremos mostrar que o campo da saúde mental, atualmente, passa por uma
reconfiguração na medida em que um novo paradigma, o da quantificação e
normatização, exclui a subjetividade e constrói um novo projeto de ideal para o século
XXI, o ‘homem normal’. Esse projeto é um passo a mais sobre a teoria da identificação
de Freud e da teoria do homem de massa, de Ortega y Gasset.
Teremos, assim, uma idéia mais ampla do campo da saúde mental, tanto em suas
bases históricas, quanto em suas perspectivas atuais e futuras. Esse panorama nos
44
permitirá avançar as outras duas partes do capítulo. A segunda e a terceira partes
abordam a presença da psicanálise no campo da saúde mental. Embora sejam campos
distintos, procuraremos mostrar que há encontros possíveis, e não apenas desencontros.
Nosso objetivo é mostrar que a psicanálise possui uma teoria sólida sobre o discurso da
ciência, e que sua posição de recusa do homem normal, assim como outrora recusou o
homem de massa, é fundamental para evitar que a subjetividade no campo da saúde
mental seja engolida pela vontade de normatizar, quantifica e tratar a anormalidade.
Trata-se de uma clínica ávida por números e que não deixa espaços para o resto,
resto no sentido daquilo que o paciente, em sua particularidade, não pode compartilhar
com nenhum outro. Nesse sentido a clínica psicanalítica toma um rumo completamente
distinto. Nas palavras de Abelhauser, “a clínica, é arte do singular, e se opõe assim à
cifra, emblema do quantificável (e insígnia deste papel de arauto da verdade que a ciência
se atribuiu)” (Abelhauser, 2008)52. A questão se torna ainda mais crítica no momento em
que assistimos a novas iniciativas governamentais que, em diversos países, buscam
equacionar os problemas da saúde mental lançando mão apenas de instrumentos
quantitativos. Na Inglaterra, no Canadá e na França, esse projeto político encontra-se
bastante desenvolvido (Laurent, 2008b). São avaliações que não poupam sequer os
próprios profissionais que lidam com o sofrimento mental, estes igualmente avaliados
pelos resultados (Matet, 2008)53. A psicanálise, no século XXI, encontrou novas críticas a
sua presença na saúde mental, são os avaliadores que acusam os resultados psicanalíticos
de pouco confiáveis, uma vez que não podem ser reproduzíveis em um modelo dito
científico.
52
53
Abelhauser, a., Le chiffrage de la clinique, p.52
Matet, J-D., Il était une fois un IME comme beaucoup d´autres..., p.37
45
Esse é o pano de fundo que nos permite, em seguida, analisar a pertinência da
psicanálise no campo da saúde mental, quais são os aportes possíveis, enfim de que modo
ela pode participar da grande conversação que configura o campo da saúde mental. Por
fim, veremos de que modo a psicanálise se separa da clínica do mental, construindo uma
clínica inconfundível, e de que modo ela se torna, por excelência, uma clínica para os
tempos em que o Outro não existe.
46
II. 1 – A Danação dos anormais
Iniciamos esta seção narrando um fragmento do livro, de Moacyr Scliar, Saturno
nos trópicos, 2003. Essa passagem ilustra, como poucas, o modo como um
comportamento que contraria as normas, por mais sadio que seja, pode ser tachado de
aberração desviante. É o risco que ocorre quando a ciência passa a agir a serviço do
discurso do mestre. Nesse exemplo histórico percebemos o modo como o nominalismo
científico pode ser utilizado, em nome da psiquiatria, para perpetuar a condição inferior
do negro no período escravocrata. Poderia ser cômico, se não fosse trágico, o que Scliar
nos conta sobre a melancolia no Brasil:
A melancolia do negro era uma situação considerada, nas sociedades
escravistas, “normal”. Anormal era o desejo de fugir, rotulado como
manifestação maníaca: a drapetomania (do grego drapetes, fugitivo), termo
cunhado em 1854 pelo médico norte-americano Samuel A. Cartwright. Não
era a única doença que os médicos diagnosticavam nos negros...sofriam
também de “diestesia etiópica”, uma enfermidade que consistia em ignorar a
importante noção de propriedade (Scliar, 2003)54.
Observamos aqui uma manobra nada sutil que faz as questões éticas deslizarem
para uma política diretamente instrumentalizada pelo saber científico. Apesar de distante
no tempo, o exemplo é bastante atual, já que todos os dias nós recebemos notícias de
novas doenças e novos sintomas descobertos pela psiquiatria. Assim, a tentação de
antepor, sistematicamente, a qualidade psíquica inata, de origem orgânica, à psicogênese,
na raiz do sofrimento psíquico humano se torna um instrumento de segregação de tudo
que escapa à norma. Um dos maiores críticos da teoria das qualidades psíquicas inatas é
54
Scliar M., Saturno nos Trópicos, p.196
47
Stephen Jay Gould. Para ele, construiu-se o mito que diz ser a ciência uma empresa
objetiva, que somente poderia se realizar adequadamente no momento em que os
cientistas conseguissem se livrar dos condicionamentos da cultura e encarar o mundo
como ele realmente é (Gould, 2003). É patente, aqui, o risco de que o determinismo
biológico seja usado para grupos detentores do poder. Não se trata de negar a importância
do real desvelado pela ciência, mas de valorizar, na análise da ciência, os efeitos de
sentido e de poder em jogo.
Gould se serve de um exemplo de como a falsa medida do humano produz
conseqüências políticas graves. No século passado, um debate de peso sobre a capacidade
mental e as diferenças entre as raças se desenvolveu, no meio científico, a partir da
premissa de que a inteligência era uma coisa que existia no interior da cabeça. Enquanto
se manteve essa crença, por mais que se mostrassem evidências contrárias, perdurou a
tradição ocidental de ordenar elementos relacionados à inteligência na forma de uma
cadeia racial do ser de caráter hierárquico55.
Para entendermos o modo como a paixão pela quantificação e pela norma toma
espaço nas políticas de saúde mental e segrega tudo que lhe parecer anormal, partiremos
inicialmente do comentário de Miller de que vivemos na época do “Outro que não existe”
(Miller, 2005b), em seguida abordaremos a questão da identificação freudiana e a
formação das massas no momento em que a queda dos ideais deixa um vácuo
identificatório e obriga o sujeito contemporâneo a se ‘auto-inventar’, finalmente
abordaremos o apagamento da subjetividade inerente ao processo de quantificação
próprio da ciência contemporânea e a conseqüente idealização do homem normal.
55
Gould S.J., A falsa medida do humano, p.7
48
II. 1.1 – O Outro e seus restos
É possível identificar um percurso que vai de uma clínica lacaniana que tem no
Nome do Pai a garantia de um ponto suficientemente consistente do Outro56, para a
clínica lacaniana que reconhece a inconsistência do Outro, vacilando profundamente o
modo como o sujeito constrói uma resposta para sua própria existência. Esse percurso
pode ser exemplificado a partir de dois seminários de Lacan, separados por precisos vinte
anos. Ambos são momentos cruciais para a clínica das psicoses: o Seminário III, As
psicoses, e o Seminário XXIII, o Sinthoma.
Na perspectiva do Seminário XXIII, o Nome-do-Pai, tal como ele se apresenta no
Seminário III, torna-se uma crença de que há sentido no real. Isso implica em um
“forçamento”, digamos, uma invenção, que procura apagar a constatação lacaniana dos
anos 70 de que real e sentido se excluem. No capítulo IV, veremos que o NP apenas pode
se sustentar, com o avanço da teoria lacaniana das psicoses, se ele tiver apoio no
sinthoma. Ou seja, a partir do que vimos no capítulo anterior, podemos afirmar que não
há contradição entre a proposta do Anti-Édipo e a teoria de Lacan sobre o mais além do
Édipo, à condição que levemos em conta a teoria do sinthoma.
A partir do momento em que o NP deixa de ser a garantia de que gozo e sentido
não se separam, surge o matema que inicialmente foi utilizado por Lacan na construção
do grafo do desejo (Lacan, 1966k), mas que posteriormente ganhou novo fôlego a partir
do curso de Miller O Outro que não existe e seus comitês de ética (Miller, 2005b):
A
/
56
Uma clínica que diferencia neurose e psicose a partir do NP e sua foraclusão
49
Ao barrar o Outro, Lacan aponta para a impossibilidade de uma relação de
alteridade estabelecida nos moldes de problema-solução (Miller e Milner, 2004). Nem
todo problema encontrará uma solução no campo do Outro, sempre haverá restos que são
excluídos de sentido. É nesta perspectiva que Miller pergunta em seu curso sobre o modo
como podemos pensar a clínica quando o Outro não existe. Temos como resposta que ela
opera por seus restos (Cohen, 2006; Vieira, 2008). Podemos afirmar que todo resto é
anormal. Na teoria lacaniana, encontramos a expressão desses restos em sua teoria do
objeto a e, posteriormente, com seus desenvolvimentos sobre a escrita e o sinthoma57.
A constatação de que as respostas do Outro são insuficientes, ou seja, que nenhum
grande valor absoluto agita a crença na consistência do Outro, fez com que o vazio de
respostas fosse ocupado pela certeza obtida nos números produzidos pela ciência (Miller,
2005b). A tese que desenvolve Miller é que o declínio dos valores universais e das
grandes crenças, que marca a contemporaneidade, se processa no mesmo momento em
que o discurso da ciência é tomado como única verdade confiável. Essa afirmação traz
profundas conseqüências para o campo da saúde mental, sobretudo no estabelecimento
das bases do laço social. Prosseguindo nosso percurso, nos deparamos então com uma
pergunta: o que resta do laço social quando nada se espera da demanda ao Outro?
Chegamos, com essa pergunta, ao Século XXI - século da hipermodernidade para
Lipovetsky, do desencantamento do mundo para Gauchet, dos amores líquidos para
Bauman (Gauchet, 1985; Bauman, 2001; Lipovetsky, 2004), entre outros. O mundo
despertou para a precariedade do simbólico em relação ao real. Um enorme caleidoscópio
cujas peças têm em comum, por um lado, a ausência de garantias do Outro e, por outro,
57
Que serão melhor desenvolvidos no capítulo IV
50
as estratégias do sujeito contemporâneo para evitar sua diluição no relativismo que se
seguiu à constatação de que o Outro é barrado.
No bojo das reflexões sobre o novo século, uma constatação praticamente
unânime é a fragilização dos laços sociais tradicionais e o individualismo e solidão
crescentes do sujeito contemporâneo. Para Renaut, por mais diversos que sejam os
modos de abordagem, todos esses autores afirmam que a modernidade consiste em opor,
às sociedades tradicionais, aquelas onde o indivíduo não mais aceita ser submetido a nada
mais do que a si mesmo (Renaut, 1995)58.
Essa constatação nos leva a uma nova leitura do supereu freudiano, suscitando um
questionamento direto sobre o mal-estar na civilização. Bauman, em sua crítica ao
pensamento freudiano, designou de Mal-Estar da Pós-Modernidade o momento paradoxal
em que vivemos (Bauman, 1997).
Passados sessenta e cinco anos que o O mal-estar na civilização foi escrito e
publicado, a liberdade individual reina soberana [...] Em sua versão presente e
pós-moderna, a modernidade parece ter encontrado a pedra filosofal que
Freud repudiou como uma fantasia ingênua e perniciosa: ela pretende fundir
os metais preciosos da ordem limpa e da limpeza ordeira diretamente a partir
do outro do humano, demasiadamente humano reclamo do prazer, de sempre
mais prazer e sempre mais aprazível prazer – um reclamo outrora
desacreditado como base e condenado como autodestrutivo59.
Sobretudo nos grandes centros urbanos do mundo globalizado, as grandes
questões filosóficas e religiosas, sobre o sentido da vida e das tradições, desabaram
completamente, impulsionando soluções cada vez mais individuais. O que se constata é
que mais o mundo caminha para se tornar uma grande comunidade globalizada, mais o
sujeito se refugia em uma posição individualista na busca de seus ideais de modos de
gozar. Baudrillard traça de modo fino – lacaniano, diríamos - o aparente paradoxo de
58
59
Renaut A., L´Individu, p.14
Bauman, Z., O Mal-Estar na Pós-Modernidade, p.9
51
caminharmos para um mundo globalizado e falarmos ao mesmo tempo de queda dos
ideais:
Mundialização e universalidade não formam um par, elas são, pelo contrário
exclusivas entre si. A mundialização é das técnicas, do mercado, do turismo,
da informação. A universalidade é dos valores, dos direitos do homem, das
liberdades, da cultura, da democracia. A mundialização nos parece
irreversível, o universal nos parece em vias de extinção. (Baudrillard, 1997)60
Sem dúvidas, as transformações em escala mundial afetam o viver atual, mudando
a vida cotidiana e as tradições familiares e culturais. Esses efeitos mostram a
inexorabilidade do processo de globalização do mundo contemporâneo - por mais que as
teorias sobre o que é, realmente, a globalização sejam discordantes entre si (Brooks,
2008). Se aproximarmos o comentário de Baudrillard do pensamento de Lacan,
perceberemos uma preocupação em sustentar que a mundialização promove a
homogeneização dos modos de gozar, que é da ordem do objeto a, sem que este seja
conectado a uma causa. Sabemos que esta é uma questão para Lacan. O objeto a
lacaniano é ao mesmo tempo mais de gozar e causa de desejo. É por isso que, quando ele
é ofertado sem limites para o gozo, o que ocorre no consumo desenfreado ou na oferta
crescente de drogas lícitas e ilícitas, ele perde sua função de causar o desejo (Miller,
2005c).
Os efeitos da constatação de que o Outro não existe estão presentes tanto no
campo da saúde mental quanto no campo da psicanálise. Podemos ir mais além, o que
aproxima e distancia esses dois campos é o modo como cada um responde a essa
constatação.
Observamos, porém, que o modo como, no vácuo deixado pelo declínio da imago
paterna, foi tragada igualmente a clínica da subjetividade, sendo esta substituída pela
60
Baudrillard, J., Le mondial et l´universel, p.175
52
clínica da quantificação. Lacan possui uma tese muito bem definida para justificar o
apagamento da subjetividade na clínica contemporânea. Ele se serve justamente de um
termo empregado para as psicoses, a foraclusão, no caso, foraclusão do sujeito pelo
discurso da ciência (Lacan, 1966g). Assim, entendemos que uma clínica dominada pelas
normas e quantificações se opõe frontalmente à clínica psicanalítica.
II. 1. 2 – Dentro e fora do laço social
Passaremos agora ao estudo do modo como se estrutura o laço social levando em
conta os fenômenos de identificação e desidentificação. Veremos igualmente os riscos de
pensar a saúde mental a partir de normas e estatísticas, sem que haja espaço para uma
clínica que inclua o sujeito. Duas referências nos auxiliam em nosso percurso, o texto
freudiano A psicologia das massas (Freud, 1981) e o clássico de Ortega y Gasset A
revolução das massas (Gasset, 2007). Esses textos nos auxiliam a ver a importância de se
pensar o campo da saúde mental como local onde se reúne o mais singular de um sujeito,
que na teoria lacaniana será representado por seu sinthoma, e suas trocas com o Outro, ou
seja, o modo como se constrói para cada um o laço social. Tomemos, inicialmente, a
questão do laço social a partir da territorialidade.
A noção de territorialidade, utilizada com freqüência nos textos de saúde mental,
foi tomada da biologia e da geografia (onde se encontra a geopolítica, como estudo da
distribuição do poder em um território). Schechtman propõe que o uso dessa expressão
pela saúde mental ganharia com a tematização de uma noção de “território da
subjetividade” (Schechtman, 2006). Para tanto ele se serve do belo conceito barthesiano
53
de idiorritimia: “essa noção designa... todos os empreendimentos que conciliam ou
tentam conciliar a vida coletiva e a vida individual, a independência do sujeito e a
sociabilidade do grupo”.61
A territorialidade, tradicionalmente, é vista na saúde mental como o espaço onde
se efetuam as trocas sociais. Percebemos no texto de Schechtman uma preocupação em
não reduzir o território da saúde mental apenas à vertente da sociabilidade. Para ele, é
preciso abrir um espaço para outra vertente, onde a vida individual como independência
do sujeito62 possa ser preservada. Percebemos no texto a preocupação em manter um
ponto de solidão do sujeito que não deve ser visto como abandono, mas como a
possibilidade de poder gozar sem necessariamente ter que partilhar esse gozo com
alguém. Assim, o território deixa de ser visto apenas como lugar de trocas, ele inclui o
sujeito no que ele tem de mais íntimo.
Na primeira vertente podemos dizer que o sujeito, ao ter acesso às atividades da
cidadania e aos ideais aspirados pela maioria, está enlaçado na trama social. Esse laço é
guiado por ideais que encontram na plenitude do bem estar biopsicossocial, do Relatório
sobre a saúde mental de 2001 da Organização Mundial de Saúde (Murthy, 2001), seu
ideal maior.
Porém, ao tomarmos a perspectiva de uma clínica que contemple a singularidade
do gozo e da solução sintomática, percebemos que o laço social não é tecido pelos ideais.
Esta questão é fundamental quando pensamos no laço social possível nas psicoses.
Partindo do Seminário III63, observamos que a loucura apenas denuncia a fragilidade do
61
Schechtman, A., Território e idiorritmia: uma leitura de Barthes para a saúde mental, p.37
idem
63
O esquema L, presente no Seminário III de Lacan, mostra as relações da realidade com o inconsciente.
Ele será estudado em detalhes no capítulo IV, mais adiante
62
54
campo da realidade, expondo as diversas tensões entre o louco, seu semelhante e o Outro.
Nesse caso, a relação com o semelhante e o diálogo da intersubjetividade, apenas ocultam
o enigma que habita permanentemente a vida do psicótico. Sua vida é tomada pela
decifração desse enigma – singular enigma-, transformando-o em um trabalhador
permanente.
Analisando a noção de territorialidade, percebemos que ela pode ser incluída no
modo como Lacan pensa o laço social através de seus quatro discursos. No Seminário
XVII (Lacan, 1992), ele desenvolve sua teoria sobre os quatro discursos que são: discurso
do mestre, discurso universitário, discurso da histérica e discurso do analista. Lacan
representa cada um, por um algoritmo. Em todos constam os mesmos símbolos:
S1 = o significante mestre
S2 = o saber
$ = o sujeito
a = mais-de-gozar
O que distingue entre si, os quatro discursos, é a posição dos símbolos. Há quatro
posições, cada uma delas com uma designação específica:
agente
verdade
outro_
produção
Os discursos se definem escrevendo os quatro signos em posições diferentes,
preservando, sempre, a mesma ordem. Assim, cada discurso surge de um giro dos
símbolos de um quarto de volta. Podemos supor que a territorialidade que é criticada por
Schechtman é ditada por um mestre que não leva em conta as motivações subjetivas do
55
paciente. Podemos associá-la ao discurso do mestre, ou seja, um discurso que recobre a
divisão subjetiva com o significante mestre, tal como Lacan o propõe:
Porém, ao se inspirar na idiorritmia de Barthes, o autor pretende que o sujeito
tome as rédeas de sua posição, o que lhe permite conciliar ao mesmo tempo sua relação
com o mundo externo e com o gozo íntimo, que não passa pelas experiências de troca no
laço social. O discurso da histérica, proposto por Lacan, nos dá a dimensão dessa posição
do sujeito no discurso:
$
a
→
S1
S2
Como falamos anteriormente, a psicanálise parte do princípio de que é preciso
saber fazer com o resto de gozo, que é estranho tanto para o sujeito como para o mundo
que lhe rodeia. É a partir desse resto elevado a condição de agente do discurso – e
igualmente causa do laço social64 - que a psicanálise pode se aproximar do conceito de
territorialidade da saúde mental. O discurso do analista tem a seguinte expressão:
a → $
S2
S1
6464
Já que o objeto a é ao mesmo tempo mais-de-gozar e cauda do desejo
56
A fragilidade do laço e o homem de massa
Após termos abordado a questão do Outro barrado e da territorialidade que faz o
laço social, podemos interrogar de que modo se produz a coletividade no mundo
contemporâneo. Essa interrogação parte do fato de que os discursos vigentes não
garantem necessariamente a adesão do sujeito ao laço social. Como resultado, temos cada
vez mais a formação de comunidades de identificações débeis, que se mantém apenas por
identificações imaginárias (Tendlarz, 2006)65. Gaspard igualmente afirma que, de modo
crescente, a clínica atual se depara com uma espécie de debilidade mental do sujeito
contemporâneo. Trata-se de uma debilidade em tomar a palavra a partir de um discurso
estabelecido, permanecendo, desse modo, fragilmente conectado ao Outro. Ele toma por
base o Seminário XVII para constatar o encontro de sujeitos que não mais se inscrevem,
como agentes, em nenhum dos quatro discursos lacanianos66 para constituir uma rede de
intersubjetividade (Gaspard, 2008).
Encontra-se na clínica uma quantidade cada vez maior de sujeitos capturados por
duas novas formas de discurso, o discurso da ciência e aquele que Lacan problematizaria
como um falso discurso, o discurso capitalista (Lacan, 2003h), falso precisamente pelo
fato de não fazer laço social. Se Lacan os chama de falsos é porque, nesses últimos, não
entra em questão a divisão subjetiva. No primeiro pelo fato de que há na ciência uma
foraclusão do sujeito (Lacan, 1966g) e no segundo pela miragem de anulação dessa
divisão que acompanha a completude do objeto (Gaspard, 2008).
65
66
Tendlarz, S., O patológico da identificação, p.5
A saber, o discurso do mestre, da histérica, do universitário e do analista
57
As novas formas de associação de grupos não seguem o modelo de identificação
ao líder, proposto no capítulo VII do texto Psicologia das massas por Freud (Freud,
1981). Freud, quando pensou sua teoria da identificação, o fez em torno da figura do
líder, que é inspirado na própria imago paterna. A identificação surge como resposta do
sujeito aos impasses do desejo: “É fácil exprimir em uma fórmula a diferença entre tal
identificação ao pai e a escolha do pai como objeto. No primeiro caso o pai é o que se
queria ser, no segundo, aquilo que se queria ter.” (Freud, 1981)67
É nesse sentido que para Lacan, a direção do tratamento analítico trabalha no
sentido contrário às identificações, visando alcançar o sujeito do desejo separado de seus
ideais (Lacan, 1966f). A separação do sujeito de suas identificações, poderíamos supor,
seria por excelência o modo como o sujeito passaria da clínica do diagnóstico comum
para a clínica do caso único. Clínica onde sua queixa e seu sintoma não podem ser
comparados aos de nenhum outro.
O problema atual é que a identificação ao líder implica em uma renúncia de gozo,
e esta renúncia está cada vez mais distante dos imperativos contemporâneos. Nesse
sentido, a ascensão do hedonismo, impulsionada pela miragem capitalista do consumo,
faz com que o sujeito dispense os grandes significantes que possam representá-lo para o
Outro social. O profundo remanejamento de todas as esferas da vida humana promovido
pela ciência fez com que, cada vez mais, o sujeito prescinda dos ideais e invente seu
próprio estilo de vida, ou seja, seu modo particular de viver a pulsão (Laurent, 1993a)68.
Desse modo, abriu-se um espaço consideravelmente maior para a busca do gozo em
67
68
Freud S., Psychologie de Foules, p.168
Laurent, E., Styles de vie, p.3
58
detrimento da busca dos ideais. É o que Miller nos descreve com o matema: a > I (Miller,
2005b)69.
Ou seja, o sujeito contemporâneo não busca os ideais, goza diretamente do objeto.
Passamos dos grandes símbolos às grandes marcas das vitrines. Ao colocar o sujeito
diretamente conectado com seu modo de gozar, o discurso capitalista é um obstáculo ao
laço social no momento em que, citando Ferrari, “favorece a passagem da fantasia,
máquina de produzir solidão, à realidade” (Ferrari, 2008)70.
Não se trata, contudo, de uma anulação do modelo freudiano de associação em
grupos. É possível constatar que a multiplicação de estilos de vida e o empobrecimento
dos valores universais continuam sendo coerentes com a teoria freudiana da identificação
(Laurent, 1999). A diferença, apenas, é que a falência das grandes instituições
modelizadas por Freud - a saber, a igreja e o exército, tradicionais bastiões da ordem
pública - abriu espaço, no vácuo identificatório que se seguiu, para a identificação ao
semelhante e não mais ao líder71. Trata-se, a nosso ver, de uma massa ainda mais amorfa
do que a massa configurada pela identificação ao líder.
Em 69, Lacan faz um raro comentário sobre a reforma psiquiatria. Ele ocorreu em
uma entrevista ao jornal francês Le Monde, onde comenta a reforma psiquiátrica na
França (Lacan, 1969). Nesse texto, ele antecipou os riscos da separação da psiquiatria
entre psiquiatria social e psiquiatria científica, esta sob o domínio crescente dos
laboratórios farmacêuticos. Por um lado, uma Sociatria72 que se afastaria cada vez mais
da seriedade da investigação científica, por outro, a psiquiatria científica completamente
69
Miller J-A., El Outro que no existe...p.112
Ferrari, I., A realidade social e os sujeitos solitários, p.23
71
Laurent, E., Politique de l´unaire, p.18
72
Sociatrie, tradução nossa
70
59
tomada pelas seduções do mercado. Sob o rótulo de ciência, o que se vê com muito mais
freqüência é a valorização da técnica (Habermas, 1973). Esse movimento se passa na
esteira das novas relações entre filosofia e ciência, uma vez que o pensamento científico,
com o conseqüente afastamento de Deus do mundo físico, introduziu a separação entre
metafísica e ciência (Chalmers, 1987)73. É o que conduz diversos autores a afirmar que a
ciência, ao se afastar das questões ligadas ao Um da filosofia, dedicou-se ao múltiplo da
técnica (Habermas, 1973; Badiou, 1988; Renaut, 1995).
Em um mundo tomado pela técnica, é dela, e não mais do Um sustentado pela
teologia e filosofia, que surge a questão da identificação. Assim, uma forma derivada da
identificação ao semelhante é a identificação aos novos rótulos que lhe são impostos pelo
discurso da ciência. É o que configura uma nova clínica, para a saúde mental, onde
predominam as patologias da identificação (Mandil, 2007). Os pacientes ao se dirigirem,
tanto aos serviços públicos quanto aos psicanalistas, já chegam com um pré-diagnóstico,
feito por eles mesmos, a partir de alguma informação proveniente da vulgarização da
ciência. Ao ler um jornal ou alguma revista de moda feminina encontra-se com
freqüência cada vez maior um questionário que dará uma identificação ao sujeito.
Como conseqüência, presenciamos o surgimento de comunidades sintomáticas
que se organizam em torno do modo de gozar do sintoma e não em torno do Pai. São
comunidades que dispensam a função de nomeação paterna gerando uma verdadeira
epidemia de irmandades anônimas: alcoólicos anônimos, bulímicos anônimos, viciados
em jogo anônimos, etc. Não por acaso, a toxicomania, o alcoolismo e a anorexia se
tornaram preocupações constantes das novas políticas de saúde mental. Nessas três
condições sintomáticas, o gozo é desalojado do campo do Outro, promovendo a
73
Chalmers, A., Qu’est-ce que la science?, p.21
60
dissolução progressiva do tecido social. Surge um contingente cada vez maior de sujeitos
narcisicamente enclausurados pelo gozo solitário, conectando-se ao laço social por um fio
cada vez mais frágil: o dealer, a virtualidade da internet, o sexo casual, etc. Enfim, nos
fica o desafio da resposta a uma questão que o clínico ouve cada vez mais em sua prática:
para que me incluir se já tenho o gozo que busco?
A partir dessa constatação podemos cotejar a teoria da identificação freudiana
com a crítica que faz o filósofo Ortega y Gasset sobre homem de massa. Para ele, a
questão da psicologia das massas é pensada sob a ótica da segregação. Sua obra mais
importante, A rebelião das massas, prenunciou que o mundo, tomado pela técnica,
forjaria as bases para a criação do homem mediano, o homem no qual cresceria o horror
ao anormal e à exceção (Gasset, 2007). No pensamento de Ortega y Gasset, a massa é
passiva, sem vontade nem critérios, levando à negação de duas das principais condições
da democracia: a autonomia intelectual e a participação (Esquirol, 2002)74.
Psicologicamente, o homem de massa é satisfeito e em plena sintonia com a
homogeneidade e indistinção social. Ele não tem nenhum projeto que lhe seja próprio e
não faz nenhum esforço para uma realização pessoal, consumindo e gozando das mesmas
coisas que os outros. Tudo que se afasta desse platô monótono da normalidade é
percebido com desconfiança e facilmente se converte em alvo de segregação.
A massa conduz, inexoravelmente, ao apagamento da inquietude criativa. A
rebelião das massas, sobretudo quando pensamos que ela foi escrita antes dos
extermínios da segunda guerra, traz um importante alerta para os riscos de segregação e
74
Esquirol J.M., Ortega y Gasset: la technique et « l’homme de masse », p.125
61
eliminação da anormalidade: “aquele que não é como todo mundo, que não pensa como
todo mundo corre o risco de ser eliminado”.75
Para Esquirol, a obra de Ortega Y Gasset indica que o protótipo, por excelência
do homem de massa, seria precisamente o homem da ciência, aquele que é definido e
instituído pelas normas e cifras, distante de tudo que é exceção e extravagância. O
homem “transformado em novo bárbaro (ironicamente) pela ciência76. Esse homem é
construído através de cifras e medidas que são ligadas, fundamentalmente, às suas
características e evidências. O que se perde, nessa manobra, é precisamente o pequeno
detalhe que faz a singularidade de um ser. A clínica psicanalítica, ao contrário, não se
baseia em evidências, o inconsciente é justamente o seu avesso, quando ele se manifesta,
ele é apenas uma evidência que mente. Somente podemos falar em psicanálise quando
nos separamos desse homem mediano.
II. 1. 3 – O sujeito perdido nas normas
O homem de massa não é uma peça esquecida no ideário do século passado.
Encontramos sua atualização na ficção do homem normal (Maleval, 2008), e igualmente
na leitura atual que faz Miller do Homem sem qualidades de Robert Musil (Miller,
2004a). Ambos de extrema atualidade. Como a psicanálise vê a questão da normalidade
no mundo contemporâneo? Podemos responder que a normalidade é um semblante
instituído pela ciência. Ulrich, o personagem de Musil, demonstra que por baixo da
superfície das qualidades, há um “ser pulsional de difícil domínio, que priva as
75
76
Esquirol J.M., op. cit. p.124
Idem, p.126
62
qualidades de sua substancialidade” (Hanke, 2004)77. Vemos nesse comentário, uma
definição que se aplica bem ao real de Lacan.
A disjunção entre real e sentido, na teoria lacaniana, faz com que nunca se tenha a
boa palavra para se falar do real (Lacan, 1974c). Para Miller, no momento atual, procurase cada vez mais entender o psiquismo humano através da resposta certa que faria a
adequação entre estímulo e resposta, sem deixar restos. Esta adequação está na base de
toda terapia cognitivo-comportamental e marca uma profunda diferença dos métodos
psicanalíticos. Até mesmo porque em Lacan, o real seria, ironicamente, um estímulo que
teria a propriedade especial de sempre produzir uma resposta inadequada (Miller, 2004c).
Como conseqüência dessa busca pela resposta adequada, Miller aponta o
surgimento de uma verdadeira ‘teologia do normal’, que ameaça diretamente o futuro da
psicanálise:
O nome de Deus, hoje, é o Normal. Com ares científicos, nos é proposta uma
teologia do normal, enquanto o beabá do que nos ensina a psicanálise através
de Lacan é que o psiquismo, como tal, não é normal. A normatização do
psíquico é o seu desaparecimento, sua supressão78.
Miller comenta como a intolerância ao ilegalismo e a tudo que contraria as regras,
profetizada por Foucault em Vigiar e punir (Foucault, 2004), tornou-se uma questão
atual79. “O anormal é um monstro cotidiano, um monstro banalizado”. Nessa frase,
Foucault denuncia, de forma crua, a pouca esperança que depositava na integração dos
desvios da norma pelo mundo civilizado (Foucault, 2002). Um dos maiores legados de
Foucault foi justamente a demonstração de que a designação de uma anormalidade nunca
é neutra e envolve sempre uma relação de poder.
77
Hanke, M., A qualidade do “Homem sem qualidades” de Robert Musil, p.138
Miller, J-A., Théologie du normale, tradução nossa
79
idem
78
63
O título desse sub-item alude a uma das mais importantes obras brasileiras sobre
medicina social e psiquiatria, A Danação da Norma, 1978, de Roberto Machado
(Machado, 1978). Para além da validação ou refutação do saber científico em questão,
essa obra analisa, tal como a escola foucaudiana, o papel da medicina como instrumento
técnico-científico a serviço do poder do Estado no Brasil. É o que, nas palavras de
Agamben, implica em uma “incompreensível intrusão de princípios biológico-científicos
na política [...] e que adquirem seu verdadeiro sentido apenas quando são restituídos ao
comum contexto biopolítico (ou tanatopolítico) ao qual pertencem” (Agamben, 2007)80.
O equívoco da concepção de uma saúde mental orientada pela norma e pela
tecnologia, apenas aumentaria os efeitos deletérios sobre as políticas de integração das
diferenças. Trata-se do temor anunciado por Habermas de que o mundo entre em uma
escalada crescente e perigosa de cientificidade da política e da opinião pública
(Habermas, 1973)81.
Ao cotejarmos a psicanálise com a saúde mental, lembramos que a sombra do
Estado exerce igualmente, de modo cada vez mais freqüente, o poder de regulador e
controlador da prática analítica. O livro de Machado nos mostra que a história anda em
círculos quando busca justificativa científica para segregar o comportamento que é
discordante das massas.
Assim, Roudinesco comenta os efeitos na política de saúde mental da adoção de
“uma concepção comportamental da condição humana, o DSM, Manual diagnóstico e
estatístico dos distúrbios mentais”, como única referência “científica” para a classificação
das doenças mentais. Segundo a autora, a saúde mental dos Estados democráticos ficou
80
81
Agamben, G., Homo Sacer, p.128
Habermas, J, La technique et la science comme “idéologie”, p.97
64
submetida a um imperativo, ao mesmo tempo, biológico e de segurança. Como exemplo,
ela cita o rastreamento da anomalia psíquica, que faz com que crianças rebeldes à
escolaridade sejam tratadas como doentes, recebendo prescrição de ritalina, sem que nada
se saiba sobre as causas psíquicas ou sociais de seu mal-estar (Roudinesco, 2005)82.
Encontramos, portanto, o paradoxo engendrado pela crise dos antigos ideais e
pela ascensão da ideologia da quantificação. Como vimos na parte precedente, o sujeito
se inscreve no laço social por um traço singular, mas este não é levado em consideração
no momento da avaliação quantitativa, já que apenas o que pode ser comparado com o
outro é levado em conta. Assim somente é medido o que é possível medir. Definida como
a soma de todos os possíveis, a normalidade torna-se, desse modo, cientificamente
possível83. É a partir da clínica do caso único que afirmamos que ser normal é impossível.
Vale aqui lembrar o lema adotado pela luta Antimanicomial, extraído de uma canção de
Caetano Veloso, “De perto ninguém é normal”. Ao que Paulo Amarante contrapõe, se
ninguém é normal, igualmente ninguém pode ser considerado anormal (Amarante,
2007)84.
A clínica psiquiátrica, cada vez mais, se dirige para a identificação de normas que
permitam a quantificação e correção das condutas desviantes. No debate com a
psiquiatria de nosso tempo é possível perceber que não se confirmaram os temores de
Henri Ey sobre a insistência de Lacan na causalidade psíquica das doenças psiquiátricas85
82
Roudinesco, E. 2005, p.87
O psiquiatra Valentim Gentil Filho, professor da USP, em entrevista à revista Veja, narrou que, após
examinar centenas de candidatos, conseguiu isolar 70 homens e mulheres perfeitamente normais: “...que
estariam livres de quaisquer transtornos psíquicos e se comportariam com a propriedade exigida pelas
circunstâncias da vida – sem exageros ou carências de comportamento e ação. Uma das conclusões já
obtidas
é que, com a ajuda de antidepressivos, é possível tornar alguém normal ainda
mais...normal.”(Buchalla, 2006)
84
Amarante, P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial, p.19
85
Arce-Ross, 1997, p.90
83
65
(Arce-Ross, 1997). Para Ey, “se nós devêssemos seguir Lacan em sua concepção da
psicogênese não haveria mais psiquiatria.” Hoje percebemos que o risco maior à
psiquiatria não vem da causalidade psíquica, tal como foi proposta por Lacan (Lacan,
1966j), e sim das neurociências e da psiquiatria biológica. Na busca de uma psiquiatria
científica desfigurou-se a própria psiquiatria defendida por Henri Ey. A nova clínica
psiquiátrica é uma clínica sem palavras, onde se busca eliminar a subjetividade para
torná-la mais próxima das novas formas de avaliação quantitativa da ciência.
Laurent afirma que essa é uma das principais conseqüências da ruptura promovida
pelos sucessivos DSM, a produção do “homem sem subjetividade”. Segundo a autora, a
psiquiatria, para tornar-se uma disciplina médica “autêntica”, teve que abrir mão de uma
parte importante do julgamento pessoal que estava a cargo dos psiquiatras (Laurent,
2007)86. Foi necessária essa manobra para que os psiquiatras pudessem entrar pela porta
da frente no hospital geral. Esse não deixa de ser um aspecto curioso e que trai a
desarmonia do campo da saúde mental. Hoje, mesmo os projetos de reforma psiquiátrica
apoiados pelos setores do campo psi mais resistentes ao hospital psiquiátrico – como, por
exemplo, a luta antimanicomial – apóiam a criação de leitos psiquiátricos em hospital
geral. Mas não seria esta, justamente, uma forma de valorizar ainda mais a causalidade
orgânica da loucura?
Na França, um projeto de lei feito pelo Estado, de regulamentação da profissão de
psicoterapeuta, entre os quais os psicanalistas estariam incluídos, ainda suscita viva
polêmica e protestos da maior parte do meio psicanalítico. Maleval chama atenção
especificamente para o artigo 52 dessa lei. Nele, os psicoterapeutas devem, em sua
formação, passar por um curso obrigatório de psicopatologia. A crítica que esse autor faz
86
Laurent, D., Le médicament saisi para la logique de la technique, p.10
66
ao artigo 52 passa pela própria redação, já que é prescrito que os terapeutas devem
aprender
a
distinguir
o
“desenvolvimento
normal
dos
grandes
estados
de
desenvolvimento, a saber, o bebê, a infância, a adolescência a idade adulta e a velhice
buscando identificar suas diferentes etapas do desenvolvimento afetivo, comportamental
e cognitivo” (Maleval, 2008). Para ele, a psicopatologia forja necessariamente a hipótese
da existência de um homem normal. A seu ver, seria esta a razão pela qual, muito cedo,
Freud teria abandonado o uso da psicopatologia preferindo substituí-la pela
metapsicologia.
É verdade que Freud se serviu de uma Psicopatologia da vida cotidiana para
designar a interpretação do menu feito dos fatos da vida corrente, como os
atos falhos, esquecimentos e lapsos; mas esta psicopatologia não tinha nada de
normativa87.
Castanet identifica, nessa instrumentalização das políticas que desenham as
estratégias de Saúde Mental pela técnica, um projeto explícito de promover o
desaparecimento da psicologia clínica e da psicanálise das universidades e dos serviços
públicos. Ele cita, como exemplo, o affair Accoyer, deputado francês que, por pouco, não
conseguiu passar uma lei na França regulamentando a profissão do psicanalista, o que, na
prática, significaria o estado tomar para si o controle da formação e desempenho dos
psicanalistas franceses. Para tanto, Accoyer se baseou em um relatório feito por técnicos
do mais importante órgão de pesquisa da França, o INSERM, de inspiração
exclusivamente cognitivo-comportamental (Castanet, 2004).
Milner coloca essa questão como central para saber de que forma as profissões
“psi”, assim como todas as profissões que se ocupam do mal estar de viver, se
organizarão nas próximas décadas (Miller e Milner, 2004). Ao analisar a emenda
87
Maleval, J-C., Vers une nouvelle “Psychopatologie clinique” d´État, p.30 – tradução nossa
67
Accoyer, ele aponta um procedimento que, embora equivocado, obedece a uma lógica
bastante clara, e que é forjado pelo acúmulo de vários silogismos: uma vez que se admite
que a saúde mental é questão de saúde pública, e que a saúde pública é dever do Estado, a
saúde mental é dever do Estado. E, como o mal estar de viver é problema de saúde
mental, todo mal estar de viver é problema do Estado.
Milner ressalva que há a combinação de dois paradigmas que são emblemáticos
dessa conjuntura, que pode ser chamada de moderna. Por um lado o paradigma problemasolução e, por outro, o paradigma da avaliação (Miller e Milner, 2004)88. Essa
combinação é uma forma exemplar de se produzir o homem de massa proposto por
Ortega.
Para concluir essa parte, deixemos que o próprio Lacan nos dê sua opinião sobre a
normalidade:
Quando eu escuto falar do homem da rua, [...] de fenômenos de massa e de
coisas deste gênero, eu penso em todos os pacientes que eu vi passar sobre o
divã em quarenta anos de escuta. Nenhum deles, em qualquer medida, era
semelhante ao outro, nenhum tinha as mesmas fobias, angustias, o mesmo
modo de contar, o mesmo medo de não ser compreendido. O homem
mediano, o que é isto? Eu, você, minha porteira, o presidente da
República?(Lacan, 2004a)89
88
89
Miller J-A e Milner J-C, Voulez-vous être evalué ? p.14
Lacan, J., Entrevista ao Magazine Litéraire, p.28 – tradução nossa
68
II. 2 – Psicanálise e saúde mental, encontros e desencontros
Após termos comentado o modo como a contemporaneidade impõe novas
situações e exige novas respostas da psicanálise e da saúde mental, passaremos a estudar
o modo como os dois campos, na prática cotidiana, se aproximam e se distanciam. Como
afirmamos no sub-item precedente, os dois campos se organizam a partir de discursos
distintos. No que toca à saúde mental, a questão se torna mais complexa devido ao fato
que diversos significantes mestres, muitas vezes contraditórios, brigam entre si para
ocupar o lugar de agente no discurso. Com efeito, em nossa prática junto ao campo,
psiquiatras, assistentes sociais, juristas, religiosos, “psis” de todas as correntes, etc., falam
em nome da saúde mental, muitas vezes a partir de diretrizes (S1’s) contraditórias.
Em Lacan, a expressão mais conhecida da interseção entre psicanálise e saúde
mental foi cunhada em 64, no momento de fundação de sua Escola: psicanálise aplicada.
Nesse texto, a psicanálise aplicada se dirige a um enquadramento muito bem delimitado
pelo autor: a clínica médica e a terapêutica (Lacan, 2001a)90. Aos poucos, passou-se a
usar o conceito de psicanálise aplicada para indicar qualquer ação que fosse externa ao
divã do analista. “Passou o tempo da figura mítica do psicanalista limitando seu campo
de atividade às paredes de seu consultório para convencer de sua devoção à causa privada
de seus analisantes.” (Matet e Miller, 2007)91.
Porém, no mesmo Ato de fundação em que Lacan fala de psicanálise aplicada, ele
nos dá uma indicação precisa de que o campo de trabalho da Psicanálise, aberto por
90
91
Lacan, J., Ato de fundação, p.237
Matet J-D, e Miller, J., Apresentação, p.2
69
Freud, necessitava recuperar sua lâmina da verdade (Lacan, 2001a)92. Entendemos que há
um risco real de que a psicanálise aplicada não acabe por se tornar uma psicanálise
menor, sem o mesmo rigor da psicanálise pura. Assim, ao pensarmos em uma interseção
possível, vale à pena retomar a distinção que iniciamos ao falar da noção de
territorialidade. O que interessa à psicanálise é o modo como o discurso do analista
mantém sua especificidade, não se deixando confundir com os outros discursos que
atravessam a saúde mental. Se antes a psicanálise em instituições era vista com reservas
pelos próprios analistas fazemos eco as palavras de Cottet ao afirmar que “parece
antiquado opor a pureza do ato analítico às “mãos sujas” do psicoterapeuta” (Cottet,
2007)93. Mesmo porque, nada nos impede de observar a mesma temida degradação da
técnica nos próprios divãs dos psicanalistas94.
Assim, o campo psicanalítico leva em conta o real que escapa aos discursos. Ao
afirmar que o real é o impossível, Lacan se distancia do campo da saúde mental, pois a
característica do real é que nenhum S1 pode recobri-lo, tampouco algum saber (S2)
(Lacan, 1967b). Como veremos a seguir, estamos aqui no âmago da discussão sobre
psicanálise pura e psicanálise aplicada. Nesse sentido, não se trata de conhecer o real,
apenas demonstrá-lo. Daí a importância do conceito de ato analítico na teoria lacaniana.
É pelo ato que se pode demonstrar o real e extrair dessa demonstração alguma
conseqüência. A melhor definição de ato seria a intervenção do analista que provoca uma
ruptura entre o antes e o depois. Acreditamos que, através de seu ato, o psicanalista marca
uma presença inédita em uma instituição psiquiátrica. O analista pode estar presente em
uma instituição para curar, ensinar, supervisionar, mas nestas funções ele estará sempre
92
Lacan, J., Acte de fondation, p. 229.
Cottet, S., O psicanalista aplicado, p. 27
94
Idem, p.28
93
70
do lado da psicanálise aplicada, ou de extensão. Na clínica do caso a caso, nas
apresentações de pacientes, e nos demais modos de apontar para o real, o analista se
aproxima da psicanálise pura95.
Assim, formalmente não haveria sentido em dizer que o real faz parte do campo
da psicanálise, já que não é possível transmitir algum saber sobre ele (Badiou, 1999)96, o
que faz Lacan dizer nos anos 70: “o que me salva do ensino é o ato” (Lacan, 2003a)97. É
preferível afirmar, portanto, que o campo da psicanálise encontra o campo da saúde
mental quando a prática clínica tropeça no impossível. É como propomos ler a tese de
Lacan de que o ato é bem sucedido quando algo fracassa (Lacan, 2003c)98: o discurso
institucional tem que fracassar para que o real apareça.
O primeiro a evocar essa impossibilidade foi Freud. Notamos isso quando ele
afirma que é impossível eliminar as três fontes de sofrimento universal, as quais ele se
referiu no Mal estar na civilização: a potência esmagadora da natureza, a caducidade do
próprio corpo e a insuficiência das medidas destinadas a regular as relações dos homens
entre si (Freud, 1971 (1929))99. Em Lacan, essas três modalidades do impossível seriam
três modos de evocar o real: o insensato, a morte e a impossibilidade da relação sexual.
Podemos afirmar, com Freud e Lacan, que a psicanálise se ocupa do que, no campo da
saúde mental, surge como o impossível. No caso da loucura, propomos pensar a
psicanálise, não como o oposto da saúde mental, mas como seu negativo:
Na loucura, seja qual for sua natureza, convém reconhecermos, de um lado, a
liberdade negativa de uma fala que renunciou se fazer reconhecer, ou seja,
aquilo que chamamos obstáculo à transferência, e, de outro lado, a formação
95
Retomaremos a questão da demonstração do real no capítulo V através de um estudo de antropologia
visual
96
Badiou, A., Lacan e o real, p. 67
97
Lacan, J., Alocução sobre o ensino, p.309
98
Lacan, j., Discurso na Escola Freudiana de Paris, p. 270
99
Freud S., Malaise dans la civilisation, p.32
71
singular de um delírio que – fabulatório, fantástico ou cosmológico;
interpretativo, reivindicativo, ou idealista – objetiva o sujeito em uma
linguagem sem dialética (Lacan, 1998)100.
Ao ler esse fragmento, percebemos que a psicanálise visa a liberdade negativa que
não é acolhida pelo Outro, negando ao louco a dialética que o relançaria no laço social.
Algo da clínica aparece como singularidade impossível de ser absorvida no discurso
universal. Porém, o que a psicanálise pode oferecer como invenção é precisamente um
modo de passar essa formação singular e fora da dialética para o campo do Outro
(Maleval, 1996)101.
Biopsicossocial ou sinthoma?
Para termos uma visão dos pontos de aproximação e separação entre psicanálise e
saúde mental, tomemos inicialmente a questão do ser biopsicossocial, preconizado pela
OMS (Murthy, 2001). Trata-se de uma concepção bastante diferente da noção de
sinthoma de Lacan. A partir do Seminário R.S.I., Lacan constrói uma teoria para o laço
social ainda mais distinta do que representa o laço para a saúde mental. O laço social, até
então trabalhado em seu ensino a partir dos quatro discursos, pode ser visto sob a
perspectiva dos nós borromeus. Adiante, quando nos detivermos na teoria das psicoses,
abordaremos com mais detalhes a teoria dos nós. Por enquanto registramos que o
enodamento dos três registros, real, simbólico e imaginário, traz uma nova perspectiva
sobre o campo “psi”. A diferença fundamental entre o laço social da teoria dos discursos
100
Lacan, J., Função e campo... p.281
Maleval, no seu livro La logique du delire, concebe esse processo em três etapas: significantização do
gozo deslocalizado, identificação do gozo no Outro e consentimento regulado ao gozo do Outro.
101
72
e o nó borromeu, idealizado nos anos setenta, é justamente o abandono de um laço
puramente discursivo para incluir a opacidade do corpo e o modo como o sujeito
psicótico encontra uma invenção singular para a fixação do gozo (Miller, 2003a). Gozo
que foi desalojado ou desestabilizado do campo do Outro, constituindo um enigma para o
sujeito no momento do desencadeamento da psicose (Maleval, 1996)102.
No Seminário RSI, os três registros se sustentam através da amarração
borromeana, amarração que é a função própria ao Nome-do-Pai103. Tratar o pai como
uma função que enlaça os três registros, ou seja, considerá-lo o nó, e não uma das cordas
significa que o pai não é feito do barro de nenhum dos três registros, ele é apenas a
função de amarração104. O que muda em sua teoria é que, enquanto nos anos cinqüenta a
metáfora paterna, em sua posição de exceção, garantia a ordem das coisas, nos anos
setenta será necessário que a função se apóie no sinthoma105. O que muda com o
sinthoma? A mudança é que a amarração entre real, simbólico e imaginário, antes
garantida por um símbolo universal, o NP, passa a ser garantida por uma invenção
singular.
Aflalo considera que a abordagem biopsicossocial é o verdadeiro sintoma da
saúde mental (Aflalo, 2005). Apesar do social, tão caro às suas bases, a abordagem não
garante nenhuma amarração que o situe além da fragmentação dos diversos discursos.
Para a psicanálise, o ser biopsicossocial não é consistente pelo fato mesmo de que nada
garante que os três registros encontrem a harmonia pretendida no ideal do
biopsicossocial. É o que leva Lacan a sustentar em seu último ensino que o mental é
102
Maleval, J-C., La logique du delire, p.101
Lacan, no Seminário XXIII, diz que o NP tem essa função, mas também diz que o complexo de Édipo
tem essa função, não havendo, portanto uma diferença relevante entre os dois.
104
Voltaremos a esse ponto mais adiante
105
Como veremos no capítulo IV
103
73
sempre marcado por uma debilidade. Somente há sinthoma devido à precariedade do
mental, como afirma Miller: “a debilidade mental quer dizer que o falasser é marcado
pela desarmonia entre o simbólico, o real e o imaginário” (Miller, 2003b)106.
Na tentativa de reconciliar essa fragmentação, afirma Aflalo, toma forma no
momento atual um discurso que, em sua pretensão científica, substitui o papel do pai pela
norma científica. Para ela, a evidência científica torna-se, no século XXI, o único
significante mestre que é considerado irrefutável. É o que faz, a seu ver, da clínica atual
uma teratologia, já que o sofrimento psíquico é reduzido a uma causa primária, genética,
e uma causa secundária, adquirida. Assim, toda causalidade psíquica tem sempre um
caráter secundário, e ainda assim, traduzida por uma constelação de maus
condicionamentos
a
ser
demonstrados
e
corrigidos
por
terapias
cognitivo-
comportamentais. Nessa ótica, o sintoma “não é mais um fato de linguagem encobrindo
uma verdade, mas um erro de julgamento a ser corrigido” 107.
Os princípios da saúde mental, na busca do ser biopsicossocial, procuram fornecer
um novo arcabouço identificatório do ser. O que antes era a função do pai perdeu muito
de sua potência fazendo emergir o que poderíamos chamar de patologias da identificação
(Tendlarz, 2006; Mandil, 2007). Esse movimento da contemporaneidade é perfeitamente
compatível com a evolução da função paterna no ensino de Lacan. O fato de o pai deixar
de ser um nome para ser uma função tem suas conseqüências. A função nunca é a mesma
para todos. A amarração, em relação à lei, estará permanentemente do lado do privilégio,
como veremos adiante em um comentário de Miller. Ela escapa ao cálculo coletivo, pois
106
107
Miller, J-A., O último ensino de Lacan, p.13
Aflalo A., A orientação lacaniana ou a “ciência” psicanalítica? p.37
74
não depende mais do NP e terá que ser obtida mediante uma invenção que está sempre do
lado do sujeito e não do Outro.
Na conversação multidisciplinar, a psicanálise se destaca por explicitar essa
diferença, não como um discurso de exceção e sim como um discurso que recolha as
exceções, ou seja, os fragmentos de ditos que não fornecem sentido algum aos
dispositivos coletivos, e que representam o que o sujeito tem de mais íntimo. Trata-se de
apreender a significação privada de um significante, o órgão de gozo que escapa à
descrição anatômica, as invenções e escolhas éticas que garantem ao sujeito uma
amarração que lhe assegure um lugar no mundo dos homens.
Como passaremos a ver a seguir, a prática cotidiana nas instituições é recortada
por discursos e disputas que acabam por relegar a clínica ao segundo plano. Trata-se de
promover a invenção do sujeito na clínica “entre vários” (Baio, 2007). É preciso,
contudo, remarcar que, se há muitos trabalhadores envolvidos, é porque os casos muitas
vezes o exigem. Ou seja, a gravidade do quadro clínico muitas vezes torna inviável o
tratamento em um consultório. A presença do psicanalista na instituição passa pela
capacidade de extrair desse múltiplo institucional algum partido possível (Kusnierek,
2007)108. Veremos como a psicanálise pode integrar a conversação entre discursos tão
díspares tomando como exemplos a questão da burocracia na organização do atendimento
e a crescente participação do discurso jurídico na clínica da loucura. Dessa babel, surgem
restos de dizeres, verdadeiros ruídos de comunicação, que são a principal justificativa
para a participação do psicanalista nas equipes de saúde mental.
108
Kusnierek, M., Pertinências e limites da prática entre vários, p.163
75
II. 2. 1 - O objeto a e a burocracia
A psicanálise lacaniana tem, como agente de seu discurso, o objeto a. Sabemos
que sua incidência se faz de modos diversos na obra de Lacan, uma não invalidando a
outra: causa do desejo, mais de gozar, resto, semblante, etc. Podemos dizer que há uma
redefinição do campo da psicanálise na obra de Lacan. O discurso de Roma, de 1953, traz
a questão do campo logo em seu título, Função e campo da fala e da linguagem em
Psicanálise. Surge, no título da segunda parte desse texto, inclusive a menção ao limite
do campo psicanalítico (Lacan, 1966c). Ao forjar o discurso do analista, tendo o objeto a
na função de agente, acreditamos que Lacan funda finalmente seu próprio campo, não
apenas campo psicanalítico, ou campo freudiano como ele mesmo referia, mas campo
lacaniano.
Como vimos anteriormente, o campo da saúde mental, o obstáculo para nosso
desenvolvimento é o que Lacan denominou sua debilidade discursiva, ou seja, a flutuação
entre múltiplos discursos e significantes mestres, que por vezes estão em franca
contradição. No momento em que propõe seus quatro discursos, Lacan estabelece que as
relações entre os elementos discursivos incluem sempre uma questão política. Essa
posição deriva do fato de que todo agente de um discurso assume uma posição de
comando. Essa flutuação dos discursos, no melhor dos casos, faz da saúde mental uma
questão política, no pior, o campo se torna palco de disputas de poder em que muitas
vezes o paciente é o maior prejudicado. Ciaccia, vê essa situação com certo humor:
[...] há muitas modalidades de prática entre vários: desde a que acontece com
vários comparsas – como o tratamento do psicótico às vezes exige – até a
prática entre vários, na qual, segundo Lacan, o “vários” se reduz, tal como
76
acontece no dispositivo analítico, aos quatro elementos em jogo em todo
discursos (Ciaccia, 2007)109.
A pluralidade de discursos, contudo, é um fenômeno típico do ambiente
institucional público, não apenas na saúde mental, mas igualmente em qualquer órgão
público que seja atravessado pela burocracia estatal. Esta burocracia exige documentos,
relatórios, ações igualitárias entre os profissionais, instalando, desse modo, um
dispositivo constante de verificação e demanda que facilmente constrói a idéia de um
Outro que pesa sobre todas as ações praticadas.
A clínica nas instituições públicas, portanto, lida permanentemente com o
sentimento de que há um Outro coeso e com intenções precisas, quando na verdade a
burocracia é a própria expressão de que o Outro não existe, uma vez que não há, por trás
da burocracia, nenhum significante mestre que seja o timoneiro das ações cobradas.
Assim, é preciso ressaltar que, quando dizemos haver um campo de trabalho em
comum, é porque a psicanálise não deve ser vista como mais uma das figuras do mestre
para instituição, que cobra resultados, culpabiliza seus praticantes, ou tenta impor seu
próprio discurso. Forjou-se, nos últimos anos, todo um programa investigativo sobre a
psicanálise e a prática institucional entre muitos (Baio, 1999; Ciaccia, 1999). A maioria
dos textos aponta um resto intratável que causa um mal estar que resiste aos significantes
provenientes dos diversos discursos em ação na instituição.
Tomemos, por exemplo, a passagem do psicanalista por uma equipe
multidisciplinar de um hospital geral. Com freqüência, a demanda que é feita ao novo
integrante não difere da demanda usual. A expectativa é que ele diagnostique o caso,
solucione o problema e diga como tratar o paciente para que ele volte para casa o mais
109
Ciaccia, A., Inventar a psicanálise na instituição, p. 75
77
cedo possível. Trata-se, portanto, de uma demanda terapêutica compatível, até certo
ponto, a psicanálise aplicada de Lacan. O risco surge no momento em que o efeito
terapêutico, que poderia vir por acréscimo, vira um imperativo da burocracia sobre o
psicanalista na instituição. Acreditamos, por isso, que a presença do analista não pode ser
institucionalizada, ela deve contribuir basicamente para o enriquecimento da própria
experiência psicanalítica110, o saber que ela visa não pretende elucidar ou
instrumentalizar as questões da burocracia, mas da estrutura.
Separamos os campos da saúde mental e da psicanálise, portanto, no momento em
que identificamos que a posição de cidadão ideal é distinta da posição de sujeito do
sinthoma. Para a psicanálise, a separação apenas se efetua no momento em que se
particulariza uma demanda através do dispositivo da transferência. A transferência impõe
um problema à saúde mental. Ela não pode ser imposta, desse modo ela inclui a
contingência, ou seja, a imprevisibilidade de um encontro que o gestor público pode
facilitar, mas nunca calcular exatamente suas coordenadas. Incluir a transferência nas
estratégias da saúde mental implica em restituir à clinica um espaço que ela vem
perdendo gradativamente. A distribuição dos serviços, nessa perspectiva, não pode
observar exclusivamente os critérios de praticidade, acessibilidade e logística da gestão
burocrática. A clínica psicanalítica, citando Miller (Miller, 2007c), é uma clínica que
inclui o privilégio no sentido de lex, lei, e privum, privado. Ou seja, uma clínica que
reintroduz o particular no universal das leis que buscam uma saúde mental para todos.
No que tange a transferência, essa particularidade é ainda mais evidente. O
tratamento psicanalítico está em pleno desacordo com os modelos de eficiência em
gestão, impostos pelos sistemas públicos de Saúde. Tomemos como exemplo o
110
Lacan, J., Acte de fondation, p.231
78
surgimento dos serviços de regulação de pacientes que são implantados, com maior ou
menor habilidade, em boa parte dos sistemas municipais de saúde.
As novas práticas de regulação, que visam equacionar o crônico problema de falta
de vagas nos dispositivos de Saúde Mental, ao tentar importar o modelo médico,
habitualmente não levam em conta que tratar o sofrimento psíquico é diferente de tratar a
doença corporal. Ou seja, a instituição nunca é anônima ou intercambiável. Zenoni chama
atenção para o fato de que, nas psicoses, a problemática é ainda mais complexa.
Enquanto na neurose trata-se de uma demanda de amor ao Outro - que pode inclusive ser
uma demanda ao Outro institucional – a transferência na psicose é “uma resposta ao amor
do Outro”(Zenoni, 2007). Assim, nas instituições psiquiátricas, a pergunta “O que quer a
instituição de mim?” nunca pode ser respondida burocraticamente.
Um cidadão que sofra um infarto ou tenha uma crise de vesícula pode ser
regulado – ou seja, encaminhado - para qualquer hospital da rede, o importante é que seja
solucionada, o mais rapidamente possível, sua situação clínica. Com o sofrimento
psíquico é diferente. Levar em conta a transferência nos dispositivos de saúde mental
implica em agregar a demanda subjetiva ao dispositivo regulador.
Expor o sujeito psicótico ao frágil múltiplo da rede é negligenciar que a
transferência tem um papel mais importante do que simplesmente alocar um paciente em
um serviço qualquer.
A adesão de um paciente a um serviço se faz muitas vezes de modo totalmente
contingencial. Por gostar da comida, de certo profissional, em suma, de uma
particularidade que se torna significante da transferência. Por isso o desafio que
79
propomos ao gestor público da saúde mental é pensar um dispositivo de distribuição de
cuidados que inclua a transferência.
Com Lacan, podemos afirmar que, mais nos aproximamos de uma psiquiatria
científica mais flertamos com a foraclusão da transferência. É como podemos pensar a
tese de Lacan desenvolvida no texto A ciência e a verdade em sua aplicação em nosso
campo de estudo. Se há foraclusão, de que modo se faz o retorno no real dessa
transferência? A resposta está no aumento exponencial dos pacientes nos ambulatórios de
saúde mental, onde o conceito de cura é tão improvável quanto uma real escuta do sujeito
para além de sua queixa. É um dos grandes paradoxos que encontramos nos incontáveis
serviços de atendimento em saúde mental: pacientes tratados precariamente, com
espaçamento de consultas de até um ano de atendimento, consultas feitas por
profissionais que atendem até quarenta pacientes em uma manhã cuja única função é
prescrever algum remédio111.
II. 2. 2 – O campo fora da lei
No Brasil, a questão da humanização do tratamento psiquiátrico não pode ser
dissociada do momento histórico em que o clamor pela redemocratização do país
expunha as chagas das torturas políticas, dos desaparecidos, da luta pela queda de
qualquer representante do autoritarismo (Fernandes, 2002).
A partir da lei 10.216, consolidou-se um novo contexto para discutir a presença da
psicanálise nos dispositivos de saúde mental no Brasil. Por um lado ela visa devolver ao
111
...e ainda assim eles voltam, e muitos pelo resto da vida!
80
louco seu direito à cidadania. Por outro, cria mais um ideal que pesará sobre o sujeito em
sua relação com as instituições que se incubem de tratá-lo. Passa-se do direito de
cidadania ao dever de cidadania.
Contudo, ao mesmo tempo em que foi uma grande conquista, a lei 10.216 nos
deixa entrever um paradoxo. Não há reivindicação de direitos que não seja presidida pelo
imperativo de uma identificação ideal. O direito a reinserção social é, no fundo, direito à
identificação. Por mais que sejam criadas políticas de inclusão das “diferenças” o sujeito,
“dito”, incluído é aquele que se integra à coletividade agrupada em torno de seus ideais.
Ele é inserido quando trabalha, se diverte, se casa, enfim, quando seus valores privados se
fundem nos valores da comunidade a qual pertence.
Desse modo, a exclusão é inicialmente percebida como uma limitação, mas sua
superação se faz justamente no momento em que o excluído se submete aos ideais e
limites do Outro. Há, portanto, nesse movimento, um apagamento da sua subjetividade. É
essa a lição freudiana a ser extraída a partir de sua psicologia das massas. Para que o
sujeito seja incluído, é necessário delimitar os limites do universo ao qual ele poderá
particularizar-se como mais um (Miller, 2003a)112. Inclusão social significa aceder aos
limites da lei válida para todos, o que implica em assumir as identificações que legitimam
os papéis sociais. Na clínica psicanalítica podemos dizer que implica em saber fazer com
a singularidade do sinthoma no universal que regula as relações com o mundo e com os
outros.
Podemos entender a teoria do objeto a como o complemento da teoria das
identificações. A resposta pela identificação sempre deixa um resto. Resto que causa o
sujeito embora não traga um saber que possa representá-lo, já que esse resto é
112
Miller, J-A., A invenção psicótica, p.13
81
heterogêneo ao simbólico e ao imaginário. Portanto, ele é testemunha de um gozo
ilegítimo, uma vez que não é recoberto pelo campo da lei. Mas, não é essa mesma a
condição do objeto a lacaniano? Nem tudo sucumbe ao processo de identificação.
Enquanto a lógica da cidadania obedece a cálculos coletivos, o cálculo da subjetividade é
tecido por estratégias singulares onde o Outro fracassa em dar aquilo que o sujeito
demanda. A lei, nesse enfoque, se confronta com uma relação de impossibilidade. É o
que nos permite passar do campo social ao campo clínico. Não se trata da clínica do
social, mas da clínica no social. Uma clínica que não se inclina diante das exigências do
Outro, mas que permita ao sujeito definir algum saber para fazer um laço social
submetido, este sim, às exigências dos mantenedores da ordem pública.
Brousse113 afirma, sobre esse ponto, que o que distingue a psicanálise de uma
psicoterapia como muitas que estão a serviço da manutenção da ordem pública é a
“perspectiva [...] da subversão inerente ao desejo inconsciente e à pulsão, contraditória à
noção do direito e da justiça distributiva.” (Brousse, 1997). Adiante, abordaremos com
mais detalhes a solução lacaniana para o gozo que não passa para o campo do Outro,
campo do significante, essa solução é o sinthoma, com th, tal como foi grafado no
Seminário XXIII.
Nosso campo de estudo deve necessariamente incluir o sinthoma sem buscar
silenciá-lo, por um lado, ou nutri-lo de sentido, por outro. É nesse ponto que a psicanálise
acrescenta algo às políticas que lidam com a loucura. Hervé Castanet é direto em sua
crítica, referindo-se ao panorama atual das políticas de saúde mental (Castanet, 2006):
A promoção do conceito de saúde se opõe ao conceito de clínica. A
valorização da saúde implica na desvalorização da clínica. A promoção
política generalizada da saúde – princípio que se quis ativo de precaução a
113
Brousse M H, La santé mentale bouleversée, p.5
82
serviço dos usuários e pacientes – implica no desaparecimento da clínica
psicanalítica. Uma conseqüência se deduz: escolher a clínica psicanalítica não
é se opor à saúde, é desconstruir o artifício ideológico que marca essa
referencia à saúde; em suma, é se perguntar sobre qual o campo de discurso e
de visibilidade clínica que a referência à saúde abre.114
O humanismo defensivo
Sem dúvidas, devemos a Freud e a descoberta do inconsciente o declínio do
humanismo racional. Mas, é principalmente a partir da oposição razão/desrazão, como
vimos no sub-item sobre Foucault, que o humanismo passa a ser defesa contra uma
estrutura de poder que oprime e segrega os anormais. Defesa no sentido de promoção do
louco cidadão, mas que gerou, em certos ambientes da saúde mental, a idéia de negação
da própria doença psiquiátrica. Houve uma desvalorização da clínica em favor da
promoção social do louco115. Confundiu-se em certo momento tratar a doença com negar
a cidadania ao louco. É a partir desse momento que todo movimento de compreender e
tratar a doença mental, por parte da psicanálise, passou a ser visto com desconfiança por
diversos setores militantes da saúde mental.
A pluralidade de discursos na saúde mental ocorre em um momento em que o
próprio humanismo é posto em cheque na contemporaneidade. Esse conceito se vê
reformulado após o apagamento progressivo das questões subjetivas, decorrente dos
avanços da ciência, sobretudo em disciplinas diretamente relacionadas ao comportamento
humano (Viard, 1997). Lacan é enfático sobre a distinção entre a psicanálise e o
humanismo ao condicionar sua emergência ao nascimento da ciência moderna, no século
114
Castanet, H., Um monde sans réel, p.34
Em 2008 realizou-se na cidade de Salvador o “Dia do orgulho louco”, iniciativa no mínimo paradoxal
pois, ao querer afirmar o orgulho por sua patologia, manipula e disciplina a percepção individual do louco
sobre sua própria relação com “sua” loucura.
115
83
XVII: “Uma coisa é certa: se o sujeito – da psicanálise - está realmente ali, no âmago da
diferença, qualquer referência humanista a ele torna-se supérflua, pois é esta que ele corta
de imediato (Lacan, 1966g)116.
Para Miller, o humanismo contemporâneo se vê reduzido a um humanismo
defensivo (Miller, 2005b). Trata-se de um momento em que o homem está marcado,
fundamentalmente, pelo discurso da ciência e que, em suas palavras, é “isso, de alguma
maneira, o que traduz o $ (sujeito barrado) de Lacan como sujeito da ciência”117. A cada
passo da ciência, os comitês de ética devem seguir atrás buscando uma regulação de seu
uso. Os exemplos se multiplicam, clonagens de embriões, o uso de antidepressivos na
infância, o retorno das psicocirurgias, etc.
Porém, no momento em que a clínica psiquiátrica adere ao progresso científico e
se distancia das questões subjetivas, algo dessa subjetividade reaparece na posição
humanista sustentada pelos demais discursos que compõem a saúde mental. A nova
forma do humanismo é fundada a partir do conceito de cidadania. O testemunho do
aspecto defensivo do humanismo atual pode ser percebido na expressão incontornável de
“direitos do cidadão”, atrelado definitivamente à grande maioria dos discursos da saúde
mental.
Existe, porém, uma diferença às vezes sutil entre considerar a saúde mental um
dever do estado e considerá-la uma política de estado. Enquanto na primeira situação
cabe ao estado possibilitar o melhor acesso possível aos profissionais da saúde mental, na
segunda, o próprio estado passa a legislar sobre ela. No momento atual, a intervenção do
estado no campo da saúde mental passa igualmente pela esfera judiciária. No Brasil, cada
116
117
Lacan, J., La science et la vérité, p.857
Miller J-A., El outro que no existe e sus comitês de ética, p.72
84
vez mais os gestores públicos na saúde são confrontados às exigências do ministério
público, juízes, defensores públicos e delegados cobrando alguma providência (Oliveira,
2007; Lima, Saraiva et al., 2008). Parte muitas vezes do Ministério Público a exigência
de internação de algum paciente ou a cobrança de realização de algum procedimento
médico.
Para Eric Laurent, a perda de sentido do sintoma (Laurent, 2000a) no mundo
contemporâneo deve-se ao fato de que a clínica do olhar foi transformada pelas novas
práticas jurídicas e humanitárias. A nova condição não deixa de trazer embaraços, uma
vez que a abordagem da loucura pela vertente da cidadania acrescenta, de modo
irreversível, o discurso jurídico ao cotidiano das instituições. Juízes e promotores são,
cada vez mais, obrigados a deliberar sobre a cidadania do louco sem nada saber sobre a
loucura. O processo de judicialização da saúde mental expõe essa dificuldade como nos
indica o próprio Procurador-Geral da Justiça em seu comentário sobre a lei 10.216: “Não
são os pobres que estão a ingressar na órbita jurídica, somos nós, da órbita jurídica, a
ingressar nesse universo relativo à doença mental” (Teixeira, 2002)118.
O papel do Ministério Público, embora ainda em mutação devido à novidade da
lei 10.216, é cada vez mais forte no cotidiano dos dispositivos de saúde públicos e
privados. É como se a ele tivesse acordado para o fato que as divergências haviam
sacrificado o principal, o paciente. Parece-nos que ele surge como o S1 in extremis de um
campo em constante mutação, no entrecruzamento das questões éticas e científicas:
Temos um compromisso dentro do próprio texto da lei, embora não
expresso explicitamente, com os compromissos de natureza difusa, de
natureza individual homogênea. Ou seja, temos compromissos com
pluralidades119.
118
119
Teixeira, M.A., Internação Psiquiátrica Involuntária, p.16
Idem, p.22
85
Um exemplo ocorrido durante nossa gestão no Hospital Juliano Moreira
exemplifica a complexidade do debate e nos faz recordar a dança dos poderes na loucura
do rei Jorge III. O diretor recebeu um papel de um residente de psiquiatria para a
transferência de um paciente para tratamento médico em outra unidade. Essa situação,
corriqueira em um hospital, deteve o diretor no momento em que este lê em um ponto
quase imperceptível do documento que se tratava de uma transferência, para uma
psicocirurgia. Tratando de suspender imediatamente a transferência o diretor procurou
saber mais sobre a questão. Tratava-se de um paciente que apresentava um
comportamento agressivo em casa, com seus próximos, e na rua de sua cidade no interior.
Por diversas vezes ele havia sido trazido ao hospital para internamento devido à suas
crises. Internado na enfermaria da residência médica, o fracasso do tratamento com
medicamentos em doses elevadas fez com que a psicocirurgia se tornasse uma indicação
da equipe médica.
A equipe, então, encaminha uma consulta ao Conselho Regional de Medicina,
explicando o caso e os benefícios que o tratamento traria para sua reinserção na
comunidade. Este dá um parecer favorável. O diretor, contudo, ainda assim manteve a
decisão de não transferir o paciente, o que causou viva celeuma com o próprio Conselho,
já que o diretor não reconhecia o poder deste, mas igualmente com grande parte da
comunidade psiquiátrica, uma vez que instalou um grande debate sobre o poder do diretor
diante da soberania do ato médico. Interpelado formalmente, coube dessa vez ao diretor
fazer apelo ao Ministério Público para que o procedimento não fosse realizado.
86
Em sua argumentação à comunidade psiquiátrica, ao Conselho e ao Ministério
Público, o diretor fez prevalecer a idéia de que cabe ao médico cuidar do sofrimento
subjetivo e que, nesse caso, não havia sofrimento por parte do paciente. A demanda de
tratamento visava restaurar a ordem pública e familiar. Quando a psiquiatria começa agir
em nome da ordem pública e não do sofrimento de seus pacientes ela está a um passo de
sucumbir ao discurso do mestre e negar seu papel clínico.
Percebemos com esse episódio que o caso clínico passou por diversas esferas do
poder. A família e o as autoridades da cidade, o psiquiátrico, o conselho dos médicos, o
diretor do hospital e por fim o ministério público. Todo esse percurso foi necessário para
que algo da clínica pudesse emergir. Apoiado por servidores do hospital que eram contra
essa decisão médica – muitos da luta antimanicomial, outra forma de poder – o paciente
foi transferido de enfermaria e de equipe. Após manifestação contrária ao procedimento
por parte do ministério público, não mais foi questão a cirurgia. A nova abordagem
clínica melhorou bastante a heteroagressividade, mas ainda assim permaneceu sendo o
ponto de perturbação desse paciente por onde ele passa. A dificuldade - mas também o
desafio na condução do caso - foi convencer a tantos representantes do poder de que no
campo da saúde mental não é possível pensar em solução radical do sinthoma sem
supressão igualmente do sujeito.
87
Capítulo III – DIÁLOGOS E MONÓLOGOS NAS PSICOSES
88
Buscamos demonstrar, até aqui, que a saúde mental não apresenta um pilar único
e monolítico. Essa pluralidade discursiva não deixa de configurar uma condição de
debilidade para os que esperavam dela o significante que organizasse o saber
biopsicossocial. É possível, conseqüentemente, abordá-la a partir da concepção lacaniana
de “debilidade mental dos sistemas do pensamento”, já que a complexidade do campo
autoriza o chiste lacaniano de saúde (débil) mental (Lacan, 1974a). Quem estará em boa
saúde mental? O sujeito normal? O que nunca se queixa? O “senti-mental” (Lacan,
2005b)120? Aquele que abole sua singularidade para não ser segregado pelo discurso da
norma? Nos diversos comentários de Lacan sobre o mental fica evidente que atrelá-lo ao
significante saúde é no mínimo uma ironia. A Saúde Mental, com maiúsculas, só pode,
nesse sentido, ser um campo balizado pelos ideais, separando-se conseqüentemente do
sinthoma.
No presente capítulo nos deteremos no modo como podemos pensar, a partir de
Lacan, os impasses do laço social na saúde mental. O capítulo se divide em três partes,
que têm como objetivo preparar o caminho para abordarmos, em seguida, a
especificidade e originalidade da teoria lacaniana das psicoses. Como veremos, o laço
social implica em uma abertura ao outro, movimento do um ao dois, ou seja, ele implica
em passar da “estúpida e inefável existência”, tal como encontramos no esquema L de
Lacan, ao mundo das trocas, vivas e humanizadas, do Outro (Lacan, 1981).
120
Lacan, J., Le Séminaire XXIII, p.37 - Lacan usa esta expressão quando fala da afinidade dos
sentimentos com o imaginário, tal como antes havia empregado a expressão, saúde débil mental, o que lhes
conferiria fatidicamente um caráter de debilidade.
89
Analisaremos inicialmente o modo como a palavra parasita o sujeito, fazendo com
que ele seja condenado a habitar o campo do Outro (Lacan, 2005b)121. Nessa perspectiva,
o sujeito está condenado ao laço social, uma vez que vive o eterno diálogo com o Outro.
Será uma primeira abordagem da questão da alteridade, que retomaremos no capítulo
seguinte a partir do esquema L, de Lacan.
Contudo, o cerne do mal-entendido da linguagem é precisamente o fato de que
nem tudo se resolve na comunicação. Há uma incomunicabilidade presente em todas as
ações da vida humana, o que leva o sujeito a um permanente monólogo, enclausurado em
seu regime de gozo. Abordaremos, portanto, as condições do autismo do gozo, autismo
do Um que, como afirmava Lacan, não se refere ao Um do Eros freudiano, em que de
dois é possível fazer Um (Lacan, 1975b)122. Trata-se ao contrário de Tânatos, ou seja, do
que faz obstáculo ao Eros universal, de um gozo que nunca passará ao campo de trocas
com o semelhante, uma vez que é excluído da lógica fálica123.
Concluiremos este capítulo trazendo algumas referências filosóficas citadas por
Lacan na construção de sua teoria das psicoses, e que servirão para que possamos
compreender de que modo a psicanálise resolve os impasses da comunicação. Assim,
veremos como Descartes, Merleau-Ponty e Pascal ajudam na compreensão da teoria do
objeto a como ponto de reversão entre monólogos e diálogos no laço social. Em sua
função de causa do desejo, ele é Eros convidando ao passeio nas ruas. Em sua função de
resto ele é Tânatos que, como veremos, leva à “objetalidade” da segregação e da pulsão
de morte.
121
Lacan, J., Le séminaire XXIII, Le sinthome, p. 95
Lacan, J., Le séminaire XX, Encore, p. 63
123
idem
122
90
III .1 – O problema da alteridade nas psicoses
Embora haja um consenso sobre o fato de que a saúde mental é multifatorial, o
que por si introduz uma permanente tensão entre múltiplos “outros”, o mesmo não pode
ser dito quando se trata da doença mental. Há um movimento crescente que nega a
dimensão do Outro em doenças como a esquizofrenia e os transtornos bipolares,
sustentando o caráter primariamente orgânico destas entidades. Em oposição,
encontramos teorias que buscam tudo elucidar através do Outro social.
Lacan, em 58, destacou o risco de que a psicanálise viesse a perder a essência de
sua originalidade, tornando-se uma psicoterapia como qualquer outra (Lacan, 2001e).
Nesse sentido, ele considerava essencial distinguir a definição de sujeito, tanto de um
substrato biológico, quanto de uma posição dita “culturalista”. É sob o pano de fundo
dessa advertência que devemos pensar o que ele define como sendo o campo da
intersubjetividade a partir da instituição do Outro como lugar da fala124. Assim é verdade
que, como seres falantes, estamos condenados a viver em permanente diálogo com o
Outro, mas esta afirmação não no leva a concluir que tudo se resolve no meio social.
Emerge, na obra de Lacan, a importância de uma precisão sobre as relações de
alteridade que impedem que o sujeito seja enclausurado no campo do Um ou, em sentido
contrário, diluído nas identificações e funções sociais do Outro. No percurso que faz
Lacan para estabelecer os parâmetros de sua “prática psicanalítica verdadeira” (Lacan,
2001e), desponta uma teoria sobre a instituição do Outro que não é unívoca, nos
autorizando a falar de alteridades, no plural. É o que Lacan muito cedo destacou em seu
124
Lacan, J., La psychanalyse vraie, et la fausse, p. 167
91
Seminário sobre as Psicoses, “o eu humano é o outro”(Lacan, 1981)
125
. Nesse
Seminário, a clínica das psicoses passa necessariamente, pelo estatuto do Outro, e de
como introduzir movimentos de alienação e separação dessa presença ofuscante. Ao
afirmar que o eu é o outro, ele nos expõe a complexidade que está envolvida na clínica
das psicoses. Trata-se de uma clínica que trata do sujeito, e não do Outro, o que até aqui é
simples, mas que não pode se apoiar no eu, já que este, igualmente, é outro para o sujeito.
Encontramos ecos desta questão no modo como Maldiney, na esteira da fenomenologia
de Binswanger e Minkowski, pensa o assassinato de alma em Schreber:
Um assassinato é cometido por um outro. Mas no assassinato de alma o outro
está no interior. O assassinato de alma é uma pulverização do poder de se
poder (se pouvoir). Ele promove esse sem sentido no horror: se poder por um
outro (être pu par un autre). O assassinato de alma nos conduz a toda uma
série de situações que têm em comum, como sublinhou Lacan, que a fala se
paralisa no momento em que o sujeito será posto em questão, onde se encontra
o momento pático característico das frases com eu. Para se possuir a chave que
abre a porta é preciso já estar no interior (Maldiney, 2007)126
O Eu a que se refere Maldiney, nas psicoses graves, pode estar completamente
pulverizado, como nas esquizofrenias ou enrijecido, como nas paranóias.
Na leitura do Seminário III, percebemos que a questão da alteridade domina todo
o texto. Como veremos abaixo, na crítica a Descartes, a própria tarefa de pensar
estabelece uma relação de alteridade para o sujeito lacaniano trazendo uma provocadora
inversão de paradigmas onde a loucura revelaria a verdadeira condição do sujeito: seu
pensamento é o pensamento do Outro absoluto (Lacan, 1981)127. Ao longo de seus
Seminários, contudo, percebemos que a questão da alteridade se desdobra e se torna
muito mais complexa.
125
Lacan, J, Les Psychoses, Le Séminaire III, p.50
Maldiney, H., Penser l’homme et la folie, p. 201 – tradução nossa
127
Lacan, J. op. cit, p.48
126
92
- Ela passa pela questão do objeto, que inicialmente era objeto da Demanda ao
Outro (Lacan, 1966k), para posteriormente ser objeto a, caído do próprio sujeito -.
mudança que implica em passar do Outro da linguagem para o Um do gozo (Lacan,
1975b).
- Passa pela questão do Outro sexo e da formulação d´A Mulher como alteridade
infinita;
- Passa pela afirmação de que o sentido é o Outro do real, fundamental para a
teorização das psicoses a partir dos anos 70 (Lacan, 1974b).
Levando em conta todas essas relações de alteridade que acabam por definir uma
separação radical entre real e sentido, podemos avaliar de que modo o sujeito, parasitado
pela linguagem, se sustenta no laço social.
A linguagem como abertura ao laço social
É possível identificar um Lacan muito mais próximo do estruturalismo no
momento em que proferiu o Seminário III do que na seqüência de seu ensino. Essa
constatação não deixa de ter efeitos sobre o modo como é concebido, por ele, o papel da
linguagem.
No Lacan próximo ao estruturalismo, o que permite uma recepção da mensagem
é, precisamente, a crença no sentido que o falo, como garantia do conjunto dos efeitos de
significação, assegura (Lacan, 1966h)128. É essa a garantia que se pode esperar do Nomedo-Pai, ou seja, que as coisas se encontrem nas palavras, assegurando retroativamente
uma significação para o sujeito. Ou seja, sua fala apenas possui significação quando a
128
Lacan, J., La signification du phallus, p.690
93
enunciação se torna enunciado a partir do encontro com o campo do Outro. É o que no,
Seminário III, permite a Lacan fazer a diferença entre as frases interrompidas – frases
mortas – e as frases vivas:
A frase apenas se torna viva a partir do momento em que ela apresenta uma
significação. (...) O que distingue a frase que é compreendida da frase que não
o é, o que não impede que ela não seja escutada, é precisamente o que a
fenomenologia do caso delirante põe tão bem em relevo, a saber, a antecipação
de significação (Lacan, 1981)129.
Enunciado
sujeito
Enunciação
Campo do
Outro
Assim, o Nome-do-Pai tem como função encobrir o fato de que o sujeito pode
confrontar-se com o vazio ao buscar uma resposta no campo simbólico. O vazio irrompe
na fala a todo instante, uma vez que ele habita o espaço entre os significantes, entre o S1
e o S2, e que o único modo de manter juntos dois significantes é conferindo a eles algum
sentido apreendido no campo do Outro.
Significação fálica
Ausência de Sentido
NP
sujeito
Enunciação
129
Lacan, J., Le Séminaire III, Les psychoses, pps.154-155
A/
94
Essa problemática, central no desenvolvimento do Seminário das Psicoses,
ressurge na obra de Lacan em 1959 no Seminário VII, A ética da psicanálise. Os
capítulos IV e V desse Seminário são fundamentais para nosso objetivo de definir as
relações do sujeito com as múltiplas apresentações da alteridade, como o Outro, a coisa, o
objeto, o gozo e o próprio real.
Em sua Ética, Lacan extrai todas as conseqüências da distinção, no texto
freudiano, das duas palavras alemãs que, a princípio, teriam significação similar, Sache e
Ding. Ambas podem significar a palavra ‘coisa’ em alemão. Contudo a distinção é bem
evidente, como podemos perceber nessa frase: “A Sache é com certeza uma coisa,
produto da indústria ou da ação humana enquanto esta é governada pela linguagem”
(Lacan, 1986)
130
. Ou ainda nessa passagem em que se demarca a relação entre Sache e
sua inscrição no campo do social “A Sache é a coisa problematizada juridicamente, ou, em
nosso vocabulário, a passagem à ordem simbólica de um conflito entre os homens” 131.
Contudo, falar da coisa como Ding, marca uma alteridade bem diferente. Para
distingui-la, Lacan se serve da escritura em maiúscula, a Coisa. A Coisa é o “Outro
absoluto”(Lacan, 1986), e o modo como Lacan a descreve no seminário da Ética antevê,
nitidamente, a invenção de seu objeto a, três anos mais tarde, no Seminário A angústia.
Este objeto estará aí quando todas as condições forem preenchidas, no final das
contas – bem entendido, é claro que aquilo que se trata de encontrar não pode
ser reencontrado. É de sua natureza ser objeto perdido como tal. Ele nunca será
reencontrado. Algo está lá esperando o melhor, ou esperando o pior, mas
esperando132.
Extraímos, dessa passagem, a lição de que o sujeito, em sua relação com a Coisa,
se inscreve na temporalidade como tempo de expectativa forçado por um enigma.
130
Lacan J., L’éthique de la psychanalyse, p.58
idem, p.56
132
idem, p.65
131
95
Embora sua pergunta vise uma resposta sobre a Coisa, é no campo das Sache que ele
pode formular respostas. Acreditamos que, a medida que Lacan avança seu estudo sobre
a Coisa como aquilo que não tem nome, ele se afasta do estruturalismo. Em um texto
capital, Miller comenta essa mudança na teoria lacaniana em que a crença na
intersubjetividade, juntamente com a crença de que a linguagem é uma estrutura, caem
por terra, cedendo lugar a três novos termos no ensino de Lacan, que apontam para essa
situação de monólogo em detrimento do diálogo. A saber: a appalavra¸ a lalíngua e a
lituraterra (Miller, 1996a)133.
III. 2 – A solidão do gozo
Como afirmamos na introdução desse capítulo, o princípio da debilidade do
mental está na impossibilidade de haver um significante que represente “A” saúde
mental. O simbólico rateia. Em nossa leitura, acreditamos que a saúde mental não se
escreve com maiúsculas por não poder tratar do sujeito em sua integralidade, tal como
ambiciona a abordagem biopsicossocial. Acompanhando o modo como Lacan desenvolve
sua teoria do gozo, percebemos que há uma parcela de gozo que não passa pela lógica
fálica, e que é, portanto, impossível de ser dita pelas palavras. Sem dúvidas, onde essa
impossibilidade é mais conhecida na obra de Lacan é no tratamento que ele dá ao gozo
em seu Seminário XX. Trata-se da separação entre gozo fálico, aquele que se inscreve
pela castração nas relações entre homens e mulheres, e o gozo do Outro, chamado de
gozo suplementar, ou gozo d´A mulher que não existe.
133
Miller, J-A., L’apparole, p.5 Optamos por traduzir apparole por appalavra e não por affala, para
mantermos a semelhança com a palavra aparelho, em francês appareil, fundamental para compreensão do
desenvolvimento feito por Miller no texto em questão.
96
Ao lermos o Seminário XX, nos damos conta de que o gozo do Outro, apesar do
nome, é um gozo experimentado no próprio corpo do sujeito. Trata-se do corpo que não é
pensado, é puro ser de gozo sem palavras, Outro para o ser pensante que o experimenta.
É o que leva Lacan a afirmar, em 74, que a debilidade mental deriva do fato de que o
mental é enraizado no corpo (Lacan, 1974d). Podemos entender esse comentário como o
que faz impasse ao laço social. A afirmação de que o mental é enraizado no corpo nos faz
ver que, para Lacan, o mental é um órgão de gozo, tanto quanto o são outros órgãos do
corpo (Lacan, 2003e)134. Ainda como órgão de gozo, podemos pensá-lo submetido ao
destino dos órgãos de gozo na teoria lacaniana, servir ao gozo auto-erótico e esvanecer-se
para que a pulsão o erija novamente.
Ao acatarmos a tese lacaniana de que é impossível escapar da debilidade, nos
deparamos com uma das formas lacanianas de designar o real. A partir do comentário
acima nos damos conta de que o real em jogo na debilidade do mental passa pelo corpo.
Aqui nos referimos ao corpo que contém o gozo opaco, excluído de sentido135, inservível
para qualquer atividade do mental (Lacan, 2001d). Não se trata, portanto, do corpo
imaginário, construído a partir do estádio do espelho, que é capturado pelo sentido
através da operação da castração. Para ele, o real, como impossível de dizer, atesta
igualmente uma debilidade do sujeito na aquisição de um saber universal sobre seu gozo,
ou seja, para além do gozo que pode ser falado pela língua do Outro – o gozo fálico –
algo permanece incomunicável e faz obstáculo ao laço social.
Ao falarmos de monólogos e diálogos, falamos no fundo do modo como podemos
partir do Um autista do gozo para aceder ao laço social. Ou seja, como passar de uma
134
135
Lacan, J., A lóciga da fantasia, p. 327
Lacan, J., Joyce le Symptôme, p.570
97
experiência de gozo incomunicável, que marcou o sujeito com um S1 para conectar o
sujeito no campo do sentido, que apenas emerge quando algum significante faz função de
S2, estabelecendo a fórmula mínima do sentido S1-S2.
Na psicanálise encontramos essa problemática de inúmeras formas. Podemos
abordar essa questão a partir de Freud, quando ele teoriza a passagem do narcisismo
primário para o narcisismo secundário (Freud, 1976). Podemos pensá-la igualmente a
partir do significante que funda o sujeito, seu S1, em sua relação com o S2, significante
do saber que esse sujeito pode ter de sua própria existência. Nos anos 50, Lacan toma
essa questão através da metáfora paterna e da clínica das psicoses (Lacan, 1966a). A
saída do gozo narcísico passa pela simbolização instalada pela Nome-do-Pai. Trata-se da
metáfora paterna incidindo sobre o desejo materno, significando, para o infans, que ele
não faz Um com sua mãe (Lacan, 1966a).
No caso das psicoses percebemos que o monólogo pode ser reforçado pelo
próprio discurso que se ocupa delas. É assim que, em meio à batalha do Um encarnado
secularmente pela psiquiatria e do múltiplo das demais especialidades que compõem a
saúde mental, o posicionamento da psicanálise deve ser interrogado visando saber se sua
inserção nesse campo aporta algo que lhe seja original e particular.
Objetalidade e lalíngua
É na recusa à objetivação do louco que ancoramos um primeiro princípio, embora,
como exposto no primeiro capítulo, esse princípio foi o motor da maioria das correntes
que impulsionaram a reforma psiquiátrica por todo o mundo. A distinção se faz pelo
98
modo como a questão do objeto é tratada na psicanálise lacaniana. Lacan opõe ao termo
objetividade o termo objetalidade (Lacan, 2004b)136. Não se trata de buscar o objeto
como “o último termo do pensamento científico ocidental”, ou seja, o objeto que pode ser
alcançado e manipulado pela ciência, mas abordar o objeto pelo que ele evoca de um
“pathos do corte”, de pura perda e desconexão com o vivente.
- O louco é reduzido a objeto a quando ele é extirpado do laço social e segregado
em instituições infectas, fruto da total falta de comprometimento com o humano, pelos
responsáveis da institucionalização da loucura. Segrega-se nesse caso o louco pelo que
ele nos revela de mais íntimo em nós mesmos;
- Ele pode igualmente ser reduzido a objeto quando identificado ao falo materno
de um sistema assistencialista que instaura o que Freud designou de relação anaclítica
(Freud, 1976). Esse tipo de redução gerou uma grande escola na Inglaterra quando
Bowlby propôs um modelo de saúde mental baseado no feliz encontro da relação mãefilho (Bowlby, 2006).
- Finalmente, ele se torna objeto quando reduzido à massa manipulável da
sociedade de consumo, sobretudo após a pressão do marketing das indústrias
farmacêuticas levando a uma prescrição generalizada para todo o sofrimento mental.
A manobra feita pela clínica psicanalítica passa por dois movimentos: fazer surgir
o paciente como sujeito e deslocar a função de resto, antes colada ao paciente, para a
própria estrutura da clínica. Essa manobra nos parece fundamental, pois transfere a
condição de resto do paciente para o saber formal lógico. Encontramos essa posição em
Miller:
136
Lacan, J., Le séminaire X, L´angoisse, p.248
99
O que começou com a descoberta de Freud foi uma outra abordagem da
linguagem, uma outra abordagem da língua cujo sentido só veio a luz com sua
retomada por Lacan....Psicanálise e lógica – uma se funda sobre o que a outra
elimina. A análise encontra seu bem nas lixeiras da lógica. Ou, ainda, a análise
desencadeia o que a lógica domestica (Miller, 1996c)137.
Observamos que, nessa passagem, Miller não se refere às psicoses e sim à língua
falada por todos. Ou seja, o inconsciente, como o que escapa ao pensamento formal
lógico, é válido para todo ser falante. Veremos adiante como esse aspecto nos é
importante para pensarmos a teoria a partir do ponto de vista da psicose generalizada
atravessando, conseqüentemente, os limites da abordagem estrutural.
Podemos, em nosso percurso, pensar a teoria lacaniana das psicoses expondo, de
imediato, a interrogação de fundo que permeia todo o desenvolvimento de nossa
pesquisa. Como o fenômeno psicótico, experiência singular e incomunicável, pode
adentrar no laço social, que é experiência do coletivo e da comunicação? Essa questão
estará sempre presente, e se constitui no osso duro da clínica das psicoses. Na perspectiva
psicanalítica, propomos que não se trata de adequação, reabilitação ou socialização do
psicótico, mas de subversão do real, criação, sinthomatização em torno dessa
incomunicabilidade impossível.
O autismo do gozo, que parasita as relações sociais, nos permite abordar o grande
paradoxo da clínica das psicoses, já identificado por Freud desde seu texto Sobre o
narcisismo, uma introdução (Freud, 1976). É que nas psicoses, o sujeito é submetido a
uma experiência incomunicável na clínica, impossível conseqüentemente de ser
formalizada pelo saber. Ou seja, é no próprio paciente que esta experiência negativa se
materializa. Esse fundo de incomunicabilidade nos leva a dizer que, por mais inserido
137
Miler J-A., Teoria d´Alíngua, p.62
100
que o sujeito esteja no laço social, independentemente de sua estrutura, o sujeito está
condenado ao monólogo.
Freud aborda esse aspecto a partir de seu conceito de narcisismo primário. O
narcisismo primário é concebido como a possibilidade de satisfação libidinal sem passar
pela experiência do Outro (Freud, 1976). O próprio Lacan, no Seminário XXIII, localiza
o real em Freud no narcisismo primário.
Eu gostaria de ressaltar para vocês que na teoria de Freud, o real não tem nada
a ver com o mundo (...) há uma etapa do narcisismo primário que se
caracteriza, não pelo fato de que não haja sujeito, mas que não haja relação
entre o interior e o exterior (Lacan, 2005b)138.
Algo da satisfação do sujeito permanece em um gozo autista, intraduzível pela
linguagem, que é sempre Outra para o sujeito. É essa a condição própria da existência,
“Existir supõe a dor de ser lançado no mundo, supõe a linguagem que não dá conta de
todos os juízos” (Ferrari, 2006). Na clínica das psicoses, essa questão é fundamental,
sobretudo para identificar o modo como o sujeito psicótico interpreta o gozo que lhe é
enigmático. Chamamos de gozo enigmático a experiência de gozo que não consegue ser
traduzida pelos significantes do Outro. É, portanto, um gozo139 que escapa à lógica fálica
e não pode ser inscrito como saber.
Lacan afirma, justamente, que essa experiência, vivida pelo sujeito, no primeiro
momento, como puro vazio enigmático da significação, lhe trará em seguida um grau de
certeza proporcional a esse vazio (Lacan, 1966a)140. Percebemos que nesse ponto há uma
certeza que é a matriz de toda formação alucinatória ou delirante que possa florescer:
trata-se da certeza de que o vazio em questão concerne o sujeito, exclusivamente o
138
Lacan, J., Le Séminaire XXIII, Le sinthome, p.154
Acreditamos poder relacionar a libido freudiana e o gozo lacaniano nesta passagem específica.
140
Lacan J., D’une question préliminaire...p.538
139
101
sujeito, e não pode ser compartilhada com ninguém (Laurent, 1993b)141. É, portanto, uma
experiência que desvela, ao mesmo tempo, a presença do Outro como real – na
modalidade de algo novo não simbolizado pelo sujeito – e do gozo autista, não
comunicável. Ambos, porém, sem a mediação fálica que daria ao sujeito uma chave para
interpretação. E que faria esta chave fálica? Atribuir a experiência de gozo ao corpo
próprio ou ao corpo do outro dentro das coordenadas do fantasma sexual, é o que nos
permite, seguindo Miller, apreender o fantasma como aparelho de gozo, no sentido de um
dispositivo instalado, mas que não responde como estrutura, e sim no caso a caso (Miller,
1996a).
Quando esse gozo não pode ser localizado pelo fantasma em um desses dois pólos
(corpo próprio ou campo do Outro) ele é a causa maior dos estados de angustia do sujeito
psicótico. Como tratamento dessa angústia surge a interpretação delirante, que é resposta
ao enigma.
Constatamos então, a partir do momento em que Lacan abandona a
intersubjetividade, que a linguagem passa a ser obstáculo, e não meio, para obtenção do
laço social em sua teoria. De que modo o obstáculo se faz presente? A teoria da lalíngua é
concebida por Lacan precisamente para dar conta desse fato. Trata-se de fazer prevalecer
a idéia de que, ao aprender a falar, o sujeito inicialmente se apropria da linguagem como
instrumento de gozo, bem antes da função de comunicação. É o que Lacan chama de
gozo da lalíngua (Lacan, 1975b)142.
141
142
Laurent, É., Trois énigmes...p.34
Lacan J., Le Séminaire XX, Encore, p.126: lalíngua serve a fins muito diferentes do que a comunicação.
102
Diálogo
Intersubjetividade
Monólogo
da
Lalíngua
O parceiro da intersubjetividade como sustentáculo da comunicação, desconhece
os efeitos de significação de suas palavras quando estas são afetadas pela lalíngua. Assim
a clínica lacaniana se afasta do Outro do reconhecimento, o que separa de vez a
possibilidade de que a psicanálise esteja a serviço do Outro como figura da
intersubjetividade:
Com o conceito de appalavra, a totalidade da referência à comunicação desaba
ou, ao menos, no nível em que se situa a appalavra, não há comunicação, há
autismo. Não há o Outro com um grande O. A appalavra não tem por princípio
o querer dizer ao Outro, ou a partir do Outro (Miller, 1996a)143.
Ao afirmar que um gozo incomunicável se infiltra em toda comunicação, Lacan
confirma sua tese de que não há comunicação sem mal-entendidos e que o único modo de
ultrapassar essa condição estrutural da fala é a crença de que há um sentido comum.
Crença difícil de ser sustentada, naturalmente, uma vez que tudo leva à sua
inconsistência.
Configura-se, portanto, um núcleo de solidão e incomunicabilidade sexual que se
fará presente no escândalo de sua célebre afirmação, “não há relação sexual”(Lacan,
143
Miller J-A., L’apparole, p.8, tradução nossa.
103
1975b), como vemos, essa frase foi proferida em perfeita coerência com os
desenvolvimentos sobre a lalíngua e appalavra dos anos 70.
Essa solidão nos traz um desafio. A definição de humano, como categoria
universal, o fixa como um ser social, um ser que se humaniza precisamente através da
experiência da linguagem e do contato com o Outro. Mas o ser também fala a lalíngua, o
que provoca imediatamente um complexo giro na relação entre o que pode ser definido
como fala e o que pode ser definido como comunicação. É como poderíamos definir o
falasser de Lacan: um ser que experimenta em sua própria essência a extimidade da
presença do Outro na forma de um resto de gozo que escapa à linguagem.
A inversão que se produz, a partir dessa concepção de falasser, é que o Um, ou,
digamos, o núcleo do narcisismo primário freudiano, passa a ser vivido como corpo
estranho. O ser encontra no dicionário do Outro apenas as palavras da intersubjetividade.
Porém, é igualmente com ela que ele fabrica a lalíngua, ou seja, de onde ele pode extrair
a matéria para nomear o incomunicável.
É possível encontrar uma base, embora não desenvolvida, para a teorização sobre
o autismo do gozo que propõe Lacan no próprio texto de Freud Sobre o narcisismo uma
introdução (Freud, 1976). Nesse texto, o aparelho libidinal freudiano, ao promover a
passagem do narcisismo primário para secundário, buscava dar conta, precisamente, do
modo como essa incomunicabilidade do Um poderia passar para o campo do Outro,
fixando objetos, formalizando uma erótica através da gramática das pulsões.
O laço social, portanto, deixa de ser ordenado exclusivamente pelo discurso e
pelas trocas da intersubjetividade e passa a incluir, para além da significação das
palavras, o modo como estas vibram no corpo, constituindo-se instrumentos de gozo
104
desse corpo, e não objeto de reconhecimento do Outro. Não se trata do corpo que serve
para trocas imaginárias ou que pode ser falado através do significante. Trata-se do corpo
que funciona como obstáculo ao laço social, o corpo no que ele tem de eminentemente
incomunicável, que resiste à significação.
O gozo somente se coletiviza quando ele é aparelhado em uma fórmula que o
conecta ao campo do Outro. Como vimos a pouco, essa fórmula, nas neuroses, é
possibilitada pela constituição da fantasia (Lacan, 2003e). Mas o caminho que toma
Lacan é precisamente de mostrar que a própria fantasia que conecta o sujeito é uma farsa:
[...] pela primeira vez, apoiamos o fato de que esse lugar do Outro não seve ser
buscado em parte alguma senão no corpo, que ele não é intersubjetividade, mas
cicatrizes tegumentares no corpo, pedúnculos a se enganchar (brancher) em
seus orifícios, para neles exercer o ofício de ganchos (prises), artifícios
ancestrais e técnicos que o corroem (Lacan, 2003e)144.
A clínica das psicoses nos ensina que o louco busca, igualmente, a localização
desse gozo através de mecanismos que lhe sejam próprios, permitindo uma localização
do gozo no corpo, como um órgão, ou no Outro, como delírio.
Daí, para nós, a relevância de um comentário feito por Lacan onde ele reafirma
que o laço social não é puro efeito de discurso, pois inclui o corpo e os efeitos que, nele, a
linguagem imprime. É o que constatamos nesta passagem de seu texto O aturdito:
“Tenho a tarefa de desbravar o estatuto de um discurso ali onde situo que há ... discurso:
e eu o situo pelo laço social a que se submetem os corpos que abitaño (labitent) esse
discurso”145 (Lacan, 2003f)146.
144
Lacan J., A lógica da fantasia, p.327
A tradução da edição brasileira de labitent não nos dá a dimensão homofônica de “là habitent”, no
sentido de que os corpos habitam “aí, no discurso”.
146
Lacan J., O aturdito, p.475.
145
105
Dizer que o discurso não caminha sem o corpo muda o modo de se pensar a
inserção no social. Para além das trocas intersubjetivas, o falasser, atrelado ao opaco do
gozo do corpo, é incapaz de responder aos ideais da socialização sem que algo escape às
tentativas de significação do Outro social. Assim, nenhum discurso é suficientemente
capaz de capturar esse gozo, tornando necessário, do lado da clínica, que se faça uma
criação. Como afirma Miller, ninguém melhor do que o louco para denunciar a ironia de
que o laço social, no fundo, é uma escroqueria, que o Outro que garantiria o laço não
existe, e que todos nós estamos sós no momento em que apostamos na humanização do
outro com quem partilhamos o laço social (Miller, 1993).
Se por um lado a clínica psicanalítica é o avesso da clínica da saúde mental, o
momento para a aproximação das duas no mesmo campo de trabalho é dos mais
oportunos. Nenhum significante mestre está, hoje em dia, a altura de unificar o conceito
de Saúde mental de modo a produzir um discurso unívoco sobre o sofrimento psíquico.
Par default a clínica da Saúde mental tornou-se uma clínica da criação, em sintonia,
portanto, com a exigência de produção de algo novo, assim como o faz a própria
psicanálise.
O sintoma como criação
Nossa tarefa, portanto, é alcançar uma clínica que, embora não deva ceder aos
caprichos do Outro social deve, certamente, levar o sujeito a olhar para a direita e para
esquerda antes de atravessar a rua. Não se deve, contudo, confundir inserção social e
estabilização de uma psicose. Não há concessões ao social na obra de Lacan, mesmo
106
porque o sujeito, ainda que andando pelas ruas, pode seguir encarcerado em sua relação
dual com o Outro.
Formado nos hospitais de Paris, Lacan conheceu de perto os casos clínicos de
psicóticos hospitalizados em situações de franca ruptura com o laço social, onde o delírio
demandava uma outra apreensão da relação entre o sujeito psicótico e o mundo que o
rodeia. Com o avanço da teoria lacaniana das psicoses constatamos uma mudança de
perspectiva sobre o laço social. O Nome-do-Pai torna-se apenas uma forma, entre outras,
para tentar obturar a falha estrutural do Outro (Lacan, 2006a). Nos anos 70 ele será visto
como uma suplência bem sucedida, porém uma entre outras possibilidades, como o ato e
a escrita (Guerra, 2007). Como veremos adiante, essa constatação é perfeitamente
compatível com a homogeneização dos registros do real, simbólico e imaginário. Esse
passo pode ser visto como um esforço lacaniano para pensar a direção do tratamento a
partir do Um do gozo e não mais a partir do Outro simbólico.
O laço social deixa de ser visto como a possibilidade de comunicação garantida
pelo Outro simbólico para ser o modo como cada um se vira para manter coesos os três
registros. É o que nos permite afirmar que, no primeiro momento da teoria de Lacan, o
laço social é problematizado a partir do Outro e, em um momento posterior, a partir do
gozo do Um.
O que, na primeira clínica, surge como tensão e conflito entre o sujeito e o Outro
adquire uma inédita homeostasia na segunda clínica. Isto porque na clínica dos nós o
Outro não é jamais radicalmente Outro. O nó borromeu é uma tentativa de escrever o que
antes era o Outro simbólico como sendo feito do mesmo barro do corpo próprio e do
107
gozo. “Se é que existe um Outro real, ele não se encontra fora do nó mesmo, e é por isto
que não existe um Outro do Outro” (Lacan, 1975a)147.
Torna-se necessário apostar em um novo modo de saber lidar com o sintoma. O
sintoma surge na teoria lacaniana inicialmente como metáfora de um significante
recalcado. Assim, ao lermos o texto de Lacan “A instância da letra no inconsciente” nos
damos conta de que era preciso atingir o significante inconsciente recalcado para desfazer
o sintoma, promovendo a queda da metáfora (Lacan, 1966d). Já no Seminário XXIII há
uma mudança significativa. Não se trata mais do sintoma como mensagem que se
satisfaz, mesmo cifrada pela metáfora. O que está em jogo é o sintoma como criação, ou
aparelho, que não faz apelo ao deciframento, não se alimentando, portanto, do gozo do
sentido. Impossível conseqüentemente demandar um alívio ao Outro. Este resto jamais
será eliminado da relação intersubjetiva. Ele é a fonte mesma do mal-entendido que
habita o laço social.
Aqui chamamos atenção para uma passagem curiosa do texto lacaniano. Ao
falarmos do modo como a clínica de Lacan caminhou em direção ao monólogo da
lalíngua, poderíamos pensar que Lacan nada quis saber do laço social em sua obra.
Porém, nos parece que sua preocupação maior era precisamente pensar como o discurso
psicanalítico poderia escapar às ciladas, que ele mesmo apontara, inclusive nas
sociedades psicanalíticas. Há no pensamento de Lacan uma necessidade de separar um
laço social que inclua o real do laço social que reforça os efeitos de grupo da teoria das
identificações. “Contudo, o discurso psicanalítico (é meu desenvolvimento) é justamente
147
Lacan J., RSI, Ornicar 5, p. 35
108
aquilo que pode fundar um laço social limpo de qualquer necessidade de grupo” (Lacan,
2001c)148.
Seria essa a motivação para pensar a psicanálise como uma criação, tanto como o
próprio sintoma o é. Ou seja, o sintoma deriva de uma criação que responde a algo que
não funciona no real. Essa seria a condição para afirmarmos que a psicanálise não é
apenas criação, ela inclui o sintoma. Somente podemos falar em psicanálise quando o par
criação-sintoma está presente (Mahjoub, 1998)149.
Um dos exemplos mais impressionantes é o caso de Temple Grandin.
Diagnosticada desde a infância, no início dos anos 50, como portadora de autismo de
Asperger, Grandin se tornou Phd e conferencista internacional. Ela mesma escreveu o
livro em que narra sua saída da solidão do autismo, Labeled Autistic, em 1986. Maleval
descreve a invenção de Temple como uma verdadeira máquina autística de autoterapia.
Para além do ordenamento rígido do ambiente, que lhe fixa um campo da realidade,
comum em muitos autistas de Kanner, a máquina de Temple é um verdadeiro “produto
de sua enunciação e, portanto, uma certa restauração da função do S1” (Maleval,
1998)150. A própria Temple descreve seu modo de pensar como um “Web Browser”, uma
espécie de navegador de internet:
Desde que escrevi Thinking in Pictures, que descreve meu modo visual de
pensar, tive alguns insights sobre como meus processos de pensamento são
diferentes se comparados aos das pessoas que pensam pela linguagem. Em
encontros sobre o Autismo, perguntam-me com freqüência “Como você pode
ser efetiva falando publicamente quando você pensa em quadros, que são como
vídeotapes em sua imaginação?” ...Somente entrevistando as pessoas foi que eu
aprendi que muitas delas pensam primariamente com palavras, e que seus
pensamentos são conectados com a emoção. Em meu cérebro, as palavras
atuam como um narrador para as imagens visuais em minha imaginação. Eu
posso ver as fotos em meus arquivos de memória (Grandin, 2000)151.
148
Lacan J. Étourdit, p.474
Mahjoub. L., La creation et le symptôme dans notre modernité, p.86
150
Maleval, J.C., La machine autistique de Temple Grandin, p.66 – tradução nossa
151
Grandin, T., My mind is a Web Browser: How people with autism think, p.14 – tradução nossa
149
109
Grandin, efetivamente, inventou um processo de memória visual muito
aperfeiçoado, e que lhe garante total mobilidade no laço social. Não se trata aqui da
organização de um pequeno campo de ação, como é o caso de diversos gênios autistas
repertoriados pela literatura, e sim de uma enorme capacidade de mobilizar os S2. Esses
significantes, contudo, são armazenados rigidamente, em seqüências metonímicas, o que,
para Maleval, justifica precisamente a dificuldade no atravessamento da barra da
metáfora. “Quando o sentido de um enunciado apenas pode ser decidido levando-se em
conta a enunciação do Outro, Grandin se encontra desamparada” (Maleval, 1998)152.
Ou seja, enquanto na linguagem lógica, Grandin se desloca com extrema
habilidade, a mesma é incapaz de ser afetada pela emoção, pela ironia, ou pelo humor do
Outro. Seu caso, em si, nos traz toda a ironia que o conceito de laço social pode
comportar. Reconhecida pelo Outro social, autora de inúmeros trabalhos internacionais,
conferencista, sua invenção lhe mantém viva, a condição de que ela mantenha as rédeas
do laço.
Como vimos, o laço social em Lacan é efeito de discurso e, igualmente, solução
sintomática que inclui o corpo na incomunicabilidade de seu gozo. Para além do corpo
imaginário, formado a partir da imagem especular, há o corpo como ser de gozo, e não
como imagem. Este, em Lacan, é montado a partir da teoria do objeto a. Portanto, ele não
se dá a ver, não é quantificável nem manipulável pelo saber científico, ele é indócil às leis
do significante, tornando-se um obstáculo à sua assimilação pelo discurso do mestre
(Miller, 2005c).
152
Maleval, J.C., idem, p.67
110
Surge então uma reformulação total do papel do sintoma na clínica. Oriundo da
prática médica, o sintoma estendeu-se para desordens que vão muito além da medicina.
Esta extensão do conceito acabou por fazê-lo equivalente à desordem do laço social por
excelência (Laurent, 2000b). Os sintomas passaram a recobrir tantas patologias, com
tantos novos nomes propostos, que se tornou impossível localizar o singular da
enunciação de cada paciente. Laurent deduz que o momento clínico atual traz o paradoxo
de buscar, por um lado, o desaparecimento do sintoma e, por outro, o incessante
surgimento de novos sintomas no campo do saber médico.
A teoria do sinthoma apresentada no Seminário XXIII nos orienta em direção a
um novo modo de pensar a reinserção social. Não se trata de eliminá-lo, mas de buscar
um esforço do sujeito para isolá-lo como criação. Significa construir uma clínica que
recusa a fixação de diagnósticos padronizados, na contracorrente da febre de novos
diagnósticos da clínica contemporânea.
III. 3 – Algumas referências filosóficas para compreensão de uma
clínica
Lacan cita alguns filósofos que, a nosso ver, contribuíram para a elaboração da
clínica das psicoses nos anos 50. Seria impossível, na extensão do presente trabalho,
esgotar as referências à filosofia feitas por Lacan em sua obra. Sua erudição exigiria um
trabalho que nos faria, certamente, perder a orientação de nossa questão. Há, contudo,
referências que merecem uma reflexão, uma vez que elas nos auxiliam, tanto na
compreensão da primeira clínica, quanto no clareamento dos passos que levaram Lacan a
reformular sua clínica das psicoses.
111
Assim, nosso percurso pelas referências filosóficas que se seguem tem como
objetivo perceber como a filosofia auxilia Lacan a dar conta das relações entre o Um e o
Outro, entre o particular e o universal, e a construção – extração? – de um ponto de
conexão entre o sujeito e o Outro. Para Nascimento,
É orientando sua teoria e sua prática em direção ao real das pulsões e do gozo
que a psicanálise triunfa ao recuperar o que há de particular em cada sujeito.
Mais precisamente, no lugar de reduzi-lo ao universal das formas kantianas ou
das leis científicas, a psicanálise conta o sujeito um a um (Nascimento, 2007)
153
.
Destacamos três pontos específicos, por considerar que eles nos auxiliam a pensar
a passagem da clínica das psicoses dos anos cinqüenta para a clínica dos anos setenta.
Buscamos encontrar os pontos de continuidade e descontinuidade entre esses dois
momentos. Comentaremos inicialmente o modo como o pensamento, âncora do sujeito na
tradição racionalista, fracassa a definir o ser do sujeito, o que é confirmado pela clínica
das psicoses. Abordaremos em seguida um aspecto da obra de Merleau-Ponty que nos
ajuda a perceber a passagem da Coisa, das Ding, tal como Lacan a aborda no Seminário
da Ética, para o objeto a, no Seminário da Angústia. Por fim, abordaremos a aposta de
Pascal, referência lacaniana que nos mostra que a crença no Outro é compatível com a
clínica do Outro que não existe. As três referências nos ajudam a formar o quadro da
alteridade que será desdobrado a partir do esquema L no capítulo seguinte.
Descartes e Aristóteles
São inúmeras e tão extensas as passagens de Lacan sobre Descartes e Aristóteles
que apenas enfatizamos, aqui, a separação entre inconsciente e pensamento que surgem
153
idem, p.59
112
em momentos tão distantes como o esquema L, do Seminário III, ou no neologismo
appensamento, do Seminário SXXIII (Lacan, 2005b)154.
No Seminário III, nos deparamos com a comparação que Lacan promove entre a
condição de pensar em Aristóteles e a condição de falar: “Aristóteles ressaltava que não se
deve dizer que o homem pensa, mas que ele pensa com sua alma. Igualmente, digo que o sujeito
se fala com seu eu” (Lacan, 1981) 155.
Em nossa pesquisa foi curioso ver que Lacan retoma essa questão, anos mais
tarde, no Seminário XX156. Dessa vez ele retoma a questão dos limites do pensamento,
sustentando que esses limites são os mesmos propostos por Aristóteles (Lacan, 1975b).
O diálogo entre esses dois momentos de Lacan nos mostra que o percurso de seu
ensino isola duas clivagens fundamentais, introduzidas pela psicanálise. Inicialmente ele
consolida uma idéia, presente desde muito cedo: que o inconsciente se opõe ao eixo da
realidade. Assim, a realidade não dará conta dos fenômenos em jogo na clínica que se
inaugura. Em um segundo momento, temos a seguinte citação do Seminário XX157: “O
inconsciente não quer dizer que o ser pense” (Lacan, 1975b). Consolida-se, aqui, a
clivagem entre o sujeito lacaniano e o sujeito cartesiano, clivagem, portanto, entre o
sujeito da razão e o sujeito da psicanálise. Vala a pena observar que estamos, nesse
momento, no apogeu de Foucault e de seu estudo sobre a desrazão. Trata-se, a nosso ver,
de um ponto de aproximação entre os dois autores o fato que ambos dispensam o
aparelho da razão como verdade absoluta do ser.
154
Lacan, J., Le Séminaire XXIII, Le sinthome, p.144, tradução adotada por Ram Mandil
Lacan, J.,Le Séminaire III, Les Psychoses, p.23.
156
Lacan, J., Le Séminaire XX, Encore, p.100.
157
Lacan, J., Le Séminaire XX, p.95
155
113
Milner, em seu livro A obra clara, afirma que essa frase do Seminário XX é a
confirmação de que, para Lacan, a tarefa de pensar somente é possível dentro do
enquadramento produzido por Aristóteles. Assim, todo pensamento seria qualificado e
imaginado segundo os princípios da lógica formal (semelhanças, negação, terceiro
excluído, julgamento, dúvida, etc.) (Milner, 1995)158. O autor sintetiza, desse modo, as
idéias que separam o sujeito da psicanálise do pensamento de Descartes e de Aristóteles.
A relação com o Outro é, conseqüentemente, marcada por uma dupla distinção, na
medida em que a subjetividade se defronta com duas alteridades: o Outro da linguagem, e
o “eu que pensa”, ou sujeito cartesiano. Lacan afirma seu afastamento do sujeito
cartesiano em diversas passagens, como, por exemplo, a seguinte:
Sem dúvidas, os filósofos introduziram aí importantes correções,
nominalmente a de que, naquilo que pensa (cogitans), nunca faço senão
constituir-me como objeto (cogitatum) (...) É claro que isso me limita a só estar
aí em meu ser na medida em que penso que sou (estou) em meu pensamento
(Lacan, 1966d)159
O sujeito cartesiano, portanto, está condenado a pensar para existir. O sujeito
lacaniano, ao contrário, não existe ali onde ele pensa. O que nos parece um silogismo
banal é, no fundo, a chave para compreendermos porque Lacan nos convoca a não recuar
diante das psicoses. Tanto quanto durou em seu ensino a categoria de sujeito, este sempre
esteve, para Lacan, além da razão e da desrazão. Trata-se de uma subjetividade em nada
incompatível com a clínica da loucura. Ao forjar o neologismo appensamento, em 76,
este deve ser considerado, como ressalva Mandil, dentro da perspectiva de algo que se
impõe ao sujeito, pensamento que é experimentado como “algo estranho, com valor de
158
159
Milner, J-C. L’oeuvre claire, p.144.
Lacan J., L’instance de la lettre, p.516 – tradução nossa
114
traumatismo” (Mandil, 2008)160. A concepção dos nós do Seminário XXIII serve,
precisamente, para dar suporte ao pensamento sem confundir-se com o mesmo. Ou seja,
Lacan afirma que seus nós configuram uma cadeia que faz a escritura na qual o
pensamento irá se sustentar (Lacan, 2005b)161.
Merleau-Ponty
Em seu curso intitulado Silet, Miller intitulou uma das aulas Lacan versus
Merleau-Ponty, onde mostra que o ponto de separação entre os dois se dá no momento
em que o último exclui do olhar a estranheza, Unheimlichkeit, ponto a partir do qual
Lacan justamente introduz a pulsão escópica para em seguida reformular a pulsão em
geral (Miller, 2005e)162.
Ainda assim, o encontro com Merleau-Ponty foi de grande importância para
Lacan. Desse encontro extraímos alguns pontos que concernem diretamente à teoria das
psicoses. Viemos construindo, até o momento, a idéia de que, na clínica das psicoses, é
necessário distinguir os fenômenos que buscam ou sofrem uma tradução ao passar pelo
campo do Outro e os fenômenos que são incomunicáveis, intransponíveis para a malha
dos sentidos. É possível extrair uma importante diferenciação clínica a partir dessa
constatação. Essa proposta é levantada por Naveau a partir da controvérsia entre Lacan e
Merleau-Ponty sobre a natureza das alucinações (Naveau, 2005)163. Lacan afirma que a
alucinação é uma percepção sem objeto. Merleau-Ponty afirma que a alucinação não é
160
Mandil, R., Appensamento, p.26
Lacan, J., Le Séminaire XXIII, Le sinthome, p.144
162
Miller, J-A., Silet, p.290
163
Naveau, P., Les Psychoses et le lien social, p.36
161
115
uma percepção: “ (...) a alucinação não é um conteúdo sensorial, só nos resta considerá-la como
um julgamento, como uma interpretação ou como uma crença” (Merleau-Ponty, 1945)164.
Esse debate implica diretamente no modo como se estrutura a realidade na obra
dos dois autores. Seguindo o ponto de vista desse último, a alucinação é um fenômeno
desconectado do Outro uma vez que nenhum perceptum seria capturado pelo percipiens.
Lacan, por sua vez, parte do princípio de que há percepção na alucinação. Ele acrescenta:
a diversidade dos registros das sensações visuais, auditivas, olfativas, etc., não ameaça a
unidade do percipiens se for observada a condição de que o percipiens se mantenha à
altura da realidade (Lacan, 1966a)165.
Pode, a princípio, causar estranheza que nessa passagem Lacan, que se dedicou,
em diversos momentos de seu ensino, a desconstruir a realidade, tenha feito tal
afirmação. Aqui, ao convocar a realidade, nos parece que Lacan busca sustentar a
existência de um sujeito à altura da realidade. Ou seja, convocar o sujeito, ativamente, a
dar testemunho de que o problema não é que o perceptum não exista, tal como afirmava
Merleau-Ponty - o que não implica que ele faça parte da realidade – mas que o perceptum
é da ordem do real.
Seu comentário aponta uma orientação clínica que busca manter o foco na
realidade, mesmo quando se trata do fenômeno alucinatório. Ao negar a percepção na
alucinação, Merleau-Ponty nega a possibilidade do percipiens extrair uma lógica
subjetiva na construção da alucinação. Ela passa a ser definida como um núcleo de
incomunicabilidade que faz da alucinação um fenômeno externo ao laço social. Assim,
estar à altura da realidade implica em suportá-la ali mesmo, onde o real faz furo. A
164
165
Merleau-Ponty M., Phénoménologie de la Perception, p. 386
Lacan J. , D’une question préliminaire a tout traitement possible de la pschose, p.532
116
clínica se pauta nas estratégias de subversão do real que possibilitarão ao sujeito
sustentar-se em um mundo habitável, o que é bem diferente de atribuir à psicose um erro
de julgamento.
Baas, contudo, afirma que há muito mais semelhanças do que discórdias entre os
dois pensadores (Baas, 1995). A proximidade teórica entre os dois autores, inclusive, foi
marcada por uma grande amizade. Conta-nos Roudinesco que a única vez que se recorda
de ter visto Lacan chorando em público foi, precisamente, no enterro de Merleau-Ponty
(Roudinesco, 1993)166.
Há uma grande aproximação entre a Coisa tal como ela é concebida por Lacan e a
carne (la chair), conceito muito específico na obra de Merleau-Ponty. Em sua obra, a
carne é o fundo de natureza inumana sobre o qual o humano se instala. Todo o
movimento do Seminário de Lacan que vai do Seminário VII, A ética da psicanálise, até
o Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, que traça a passagem
da Coisa ao objeto a, pode ser lido sob inspiração da obra do autor da Fenomenologia da
percepção, ao qual Baas faz o seguinte comentário Baas:
Em Visível e invisível trata-se, portanto, de pensar o corpo, não como corpo
biológico, mas como “carne”, quer dizer, como o que é ontologicamente
anterior à distinção entre objeto sensível e sujeito sensitivo. E, mais
precisamente – já que é esta a referência privilegiada, mas não exclusiva, de
Merleau-Ponty – entre o visível e o vidente. Essa “coisa” que Merleau-Ponty
nomeia “carne” é ao mesmo tempo “o que precede e o que preside” a distinção
ou a separação entre o visível e o vidente (Baas, 1995)167.
Estabelece-se uma topologia do quiasma
168
que, para Baas, é a mesma
característica principal do objeto a, a reversibilidade. É igualmente onde se apóia a idéia
de corpo presente na obra de Merleau-Ponty.
166
Roudinesco E. , Jacques Lacan, p.368
Baas B., Notre étoffe, p.48
168
idem, p.49
167
117
O corpo, por um lado, faz parte do mundo, ou seja, das coisas que podem ser
sentidas. Sentimos nosso corpo a tal ponto que podemos nos referir a ele na terceira
pessoa. Por outro lado, é com esse mesmo corpo que sentimos o que pode ser sentido,
inclusive nosso corpo. Nesse sentido ele é coisa sensível. Baas propõe o seguinte
esquema169.
Topologia do quiasma
corpo
o que sente
sujeito
da percepção
o que é sentido
objetos sensíveis
(= mundo)
O esquema serve a Baas para demonstrar que a linha mediana, representando o
corpo, tem uma afinidade com o objeto a lacaniano. Ambos possuem o critério de
reversibilidade. É no corpo que se produz a reversão daquilo que é coisa que sente para
coisa que é sentida. O hibridismo dessa condição traz como conseqüência, a
impossibilidade de ser puramente um ser que vê.
É impossível se obter uma visão do mundo, pois para que essa visão seja
possível, temos que eliminar daquele que vê sua própria condição de ser coisa que –
também - é vista. Adiante, veremos como é possível constatar no esquema L a mesma
condição de reversibilidade do mais íntimo ao mais externo. Essa reversibilidade é
169
idem, p.49
118
garantida, nesse esquema, pela fita de Moebius, que assegura que a percepção da
realidade inclui o próprio sujeito pensante. Ou seja, não há interioridade do ser que não
seja igualmente algo “fora de si”.
O corpo (...) agrupa as coisas percebidas e, com elas, entre elas, o corpo que
percebe. E é por isso que não podemos aqui nos contentar com uma topologia
ingênua que faz do corpo um simples envelope da alma, como sugere a idéia
do olho como uma “janela da alma”(Baas, 1995)170.
Pascal
Prosseguindo nossa incursão pela filosofia, encontramos outro filósofo presente
na obra de Lacan, e que lhe serve de contraponto ao Deus dos filósofos e sábios, Blaise
Pascal. Enquanto Kant e Descartes apontam para uma dialética que serve à construção da
realidade sob a égide do Outro, acreditamos que a aproximação maior de Lacan por
Merleau-Ponty e Pascal deriva do fato de que esses pensadores possuem o substrato para
a criação lacaniana maior, o objeto a.
O Deus de Pascal não é extraído de sua filosofia. Seu encontro com Deus tem data
e hora precisa, a noite de 23 de novembro de 1654, entre dez e meia e meia noite e meia.
Esse encontro possui igualmente um nome, trata-se do Memorial de Pascal. O Deus de
Pascal é o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, e não o Deus dos filósofos e sábios. É a esse
Deus que se refere Lacan no texto sobre a Subversão do sujeito e a dialética do desejo
(Lacan, 1966k)171.
O que se passou exatamente nessa noite histórica, e ao mesmo tempo de total
intimidade, da vida de Pascal? Em seu Memorial, Pascal rompe com o Deus dos filósofos
e se dá conta de que nenhum pensamento científico o levará até Ele. O Deus de Pascal é o
170
171
idem, p.50
Lacan J., Subversion du sujet et dialectique du désir, p. 818
119
da revelação, ou seja, implica em uma aposta do sujeito. Diante da impossibilidade de
conhecer Deus somente resta a possibilidade de apostar em sua existência. Guéguen
considera esse momento como o momento mesmo da gênese do “Outro que não existe”,
pois nos mostra que não há Outro absoluto correlato ao Nome-do-Pai (Guéguen, 2007)172.
Para Guéguen, há uma diferença entre Pascal e Descartes. O Deus de Descartes
implica em uma construção analítica que dá lugar a cada etapa da razão e, por fim, Deus,
inicialmente deixado de lado de todo o processo, surgindo como o ponto de estofo de
toda a construção. Já Pascal apresenta uma tese mais complexa. Seu Deus está em todo
lugar e em nenhum lugar, não há para ele um lugar específico. Trata-se de um Outro que
difere do Deus cartesiano já que, mais do que incompleto, ele dispensa a existência da
suposição de um ponto de estofo.
O Deus de Pascal se associa a sua referência célebre sobre a esfera, presente em
seus Pensamentos (Pascal, 2001). Uma esfera infinita onde o centro está em todo lugar e
a circunferência em nenhum lugar. Assim, o Outro de Pascal é inconsistente, tornando-se
fruto de uma aposta. Esse Outro convém a Lacan no momento em que, para além da
incompletude, ele concebe o Outro como inconsistente. Para Lacan, a aposta pascaliana
vem de seu horror ao vazio, se Deus é o centro da esfera infinita, nenhum cálculo
apontará sua posição, resta apostar em sua existência (Lacan, 2004b)173.
É precisamente a aposta que podemos esperar na direção do tratamento nas
psicoses. A passagem da certeza à crença é uma manobra difícil nas psicoses. Estamos
acostumados ao psicótico mergulhado na certeza delirante. Com Lacan aprendemos que o
momento de certeza veio igualmente após a confrontação com o vazio. Nesse momento,
172
173
Guéguen P-G, La genèse de l’”Autre qui n’existe pás”, p., 21
Lacan, J., Le Séminaire X, l´angoisse, p.83
120
o vazio de significação converteu-se em certeza delirante. Acreditamos que o encontro
com um analista pode permitir relançar a crença ao não buscar nutrir de sentido esse
vazio, ofertando um espaço para que o psicótico creia em sua invenção, em sua ficção ou
escrita. A diferença entre reforçar o sentido ou o vazio é que no primeiro se satura o vazio
com significantes do Outro, enquanto fazer consistir o vazio permite ao psicótico apostar
em uma criação.
É assim que, desde o Discurso de Roma, Lacan situa a loucura como um
fenômeno de crença que, como tal, pode ser compartilhado por todos, a referência à
Pascal é mais que oportuna:
Foi isso que eu quis apontar ao dizer que o sujeito normal partilha esse lugar
com todos os paranóicos que correm pelo mundo, na medida em que as crenças
psicológicas a que esse sujeito se apega, na civilização, constituem uma
variedade de delírio que não se deve considerar mais benigna por ser quase
geral. Seguramente, nada autoriza vocês a participarem dela, a não ser,
justamente, na medida enunciada por Pascal, segundo a qual equivaleria a ser
louco de uma outra forma de loucura não ser louco de uma loucura que parece
tão necessária (Lacan, 2003b)174.
III. 4 - Moldando o objeto a
Concluímos o capítulo interrogando de que modo é possível “fixar” uma
realidade, estável, para que o sujeito se inscreva no laço social. Percebemos que o gozo,
em sua alteridade, introduz um continuum que anula qualquer possibilidade de
estabilização da realidade que não seja delirante. Os problemas da alteridade e do gozo,
estabelecendo as condições de monólogo e diálogo no laço social, impuseram uma saída
clínica original, engendrando uma topologia que desse conta do impasse. Tornou-se
174
Lacan, J., Discurso de Roma, p.168
121
necessária a elaboração das condições de reversibilidade que culminaram na teoria do
objeto a.
O avanço da teoria lacaniana fez com que seu criador se distanciasse cada vez
mais de suas bases estruturalistas. Da primazia do Outro simbólico, tão importante na
construção do esquema L, passamos - a partir dos anos 60, com a introdução do matema
S de A barrado - à inscrição do gozo em relação ao significante que falta ao Outro
(Lacan, 1966k)175. É o caminho que levará Lacan, em 72, a proferir seu famoso “Y a
d´l´Un” (Lacan, 1972b) - que podemos traduzir como há algo do Um 176– que mostra que
o Outro como Um não existe, mas que a experiência de gozo traz o paradoxo de ser um
gozo do particular sem que haja universal. Surge então o Um da incomunicabilidade
narcísica, Um que aponta o gozo como separação radical do Outro. O gozo do Um torna
impossível a construção de um laço social pautado nos ideais da cultura, é mesmo o
ponto em que Lacan rompe com a palavra cultura e passa a falar de laço social como um
discurso ancorado no ser falante: “a cultura, como algo que seja distinto da sociedade,
não existe [...] Enfim, o que conta é o laço social” (Lacan, 1975b)177.
Procuramos mostrar que, enquanto o Lacan dos anos cinqüenta trouxe a tona um
intrincado sistema de alteridades tendo como Outro radical a linguagem178, a partir dos
anos 60, constatamos que o que instiga a investigação lacaniana sobre a alteridade é o
próprio gozo do corpo. Para além da possibilidade de simbolização do gozo, através da
operação castração, Lacan se debruça sobre o resto dessa operação. Resto que, pelo fato
175
Lacan, J., Subversion du sujet..., p.819
Lacan usa a expressão tal como na famosa música do cantor francês Charles Trenet Y a d´la joie. A
ironia de Trenet está em usar a forma do partitivo da língua francesa para dizer que não existe a felicidade,
ao mesmo tempo em que afirma sua existência. Como falamos anteriormente, “O” pai não existe, o que
existe são restos do banquete totêmico (Cohen, 2006).
177
Lacan J., Le Séminaire XX, Encore, p. 51 – tradução nossa
178
Aqui, por excelência podemos aplicar a máxima de que a palavra mata a coisa.
176
122
de resistir ao simbólico, desloca a pergunta sobre o que é a alteridade do campo do Outro
simbólico para a opacidade corporal. Como opacidade corporal, entendemos as sensações
e percepções intraduzíveis no estádio do espelho (Miller, 2005c). Afinal, o corpo do
estádio do espelho é uma casca, uma imagem de corpo sem órgãos, desprovido de
qualquer interioridade.
Essa nova perspectiva torna a construção do laço social muito diferente da
perspectiva estruturalista. Progressivamente, a pergunta sobre como se sustenta o laço
social se torna uma pergunta sobre como manter juntos os registros do real, simbólico e
imaginário. A resposta, contudo, não virá do Outro, já que a este é negado acesso ao gozo
experimentado pelo sujeito. Sabemos que todas estas reflexões culminaram nos
desenvolvimentos do Seminário XX sobre a inexistência da relação sexual e d’A mulher
(Lacan, 1975b).
Não se trata mais da torção moebiana aplicada ao plano da realidade, e sim de
pensar a topologia dessa torção aplicada a um corpo sólido, opaco a qualquer tradução
significante. Deparamo-nos, conseqüentemente, com um real do corpo que o psicanalista
direciona o tratamento no sentido de amarrá-lo ao simbólico e ao imaginário. Percebemos
aqui que a psicanálise se separa da direção que toma a ciência contemporânea que
intervém cada vez mais no real e não na amarração. É o que percebemos no curioso
comentário de Caroz a propósito de trabalhos recentes indicando a localização do gozo
feminino, o “ponto G”, e a expectativa científica de “inflar” essa zona em busca de maior
prazer. “Eis que agora não se pensa apenas em implantes de órgãos, mas do próprio
gozo” (Caroz, 2008)179.
179
Caroz, G., Corps et objets sur la scène, p.24
123
O Outro, o que “em mim é estranho a mim mesmo”, não é aquilo que se captura
pela percepção visual, ou seja, que se possa tornar objeto da pulsão escópica, estruturante
do estádio do espelho. É o próprio corpo, ou melhor, algo desse corpo que se torna
alteridade, inviabilizando que o sujeito se identifique a ele e possa dizer que “é” seu
corpo (Lysy-Stevens, 2008). Longe do espelho, ter um corpo é sempre um problema.
Parte da nova concepção do laço social de Lacan se ancora no Seminário da
Angústia. Aqui, Lacan consegue demonstrar como a estranheza do corpo próprio se torna
objetalidade no campo do Outro mediante a extração do objeto a (Miller, 2005c).
Somente após ter moldado esse “resto” Lacan pode desenvolver uma noção de laço social
distinta da comunhão em torno do símbolo, privilegiando o modo como os diferentes
discursos entre os homens situam e valorizam o gozo excluído da linguagem.
Residiria nesse ponto o fracasso do laço que une os homens, ou mesmo as
culturas? No fato de que o interesse pelo Outro é menos importante do que o interesse
pelo próprio gozo do corpo? Essa pergunta não deixa de ser uma das ressonâncias da tese
freudiana maior de que “é impossível amar ao próximo como a si mesmo”. A partir dos
anos setenta, sabemos que a afinidade do objeto a com o real será, para Lacan, no
mínimo, relativizada e posta sob suspeição, prevalecendo sua função de semblante
(Lacan, 1975b)180. Contudo, nos parece que reside nessa possibilidade de se fazer
semblante no Outro que autoriza o amor que tornaria possível condescender ao gozo em
prol do laço social.
Ou seja, por vias diversas, constatamos que Freud e Lacan se interrogam sobre o
laço social quando tudo aponta para a impossibilidade real desse laço. A seu modo,
ambos constatam que todo laço social é semblante. O conceito de suplência, tal como
180
Lacan J., Le Séminaire XX, Encore, p.85
124
Lacan o desenvolve nos anos 70, nos parece ser a extensão necessária da nova
formulação do sintoma, o sinthoma, para dar um salto sobre esse real impossível do
encontro entre os homens. Deparamo-nos com o objeto a quando temos a noção de que
aquilo que foi perdido de nosso corpo jamais poderá ser reencontrado, mesmo porque
jamais foi escrito. É na sua função de corte, de separação entre gozo e desejo, que o
objeto a permite um recorte que torna a realidade assimilável ao laço social. Nesse
sentido, Freud e Lacan se inscrevem na tradição moralista de autores como La
Rochefoucauld, com suas máximas sobre o amor próprio, e Leopardi. Todos eles
denunciam, com suas obras, a vacilação dos semblantes e a descrença na arte da
conversação que exclua o narcisismo daquele que fala. É o que Leopardi nos convida em
seus Pensamentos:
No que diz respeito ao falar, não se conhece prazer mais vivo e duradouro,
como quando nos é permitido discorrer sobre nós mesmos, sobre as coisas de
que nos ocupamos ou que se relacionam a nós de alguma forma. Qualquer
outro discurso, em pouco tempo, resulta em tédio; e este, que nos é agradável,
é terrivelmente tedioso para quem o ouve. Não se conquista título de pessoal
amável, na conversação, senão à força de padecimentos, porque amável, na
conversação, não é senão aquele que gratifica o amor-próprio dos outros
[...] Porque, em suma, se a melhor companhia é a de quem nos despedimos
mais satisfeitos conosco, é também a que deixamos mais aborrecida (Leopardi,
1996)181.
181
Leopardi, G. Prosa e poesia, pensamento XXI, p.480
125
Capítulo IV – PSICOSES LACANIANAS:
126
Ser psicanalista é simplesmente abrir os olhos sobre essa
evidência de que não há nada mais confuso do que a realidade
humana (Lacan, 1981)182.
Nos últimos anos ganhou difusão a divisão do ensino de Lacan entre primeira e
segunda clínica. Sobretudo na clínica das psicoses, o estabelecimento e publicação do
Seminário XXIII (Lacan, 2005b), em 2005, bem como a publicação do livro sobre a
Psicose Ordinária (Miller, 2005d), do mesmo ano, para alguns, pareceram jogar por terra
todos os desenvolvimentos feitos por Lacan sobre as psicoses até então.
O conceito de Psicose Ordinária foi cunhado originalmente por Miller e tem data
precisa: a Convenção de Antibes, encontro clínico realizado nos dias 19 e 20 de setembro
de 1998 (Miller, 2005d). A importância que vem tendo a difusão desse conceito na atual
clínica lacaniana das psicoses justifica que reproduzamos o momento de seu nascimento:
Eu me interrogava, ontem à noite: como se chamaria o livro que sairá dessa
jornada? Certamente não se colocará Neo-desencadeamento, neo-conversão,
neo-transferência. Chamaremos então As neo-psicoses? Será que temos
realmente vontade de ligar nossa elaboração à neo-psicose? Isto não me agrada
de modo algum, a neo-psicose. Então me dizia: finalmente nós estamos falando
é da psicose ordinária.183
Baixada a poeira, a solidez do Seminário III e a perfeita coerência da teoria da
foraclusão do Nome-do-Pai nos parecem ter resistido, e hoje se articulam perfeitamente
com a clínica do sinthoma, do nó borromeano e do jovem conceito de Psicose Ordinária.
Nesse capítulo, partiremos da premissa de que a apreensão do laço social é
subvertida pela teoria lacaniana no momento em que a topologia é aplicada à realidade.
182
183
Lacan J., Le Séminaire III, Les Psychoses, p.95, tradução nossa
Milller, La psychose ordinaire, p.230
127
Essa intuição não é exclusivamente lacaniana, ela pode igualmente ser encontrada no
gênio artístico de Maurits Cornelis Escher, desenhista gráfico que, como poucos,
desmontou a idéia de que o corte da realidade perceptiva não é suficientemente capaz de
separar a imagem de seu observador.
(Escher, 1956)
Não nos parece haver um consenso entre os psicanalistas sobre o que seria o
momento em que passaríamos a falar de uma segunda clínica das psicoses em Lacan.
Alguns localizam a segunda clínica a partir do Seminário XXIII, outros, à partir do
Seminário X, onde se formaliza o objeto a. Nosso estudo, embora sem encontrar uma
menção explícita nos trabalhos pesquisados a esse respeito, se propõe a pensar em três e
não dois momentos cruciais da teoria lacaniana das psicoses. Três momentos distintos
entre si, e que, contrariamente ao que poderia ser o sentido comum, se harmonizam para
constituir uma única e sólida teoria sobre as psicoses. Seriam eles:
128
- A foraclusão do Nome-do-Pai, nos anos 50, com o Seminário das psicoses
(Lacan, 1981);
- A formalização do objeto a e os mecanismos de sua extração, nos anos 60, com
o Seminário da angústia (Lacan, 2004b);
- E por fim a teoria dos nós e o sinthoma joyceano, nos anos 70, com o Seminário
do sinthoma (Lacan, 2005b).
Optamos por essa divisão uma vez que ela responde às situações clínicas e aos
questionamentos que nos defrontamos em nosso percurso. A clínica dos anos 50 nos
permite abordar os casos de psicoses desencadeadas e a estrutura mesmo do
desencadeamento. São as psicoses que, après coups, poderíamos nomear de
extraordinárias, a clínica dos hospitais, dos ambulatórios de saúde mental, etc. A clínica
dos anos 60 nos permite compreender o próprio estado da civilização, sua predileção pelo
gozo e não mais pelos ideais e, especificamente na clínica das psicoses, a clínica da
mania, da não-extração do objeto e seus efeitos corporais.
Finalmente, com Joyce, estamos em pleno terreno das psicoses ordinárias, as
psicoses normais. Aqui, mais uma vez, não podemos dizer que há consenso. Para uns
significa a psicose não desencadeada e, para outros, a psicose cujo desencadeamento ou a
atividade delirante é imperceptível à clínica do olhar. De todo modo, um prenúncio da
psicose ordinária pode ser encontrado no comentário de Miller, de 1993, ao propor uma
clínica universal do delírio, de que todo mundo delira (Miller, 1993). Ao partir da idéia
de que todo discurso é defesa contra o real184, ele promoveu uma descentralização radical
da questão da loucura, o que não deixa de ter repercussões no modo como podemos
pensá-la no campo da saúde mental. Esta, com a nova clínica, pode se separar da clássica
184
Miller, J-A., Clinique Ironique, p.5
129
clínica diferencial das psicoses para, apoiando-se na psicanálise, consolidar o projeto de
pensar a loucura para além do conceito de doença.
Distribuímos esse capítulo em três partes, respeitando a cronologia dos
Seminários citados acima. A idéia de fazer uma releitura do esquema L somente nos foi
possível a partir da leitura do curso Silet, de Miller, proferido entre os anos de 94 e 95
(Miller, 2005e). Até então estávamos habituados a fazer uma leitura do esquema L
partindo do pressuposto de que o gozo se localizava no eixo imaginário, enquanto o eixo
do simbólico era esvaziado de gozo, seguindo o princípio de que a palavra mata a coisa.
A partir desse curso surge uma outra de leitura do esquema, partindo da nova
perspectiva de que poderíamos localizar o gozo no eixo simbólico. Assim, a fala, para
além do sentido que ela pode comportar, passa a ser em si um modo de gozar185 que é
distinto da jubilação imaginária, cuja base foi estabelecida anteriormente por Lacan a
partir do estádio do espelho (Lacan, 1966i).
Esse curso nos deu a possibilidade de explorar o esquema L de forma inédita, buscando
re-localizar o modo como o gozo se distribui no esquema, bem como todas as relações de
185
Miller, J-A., Silet, p.78
130
alteridade presentes. A conexão entre o significante e o gozo, nos leva fatidicamente à
questão do corpo. É precisamente essa relação que nos interessa em nosso estudo sobre a
psicose e o laço social. Procuramos entender como a palavra do Outro se conecta ao
corpo como fonte de gozo e não de mortificação. É o que foi chamado por Miller de
conversão de perspectiva:
No fundo, convido-os a uma conversão de perspectiva, que consiste em
postular que o significante não tem um efeito de mortificação sobre o corpo,
que é o que supõe a teoria da fantasia, mas que o essencial é que o significante
não atrai a libido, mas a produz sob a forma do mais-de-gozar; que o
significante tem, fundamentalmente, uma incidência de gozo sobre o corpo. É
o que Lacan chama de sintoma (Miller, Jacques-Alain, 1998a)186.
Tomando como fio de Ariadne esse comentário de Miller, propomos ler os três
momentos da teoria lacaniana das psicoses como auxílio à nossa pergunta sobre a
pertinência da psicanálise na saúde mental. Escolhemos três pontos representativos dos
três períodos a que nos referimos: o esquema L, a extração do objeto a e o sinthoma.
186
Miller, J-A., O osso de uma análise, p.81
131
IV. 1 – O esquema L
Esq uema L
(a)’utre
(Es)S
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(m oi)a
ão
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l
e
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im
n
gi
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co
n
sc
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n
te
(A)u tre
No esquema L, a relação com o mundo dos objetos e dos homens, que configura o
laço social, se passa no eixo a-a’, chamado por Lacan de diagonal da realidade. Essa
relação pode ser vista como um avanço sobre seu texto de 1936, o Estádio do Espelho,
uma vez que remaneja a configuração do eixo imaginário. O eixo a - a’, em si, é
composto pela alteridade entre os semelhantes (o par a,a’), mas se opõe a outra
alteridade, entre o sujeito e o Outro simbólico, relação que é marcada pelo recalque e que
é nomeada por Lacan de diagonal do inconsciente. Após abordar os aspectos gerais da
questão da alteridade em Lacan, passemos em revista essas diversas relações de
alteridade que se aplicam especificamente ao esquema L. Com base no que já foi exposto
até aqui, procuraremos demonstrar que a questão da alteridade exposta no esquema L
avança no momento em que, ao introduzir o conceito de Coisa no Seminário sobre a
ética, a clínica lacaniana passa de um Outro simbólico para um Outro real.
132
Antes do surgimento do objeto a, a questão do gozo era baseada,
fundamentalmente, na oposição entre o simbólico e o imaginário, explicitada no esquema
L. Dentro do aparato conceitual de Lacan em 1956, é com o esquema L que se
demonstram as relações do sujeito com o próprio corpo (que experimenta o gozo) e o
Outro (no amor e na identificação) (Miller, 2005c)187.
Talvez pelo acréscimo de complexidade didática Lacan não tenha se servido dos
esquemas R e I, derivativos do esquema L, em seus Seminários, os reservando apenas
para o texto sobre as psicoses dos Escritos188. De todo modo, o que os esquemas buscam
equacionar é a problemática relação do sujeito psicótico com o Outro. Repassaremos
inicialmente os passos da construção do esquema.
As relações de alteridade constantes no esquema de Lacan são propostas na aula
inaugural do Seminário sobre as psicoses. Nessa aula ele introduz a questão do sujeito em
oposição ao Outro, estabelecendo-os como (Es)S e (A)utre, espraiados em um
quadrilátero composto por dois outros elementos, (moi)a e (a’)utre, que figuram no texto
lacaniano como os dois eus (Lacan, 1981)189. De imediato essa referência nos convida a
pensar que mais de uma alteridade está presente nesse esquema.
Lacan chamou o eixo a – a’ de eixo da realidade e o eixo (Es)S – A de eixo do
inconsciente. Essa última diagonal possui a característica de iniciar seu trajeto em linha
cheia tornando-se pontilhada ao cruzar o eixo da realidade. Esse recurso permite
identificar, nessa diagonal, o recalque, uma vez que o campo da realidade impede o
acesso direto ao inconsciente. Podemos dizer que a relação do sujeito com o Outro e com
187
Miller J-A, Introdução à leitura do Seminário 10...p.7e seguintes
Lacan desenvolve estes esquemas apenas no texto escrito D’une question préliminaire à tout traitement
possible de la psychose
189
Lacan, J.,Le Séminaire III, Les Psychoses, p.23.
188
133
o inconsciente fica esquecida por trás do eixo da realidade e, como veremos adiante, a
fragmentação do eixo a - a’ faz imediatamente vacilar esse esquecimento.
Chama atenção o fato de que, no pólo receptador da mensagem do Outro, Lacan
tenha incluído o isso Freudiano (Es), ou seja, o núcleo mesmo do que, na teoria
freudiana, não emerge nos conteúdos conscientes fazendo questão de preservar a
homofonia com a letra S, do sujeito não barrado.
A diagonal que se instala como a - a’ enquadra, igualmente, a vastidão dos objetos
que o sujeito captura no campo da realidade. Acreditamos que é a partir dessa perspectiva
que, alguns anos mais tarde, foram feitos os desenvolvimentos sobre a Coisa, presentes
no Seminário da Ética e que trazem uma clareza maior sobre a topologia e a alteridade
desse esquema. Ao buscar articular esse Seminário com o esquema L do Seminário III,
propomos situar no campo da realidade (a – a’) as Sache, os objetos que serão
percebidos, em oposição à Ding, a Coisa, que é concebida por Lacan como o vazio em
torno do qual se organiza o campo da realidade (Lacan, 1986).
Esse eixo, na verdade, sintetiza vários aspectos da teoria da libido que passam
pela teoria do narcisismo (Freud, 1976) e pelo estádio do espelho (Lacan, 1966i). Ou seja,
temos a impressão inicial de que o investimento libidinal está totalmente equacionado
dentro dos limites dessa diagonal. É a leitura que fazemos tomando como base o fato de
que esse eixo é um prolongamento de seu texto do estádio do espelho. Porém,
posteriormente o próprio Lacan refutará essa afirmação ao dizer que um “resto libidinal”
190
190
fica de fora da captura pelo eixo a-a’, e que é precisamente esse resto que introduz a
Observamos aqui um prenúncio do objeto a, que será formalizado por Lacan no Seminário da Angústia
dois anos após esse comentário.
134
necessidade de outra condição de alteridade dentro do esquema L (Lacan, 2001f)191. Esse
comentário, a nossa ver, é um prenúncio da conversão de perspectiva que retifica a
localização do gozo na diagonal a - a’.
O esquema pode ser visto como a junção de dois triângulos. Encontramos uma
triangulação composta pelo sujeito, o eu que fala e o eu para quem se fala, demarcando a
primeira relação de alteridade ao se opor ao Outro (Autre), que preside a cena. Trata-se
da alteridade do simbólico em relação ao campo da realidade. Aqui, o Outro é o tesouro
dos significantes, pólo do esquema que concentra tudo aquilo que pode ser dito, ou seja, o
catálogo universal de enunciados que um sujeito pode proferir. Skriabine ressalva que, na
época do esquema L, o Nome-do-Pai tem precisamente a função de dar consistência a
esse Outro, tornando-se, conseqüentemente, um ponto de crença de que existe o Outro do
Outro (Skriabine, 1993)192. Trata-se do Outro que contém seu próprio significante. Daí a
importância da foraclusão do Nome-do-Pai como primeiro ensaio de formalização da sua
inconsistência que culminará anos mais tarde na teoria da foraclusão generalizada
(Miller, 1993).
Propomos prosseguir um exercício de formalização do esquema L ao qual Miller
faz alusão em um texto, sem tê-lo desenvolvido:
Não tenho tempo para comentar com vocês o que vocês encontrarão em “Uma
questão ...”. Vocês têm o princípio da construção do esquema a partir de dois
triângulos, supondo-se que um deles reduz as funções do simbólico, e o outro
as funções essenciais do imaginário (Miller, 1996b)193
191
Lacan, J. Le Séminaire VIII, Le Transfert, p.50
Skriabine, P., Clinique et topologie, p.78
193
Miller J-A., Suplemento topológico a “Uma questão preliminar...”, p.124
192
135
(Es)S
Dizer
Moi
(a)
(a)’autre
Outro (alteridade)
Tudo que pode ser dito
Data da mesma época do Seminário III o texto de Lacan A instância da letra que
propõe o uso de um algoritmo para a alteridade entre as palavras e as coisas sob a forma
de uma barra entre o significante e o significado (Lacan, 1966d)194: S/s.
Essa barra entre o significante e o significado sintetiza de modo exemplar a
problemática da alteridade do esquema L. A barra, ao marcar a alteridade entre
significante e significado, problematiza as condições de nomeação de uma coisa. Os
objetos passíveis de nomeação (no caso as Sache), chamados de referentes pela
lingüística, tornam-se inatingíveis pela palavra. A alteridade da barra implica que os
significantes apenas se conectariam com outros significantes em uma relação
metonímica, sem possibilidade de alcançar o referente. Nas palavras de Lacan: “(...) é a
conexão do significante com o significante que permite a elisão mediante a qual o
significante instala a falta do ser na relação de objeto” (Lacan, 1966d)195.
É o que justifica a exclusão do Outro nesse primeiro triângulo como alteridade
entre as palavras e as coisas. Poderíamos propor o seguinte esquema para a barra:
194
195
Lacan J., L’instance de la lettre, p.515
idem
136
S1,S2....Sn
Referente
Ainda nessa primeira triangulação, perceberemos que outra relação de alteridade
se instala. O eu se dirige ao outro eu (a - a’) em uma relação imaginária tomando o
próprio sujeito (Es) como terceiro. Há, portanto, uma distancia entre o “S” como
endereço da diagonal do inconsciente e o “moi” que representa o “eu” que se dirige ao
outro no laço social.
É importante, contudo, perceber que a menção ao Es freudiano, no esquema L,
indica que algo do campo do gozo do corpo impede que o esquema seja exclusivamente
uma representação do espaço mental. Essa potencia de dizer implica em um corpo. Aqui
não se trata do corpo imaginário, esculpido no eixo a - a’, como podemos ler no Estádio
do Espelho. É o corpo como carne, como massa ainda não afetada pela palavra, o es
freudiano como gozo sem tradução no campo do simbólico. Todo esse momento do
desenvolvimento de Lacan nos parece muito próximo do modo como a carne é tratada
por Merleau-Ponty, como explicitamos no capítulo anterior.
Passemos ao segundo triângulo. Nem o Outro como tudo que pode ser dito, nem o
Sujeito como puro dizer perfazem em si o eixo do laço social. É preciso que uma frase –
e não todo o tesouro significante – seja enunciada pelo eu e endereçada a alguém que lhe
seja semelhante. Estas relações se estabelecem quando um dito é proveniente do eixo da
realidade ligando a e a’. O eu, nesse sentido, é o aparelho imaginário que possibilita a
comunicação.
137
(es)S (alteridade)
Dizer sem palavras/carne
Não se confunde com o Eu
a’
laço social
Outro
a
A pergunta que faz Lacan sobre o eixo imaginário perpassará todo seu ensino
sobre as psicoses, ou seja, qual a função do eu no tratamento (Lacan, 1981)196. É curioso
ver que vinte anos mais tarde encontraremos uma questão similar, justamente em uma
referência do Seminário XXIII, ao Ego de Joyce. Na aula de onze de maio de 1976 lemos
um parágrafo que nos parece trazer ecos dessa passagem do Seminário III. Dessa vez,
contudo, não mais se tratará da interrogação sobre o hiato entre eu e o Outro simbólico, e
sim sobre o hiato entre o eu e o corpo.
Mas a forma, em Joyce, de se largar (laisser tomber) da relação ao próprio
corpo é muito suspeita para um analista, pois a idéia de si mesmo como um
corpo tem todo seu peso. É precisamente o que chamamos de Ego (Lacan,
2005b)197.
Aqui encontramos um balizador para as mudanças que promove Lacan na questão
sobre a alteridade tal como é abordada no esquema L e nos desenvolvimentos futuros.
Enquanto no Seminário III há uma preocupação maior em mapear a alteridade entre o
sujeito e seus pensamentos, no seminário XXIII é a alteridade do sujeito com relação ao
196
197
Lacan, J., Le Séminaire III, Les psychoses, p.23
Lacan, J. Le Séminaire livre XXIII, Le Sinthome, p.150.
138
próprio corpo que é colocada em questão198. Partindo do eu, o moi, dos esquemas iniciais,
Lacan se dirige para o Ego de Joyce, indicando que para além da importância da relação
com o outro e com a realidade, torna-se necessária uma verdadeira subversão do real do
gozo do corpo na abordagem psicanalítica das psicoses.
IV. 1.1 – A questão do tempo
Um comentário de Miller no Silet motivou o exercício de pensar o esquema L a
partir da separação entre a sincronia e a diacronia dos significantes: “o gozo não conhece
o tempo” (Miller, 2005e)199. Como o próprio autor comenta, essa frase parece contradizer
a teoria da fixierung freudiana, ou seja, a teoria do estadiamento da libido freudiana, que
se inscreve na temporalidade. Propomos, portanto, pensar a extensão dessa frase de
Miller aplicada ao Esquema L. Nosso objetivo é pesquisar o modo como podemos
inscrever o tempo nesse esquema e como ele é afetado no caso do inconsciente a céu
aberto das psicoses.
O inconsciente freudiano possui características específicas que, sob a barra do
recalque, não se apresentam de imediato na relação estabelecida no eixo a - a’. Como
vimos, as duas diagonais do esquema L trazem planos diferentes que, nas psicoses,
implicam em situações clínicas particulares. É necessário partir de Freud. Em 1915 ele
escreve, entre a série de artigos que compõem a Metapsicologia, seu texto O inconsciente
(Freud, 1968 (1915)). Nesse texto, ele descreve as propriedades particulares do sistema
Ics. Freud se serve de uma topografia que propomos transpor à topologia do esquema L.
198
Confirmando nossa motivação, no capítulo anterior, de estudar a distinção do pensamento de Lacan de
Descartes e Merleau-Ponty.
199
Miller, J-A., Silet, p.189
139
Escreve ele que a distinção dos dois sistemas psíquicos toma uma significação nova
quando prestamos atenção para o fato de que os processos de um dos sistemas do
inconsciente apresentam propriedades que não se encontram no sistema imediatamente
superior200. No esquema L, não se trata de um conjunto de propriedades em uma
“camada” superior e sim de planos que se revertem seguindo a topologia de uma fita de
Moebius.
O sistema Inconsciente não conhece a negação, dúvida ou grau de certeza.
Igualmente o Inconsciente não conhece o tempo.
Resumamos: ausência de contradição, processo primário, (mobilidade
de investimentos), atemporalidade e substituição da realidade exterior
pela realidade psíquica, tais são as características que devemos esperar
encontrar nos processos pertencentes ao sistema Ics201.
Podemos, a partir dessa importante consideração de Freud, interrogar a
temporalidade no esquema L com o auxílio de uma alegoria do pragmatismo de Richard
Rorty. Rorty sempre criticou o essencialismo patente de um mundo onde as palavras e as
coisas teriam uma relação de continuidade inequívoca, ou seja, que através das palavras
fosse possível chegar a essência das coisas. Ele parte de uma pergunta curiosa. É possível
definir a “dezessetidade” do número 17? É possível definir o número 17 em si ou ele
deverá sempre ser visto como um número inferior a 18 e superior a 16 (Rorty, 1995)202?
Para Rorty, menor que 20, raiz quadrada de 289 ou a soma de 11 mais 6, são
expressões extrínsecas e acidentais. Tentar capturar a essência do número 17, fora de suas
relações extrínsecas, nos faria perceber que 1.678.922 é tão próximo do número 17 do
que o número 18. Contudo, o que parece impossível para Rorty é que o número 17 tenha
200
Freud. S., L’Inconscient, p.95
idem, p.97, tradução nossa
202
Rorty R., L’espoir au lieu du savoir, p.67
201
140
uma essência em si. É justamente o que propõe Freud quando ele alega que na psicose a
palavra é equivalente à coisa.
Ao aplicarmos essas considerações sobre o esquema L propomos que há um eixo
pragmático, solidário à teoria de Rorty, mas há um outro eixo, a diagonal do inconsciente,
que segue os princípios citados acima por Freud em seu texto sobre o inconsciente. Nesse
eixo, a dezessetidade do número 17 é possível.
a’
(Es)S
a
is
o co
c
i a
át
m at a
g
In
a m
pr vra
a con
p
o
x la
al sc
av ie
ei pa
ra nte
a
é
a
co
i
a
sa
A
Essa questão aparece igualmente no texto de outro filósofo do pragmatismo,
Hilary Putnam. Para ele, as significações possuem uma identidade através do tempo, mas
não possuem uma essência. Como exemplo ele usa seu nome próprio. Quando ele era
pequeno e falava apenas francês ele se chamava “Hilaire Pout-nomm”, já adulto e falando
predominantemente inglês ele diz que seu nome “Hilary Putnam” continua o mesmo,
porque não houve descontinuidade suficiente para que se dissesse que a palavra não
designou a mesma coisa (Putnam, 1990). “Existem práticas que nos ajudam a decidir
141
quando há bastante continuidade na mudança para que seja justificado dizer que é ainda a
mesma pessoa que existe” 203.
Esse exemplo é bastante claro para nos mostrar porque a psicanálise não é uma
pragmática. O eixo do inconsciente, como eixo fora do tempo, faz com que o pequeno
Pout-nomm, como resíduo da lalíngua, parasite eternamente o adulto Putnam. Não se
trata, a nosso ver, de uma fixierung do nome Pout-nomm, mas da eternização de nome
que se torna atemporal. É o que propomos demonstrar em seguida a partir de um
fragmento da clínica.
O esquema L não é um esquema de relações simbólicas e imaginárias apenas.
Como vimos, a presença do isso (Es) como homenagem ao reservatório das pulsões
freudiano, indica que se trata de articular o simbólico e o imaginário com o real do gozo
do corpo. Miller, comentando o esquema L, insiste no fato de que, em Lacan, a diagonal
do inconsciente é a diagonal da tendência da pulsão enquanto a diagonal da realidade é
onde se situa a defesa do eu (Miller, 2005e)204
A diagonal do inconsciente articula, portanto, tudo o que pode ser dito, e que está
no campo do Outro, com a condição do ser falante, que é a de fazer o significante sair
pelo corpo. Trata-se da palavra em sua ressonância no corpo, palavra que vibra e é fonte
de gozo.
Propomos nos servir de uma alegoria para demonstrar nosso propósito.
Imaginemos que as palavras são como os números em um globo de sorteio. Desses de
programas de auditório. Enquanto esses números estão dentro do globo eles são números
que têm uma essência, porém não se inscrevem ainda em uma série. O ritual do sorteio
203
204
Putnam H., Répresentation et réalité, p.37
Miller J-A, Silet, p.85
142
implica em fazer as bolas com os números passar por um orifício e, aí então, a série
sorteada será conhecida.
Imaginemos que a diagonal do inconsciente é como o globo do sorteio. As
palavras, suas relações de oposição, de semelhança, etc, não possuem valor próprio (não
possuem sentido). No inconsciente, perto e longe, passado e presente, barata e homem,
são palavras que possuem uma proximidade que não é mantida depois que essas palavras
caem no campo do enunciado e passam pelo crivo do sentido que se aloja no eixo da
realidade.
O funil por onde passam as palavras é precisamente o corpo do sujeito, sua boca.
As palavras, agora, podem ser ditas, com a condição de que sejam ditas uma a uma.
Passamos então de uma condição de atemporalidade e suspensão do sentido para uma
condição de sentido e temporalidade. É quando as palavras se ordenam em um discurso
que as palavras passam a exprimir sentido. O que a psicanálise faz, ao considerar a
existência do inconsciente, é precisamente perceber que a realidade, que se organiza
obedecendo às leis de tempo e espaço, é provisória. Sua precariedade se deve ao fato de
que, prosseguindo com nossa exemplificação do globo de sorteio, o conjunto de bolas no
interior do globo pode despencar sobre a série, pois na verdade, não existe O globo que
contenha as bolas.
18
7
2
33
16
21
1
0
11
17
5
8
Eixo Es(S)-A
Atemporal
Inconsciente
Sincronia
9
3
17
3
5
S1 S2 S3
9 1 21
Sn
Eixo a-a’
Temporal
Realidade
Diacronia
143
No caso das psicoses, é precisamente a relação temporal diacrônica que se rompe.
Wachsberger, ao pensar a questão temporal aplicada à estrutura do desencadeamento
conclui que o tempo para a compreensão do fenômeno elementar, tempo em que se
estruturaria um S2 delirante, é posterior ao momento de concluir (Wachsberger, 1998)205.
Ou seja, o primeiro momento de encontro com a estrutura leva o sujeito à conclusão de
que algo lhe concerne, que o fenômeno elementar, por mais enigmático que seja, teria a
ver com ele. Seria mesmo o que levaria Lacan a afirmar que não haveria pré-psicose,
apenas a percepção psicótico de fenômenos elementares imediatamente seguidos da
certeza de que estes fenômenos são endereçados, e exclusivamente endereçados, a ele. É
o que propomos demonstrar a seguir a partir da aplicação do esquema L à clínica das
psicoses.
IV. 1.2 – O esquema na clínica
A psicanálise, na saúde mental, tem como desafio inscrever a psicose no laço
social sem recorrer, para tanto, à frágil aliança biopsicossocial proposta na atualidade.
Como vimos, esse panorama estabelece uma nítida separação entre as ciências que
incluem o Outro e as que apontam exclusiva ou majoritariamente os fatores biológicos
como causadores do sofrimento mental. É prudente antecipar e desfazer um equívoco. O
fato da própria psicanálise lacaniana chegar a constatação de que o Outro é barrado não
implica que ela simplesmente possa dispensá-lo.
É incontestável que os desenvolvimentos presentes no Seminário III apontam para
uma clínica que mantém presente a dimensão do Outro. Porém, sabendo o rumo que
205
Wachsberger, H., Temporalité et phénomène élémentaire, p.26
144
Lacan dará ao Nome-do-Pai nos anos seguintes, nossa proposta é precisamente retomar o
esquema buscando atualizar sua aplicabilidade no novo momento clínico. Nesse sentido,
advertidos da evolução da teoria, consideramos ainda atuais as afirmações dos anos 50 de
que o inconsciente é o discurso do Outro, e que, relembrando a frase célebre de Lacan,
“(...) a condição do sujeito S (neurótico ou psicótico) depende daquilo que se passa no
Outro” (Lacan, 1966a)206.
Para pensarmos a clínica partiremos de uma constatação. Enquanto nas neuroses a
clínica se desenvolve a partir da oposição e da tensão entre os eixos do imaginário e do
simbólico, no caso das psicoses as manifestações clínicas são muito mais decorrentes de
da torção intrínseca ao eixo da realidade. Tal como vimos nos esquema L anteriormente,
nas psicoses a realidade não serve de anteparo para a relação do es, como o mais íntimo,
e o Outro, como o externo. Cabe ao sujeito criar estratégias individuais (distantes do
cálculo coletivo que o eixo a - a’ autoriza) para tentar restabelecer uma separação que
impeça que o Outro lhe seja intrusivo.
Lacan isola o momento inicial da psicose como sendo o da perplexidade. É
curioso que, no Seminário III, ele consegue reunir na mesma crítica, Jaspers e
Clérambault (Lacan, 1981)207. O primeiro sendo o representante, por excelência, da
aproximação fenomenológica da perplexidade (ratlosigkeit), e o segundo pela sua
abordagem mecanicista, do mesmo estado. Para Turnheim, ambos, cada um a sua
maneira, buscam capturar o momento do fenômeno elementar, que gera a perplexidade,
aproximando esse conceito de suas próprias teorias. Trata-se, em Jaspers, de achar
compreensível que o louco se confronte com a própria incompreensibilidade do
206
207
Lacan, J. , D’une question préliminaire... p.549.
Lacan, J., Le Séminaire III, Les psychoses, p.14
145
fenômeno e, para Clérambault, de assimilar o conteúdo anidéico do fenômeno elementar
precisamente por sua reconstrução através de um discurso estabelecido (Turnheim,
1993)208. Lacan, ao contrário, sustenta até o final que a posição do sujeito diante da
perplexidade não poderá ser assimilada por nenhum discurso estabelecido, daí a
necessidade de uma invenção.
Ainda que desprovido de um discurso, é possível, na clínica, que o sujeito
antecipe que uma fenda no eixo da realidade impeça que ele sustente a separação entre o
S e o Outro e que, como estratégia, ele se aplique a tentar reconstituir esse eixo ao preço
de “colar-se” à realidade em pontos que lhe pareçam oferecer maior segurança. Para tanto
ele se fixa à imagem do semelhante, que lhe serve de espelho, o que lhe permite
reorganizar a própria imagem, com a condição de que ele isole o imaginário da
possibilidade dialética que o eixo simbólico pode proporcionar. Essa fixação no
imaginário tanto pode lhe trazer benefícios, evitando o desencadeamento, quanto pode,
igualmente, calar qualquer enunciação subjetiva levando o sujeito a um comportamento
capturado pela especularidade.
Que a falta do Nome-do-Pai no significante abra no significado um furo que
corresponda à significação fálica, que daí se siga uma dissolução da estrutura
imaginária que chega a desnudar a relação especular em seu caráter mortal (...)
.isso não nos permite nesse nível, entretanto, a meu ver, falar de não-estrutura
ou de a-estrutura, uma vez que certamente também, em todo caso em Schreber,
o delírio enquanto metáfora delirante vem substituir a metáfora paterna,
estabilizando, sob uma forma inédita, significante e significado (Miller,
1996b)209.
Esses pontos nos fazem interrogar diretamente de que modo é possível intervir
clinicamente em sujeitos psicóticos sem correr o risco de que uma interpretação venha
desestabilizá-los ainda mais. A localização no esquema L do ponto de onde parte a
208
209
Turnheim, M., Perpléxité (ratlosigkeit), p.13
Miller J-A., Suplemento topológico à “Uma questão preliminar...”, p.124
146
interpretação se constitui em um fino instrumento para a distinção entre a clínica na
neurose e na psicose. Na neurose, o psicanalista visa o equívoco significante, ou seja, ali
onde a realidade gera significações, suas intervenções apontam para o inconsciente como
outra cena. São intervenções que dividem o eixo simbólico, permitindo que a fuga do
sentido abra sempre as portas para o equívoco.
Assim, tomando como base o Esquema L, constatamos que, nas neuroses, onde há
uma oposição entre realidade e inconsciente, trata-se de produzir uma torção. Já nas
psicoses, uma vez que essa torção é um dado clínico de entrada, procura-se um efeito de
estabilização que impeça que a torção desfaça a relação de alteridade entre o es e o A.
Em 56, a estabilização psicótica é um efeito que visa fundamentalmente
restabelecer a oposição entre os dois eixos do Esquema L, em outras palavras, restituir o
algoritmo S/s, metáfora que separa as palavras (campo do Outro) das coisas (sache). No
cerne dessa operação, encontramos a instituição de um significante que nomeia a
experiência de gozo enigmática. Trata-se de uma experiência enigmática porque o sujeito
não encontra respostas no campo da realidade. Ou seja, ali onde o Outro simbólico
batizou as sache com palavras, matando a coisa, algo da coisa permanece como enigma.
Na clínica a partir do esquema L, é necessário obter um meio de estancar o gozo
enigmático e intrusivo quer seja através da metáfora delirante, quer seja preservando
alguma identificação imaginária que seja fundamental ao sujeito. A reconstituição do
plano imaginário, portanto, apesar de muito se falar nos anos 50 sobre a metáfora
delirante, tem um papel fundamental na clínica do Seminário III. É uma clínica que inclui
tanto os fenômenos “de intrusão”, podemos assim dizer, do eixo do inconsciente na
realidade - que chamamos de inconsciente a céu aberto - quanto os efeitos da tentativa do
147
sujeito de se sustentar no eixo imaginário. Ou seja, como constata Miller, “se isola a
foraclusão do Nome-do-Pai, esquecendo que, uma vez revelada a falha em que ela
consiste, ela implica a regressão especular” 210.
Um caso de desencadeamento da psicose
Propomos agora indagar se o conceito de psicose ordinária pode ser considerado
sinônimo de psicose não desencadeada. Trata-se de uma vinheta clínica de uma psicose
de desencadeamento tardio cujas coordenadas puderam ser recuperadas a partir de uma
apresentação de pacientes no hospital psiquiátrico.
Um dos modos de se apreender a clínica da psicose ordinária nos leva a pensar
que é possível um sujeito estar em permanente atividade delirante e, ao mesmo tempo,
perfeitamente coberto pelo manto da normalidade. Por que então, nesse caso, considerálo um problema clínico? Precisamente porque, como reforça Naveau, é impossível
dissociar a solução encontrada pelo sujeito psicótico da iminência de uma passagem ao
ato (Naveau, 2006). Em muitos casos que chegam às emergências psiquiátricas é possível
constatar que o sujeito antes da detecção da crise entretinha uma relação, apenas em
aparência, conectada ao laço social. A posteriori constatava-se que o sujeito estava em
permanente conexão de gozo com o Outro, sem intermediação do eixo da realidade. O
outro que lhe servia de interlocutor no laço social estava desabitado de vida e sua
verdadeira ligação era com a voz alucinada, que lhe servia de mestre e interlocutor maior.
Como exemplo, traremos o caso da paciente Amélia.
210
Miller J-A, idem, p.123
148
Amélia tinha 48 anos quando, pela primeira vez, foi levada à emergência
psiquiátrica devido a uma passagem ao ato que surpreendeu a todos que a conheciam.
Dona de casa exemplar, mãe dedicada, desde o casamento mantinha, como atividade
mais importante, a função de cuidar da casa e providenciar para que tudo estivesse em
ordem. Por insistência de seus familiares, no momento em que problemas com a idade
dificultaram suas atividades cotidianas, foi contratada para a casa uma faxineira. Essa
contratação foi aceita com muita relutância por Amélia e, desde os primeiros dias, a
relação entre as duas foi tensa, culminando na agressão física, em franco estado
persecutório, que motivou o atendimento emergencial.
A clínica lacaniana das psicoses é uma clínica que valoriza as coordenadas que
elucidam o desencadeamento e a passagem ao ato. Os dados reconstituídos da história
de vida do paciente possuem a função de explicar porque o desencadeamento não se
produziu antes, ou seja, quais foram as estratégias do sujeito para evitar o encontro com a
loucura. No caso de Amélia, essa estratégia adveio de uma metáfora delirante muito sutil.
A metáfora delirante não precisa necessariamente destoar dos ideais que permeiam a
trama social. Caso o delírio de Amélia assumisse formas muito distantes da norma social
- delirar ser uma personalidade famosa, por exemplo - facilmente sua loucura seria
detectada pelos filtros da saúde mental.
Uma entrevista com a paciente, durante a internação, permitiu precisamente
detectar a astúcia de seu delírio. Amélia, dona de casa exemplar, delirava precisamente
que era uma dona de casa. Ora, “dona de casa” é uma expressão comum na língua
portuguesa, empregada por todos, e que não é significante privado de nenhum dos
149
interlocutores do eixo a - a’. “Dona de casa” se inscreve como um dos significantes no
campo do Outro que preside a relação simbólica entre os interlocutores.
a’
laço social
a
Outro
(dona de casa)
Amélia, contudo, faz uso privado do significante dona de casa, o que nos permite
identificar os efeitos de nomeação dessa expressão. De dona de casa, escrito em
minúscula, passamos a Donadecasa, misto de gozo da lalíngua e dádiva do Outro, que
fixa um ponto de gozo estável, impedindo que o sujeito parta à deriva. Donadecasa é um
elemento incomunicável, uma vez que ele é desprovido de sentido e segregado da lei
fálica. Não havendo a função do recalque, estamos no inóspito terreno do inconsciente a
céu aberto. Sua presença no campo da realidade se faz, conseqüentemente, como irrupção
singular de uma certeza inabalável por qualquer manobra dialética. É o que propomos
representar invertendo o pontilhado das linhas do esquema L. A diagonal a – a’ se torna
pontilhada e a diagonal (Es)S – A passa a ser representada por uma linha cheia, marcando
a perda de alteridade entre os dois pólos.
150
a’
Donadecasa
In c
on
i
al
Re
de
da
a
sc
ien
te
ac
éu
ab
ert
o
A
O esquema L é particularmente claro na exposição da trama de alteridades que
demarcam a relação com o pequeno outro e o grande Outro. Faltou a Lacan, nesse
esquema, o elemento topológico que permitisse visualizar com maior nitidez a torção que
se produz entre o que é do campo do Outro e que é do campo daquilo que,
posteriormente, Lacan chamará de campo do Um. Nos Escritos, uma longa nota de
rodapé foi feita por Lacan para explicar que em seu esquema L o campo da realidade é,
na verdade, uma fita de Moebius (Lacan, 1966a)211. Percebemos, com o exemplo acima,
que o significante privado Donadecasa é diferente do significante “dona de casa” que
todos usam na vida cotidiana. Há uma apropriação do significante para demarcar o que é
do campo do gozo e o que pertence às ruas, questão fundamental para entendermos a
questão do laço social pela psicanálise.
As torções do laço
Como pudemos avançar, Lacan demonstra que a realidade é uma linha
relativamente tênue para garantir o laço social. Propomos seguir a indicação de Lacan na
nota de rodapé dos Escritos que mencionamos acima e aplicar a fita de Moebius ao plano
211
Lacan, j., D´une question préliminaire..., p. 554
151
da realidade. Quando o plano é recortado, não se tem a dimensão que ele é uma fita de
Moebius, tem-se a impressão que é possível separar definitivamente o que é o mais
íntimo do que é o mais público do sujeito, que pertence ao gozo do corpo e que o
pertence ao mundo da rua.
O corpo
Es
a’
a
o
an
Pl
d
id
al
e
aR
e
adIn
co
ns
ci e
nte
A
A rua
Tomando-o como um plano topológico, percebemos que a relação a - a’ é
atravessada tanto pelos fenômenos do corpo como pela percepção do Outro. Contemplar
o esquema L sob uma perspectiva topológica nos leva a perceber a clivagem na clínica
das psicoses entre os fenômenos ligados ao corpo e os fenômenos ligados ao Outro, mas
também o transitivismo entre esses dois pólos.
De forma engenhosa o esquema L nos demonstra que a realidade, onde se perfila
a trama social, apenas garante a separação entre o mais íntimo e o mais exterior para o eu
se ela for um recorte da totalidade do plano. Assim, o Outro (A) como tudo o que pode
ser dito, é o que confere um bordo e um limite à realidade. Da foraclusão do Nome do Pai
aos minuciosos desenvolvimentos sobre a incompletude e inconsistência do Outro - que
152
autorizaram a expressão foraclusão generalizada - apreendemos que a infinitude desse
plano revela a reversibilidade batizada por Lacan de extimidade (Lacan, 1986). Para além
do enquadramento do Nome-do-Pai, o laço social deixa de ser estável e se equilibra em
um plano moebiano que se abre para a extimidade.
extimidade
A rua
a’
interior
a
exterior
Ocorpo
O fato do eu se localizar nesse plano retorcido faz com que o Outro simbólico e o
isso (das es) se confundam como sendo um único e mesmo Outro. É o que se constata por
excelência na problemática relação do esquizofrênico com seu corpo. Um ruído na rua
pode ser percebido como algo que se passa na carne, do mesmo modo que uma sensação
corporal pode ser interpretada como o resultado da manipulação do Outro diretamente no
corpo do paciente.
Como produzir o recorte necessário para que o plano da realidade, em sua
disposição moebiana, não promova a torção que inunde o campo do Outro com o gozo
ou, inversamente, o Outro não mate a Coisa, levando no mesmo golpe o sujeito?
153
Encontramos na própria topologia de Lacan uma resposta cuja demonstração é
relativamente simples.
O único modo de fazer com que uma fita de Moebius – que representa a realidade
- não inverta seu sentido é quando a cortamos, transformando-a em um plano comum.
Aplicando essa mesma condição à realidade, percebemos que é necessário um corte no
plano moebiano da realidade para que ela se estabilize. Seria esse inclusive, um dos
modos de abordarmos a questão da estabilização nas psicoses, algo que permitisse um
recorte da condição moebiana entre o gozo e o Outro.
Realidade inconsistente
Passa-se do campo do gozo ao campo do Outro
Primeiro tempo:
Corte da fita
Segundo tempo:
Torção da fita
Realidade consistente
Separação entre campo do gozo e campo do Outro
É aqui que encontramos a especificidade da teoria lacaniana do objeto a. Citando
Baas, Lacan “[...] privilegia a separação como tal, quer dizer a disjunção que pressupõe o
contato do que está separado; é por isto que ele procura essencialmente pensar o que, do
154
corpo, procede da separação” (Baas, 1995)212. Surge, conseqüentemente, a necessidade
de pensar uma clínica da extração do objeto a, que propomos abordar a seguir.
IV. 2 – A clínica da extração do objeto
Em 1967, Lacan, diante de uma platéia constituída fundamentalmente por
psiquiatras, nos lança uma indicação que justifica, a nosso ver, a repartição de seu ensino
sobre as psicoses em três partes. Ou seja, propomos interpor entre a teorização da
foraclusão do Nome-do-Pai e a teorização do sinthoma, seu objeto a. Destacamos esse
pequeno trecho onde uma questão, por ele levantada, nos parece não ter sido retomada
em algum outro ponto de sua obra.
[...] os homens livres, os verdadeiros, são precisamente os loucos. Não há
demanda do pequeno a, seu pequeno a ele o possui, é, por exemplo, o que eles
chamam de suas vozes. [...] Ele não se mantém no lugar do Outro, do grande
Outro, mediante o objeto a, o a ele o tem a sua disposição. O louco é
verdadeiramente o ser livre. O louco, nesse sentido, é, de certo modo, esse ser
de irrealidade. (Lacan, 1967a)213.
Esse comentário de Lacan, certamente, nos oferece uma rica leitura. Três semanas
antes, Lacan havia explicitado que a loucura, longe de ser um insulto à liberdade, era o
seu limite (Lacan, 2001b)214. Aqui, percebemos que o limite da realidade é condicionado
pela extração do objeto a, e que a fantasia é precisamente o enquadramento da realidade
após a separação do objeto.
Lacan, portanto, nos traz ao coração de uma clínica das psicoses que interroga a
relação do sujeito psicótico com o objeto a. De imediato, podemos afirmar que ele não
212
Baas, B., Notre étoffe, p.55
Texto inédito, tradução nossa
214
Lacan, J., Allocution sur la psychose de l’enfant, p.361
213
155
nega a questão do objeto a nas psicoses, ao contrário, ele aponta para a problemática de
sua proximidade no real, ali onde aprendemos que a teoria dos discursos tenta capturá-lo
como um semblante (Miller, 2002)215.
Por outro lado, na experiência cotidiana da clínica com psicóticos, ter a disposição
o objeto a nos parece ser mais uma fonte de sofrimento do que de alegria. Aqueles que
convivem com o cotidiano da clínica, bem sabem o sofrimento que implica ser tomado
por vozes ou pelos sentimentos corporais bizarros que representam o gozo não extraído
do corpo. Quantas vezes o desespero da presença do objeto leva o sujeito à passagem ao
ato, como tentativa de extração forçada?
Tomando essa vertente, acreditamos que Lacan, nessa conferência, em pleno
momento de ebulição de sua teoria do objeto a, nos guia em direção a uma abordagem
das psicoses que inclui uma clínica da separação desse objeto. Essa clínica segue na
esteira da crítica e desconstrução do mito “da harmonia alojada no habitat materno” 216. A
crítica que faz Lacan é pertinente já que um dos equívocos da aplicação da psicanálise à
saúde mental foi justamente a tese de Bowlby, que ganhou fama ao negar a importância
da função paterna, priorizando a reparação da privação materna como pedra angular das
estratégias de saúde mental (Bowlby, 2006).
Em um pequeno texto, Note sur l´enfant, Lacan retoma um elemento fundamental
da primeira clínica, a saber, a separação entre o infans e o desejo materno, operado pela
metáfora paterna, porém, aqui, com ênfase não mais no pai e sim na função do sintoma
como resíduo da equação familiar, (Lacan, 2001g)217.
215
Miller, J-A., De la naturaleza de los semblantes, p.212
Lacan, J., Allocution sur les psychoses de l´enfant, p.367
217
Lacan, J., Note sur l’enfant, p.373
216
156
Lacan, ao localizar a criança como objeto a na fantasia materna, situa igualmente
uma clínica que busca separá-lo dessa posição. Como ele mesmo insiste não se trata da
criança como efeito do discurso, o que está em questão é a criança como corpo218.
Entendemos, portanto, que a afirmação de que o sujeito tem o objeto a sua disposição é o
retorno no real - real do corpo, reiteramos - da posição de ser esse objeto corporal que
falta à mãe. Passa-se do gozo mortífero de ser o objeto para mãe à presença desse gozo,
como excedente, no próprio corpo.
Surge, então, uma clínica das psicoses que aponta para a falta de uma extração do
objeto, uma clínica da separação. Tomemos a seguinte passagem, bastante conhecida, do
texto O Aturdito:
É justamente por isso que ele fica reduzido a descobrir que seu corpo não é
sem outros órgãos, e que a função de cada um deles lhe cria problemas – coisa
pela qual se especifica o dito esquizofrênico ao ser apanhado sem a ajuda de
nenhum discurso estabelecido (Lacan, 2003f)219.
Essa passagem de Lacan, de antemão, nos interessa por nos permitir ver que, em
pleno ano de 1972, ele se serve do termo esquizofrenia, o que nos permite perceber que
os avanços da clínica do sinthoma, onde a questão da estrutura, sem dúvidas, está em
segundo plano, não eliminou por completo a utilidade da clínica estrutural. Laurent,
comentando essa passagem, nos faz ver a importância da extração do objeto na
constituição de um órgão que localize o gozo do sujeito psicótico, ou seja, lhe permita ter
um corpo:
É uma indicação muito útil, já que o neurótico, que dispõe da crença no pai, e
com isso dispõe de um discurso estabelecido, ele, para seus órgãos, lhes dá
uma função com a pulsão. Quer dizer que ele faz função de gozo – já que é esta
a (função) que nos interessa, não a função biológica – ela faz função de gozo
218
219
Lacan, J., Allocution sur les psychoses de l’enfant, p.368
Lacan, J., O atrudito, p.475
157
por meio do circuito pulsional. E é desse modo que ele inscreve esta função
biológica no espaço do gozo (Laurent, Eric, 1998)220.
A questão do corpo na esquizofrenia ganha, desse modo, uma nova abordagem
clínica. Não mais se trata apenas de reconciliação da imagem corporal com o espelho, ou
a interpretação delirante de uma intrusão do gozo do Outro, tal como no caso de
Schreber. A questão passa a ser posta como possibilidade de dar um órgão de gozo ao
esquizofrênico. Assim, podemos entender os órgãos bizarros, implantes de chips,
máquinas telepáticas, e toda uma gama de soluções do esquizofrênico com relação ao seu
corpo, como soluções que visam precisamente delimitar o gozo em torno de um objeto
que permita a reorganização pulsional. São soluções que, evidentemente, não se apóiam
em nenhum discurso estabelecido já que o esquizofrênico é, precisamente, aquele que não
se serve do semblante do discurso para evitar o real, tomando o próprio simbólico pelo
real (Miller, 1993)221. Resta então, para o esquizofrênico, nada mais do que a criação
singular de um aparelho que ele tentará, com maior ou menor sucesso, passar para o
campo do Outro. Essa clínica exige algo que é da ordem de uma extração forçada desse
objeto a que, como afirmou Lacan, o psicótico tem a sua disposição.
De que modo se obtém essa extração forçada do objeto? Naveau nos chama
atenção para a afinidade da extração do objeto a na psicose e a passagem ao ato (Naveau,
2006). É, portanto, crucial um manejo da clínica que impeça uma passagem ao ato
radical, auto ou heteroagressiva, mas que comporte, de todo modo, algo da dimensão de
um ato que reorganize um dentro e um fora do corpo222.
220
Laurent, É., Seminário sobre “De una cuestion preliminar...”, p.38 – Tradução nossa
Miller, J-A., Clinique ironique, p.6
222
No capítulo VI abordaremos o caso de A, paciente cuja extração do objeto a foi possível muitos anos
após uma tentativa de extração via uma passagem ao ato que quase lhe custou a vida.
221
158
É desse modo que devemos entender a extração do objeto, no sentido de uma
separação que dê um enquadramento à realidade. Mediante um corte, localiza-se um
pondo de torção entre o gozo e o Outro223 que estabiliza o corpo dando ao sujeito um
“dentro” e um “fora”. O objeto a, paradoxalmente, é concebido como “nem dentro e nem
fora”, o que permite um esvaziamento de gozo tanto do corpo, quanto do Outro. Evita-se,
desse modo, que o excesso de gozo seja equacionado pela esquizofrenia, no caso do gozo
anômalo do corpo, ou pela paranóia, no caso em que o gozo se localize no Outro.
A pulsão não produz por si mesma essa extração. Seu modelo, tal como
concebido por Freud, se inscreve em uma topologia onde o dentro e o fora são a mesma
coisa. Como paradigma, temos “os lábios que se beijam a si mesmos” do texto freudiano
(Freud, 1985)224.
O objeto a é o que, a partir do corpo, ou da carne, no sentido de Merleau-Ponty,
serve para escavar o buraco por onde circula a pulsão. Como reitera Baas, a condição
principal para que o objeto a tenha essa função de reversibilidade é precisamente que ele
não seja um objeto da experiência, pois nesse caso ele perderia a função de causa e se
confundiria com a realidade, ao invés de lhe permitir, com sua extração, seu
enquadramento (Baas, 1995) 225.
A mania e a não função do objeto a
Uma referência menos citada de Lacan é a utilização que ele faz da expressão
“não função” do objeto a. Ele utiliza essa expressão quando se refere aos estados
223
Ponto de reversibilidade da carne, como vimos em Merleau-Ponty
Freud S., Trois essais sur la théorie de la séxualité, p.76
225
Baas, B., Notre étoffe, p.55
224
159
maníacos. Sua concepção da mania é diferente da de Freud. A mania como desinibição,
como triunfo sobre o supereu, é um mecanismo explicável com relativa facilidade nos
textos freudianos (Veras, 1997). Trata-se da mania como festa após o parricídio, quando
se suspende o peso da lei, permitindo que algo da satisfação pulsional seja liberado. Esse
modelo é exportável para diversas situações na cultura. Na Bahia, contava-se uma
anedota de que, antigamente, na quarta feira de cinzas, após o carnaval, era comum que
alguns entusiastas continuassem freneticamente dançando nas ruas. Porém, aqueles que
na quinta feira ainda dançavam, eram levados pela polícia ao hospital, pois eram os
maníacos. A anedota, no fundo, tem seu fundo de verdade ao apontar para o fato de que a
mania está no horizonte de toda cultura e que a substituição do mal-estar pelo hedonismo
subverte a relação da loucura com o Outro social.
No Brasil, o avanço da indústria do carnaval progressivamente despiu essa festa
de seus aspectos simbólicos. Assim como se passa em outras culturas contemporâneas, o
carnaval desvencilhou-se do sentido religioso e se tornou uma festa que não celebra nada,
ou melhor, uma festa que celebra o nada. No carnaval baiano, também se passou do
símbolo ao objeto. Ele tornou-se uma promessa hedonista de cinco dias de superação das
leis e regras que tecem os laços sociais. É possível que tenhamos nos afastado da famosa
fórmula de Dostoievski uma vez que, no carnaval, Deus está morto e tudo é permitido
(Veras, 2008).
Isso não deixa de produzir efeitos maníacos na sociedade do consumo
desenfreado. A ironia é que a mania, tal como acontece com os foliões da quinta feira, é
detectada pelos dispositivos da Saúde mental apenas quando o sujeito leva ao paroxismo
a cartilha dos ideais contemporâneos. Com efeito, o maníaco se exaure nos ideais da
160
hipermodernidade, ou seja, muito de tudo. É hipernormal comprar tudo e viver seu estilo
de vida até a exaustão (Lipovetsky, 2007). Observamos os efeitos maníacos igualmente
na cultura, onde a fragmentação de informações do mundo globalizado, tal como na fuga
de idéias da mania, injeta tantos significantes novos, que se torna impossível a
constituição de um saber sobre a experiência. A mania pode ser escrita no seguinte
matema:
S1, S1, S1//S2
É possível identificar uma diferença no modo como Freud e Lacan abordam a
questão dos estados maníacos. Em 1927, no texto O humor, Freud atrela os estados de
excitação, observáveis na cultura, diretamente ao consentimento do pai e à liberação do
supereu. Quanto a Lacan, é curioso notar que ele não se serve do pai nas citações que faz
sobre a mania e que estas surgem em seu ensino apenas após a formalização do objeto a.
Assim, contrariamente à clínica psiquiátrica, que concebe o maníaco como aquele que
não tem limites, a clínica do objeto a denuncia que é o Outro, como dealer insaciável dos
novos futilitários226, que não tem limites.
É o que percebemos na escuta dessa jovem adolescente, que sai todas as noites, se
exaurindo nas boates, festas e raves. O que chama atenção do analista é um comentário
sobre seu pequeno ritual cotidiano. Antes de ir para as noitadas, assim como abre o
armário para escolher sua roupa, ela abre o armário do banheiro em busca do estado de
humor com que quer passar a noitada. “Às vezes quero ficar meio deprê, meio gótica, aí
tomo uns calmantes antes de sair. Gosto também de ficar meio pra cima, aí misturo um
226
Aqui nos arriscamos a um neologismo, propomos a tradução de gadgets por futilitários. Essa tradução
foi adotada por Vieira em seu livro Restos (Vieira, 2008).
161
Redbull com ecstasy ou algum antidepressivo da minha mãe.” Aqui não se trata de uma
toxicomania, essa jovem veste seu humor, como um gadget.
“Não é apenas permitido, é exigido que se estenda à mania igualmente a
explicação analítica da melancolia”. Esse comentário de Freud, de “Luto e Melancolia”
(Freud, 1968)227, nos deixa entrever que Freud esperava mais de sua própria elaboração
do estado maníaco. Há, contudo, um aspecto que é fundamental na argumentação de
Freud sobre mania e melancolia: a ausência da vergonha, verificada nesses estados.
Miller228 situa a vergonha como um afeto primário da relação ao Outro, separando-se, a
partir desse ponto, da culpabilidade. Para ele o eclipse do olhar do Outro, compatível com
o Outro barrado da contemporaneidade, é coerente com a afirmação de Lacan, no final do
seminário O avesso da psicanálise de que não há mais vergonha (Lacan, 1991)229. Os
efeitos na cultura dessa ausência de vergonha se fazem notar como mania generalizada,
tanto na explosão do exibicionismo/voyeurismo, quanto na febre consumista de
futilitários, que são, por excelência, a imagem da não-função do objeto a. Desse modo,
poderíamos dizer que o objeto a, como causa do sujeito, é o núcleo duro da vergonha na
civilização.
A “não função”
Com relação à psiquiatria, percebemos que nenhum outro estado psíquico é mais
emblemático para as neurociências de seu sucesso sobre a psicanálise do que o estado
maníaco puro. Neste, uma excitação, por vezes avassaladora, é capaz de resistir semanas
227
Freud, S., Deuil et Mélaconlie, p. 163 – tradução nossa
Note sur la honte, in La cause freudienne n. 54
229
Lacan, J., L’envers de la psychanalyse, p. 211
228
162
sem que um estado alucinatório ou delirante o acompanhe. A visão da psiquiatria separa
o episódio único de mania do transtorno bipolar. No caso da mania, a excitação progride
“de uma jovialidade despreocupada a uma excitação quase incontrolável”
230
. Esse
quadro é o selo de uma patologia, cuja modelização é perfeitamente reprodutível com a
ingestão de substancias exógenas. O próprio Freud, em “Luto e melancolia”, fala da
possibilidade de que “uma intoxicação química do ego”231 esteja na base dos fenômenos
maníaco depressivos . Com efeito, drogas ilícitas e lícitas induzem estados maníacos
potentes, reforçando uma clínica em que a neurotransmissão é a base de sua
etiopatogenia. Esse modelo oferece o conforto de agrupar tanto os estados de inibição dos
quadros depressivos quanto os estados de desinibição da mania.
No seminário RSI, Lacan reafirma que a inibição - por extensão a desinibição - é
sempre um “problema do corpo, ou seja, uma função” (Lacan, 1974d). Nessa passagem,
percebemos que o real é diretamente convocado, uma vez que Lacan interroga se o
fenômeno se desenvolve em um plano de “exterioridade do sentido”. Ele prossegue
afirmando que a inibição é o que cessa de se intrometer no buraco do simbólico. É
possível, conseqüentemente, conceber a mania como o que não cessa de obturar o buraco
do simbólico sem, justamente, integrá-lo. Em Televisão (Lacan, 2001i)232, a excitação
maníaca surge como rechaço do inconsciente, colocando em evidência um corpo
frenético e descontrolado onde a não função do objeto promove uma disjunção entre
corpo e saber, que propomos através do matema: a//S2
É válido propor uma diferenciação entre associação livre e fuga de idéias.
Enquanto a associação livre se orienta pelo viés de um sentido garantido pela captura do
230
Classificação Internacional das doenças versão 10, código F 30.0
Freud, S., Deuil et Mélancolie, p.164
232
Lacan, J., Télévision, p.526
231
163
objeto a na fantasia, a fuga de idéias marca a não função, ou seja, o disfuncionamento do
objeto a como causa. Podemos assim diferenciar, nas psicoses, “não extração” do objeto
de “não função”. Na clínica da não extração, o objeto foracluído repercute na organização
corporal ao retornar no real como gozo, por exemplo, na forma de um órgão anômalo do
esquizofrênico, na voz alucinada que somente o sujeito escuta, ou mesmo no olhar que
persegue o sujeito. Contudo, Lacan, no Seminário da Angústia, define a mania como nãofunção e bem no momento desse Seminário em que define o pai como aquele que na
realização de seu desejo foi capaz de “reintegrá-lo à sua causa [...] ao que há de
irredutível na função do a” (Lacan, 2004b)233. Ao atribuirmos à “não função” o status de
conceito, podemos dizer que sua clínica dissocia o mais de gozar da causa, impondo ao
maníaco um gozo que, como ele retoma em Televisão, é mortal para a condição subjetiva.
233
Lacan, J. le Séminaire X, L’Angoisse, pp.388-389
164
IV. 3 – Clínica do sinthoma, mais além da Saúde mental
A grande transformação na teoria lacaniana dos anos 70 passa pela interrogação
sobre o modo como se sustenta o laço social na inexistência do suporte identificatório do
Outro. O Nome-do-Pai, após sua pluralização, passa a ser ameaçado pelo sem sentido. O
saber do pai passa a ser impotente por nada poder dizer sobre o real. Porém, como a
clínica dos anos 70 rompe definitivamente com o universal, “o ponto de não saber do pai,
o ponto não de impotência, mas de impossibilidade, é diferente em cada caso” (Blanco,
2007)234.
Surge, nesse momento da teoria, a perspectiva de homogeneização dos três
registros do real, simbólico e imaginário, ou seja, o fim da primazia do simbólico, que
pode ser visto, sobretudo, a partir da utilização particular que faz Lacan do nó
borromeano.
O nó borromeano
O nó borromeano é mencionado por Lacan pela primeira vez em seu Seminário
intitulado “...ou pior” (Lacan, 1972a). Nessa primeira menção do nó, ele não é atrelado
aos três registros, tal como ele o fará um ano e meio mais tarde, no Seminário XXI “Os
não-tolos erram” 235. O que marca essa nova concepção dos três registros é o fato de que
eles se tornam completamente independentes uns dos outros e, principalmente, que eles
234
Blanco, M., Inconsciente e Nome-do-Pai, p.202
Tradução nossa do título deste Seminário inédito de Lacan, ainda não estabelecido, cujo nome em
francês “Les non-dupes errent” traz em sim toda a problemática a ser desenvolvida sobre o declínio do
Nome-do-Pai que implica em sua pluralização na forma de nomes do pai. É a primeira leitura possível da
homofonia entre “les non-dupes errent” (os não tolos erram) e “les noms du père” (os nomes do pai), mas
ainda é possível no título francês a leitura de “les nons du père” (os nãos do pai)
235
165
não se confundem, mantendo permanentemente uma distinção não hierarquizada. O nó
borromeu de três círculos é um arranjo configurado de tal forma que, se um círculo se
rompe, perde-se a unidade, e os outros dois também se separam.
As conseqüências dessa homogeneização dos três registros na clínica das psicoses
foram consideráveis. Trata-se, como passaremos a demonstrar, de uma nova abordagem,
que tem, como característica mais inovadora, a liberação das amarras de uma tradição
positivista, que inscreveu a loucura no modelo médico desde o nascimento da psiquiatria.
Em nosso propósito de avaliar a pertinência da clínica lacaniana na saúde mental,
passamos a nos apoiar em uma nova existência da loucura no laço social, dessa vez
interrogando a loucura que escapa ao crivo do saber positivo.
Essa nova perspectiva subverte noções nucleares da saúde mental como exclusão
e reinserção social, reabilitação e tratamento. Afirmamos isso porque, na nova clínica, é
perfeitamente possível que a psicose não seja perceptível por qualquer dispositivo da
saúde mental. Em muitos casos, podemos dizer que apenas a clínica lacaniana das
166
psicoses pode reconhecê-la. Contudo, não devemos julgar de todo inédita a possibilidade,
explorada com muito melhor formalização a partir do Seminário XXIII, de estudar a
psicose que não é loucura. Já na primeira clínica, ao dissecar o desencadeamento de
Schreber, não como simples anatomista, mas como Da Vinci o faria, Lacan promoveu um
profundo estudo da psicose antes do desencadeamento, ou seja, a possibilidade de a
psicose existir antes da loucura. Com a clínica do sinthoma, muitas vezes se trata de
investigar, e não de tratar, aquele que, mesmo não podendo se apoiar no Nome-do-Pai
para evitar o desencadeamento, não enlouquece. Não se trata aqui de uma psicose
encubada, prestes a irromper, como uma infecção sub-clínica que se torna manifesta.
Essa concepção correria o risco de levar as autoridades sanitárias a um verdadeiro
programa de rastreamento para identificar quem potencialmente poderia se tornar louco.
Tampouco se trataria do fatalismo genético que assola o pensamento científico atual,
igualmente exigindo testes em escala cada vez maior para a identificação precoce da
loucura.
IV. 3. 1 – A virada do sinthoma
Em 1974 encontramos no Seminário RSI o anúncio de que o sintoma é real. Em
suas palavras, ele é “expulso do sentido” (Lacan, 1974c)236. A partir desse momento, o
sintoma deixa de ser uma mensagem decifrável, passível de interpretação, para encarnar o
que resta do gozo quando o sentido desaparece, ou seja, quando não mais é possível
interpretá-lo (Morel, 2008)237. Essa virada nos leva a uma compreensão totalmente
236
237
“Le symptôme...c´est du réel ...expulsé du sens – tradução nossa
Morel, G., La loi de la mère, p.86.
167
diferente do gozo sintomático na psicose. Enquanto nos anos 50 o Nome-do-Pai era a
condição para o tratamento do gozo, evitando que seu retorno no real pulverizasse a
condição subjetiva, no último momento de seu ensino essa função de tratamento do gozo
passa do Nome-do-Pai ao sinthoma. A questão que é colocada por Lacan é que o Nomedo-Pai e o próprio complexo de Édipo, por se tratarem de soluções que vieram do campo
do universal, sempre necessitarão do sinthoma como parceiro no enodamento dos três
registros.
Encontramos essa observação de Lacan no Seminário XXIII, seguida da seguinte
demonstração pelos nós: “O complexo de Édipo é, como tal, um sintoma. É pelo fato de
que o Nome-do-Pai é igualmente o Pai do Nome que tudo se sustenta, o que não torna
menos necessário o sintoma” (Lacan, 2005b)238.
NP
sinthoma
nó borromeu em que o sinthoma e Nome-do-Pai
compõem a amarração conjuntamente
É palpável, nesse momento, o fim da era de ouro do simbólico. Não se trata mais
exclusivamente de passar para o campo do Outro simbólico o gozo enigmático. Não que
essa solução tenha deixado de ser válida na clínica, mas novas situações se colocam em
238
Lacan, J. Le Séminaire XXIII, Le sinthome, p.22
168
que a clínica da metáfora delirante e dos neologismos cede espaço para outras soluções
sintomáticas. Maleval, a esse respeito, faz o seguinte comentário:
Há sintomas que conservam os índices de um desregulamento do gozo, mas
são capazes de enquadrar o real pelo imaginário, de modo que eles se tornam
preciosos para o sujeito. Eles permitem a elaboração de um enodamento
original da estrutura, que faz obstáculo ao desencadeamento de uma psicose. O
que se pode esperar do tratamento? Talvez (possamos esperar) a transformação
do sintoma em suplência, se apreendemos uma das formas desta última como
um sintoma ao qual o sujeito consente, cessando de rejeitar sobre o Outro a sua
dor (Maleval, 2001)239
À leitura do Seminário RSI, percebemos que este marca um distanciamento
importante entre Freud e Lacan. Para Lacan, Freud buscava ligar os três registros - que
são independentes - do real, simbólico e imaginário, colocando a realidade psíquica como
sendo o quarto nó, que manteria os demais unidos. Essa perspectiva é coerente com o
Lacan do Seminário das psicoses, em que o Nome-do-Pai, precisamente, figura como
garantia desse quarto nó que é a realidade. É precisamente essa garantia que, em 76, é
transferida por Lacan do pai ao sinthoma (Lacan, 2005b)240.
Morel ressalta que essa evolução do pensamento lacaniano é compatível com uma
necessária correção de rumo feita por Lacan. Inicialmente, ele situou o próprio complexo
de Édipo como um quarto círculo que manteria os outros registros unidos. Em seguida,
surge o quarto nó como realidade religiosa, ou seja, a crença em Deus e na alma. O nó
borromeano, para Morel, aparece como nó a três para substituir o Nome-do-Pai que
assumira uma dimensão por demais carregada de religião241. Com efeito, é impossível
não perceber uma aproximação inicial entre o nó borromeu de três círculos e a trindade
239
Maleval J-C., Du syntôme dans la psychose non declenchée, p.74
Id., p,167
241
Morel, G., Id., p.87
240
169
do pai, filho e espírito santo. Lacan, contudo, retoma a questão da trindade de um modo
bastante particular: O homem, e não Deus é um composto trinitário 242.
Joyce e a clivagem do S2
A articulação entre o Nome-do-Pai e o sinthoma, proposta no nó borromeano a
quatro, nos permite identificar que o S2 – de onde viria retroativamente o efeito de
sentido – passa por uma clivagem. Uma frase do Seminário XXIII nos serve de
orientação: “É pelo fato do discurso do mestre reinar que o S2 se divide” (Lacan,
2005b)243. A divisão do S2, aqui em jogo, se faz entre o símbolo e o sinthoma. Ela é a
base sobre a qual Joyce irá fabricar sua arte (Besset e Veras, 2009).
E, se no Seminário anterior, R.S.I., Lacan promove a separação entre o sentido e o
real (Lacan, 1975a), essa separação repercute na clivagem do S2 em símbolo e sintoma.
Como afirma Lacan, não basta o Nome-do-Pai, é necessária uma invenção que jamais
será obtida a partir do universal da linguagem, uma vez que se trata de uma invenção do
sujeito. Laurent, a propósito do “milagre do grito”, fenômeno de corpo do presidente
Schreber, toma essa vertente para definir o modo como se deve interpretar nas psicoses:
Não se trata de reanimar a cadeia significante S1 e S2, mas de se centrar sobre
o acontecimento do corpo que representa o “milagre do grito”. O sujeito é
convidado a dizer na sua particularidade como ele se defende do milagre por
uma invenção particular. O presidente Schreber teria nos falado, então, de seu
uso particular. Nós centramos, portanto, a interpretação sobre o par ordenado
(S1, a) (Laurent, 2008a)244.
A arquitetura dessa separação entre símbolo e sintoma encontra uma de suas
formulações mais aperfeiçoadas na conferência que faz Lacan sobre Joyce em 1975.
242
Lacan J., Id., p146
Id., 23
244
Laurent, E., Interpreta a psicose no quotidiano, p.18
243
170
Nenhum programa informático, de tradução universal, seria capaz da tradução vertiginosa
que faz Lacan de uma frase de Joyce, evocada nessa conferência (Lacan, 2005a):
Frase 1 - Who ails tangue coddeau aspece of dumbillsilly.
Frase da obra Finnegans Wake cuja leitura de Lacan faz ressoar a seguinte frase
em francês:
Frase 2 - Où est ton cadeau espèce d’imbécile.
Traduzida para o português, a frase francesa de Lacan diria:
Frase 3: Onde está seu presente, imbecil.
A passagem da frase 1 à frase 2 se faz mediante uma sonoridade que passa
completamente ao largo da intenção de significação do Outro emissor. Uma mesma
escuta abre a perspectiva para duas posições radicalmente distintas. Sentido do Outro e
sentido-gozado aqui estão separados (Thèves, 2000). Os significantes se opõem uns aos
outros na Frase 1 e se confundem sem limites, marcados apenas pela sonoridade da
lalíngua, na escuta que configurará a frase 2.
Traduzidos agora para o português, nos perguntamos sobre dois pontos
enigmáticos da tradução lacaniana de frase 1 como frase 2. Que presente se trata e o que
significa o imbecil que o recebe? Miller propõe que o presente em questão, que é dado
pelo Outro a todo humano, é a relação à lalíngua (Miller, Jacques-Alain, 1998b). Sem o
Nome-do-Pai, contudo, esse presente não pode ser compartilhado na festa do laço social.
É necessária uma lei que recorte os sons da lalíngua, busque capturá-la nas malhas do
sentido comum, para que o sujeito faça dela um aparelho de comunicação. A lalíngua,
nesse sentido, é sempre uma transgressão das leis da linguagem, leis fixadas pelo Outro,
que buscam anular os efeitos de gozo que ela veicula, privilegiando os sentidos vindos do
171
Outro. É o que, para Guéguen, fez com que a arte poética sempre fosse objeto de regras
impostas, às vezes de modo muito rígido como nos versos Alexandrinos, tentando sem
sucesso, domesticar o poder subversivo que a poesia introduz na linguagem (Guéguen,
2000).
IV. 3. 2 – Psicoses normais
Enquanto a rede de Saúde mental captura o sintoma por sua vertente positiva, ou
seja, no momento em que desponta o conflito com o Outro, a teoria dos nós
“descompleta” a vocação para uma abrangência universal desses dispositivos,
precisamente por oferecer uma possibilidade de enodamento sintomático que jamais
surgirá como uma evidência clínica detectável pela clínica do olhar. Será, inclusive, uma
das formas de abordarmos o conceito de sinthoma em Lacan245. O sinthoma é uma
suplência que, por sua discrição e economia de sentidos, é o melhor instrumento para
impedir que o sujeito seja retido nas malhas da saúde mental. Não se trata, aqui, de dizer
que sua invenção lhe torna um conformista, hiper-adaptado à normalidade. Ela não é
conformista precisamente por ser singular, ou seja, pois mais que sua solução sintomática
aponte para o discurso comum, ela é sempre uma solução fora do discurso. Como afirma
Miller, ao falar da singularidade do sinthoma: “o singular ex-siste à semelhança, quer
dizer, ele está fora (hors) daquilo que é comum” (Miller, 2008a).
Acreditamos, ao contrário, que sua invenção, certamente, será sempre anormal, e
que por isso mesmo é necessária a psicanálise no mundo para lutar pela sua existência
245
Lacan apesar de não utilizar a grafia “sinthoma” em todos os momentos do Seminário XXIII, promove
uma ruptura definitiva no modo como ele emprega a palavra sintoma a partir desse Seminário. Ela terá
sempre o sentido de sinthoma, salvo menção em contrário.
172
além das normas. Nem tudo que é anormal deve ser tratado, tampouco excluído. A
questão, contudo, não pretende responder ao apelo humanista de elevar o psicótico a um
grau maior de cidadania. Trata-se bem mais de uma constatação da clínica de Lacan,
sobretudo a clínica dos anos 70, de que a questão da ordem pública não pode ser
respondida sem levar em conta o gozo singular de cada um.
Responsabilizar-se por seu gozo
Um dos aspectos mais importantes do último ensino de Lacan sobre as psicoses é
a possibilidade de centrar a questão clínica sobre o modo como o sujeito equaciona sua
relação com o gozo. Para além da doença, para além, portanto, da saúde mental, há a
possibilidade de pensar em “psicoses normais”, e elevar as respostas e invenções do
sujeito à dignidade de atos, e não de comportamentos patológicos, Aqueles que trabalham
nos hospitais psiquiátricos e manicômios judiciários sabem bem das dificuldades e
embaraços que o gozo na psicose poder trazer ao entendimento de um ato agressivo. “A
passagem ao ato na psicose não é uma infração e sim, uma solução – solução que traz na
seqüência do ato, o encontro com a lei” (Barros, 2004).
Tomemos o exemplo, bastante atual, dos serial killers. Glamourizados pelo
cinema e pela televisão, eles são um desafio constante aos diversos tipos de polícia e
serviços de psicologia criminal. Os inúmeros trabalhos científicos publicados visam dar
conta, tanto da lógica dos assassinatos quanto da possibilidade de uma predição, ou
173
detecção precoce, do futuro serial. Para Miller, a psicanálise pode tomar parte no debate
repartindo esses crimes em “crimes de utilidade e crimes de gozo” (Miller, 2007b)246.
O verdadeiro assassino em série, nós o vimos, “o amador”, não o profissional
aperfeiçoado pela organização criminosa, na regra comete apenas crimes para o
gozo. Se a natureza exata continua opaca, sua repetição serial, precisamente,
denuncia isto, que também é confirmado por todas as declarações247.
Daí a importância, para a psicanálise, em responsabilizar o louco infrator por seu
modo de gozar. Somente assim ele deixará de ser considerado uma aberração sociológica.
É o que Lacan recomenda quando ele afirma que nem o crime, nem o criminoso podem
ser julgados fora de sua referência sociológica (Lacan, 1966b)248. A implicação subjetiva
do louco infrator não deve ser vista como injustiça dos homens, ao contrário, ela revela
uma das barreiras mais difíceis a serem transpostas para a reinserção social. É o que
percebemos nas belas palavras de Biagi-Chai:
Pois se a pena não tem nenhum efeito sobre o sujeito, então, para que ela vale?
Para que a pena e o julgamento possam ter sua plena significação e valer para o
conjunto da comunidade, o criminoso deve ser tocado no mais profundo de si
mesmo. É preciso que a comunidade puna um dos seus, e não este estrangeiro
absoluto que sempre se esvai (Biagi-Chai, 2007)249.
Surge assim um novo fio condutor para a clínica. Não se trata de integrar o
estranho, mas de reconhecer-se a si mesmo na sua humanidade. A clínica que busca a
suplência, para além da reinserção social, nos confronta com a idéia de que a loucura é
incurável. Ela é tão incurável, quanto o próprio ser, diante da finitude, o é. Estaríamos
diante de uma subversão ousada: seria a loucura curável? - e aqui sabemos dos riscos e
críticas que nossa idéia pode receber – Curável, responderíamos, quando a criação
sinthomática se tornasse uma suplência que evitasse a deriva dos três registros, sem
246
Miller, J-A, Préface, p.13
Id, p.14
248
Lacan, J., Fonctions de la psychanalyse en criminologie, p.126
249
Biagi-Chai, F., La càs Landru à la lumière de la psychanalyse, p.221, tradução nossa
247
174
convocar, para essa tarefa, nenhum dispositivo clínico. Ou seja, a tríade doençatratamento-cura é distinta da tríade gozo-invenção-sinthoma.
Jucá, após pesquisar as diversas acepções de cura em saúde mental presentes no
imaginário das equipes, conclui pela dificuldade, mas não impossibilidade, de pensar o
conceito de cura para além da normatização (Jucá, 2003). Parece-nos que qualquer
pretensão de pensar a cura na loucura em outro patamar que o da suplência, flerta
necessariamente com as exigências do mestre, a saber, de adequação do conceito de cura
ao de normalidade.
Por certo, buscamos um conceito de cura que não advenha dos ideais da saúde
mental. Quando afirmamos que o sinthoma descompleta a saúde mental isso se deve ao
fato de que o sujeito pode dispensar o catálogo de dispositivos de tratamento, pois não é
deles que vem o elemento que fará suplência ao desenlace dos três registros. Ali, onde a
saúde mental busca a metáfora que recubra o vazio da significação paterna, a clínica do
sinthoma vê apenas uma possibilidade, entre outras, para o tratamento da loucura. Assim
poderíamos, revisitando a máxima lacaniana, enunciar: saúde mental, dispensá-la na
condição de podermos nos servir dela.
Não se trata aqui de nenhum demérito à saúde mental, uma vez que Lacan sempre
convidou os analistas a ocuparem a posição de dejeto, ou daquilo que pode ser
descartado. Seria inclusive um modo de nos associarmos a Foucault na crítica que este
faz à dívida e gratidão do louco para com seu médico. Quando uma instituição de saúde
mental é idealizada e engrandecida pelo seus usuários, quer seja em um hospital
psiquiátrico ou na ONG mais antimanicomialista, quando se escuta e se divulga
175
testemunhos de como a entidade foi importante na recuperação de suas vidas, estamos no
campo da dívida e dos ideais.
A especificidade da teoria lacaniana das psicoses atinge seu ápice no momento em
que ela rompe definitivamente com o olhar psiquiátrico e propõe uma abordagem
completamente diferente da inserção da loucura no laço social. No ponto em que estamos
de nosso percurso, acreditamos que a expressão laço social não traduz a força do
movimento lacaniano presente no último ensino. Lacan, sem glorificar a loucura, sem
fazer a apologia da exclusão, insere, definitivamente, a possibilidade de que a loucura não
seja objeto de uma clínica, mas possa, simplesmente, estar entre nós.
176
Capítulo V – A LOUCURA ENTRE MUROS
- Relato de uma experiência de gestão -
177
A morte é um problema dos vivos,
os mortos não têm problemas
(Elias, 2001)250
Após termos discorrido sobre o campo, nos capítulos I e II, e sobre a teoria, nos
capítulos III e IV, passaremos a relatar a clínica no campo esclarecida pela teoria.
Inicialmente a partir de uma experiência de gestão em um hospital psiquiátrico, objetivo
do capítulo atual, reservando para o próximo capítulo aspectos da clínica propriamente
dita.
Interessa-nos, no momento, pensar os elementos da teoria lacaniana, explicitados
nos capítulos anteriores, como instrumentos que auxiliaram a análise e tomada de
decisões em um período de gestão do hospital Juliano Moreira. O hospital em questão se
encontrava em uma situação de exceção dentro do painel nacional. Contrariando as
diretrizes governamentais, que preconizavam a descentralização dos atendimentos na
rede de Saúde mental, o hospital Juliano Moreira, mesmo após a promulgação da lei
federal 10.216, permanecia a peça central de atendimento da rede de todo o estado da
Bahia. Contudo, o grande paradoxo era que essa situação não lhe conferia nenhum
prestígio junto aos órgãos governamentais. Nenhum grande investimento em capacitação,
contratação ou conservação patrimonial na unidade havia sido realizado há anos.
250
Elias N., A solidão dos moribundos, p.10
178
É mais comum encontrarmos estudos sobre a psicanálise no hospital psiquiátrico
abordando o tema através do conceito de psicanálise aplicada. Nesse capítulo propomos
tomar um outro viés. Para além da psicanálise aplicada, cujos efeitos certamente surgiram
após as mudanças institucionais, nosso interesse se concentra no reconhecimento dos
mecanismos que possibilitam o resgate da subjetividade em um hospital psiquiátrico
totalmente esquecido pela administração pública. Para atingir nosso propósito,
identificaremos inicialmente os mecanismos que levam à segregação dessa subjetividade.
Propomos abordar a segregação a partir de dois aspectos sobre os quais a psicanálise tem
algo a dizer:
- a presença dos muros e grades, que através da autoridade do mestre isolam a
loucura, promovendo uma separação radical entre razão e desrazão, normal e patológico;
- a presença do objeto a que pode ser localizado por suas irrupções anômalas entre
os muros da instituição, mas que é rechaçado pela equipe pelo desconforto e angustia que
introduz.
Os muros são a expressão máxima da negação de um diálogo possível com a
loucura. A convivência em um hospital psiquiátrico nos ensina como o homem é pródigo
na interposição de algum tipo de muro para equacionar seu problema com o outro.
Podemos afirmar que o pensamento de Esquirol ainda é bastante presente (Portocarrero,
2002), e que no imaginário das equipes do hospital a edificação arquitetônica, priorizando
barreiras de todos os tipos, ainda é vista como instrumento terapêutico. Assim, os
impasses da clínica são solucionados com freqüência através da separação. A todo o
momento, a equipe busca se servir dos muros e das grades para separar, conter,
179
disciplinar o espaço dos internados. A grade, nesse sentido, é um verdadeiro sintoma
institucional que retorna como solução a qualquer descuido da equipe gestora.
Um episódio nos serve de exemplo. Uma antiga servidora do hospital, há anos,
possuía como função zelar, sentada em uma cadeira, pelo portão que separava o bloco
administrativo do bloco de internação. Após grande negociação com a equipe, a direção
promoveu a retirada do portão, o que causou uma comoção e indignação de parte dos
funcionários. Temia-se uma fuga em massa dos pacientes. No dia seguinte, o diretor, ao
passar pela arcada do extinto portão, encontrou a mesma servidora sentada em sua
cadeira, zelando pelo nada. Duas semanas depois ela pediu a transferência do hospital.
Propomos pensar a questão da separação e segregação dentro da instituição a
partir do que aprendemos com Lacan sobre o objeto a. Trata-se de uma modalidade de
segregação que nos demanda uma análise mais sutil, já que o objeto a surge como resto
inapreensível pelos discursos e dispositivos que, historicamente, habitam os hospitais
psiquiátricos. É preciso a psicanálise para percebê-lo. A formalização por Lacan do
objeto a faz dele o ponto inédito onde ancoramos a pertinência da presença da psicanálise
em nosso relato sobre o hospital.
A estranheza que a irrupção do objeto provoca faz com que se queira eliminá-lo o
mais rapidamente possível da percepção (Vieira, 2008)251. Essa estranheza leva a
excessos de higiene que por vezes beiram o cômico. Certa feita o hospital foi notificado
pela vigilância sanitária pelo fato de que os pacientes fumavam nas alas de internação e,
pior, que a própria equipe fornecia os cigarros. O que estava em questão transcendia uma
simples questão de limpeza. Percebemos que a tentativa de tornar o ambiente hospitalar
asséptico visava igualmente eliminar os restos que são, muitas vezes, a marca mesma da
251
Vieira, M., Restos, p. 114
180
humanidade da instituição. A história do rei Jorge, em que o gesto de atirar seus
excrementos no médico da corte se converteu na única forma de expressão da sua
subjetividade, nos vem a mente ao ler a frase de Vieira, onde há lixo, há homens252. Ou
seja, os gritos, pontas de cigarro e desenhos nas paredes, são restos que indicam a
presença do objeto, cabe à equipe conectá-lo com o humano.
V. 1 – As desventuras da casa do poeta
[...] Essa antiga Quinta da Bôa-Vista, onde está hoje instalado o Hospício S.
João de Deus, para asylo dos infelizes alienados, saudósas reminiscências
despérta, ao espírito de quem nella penétra, do nosso grande poeta Antonio de
Castro Alves, dos seus risônhos dias ali passados, em doce enlevo d’Alma, tão
cheia de doiradas illusões, que a fortuna não deixa durar muito. Dentro
naquellas parêdes, onde hôje soluçam dores e ouvem-se agonias, viveu outrora,
e cantou, o gloriôso váte bahiano; vibrou, intênsa, a lyra de oiro de sua Musa;
inflamaram-se os mais amoráveis sentimêntos do seu coração formôso e
apaixonádo; passeiaram, adejaram seus mais inebriantes sônhos dos vinte
annos. Ali, ao lado de sua Manon, da artista Eugenia Câmara – a Dama Negra
– da sua vida emotiva, embevecido nas iriantes illusões do Amor, escreveu
êlle, em 1867, suas mais bellas poesias...Era, então, a Quinta da Bôa-Vista,
propriedade do Dr. Antonio José Alves, pae de Castro Alves
(Boccanera.Junior, 1926)253.
A história do Hospital Juliano Moreira guarda essa preciosidade histórica de ter
sido instalado, primeiramente, na residência do mais importante poeta baiano. Como
tantas outras histórias, esse fato perdeu-se no tempo e era desconhecido pela grande
maioria de seus quase quinhentos funcionários do quadro atual. Por trás dos muros onde
“soluçam dores”, as experiências transcorridas em seus mais de cento e trinta anos de
existência foram apagadas nas tramas da burocracia, que engole o passado da maioria das
instituições públicas.
252
253
idem
Boccanera Junior, S., Bahia Civita e Religiosa, p. 350-355.
181
Em janeiro de 2000, uma nova equipe assumiu a gestão da instituição com a
missão de recuperar um hospital psiquiátrico nos limites da degradação. O encontro fez a
equipe imediatamente recordar a carta de Antonin Artaud aos médicos-chefes dos
manicômios. Sob o riso de Artaud, os gritos dos pacientes que ecoavam pelos corredores
se transformavam em vozes do supereu, exigindo da nova gestão ações imediatas:
As leis e os costumes vos concedem o direito de medir o espírito. Essa jurisdição
soberana e temível é exercida com vossa razão. Deixai-nos rir
[...] Não nos surpreendemos com vosso despreparo diante de uma tarefa para a
qual só existem uns poucos predestinados. No entanto nos rebelamos contra o
direito concedido a homens – limitados ou não - de sacramentar com o
encarceramento perpétuo suas investigações no domínio do espírito.
[...] Que tudo isso seja lembrado amanhã pela manhã, na hora da visita, quando
tentarem conversar sem dicionários com esses homens sobre os quais,
reconheçam, os senhores só têm a superioridade da força (Artaud, 1986)254.
A experiência de gestão durou sete anos, de janeiro de 2000 a janeiro de 2007.
Esse foi igualmente o período em que o estado da Bahia teve que lidar com diversas
pressões para redimir o atraso histórico na implantação da Reforma Psiquiátrica.
Enquanto em estados como Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte, a reforma
psiquiátrica se desenvolvia de vento em popa, em pleno início do terceiro milênio a
cidade de Salvador não dispunha de nenhum lar abrigado, e apenas dois Centros de
Atenção Psicossocial (Rosa, 2006).
A situação de miséria e insalubridade em que se encontravam os pacientes do
hospital era alvo de inúmeras críticas de entidades defensoras dos direitos humanos,
tendo suscitado inclusive uma inspeção da comissão de direitos humanos da Ordem dos
Advogados do Brasil com forte impacto na mídia (Mascarenhas, 2004). A equipe
percebeu que na unidade havia um grande percentual de pacientes sem nenhuma
254
Artaud, A., Carta..., p.30
182
perspectiva terapêutica, em um hospital que seguia um modelo equivocado, que pregava
o confinamento, a exclusão e, sem dúvidas, a eliminação de vidas inteiras de pacientes
que ali aportavam. Foi assim que se procurou construir, seguindo a indicação de Artaud,
o dicionário que aproximaria os dois mundos. Para compreensão do estado em que
chegara o hospital é necessário que contemos inicialmente um pouco de sua história.
Um fato nos parece exemplar. Nos primeiros dias da gestão, momento em que se
percorria o hospital buscando melhorias em suas dependências, percebeu-se que as
funcionárias da lavanderia usavam cadeiras antigas e pouco ergonômicas. As servidoras
solicitaram, à nova direção, que fossem providenciadas cadeiras de plástico, bem simples
e práticas, muito mais adequadas às suas funções. Na pesquisa dos velhos tombos
patrimoniais, foi possível descobrir que as velhas cadeiras pertenciam, na verdade, ao
antigo Solar da Boa Vista, casa do poeta Castro Alves. O precioso mobiliário foi
recuperado e hoje está na mesa de conferências do auditório da instituição. Assim como
as cadeiras, todo o material da instituição centenária havia se dispersado. Não havia mais
traços das gestões anteriores, e mesmo a ata de fundação havia desaparecido. O hospital
havia se transformado em um eterno presente, sem dados do passado e sem perspectivas
concretas de futuro.
Surgiu então a idéia de criar o Memorial Juliano Moreira, resgatando o espaço da
precária biblioteca, praticamente desativado, para buscar ativamente a vida institucional
que se perdera. O novo espaço, mediante a obstinação de seus criadores, descobriu, ou
redescobriu, espalhado em dependências abandonadas ou em diversas instituições e
arquivos públicos, um continente de milhares de prontuários, registros históricos, fotos,
relatórios de antigos diretores, que trouxeram um pouco do passado à instituição. Vale
183
dizer que, hoje, o Memorial Juliano Moreira, além de ter resgatado parte da história do
hospital, é um centro de pesquisa e acolhimento de inúmeras atividades docentes de
graduação e pós-graduação na área de saúde mental em Salvador.
O primeiro Juliano Moreira
Solar da Boa Vista, casa do Poeta Castro Alves255
A história da instituição se mescla com a própria história do alienismo no Brasil.
A partir do que apresentamos nos capítulos I e II, é possível constatar que a queda dos
significantes-mestres, que tomou diversos âmbitos da cultura a partir do século XIX,
afetou progressivamente a clínica da doença mental. Em um movimento que se
assemelha ao período que antecede os primeiros hospitais psiquiátricos europeus, no
período Colonial e no Primeiro Império, os doentes mentais na Bahia não eram tratados
como pacientes psiquiátricos. Aqueles que eram considerados mais tranqüilos viviam
255
Foto cedida pelo Memorial Juliano Moreira
184
com suas famílias nas próprias casas, ou em anexos, e os mais violentos eram presos na
cadeia ou nos porões das Santas Casas. Esta característica assim permaneceu até a
primeira reforma da assistência psiquiátrica no Brasil, ocorrida na primeira metade do
século XIX. Seu marco inicial foi a construção do primeiro hospício brasileiro (que
constitui hoje o campus da Praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Em 24 de junho de 1874, no bairro de Brotas, no Solar Boa Vista, foi fundado o
Asylo São João de Deus, marcando o início da história do atendimento psiquiátrico no
estado da Bahia. Jacobina aponta para a extrema precariedade da situação dos internos à
época. Ele nos conta que, no final do século XIX, a mortalidade entre os pacientes pelo
beribéri era elevadíssima. Coube ao grande médico Nina Rodrigues descobrir que a
doença não tinha causa infecciosa, como se acreditava na época, e que era simplesmente
causada pela fome, já que os gastos com alimentação foram progressivamente
diminuindo em função do aumento da população de internos (Jacobina e Carvalho, 2001).
Os grandes mestres da psiquiatria baiana passaram, invariavelmente, pelo Asylo.
Um dos mais eminentes, o Professor Demétrio Tourinho, apesar da nítida influência do
organicismo da loucura, era um grande defensor do tratamento moral, insistindo na
concepção alienista de recuperabilidade. Dizia ele: “[...] por maior que seja a degradação
que causa ao doente a loucura, elle conserva sempre os restos de sua origem divina, isto
é, a razão, a consciência e a bondade” (Jacobina, 1982)256.
Não se pode dizer que o Asylo era apenas um depósito humano, ele era
igualmente o palco de todas as grandes discussões científicas sobre a loucura na Bahia. A
indignação pela degradação humana aconteceu em todos os períodos da história da
psiquiatria baiana. A questão é que, se por um lado os discursos avançaram, por outro,
256
Jacobina, R., O asilo e a constituição da psiquiatria na Bahia, p.53
185
por mais que se mudasse o discurso ou o poder político, a miserabilidade da condição dos
internos permanecia. A própria criação do Asylo foi devido à pressão da comunidade
psiquiátrica baiana que, à época, usava como principal veículo de manifestação a Gazeta
Médica da Bahia257.
Em 1936, o Asylo passou a ser denominado Hospital Juliano Moreira (HJM) em
homenagem ao ilustre psiquiatra baiano falecido em 1932. O novo hospital foi
considerado, no momento de sua criação, um paradigma para o tratamento dos portadores
de transtorno mental. Porém, com o passar dos anos, houve uma progressiva decadência
de suas instalações, bem como uma degradação total da assistência oferecida aos seus
usuários. Dessa forma, o Governo do Estado determinou a construção de novas
instalações no bairro de Narandiba, região pouco populosa de Salvador, inauguradas em
18 de março de 1982 (El-Bainy, 2007).
Arquitetura da segregação
A inauguração do hospital de Narandiba foi festejada como indicativo de
importantes mudanças na saúde mental da Bahia. Era o período da contracultura, a
ditadura militar esmorecia. Na terra de filhos ilustres do movimento Tropicalista,
recebeu-se a visita de Foucault, as idéias de Franco Basaglia ganhavam terreno e houve a
chegada dos psicanalistas argentinos, fugidos do golpe militar. Esses eventos são
exemplos de uma cultura que dava ares de se abrir para uma nova percepção da loucura,
tanto pelos profissionais que trabalhavam na psiquiatria quanto pelo Outro social.
257
idem
186
fig. 1: Foto da nova sede do Hospital Juliano Moreira, antes da invasão, em 1981258
Porém, apesar da mudança ter sido impulsionada pelos novos ideais vindos da
reforma psiquiátrica, o novo hospital rapidamente adquiriu os vícios dos velhos hospitais
psiquiátricos (Veras, 2001). Muitos dos textos encontrados pelo Memorial apontavam
para inquietações tão presentes que a nova gestão poderia ter sido a autora. Podemos
perceber a atualidade no relatório de gestão do diretor em exercício em 1979, momento
em que urgia a transferência para uma nova sede: “Partimos do princípio que o Hospital
Juliano Moreira é obsoleto, contraproducente, cronificador e absolutamente à margem
das mais elementares técnicas atuais de Saúde Mental” (Santos, 1979)259.
O que nos chama atenção nessas palavras é o fato de que esse relatório tenha sido
escrito apenas um ano antes da transferência para uma nova instalação que, rapidamente,
incorporara os mesmos vícios e erros da primeira. O alto investimento financeiro do
estado não foi suficiente para evitar que, apenas vinte anos depois, a situação do novo
hospital tenha se tornado similar à da sede anterior.
258
259
Foto cedida pelo Memorial Juliano Moreira
Santos, F., Relatório do Hospital Juliano Moreira do ano 1978, p.6
187
Desde suas origens percebemos a contradição do projeto. Enquanto nos anos
oitenta fervilhavam as idéias da antipsiquiatria e da reforma psiquiátrica, o novo hospital
foi construído em uma zona de plena segregação, afastado da urbanidade e do contato
com as relações humanas. Assim, em pouquíssimo tempo, o novo projeto arquitetônico,
concebido “com a melhor das intenções”, rapidamente redobrou o velho sistema asilar.
A arquitetura do novo hospital, embora abraçada por um imenso cinturão verde,
não deixava de transparecer um laço orgânico com a velha lógica asilar. Os tijolos
vazados que substituíam as grades bem como o isolamento em uma área remota da
cidade, traziam de volta a separação. O que parecia um benefício, a presença terapêutica
de áreas verdes, confirmou, com o passar dos anos, o destino inexorável de demarcação
entre o mundo dos sãos e o mundo dos loucos.
Contudo, uma curiosa situação inverteu a lógica dessa separação. A inversão pode
ser explicada de modo relativamente simples: se o hospital não vai à cidade, a cidade vai
até o hospital. Imaginemos uma edificação pública estatal construída em uma região
inóspita, embora relativamente próxima ao centro da cidade. A construção desse novo
edifício implica em água, esgotamento sanitário, criação de vias de acesso e linhas de
transporte para pacientes e funcionários. Que lugar seria melhor para que a população
sem domicilio e menos favorecida economicamente procurasse ocupar?
Em poucos anos, o verde que circundava o hospital foi substituído por um enorme
conglomerado de habitações insalubres que invadia, sem dificuldades, os mais de trinta
mil metros quadrados do hospital. A população invasora, em condições miseráveis, via
nesse equipamento público muito mais do que apenas um hospital psiquiátrico. Para ela,
a instituição materializava a dívida do governo para com seus cidadãos. Todas as
188
demandas sociais deveriam ser atendidas pelo hospital, que se transformara em um
preposto das ações governamentais. Certa feita, ao pedir à equipe de jardinagem que
capinasse o fundo do hospital, limítrofe com a invasão, a sala de direção foi invadida pela
comunidade de moradores reclamando a falta de abastecimento elétrico causada pela
ação da diretoria. Descobriu-se então que a eletricidade de todas as casas do fundo do
hospital era alimentada por “gatos” feitos a partir dos postes de iluminação da unidade.
Em outra situação, quando a direção buscava recuperar alguns metros do terreno
invadido para construção de um novo acesso interno, moradores da invasão protestaram
dizendo ter comprado aquela fração de terreno diretamente de funcionários do hospital,
anos atrás.
Os problemas eram tão numerosos e tão graves que muitas entidades sociais
exigiam do governo uma nova mudança. Com efeito, alguns fatos pareciam irreversíveis.
A violência do bairro, os desabamentos constantes de casas da encosta sobre o hospital,
as chuvas de aluvião que traziam das invasões centenas de ratos mortos e detritos para as
alas de internação, eram situações que condenavam sua permanência. Em um pleno
feriado de 7 de setembro, o hospital amanheceu com uma centena de membros do
Movimento dos Sem Terra acampados no resto de verde do hospital. Foram despendidas
horas de negociação entre a direção e os líderes sensibilizando-os para a necessidade de
preservar aquele resto de espaço para uma população igualmente segregada.
É nesse caos que o próprio Conselho Estadual de Saúde convida o novo diretor
para se pronunciar publicamente. Este, juntamente com sua equipe, decide pela
permanência do hospital. Em seu discurso ele evoca a necessidade de uma política de
integração da população circunvizinha com os próprios pacientes. Afinal, aquela
189
comunidade tinha como referência principal, marco de sua existência, o hospital Juliano
Moreira. Ela aceitava os pacientes sem demonstrar nenhuma hostilidade nos anos de
coabitação. Tratava-se, portanto, de reverter o sentimento de invasão fazendo crescer o
sentimento de cooperação. Ele finalizou sua fala trazendo uma referência à presença da
psicanálise no hospital. Ali, onde a vizinhança se fazia Outra para a comunidade
hospitalar, era preciso restabelecer o laço que os unira inicialmente, e não cortá-lo. O
ponto positivo fundamental era que, naquela região, os pacientes não eram excluídos,
cabia então ao hospital e ao governo, ir até os outros excluídos, ou seja, os que estavam
por fora dos muros.
A partir desse momento, o próprio hospital capitaneou um movimento de
recuperação da vizinhança, obtendo verbas públicas para contenção das encostas, criando
programas de integração entre os pacientes e as demais comunidades de bairro, criando
residências terapêuticas para os pacientes em áreas antes invadidas pela comunidade.
Nos anos que se sucederam, os roubos no almoxarifado, a depredação patrimonial
e as graves ameaças sanitárias tiveram uma drástica redução. Acreditamos que o
posicionamento da nova equipe gestora deveu-se fortemente à arte da conversação. A
proximidade da equipe com a psicanálise abria espaço para uma outra lógica
institucional, que buscava acolher a alteridade ao invés de negá-la.
Essa estratégia pode ser exemplificada com o problema da temporada de pipas.
Constatou-se que, na época dos grandes ventos de novembro, dezenas de jovens da
invasão ocupavam os telhados do hospital para empinar suas pipas. O prejuízo era
considerável. Anualmente, hospital era obrigado a substituir mais da metade das telhas
devido aos campeonatos.
190
Surgiu, então, a idéia de organizar um campeonato de pipas para os jovens da
comunidade. Uma camisa especial foi confeccionada, foram comprados medalhas e
troféus, deu-se início ao projeto. A condição, contudo, para a realização do certame, era
que o território do campeonato fosse a quadra poliesportiva, e não o telhado. A adesão foi
total, os dois mil reais de camisas e prêmios geraram uma economia de mais de oitenta
mil reais/ano em reposição de telhas.
Nesse caso, o witz implicou em uma subversão do discurso do mestre que, por
anos a fio, insistia em erradicar a temporada de pipas chamando a polícia e hostilizando
com ameaças os jovens no telhado. A estratégia até então utilizada, implicava no reforço
das medidas de força que visavam evitar que a comunidade invadisse o hospital. A lógica
da separação implicava em muitas grades, rondas policiais, isolamento de todo um andar
que ficava muito próximo da favela e era constantemente invadido. O próprio telhado do
hospital, a noite, era local de ronda do tráfico armado que fazia do teto do hospital um
ponto de observação.
Hoje o hospital recuperou um grande percentual da área invadida, que voltou a ser
jardinada e serve de utilização inclusive para a própria comunidade da vizinhança. Após
várias reuniões com as comunidades do bairro, uma parte foi cedida para construção de
um centro comunitário e outra para um campo de futebol. Há anos não se registram
incidentes sérios com a vizinhança.
191
V.2 – A casa dos objetos a
Na mesma época em que iniciamos a gestão do Hospital, a conhecida escritora
baiana Myriam Fraga, membro da Academia de Letras da Bahia, lançou seu livro
contando a história de Leonídia, amor de infância do poeta Castro Alves, que, após ter
sido deixada por este, enlouqueceu e passou o resto de seus dias internada precisamente
na antiga casa de seu único amor260. Morreu aos 81 anos no hospital, em 23 de janeiro de
1927 (Fraga, 2002).
A história de Leonídia é igualmente a história de dezenas de milhares de pacientes
que ficou esquecida nos arquivos, pessimamente conservados, do hospital. A perda do
passado faz os gestores andarem em círculos, repetindo velhas fórmulas e velhos erros.
Eles acabam privilegiando os ideais de modernização burocrática e as exigências das
políticas de saúde que se sucedem, esquecendo e remetendo ao negativo, precisamente a
razão única da existência de todo aquele universo, as vidas, muitas vezes perdidas, entre
os muros institucionais.
Leonidia Fraga261
260
261
Leonydia, a musa infeliz do poeta Castro Alves, de Myriam Fraga, publicado em 2002
Foto extraída do site http://www.projetomemoria.art.br/CastroAlves/memorias/memorias_morte.html’
192
Buscou-se então um novo olhar para os objetos que, para muitos que ali
trabalhavam, eram apenas algo insensato ou inútil. A resistência inicial foi significativa.
Era como se fosse necessário deixar de lado tudo o que não fizesse sentido, que tivesse
função de letra ou de objeto sem um fim útil, para garantir a sustentação do discurso da
razão institucional. O confinamento e a lógica asilar, contudo, acumulavam restos por
todo o hospital. De tão presentes, eles se fundiram com a paisagem institucional perdendo
a função de apontar para o sujeito que lhes era correlato.
A rotina institucional acaba por banalizar e provocar o esquecimento de algo que,
portanto, grita aos primeiro passos dentro do edifício. É como se alguém gritasse tanto
que o grito deixasse de ser ouvido por fazer parte do ruído ambiente. Ou como se, dos
pacientes, restassem apenas seus objetos a: seus gritos, seus excrementos, seus restos de
comida, suas pequenas mensagens que não são recolhidas por nenhum Outro.
O caderno de pensamentos de Leonídia é um exemplo valioso. Hermelino Lopes
Rodrigues Ferreira, psiquiatra e escritor de uma grande biografia em três tomos do poeta
Castro Alves, herdou do então diretor do Hospital o espólio de Leonídia. No espólio, sem
dúvidas, o mais importante item era o caderno de pensamentos. Diz Hermelino Ferreira:
Passei a dispensar-lhe um carinho filial. Nunca mais o abandonei. Desatei-lhe o
embrulho. Fui ao depósito de malas e aí encontrei o baú de Leonídia. Abri-o
também. No interior, a relíquia, "Pensamentos", o célebre caderno de
confidências, lindos pensamentos, frases dele, notas dela [...] (Fraga, 2002)262.
Hermelino Ferreira chama atenção para a relíquia que Leonídia carregou até o fim
da vida. Não fosse esse resgate feito por ele, o espólio da musa se perderia nos tempos.
Aprendemos, com a clínica lacaniana das psicoses, a valorizar esses pequenos troços que
os pacientes internados carregam consigo. São pequenos embrulhos sem valor aparente,
262
Apud Fraga, p.118
193
pedaços de papel com escrituras incompreensíveis, enfim, uma enorme quantidade de
objetos que são guardados como preciosidades por muitos loucos. São eles, finalmente, a
irrupção do objeto a no real, já que não são separados do corpo por nenhum discurso
(Lacan, 2001c). A falta, precisamente, de um discurso estabelecido faz com que esses
objetos, presentes no oco da arquitetura do hospital psiquiátrico, possam apenas ser
mostrados. Eles surgem como incidências contingentes, não planejadas, que perturbam a
ordem institucional. Pensando com Foucault, percebemos que os espaços institucionais
são planejados apenas para estabelecer algum modo de disciplina: espaços para as
refeições, para o lazer, para a higiene, etc. (Foucault, 2004)
Partindo dessa constatação, podemos observar com um outro olhar a importância
da obra de Nise da Silveira, dos mantos de Bispo do Rosário ou da câmera inquietante de
Marcos Prado ao filmar Estamira. Não se trata de expor a arte como sucesso terapêutico
de alguma oficina de artes, mas de capturar o real desses objetos, elevando-os à dignidade
da Coisa (Lacan, 1986)263. Daí sua afinidade com o real. Esses objetos não interessam a
ninguém mais, são propriedades intransferíveis, já que eles indexam o gozo
incomunicável do sujeito. Toda arte que se presta a essa função promove, ainda que
parcialmente, a extração do objeto a. Ela se torna aquilo que o paciente tem de mais
valioso, mas que, ao mesmo tempo, não se encaixa em nenhum dos discursos que
atravessam o plano burocrático institucional.
O interior do hospital nos dava a ver, para além do humano, os objetos destacados
da vida de seus pacientes. Não se trata, aqui, da separação do objeto como possibilidade
de construção fantasmática da realidade. Estamos no terreno em que o objeto é um órgão
anômalo que se funde com a arquitetura sombria imposta pela necessidade dos muros.
263
Lacan, J., Le Séminaire VII: L´éthique de la psychanalyse, p.133
194
Nesse caso, contudo, não podemos atribuir exclusivamente à psiquiatria os estragos
produzidos. Seria muito simples responsabilizá-la quando na verdade nos deparamos com
um pacto coletivo e complexo que culminou com a secreção do objeto a nos muros
institucionais.
Um dos autores que mais defendem este ponto é o canadense Erving Goffman.
Sua obra Manicômios, prisões e conventos, de 1961, mostrou ao mundo o universo das
instituições totais, da qual o manicômio psiquiátrico pode ser considerado o exemplo
mais eloqüente (Goffman, 2003).
A obra de Goffman nos proporciona a chance de uma reflexão sobre o papel da
clínica que se praticava nos hospitais psiquiátricos. O que a história demonstrou – e a
maestria de Foucault foi apenas um exemplo – é a vertiginosa possibilidade de
apagamento de uma tragédia real por um discurso. Para ele, mais a psiquiatria se fechou
no interesse pela doença mental, mais as condições dos doentes foram deixadas em
segundo plano.
Foram necessárias as vozes dos artistas, dos teóricos sociais, dos juristas e,
sobretudo, dos próprios loucos, para que a condição do internamento asilar causasse a
indignação que impulsionou o movimento da reforma psiquiátrica. Essa afirmação nos
leva a considerar que as transformações no atendimento psiquiátrico decorreram muito
mais por conta de um movimento de indignação respaldado por uma ideologia
revolucionária do que por conta da construção de um saber científico.
195
Do Ideal do hospital modelo ao objeto a
O hospital modelo não terá corpos nus, seios à mostra, excrementos, etc. Para
muitos gestores, basta que os pacientes se submetam às regras de disciplina institucional
para estar em boas condições de saúde mental. Em nossa experiência, encontramos
muitos servidores que consideravam um rebaixamento profissional o fato de terem sido
transferidos pela Secretaria de Saúde para um hospital psiquiátrico. Com freqüência
observávamos os sentimentos, tão bem descritos por Dejours, diante de um trabalho
considerado degradante: a racionalização e banalização do mal, vergonha e inibição
coletiva, ou seja, múltiplas estratégias para se tolerar o intolerável (Dejours, 2007).
Caminhando pelos corredores nos deparávamos com fezes, urina, paredes
rabiscadas com mensagens contendo escritos sem respostas, etc. Foi possível constatar
que no hospital psiquiátrico encontramos uma exposição do corpo, de partes dele, que
não visa a sedução. Seios, nádegas, genitálias, o corpo é exposto ao olhar indiferente da
equipe, dos vigilantes ou mesmo dos outros pacientes. O olhar e a voz também eram
presenças constantes. Gritos perdidos pelos corredores, uma arquitetura que privilegia o
olhar ao contato, enfim, por todos esses aspectos podemos dizer que o hospital se tornara
a casa do objeto a.
Assim, é provável que a negação radical da subjetividade, seja a responsável pelo
retorno maciço no real dos gritos dos pacientes e dos olhares que nada dizem e tudo vêem
da equipe. Partiremos, portanto, da hipótese de que o apagamento da condição subjetiva
no hospital psiquiátrico é correlato à explosão do corpo em múltiplos objetos a, restos
subumanos que impregnam a instituição por todos os seus poros.
196
Uma moldura para o objeto
Uma das primeiras pesquisas impulsionadas ao assumirmos a direção foi realizada
pelo antropólogo visual Stéphane Malysse. Durante semanas, Malysse filmou e
fotografou o interior do hospital deixando-se levar exclusivamente pelo que se dava a ver
(Malysse, 2001). O resultado desse trabalho não deve ser confundido com um
estudo/denúncia da situação precária do hospital no ano 2000. Ele é valioso por mostrar
que na instituição, sua arquitetura, seus muros e grades, sua luminosidade, tudo levava ao
objeto a separado de qualquer apreensão pelo discurso da clínica. Ou seja, embora
saltasse ao olhar, o hospital não enxergava as ações, as mensagens, os objetos tudo que
deixasse rastro de subjetividade por trás do paciente e sua doença. Os corpos se
confundiam com a arquitetura, por vezes criando insólitas mensagens, cartas que a
instituição se negava a ler.
Foto de Malysse, S., Inimi
197
Foto de Malysse, S., Nous
Foto de Malysse, S., Bite
198
Foto de Malysse, S., Bíblia
Foto de Malysse, S., Ombres
199
Foto de Malysse, S., Tetine
No final de 2001, a direção idealizou uma grande exposição fotográfica sobre a
vida cotidiana do hospital. A exposição foi aberta a toda a comunidade de Salvador. O
evento contou com a presença de críticos de arte, jornalistas, universitários e toda uma
comunidade intelectual que, de forma inédita, circulava entre as alas e pacientes,
conhecendo o interior do hospital. Uma das instalações – forçosamente – mais visitadas
era a “Louco pra ver”, de Stéphane Malysee. Tratava-se de uma grande tenda fechada,
que foi instalada no saguão de entrada do hospital, cujo interior era repleto de fotos
tiradas durante sua pesquisa. O visitante, para entrar no hospital, tinha que passar
necessariamente pelo interior da cabana, defrontando-se com as fotos. Caso não quisesse
entrar, a tenda possuía orifícios que permitiam ver seu interior. Diante da tenda, foi
possível elevar o objeto a na instituição à dignidade de causar a divisão subjetiva do
visitante. Diante do que se dava a ver, e da dúvida sobre entrar ou não na casa dos loucos,
muitos hesitavam entre o olhar o objeto pelos orifícios ou diretamente no interior da
cabana.
200
Estamos mais acostumados a encontrar iniciativas que visem o resgate da
dignidade dos pacientes através dos ideais de justiça e reparação. No caso dessa
exposição a equipe adotou uma proposta diferente. Apoiada na teoria do objeto, ela
prescindiu dos ideais e confrontou a sociedade com sua própria divisão subjetiva, ao
invés de fazer apelo, através dos ideais, a sua culpabilidade.
A experiência artística do “Louco pra ver” é coerente com o estatuto do objeto na
contemporaneidade. A psicanálise lacaniana, precedida pelos artistas atuais, acolhe como
marca de nosso tempo a ruptura da barreira dos ideais e do belo. Brousse chama atenção
que por muito tempo a imagem do belo revestia o objeto, I(A) recobria a.
Hoje, essa barreira acabou. I(A) não governa mais a abordagem do objeto
pulsional pela Arte. A separação entre o Ideal e o objeto é consumida e é o a
sem véu que se adianta. O artista interpreta diretamente ao modo do objeto
pulsional, que corre entre os objetos comuns e anima nosso mundo, nossos
corpos, nossos hábitos, nossos estilos de vida e, portanto, nossos modos de
gozo (Brousse, 2008)264.
Encontramos nesse comentário de Brousse uma feliz aproximação entre o artista e
o louco. Ambos antecipam a psicanálise e apontam para o horizonte subjetivo de sua
época (Lacan, 1966c)265. Quando a psicanálise se associa aos autores que apontam a queda
dos ideais e a prevalência do objeto no coração da civilização, ela reafirma que não é pela
vertente do sentido que se poderá obter um enquadramento para o gozo. Busca-se a
escritura sem sentido e a obra de arte que não tem compromisso com o belo. Assim como
é necessária a extração do objeto a nas psicoses, acreditamos que é necessário promover
a extração do objeto a dos muros institucionais.
264
265
Brousse M-H., O objeto de arte na época do fim do belo: do objeto ao abjeto, p.174
Lacan, J. Fonction et Champ de la parole et du langage en Psychanalyse, p.321.
201
V. 3 – Escutar para tratar
Em pleno momento em que a Itália, fazia sua revolução e negava o hospital
psiquiátrico, o novo Juliano Moreira foi construído visando o atendimento centralizado e
hospitalocêntrico. Ou seja, desde a sua criação, o novo hospital tornou-se um
equipamento de Saúde mental com vocação para ser uma instituição total (Goffman,
2003). Enquanto o antigo hospital era prioritariamente voltado para internações
psiquiátricas, a nova sede integrou um ambulatório de psiquiatria com um enorme
número de pacientes e uma unidade de emergência que, rapidamente, devido a
precariedade da atenção primária em saúde mental na Bahia, se tornaram crônica e
irremediavelmente lotados de pacientes.
Conseqüentemente, em um curto espaço de tempo, uma grande parte dos
pacientes circulava entre os três eixos de atendimento, internação, emergência e
ambulatório, sem nenhuma outra opção de tratamento fora dos muros da unidade. O fato
de estarem no mesmo prédio não fez com que houvesse integração entre esses três eixos
de atendimento. Em diversos prontuários a cacofonia de ações era gritante. Como os
profissionais não conversavam entre si, as orientações terapêuticas e o próprio
diagnóstico mudavam diversas vezes, a depender do profissional que examinava o
paciente.
Os números do relatório de desempenho anual do ano 2000 dão mostras do
gigantismo da proposta: mais de noventa mil atendimentos ambulatoriais por ano, quinze
mil atendimentos na emergência além de um hospital com duzentos leitos,
permanentemente superlotado (Veras, 2002).
202
Esses números testemunham a existência de uma verdadeira “rede interna” de
retro-alimentação das demandas de atendimento da população, gerando a superlotação
em todos os níveis de atendimento.
Na precariedade com que os atendimentos eram realizados, era natural que as
equipes estivessem mais preparadas para a intervenção abrupta do que para a escuta
paciente das motivações subjetivas. Assim, a tendência da equipe era buscar soluções
imediatas, muito distintas da temporalidade exigida para escutar os pacientes em crise.
Em qualquer emergência psiquiátrica, é mais fácil medicar e hospitalizar do que
dispensar tempo na escuta das motivações subjetivas. Uma pesquisa concluiu que nos
momentos de crise é a própria equipe de saúde mental, e não os próximos e familiares,
que mais insiste para que o paciente seja hospitalizado (Lidz, Mulvey et al., 2000).
Grivois testemunha o desconforto que é, para o psiquiatra, dialogar com a loucura:
Para que falar, uma vez que as frases não se terminam, que as propostas são
indecifráveis, as palavras apenas esboçadas ou, sem continuidade, parecem
sem pé nem cabeça? Somos sensíveis ao desamparo mudo e às vezes intenso
desses pacientes. Salta aos olhos que eles são freqüentemente invadidos pela
angústia.
[...] Afora as questões correntes do exame, não se encontra nada mais a dizer a
esses homens e mulheres já que, eles mesmos, igualmente não dizem nada. O
sono, ou ao menos o repouso inaugural com os quais eles são gratificados
tranqüiliza, portanto, todo mundo (Grivois, 2007)266.
No Hospital Juliano Moreira, foi possível uma inversão dessa perspectiva no
momento em que em plena emergência surgiu uma clínica feita por psicólogos e demais
profissionais da equipe multidisciplinar e não exclusivamente por psiquiatras. Algo
bastante simples gerou um efeito importante. O local da emergência deixou de ser apenas
um local de prescrição, contenção e hospitalização. Foram adaptados espaços para que as
266
Grivois, H., Parler avec les fous, p.62 – tradução nossa
203
equipes pudesse se encontrar e discutir os casos. As supervisões e discussões
multidisciplinares não eram feitas anteriormente, apenas a consulta do psiquiatra de
plantão, que prescrevia sua orientação. Aos poucos, elas passaram a congregar servidores
vindos de diversos setores do hospital. Buscando resgatar a subjetividade em pleno
tumulto da emergência, uma vez que esta tinha o maior fluxo de pacientes do estado,
algumas iniciativas foram feitas durante os sete anos da gestão.
Para entender as motivações dessas iniciativas é necessário conhecer o destino de
um paciente após conseguir a marcação de uma primeira consulta em algum dos
ambulatórios ou na emergência do hospital. Um médico no ambulatório chegava a
atender até trinta pacientes em uma manhã. Como escutar um paciente novo, apreender a
origem de seu sofrimento e elaborar um plano terapêutico em uma única consulta de
menos de trinta minutos, ainda mais quando a próxima consulta é marcada para, em
média, quatro meses depois? É fácil compreender que o paciente, nesse atendimento, com
muita freqüência era reduzido à sua queixa, ainda mais quando ele, informado pela mídia,
já chegava com um diagnóstico feito: meu filho é hiperativo, tenho transtorno de pânico,
etc. A consulta com o psiquiatra se via sistematicamente reduzida à prescrição de algum
medicamento.
Uma vez iniciado no circuito de prescrições ambulatoriais, esse paciente teria
enorme possibilidade de passar o resto da vida procurando o hospital, a cada quatro ou
seis meses, apenas para renovar sua prescrição. Ele se tornava, assim, mais um número
das estatísticas de pacientes que se consideram doentes dos nervos, sem que nenhum
outro questionamento sobre sua vida tivesse sido produzido.
204
Após dois anos de negociações com o Ministério da Educação, a instituição,
buscando fugir do perfil de entidade exclusivamente psiquiátrica e medicamentosa,
conseguiu criar a primeira Residência de psicologia do norte e nordeste. O programa
dessa residência segue até hoje voltado para a pertinência da psicanálise em uma
instituição de saúde mental. Com ela, foi possível trazer psicanalistas para a supervisão
de casos, supervisão institucional, apresentação de pacientes, ou seja, foi possível arejar o
complexo hospitalar com um novo discurso. “Os psicanalistas”, como eram chamados,
aportaram na instituição sob o olhar curioso de muitos servidores, às vezes com certa
hostilidade diante do novo, às vezes acolhidos como a última chance de transformar e
melhorar a vida hospitalar. Eles foram mais que um fato efêmero, nunca antes o hospital
centenário discutiu tanto as idéias de Freud e Lacan.
O SETA
O sistema de emergência, triagem e acolhimento, o SETA, foi desenvolvido a
partir da idéia de que uma instituição complexa como o Juliano Moreira apresenta várias
- e desencontradas - portas de entrada. Devido ao atraso de mais de quatro meses na
remarcação das consultas ambulatoriais, os pacientes freqüentemente recaíam,
retroalimentando a emergência e a internação. Encontramos uma população de mais de
oito mil pacientes que passavam pela instituição, a maioria praticamente anônima e sem
uma direção clínica plausível. Por ser o hospital de referência no estado, por mais que se
inaugurassem CAPS’s e se descentralizasse a atenção primária, o afluxo de novos
pacientes das mais distintas áreas da Bahia permanecia enorme.
205
Surgiu, conjuntamente com a Residência de psicologia, a idéia de melhorar o
acolhimento e a qualidade do atendimento dos pacientes. Até então, a recepção era
caótica, desconfortável e, mesmo, desumana. Enquanto aguardavam o preenchimento da
ficha de atendimento na emergência, tanto os pacientes agitados, trazidos pela polícia,
quanto, por exemplo, uma jovem adolescente em seu primeiro surto, eram obrigados a
permanecer em uma mesma sala quente, com bancos de concreto, totalmente fechada por
grades para evitar fugas. O contato com o pessoal da recepção igualmente era feito
através de grades. Impossível não ter a impressão de feras enjauladas.
Obter uma consulta ambulatorial tampouco era uma tarefa simples. Um paciente
em estado de estranheza do mundo, ainda sem uma psicose desencadeada, deveria esperar
meses pelo atendimento. Como destino rotineiro, antes da consulta o estado se agravava e
o paciente ingressava no circuito das emergências e hospitalizações.
A nova proposta de acolhimento visava reverter esse quadro, digno de uma tela de
Bosch. Paralelamente ao tradicional périplo dos gestores mendigando verbas para
reformar o atendimento, um convite foi feito aos profissionais da casa, mesmo aqueles
que não estavam lotados na emergência, para que dessem duas a três horas de sua carga
de trabalho na escuta e acolhimento das demandas. Com isso foi possível, mobilizando a
própria equipe do hospital, solucionar o crônico problema da falta de profissionais e
estruturar o serviço novo.
Assim, várias duplas de profissionais da equipe multidisciplinar, todas as manhãs,
acolhiam o enorme contingente, escutando e tentando dar maior resolutividade. Esse
acolhimento não gerava de imediato a inscrição no ambulatório, às vezes o paciente era
convidado a voltar alguns dias depois, para mais uma ou duas consultas, e depois se
206
encerrava o papel da instituição. Geralmente, no final da manhã, o trabalho das duplas era
discutido entre a equipe, às vezes sob supervisão de um psicanalista convidado, às vezes
com o próprio diretor geral. Foi possível criar um espaço em que a clínica e não a
burocracia orientasse a conduta. O objetivo era acolher a demanda do paciente e dar uma
resposta, mesmo que negativa, mas evitando que este permanecesse no limbo, vagando
entre ambulatórios e emergência.
O exemplo típico de paciente que transita pelo limbo institucional é o paciente
que não tem mais medicamentos até a próxima consulta ambulatorial ou o paciente que,
após sua consulta, precisa aumentar o neuroléptico. Esse paciente, quando se dirige ao
hospital, é sistematicamente recusado no ambulatório, antes mesmo de ter acesso ao
profissional de saúde, pois não está marcado para aquele dia. Porém, quando então ele se
dirige à emergência a situação é ainda pior, pois ele é igualmente barrado logo na portaria
por apresentar um problema que deve ser visto ambulatorialmente.
Esses pacientes passaram, com o SETA, a ser atendidos e triados logo de manhã,
por alguém do quadro superior - e não um simples vigilante distribuindo fichas - que se
dirigia a eles e racionalizava o tempo de espera. O que parecia algo bem simples teve, na
verdade, um grande impacto na emergência. Tratou-se, no fundo de situar a clínica antes
da burocracia, e não o contrário.
Uma anedota de cunho humorístico dá conta do ineditismo do projeto. Quando
convidado a dar uma entrevista para um jornal de grande circulação sobre o novo
método, o diretor explicou ao jornalista que a idéia de colocar profissionais de nível
universitário logo na porta de entrada era algo que acontecia em vários lugares. Que, por
exemplo, no Japão, um visitante de uma grande empresa de produtos eletrônicos poderia
207
se deparar com um dos próprios diretores logo na própria entrada. No dia seguinte à
entrevista, o jornal estampou a matéria: “Juliano Moreira lança método japonês de Saúde
Mental”. Durante vários dias, fomos procurados por diversos outros meios de
comunicação que queriam entrevistas sobre o método japonês. A própria assessoria do
governador do estado procurou esclarecimentos sobre o método nipônico
Dessa experiência, impulsionado pelos residentes de psicologia, derivou o GRUS,
Grupo de Urgência Subjetiva, vinculado ao SETA. O interesse do grupo partiu da
possibilidade de se estudar os efeitos terapêuticos rápidos em um ambiente institucional
como a emergência. Assim, o GRUS tornou-se um foro de discussão sobre a psicanálise
aplicada e sobre a aposta de que o encontro com um psicanalista em uma instituição
pública pode ser o primeiro ciclo de uma pergunta que o sujeito faz sobre si mesmo e não
sobre sua doença (Miller, 2005a). Criou-se um dispositivo que leva em conta os efeitos
subjetivos que somente podem ser canalizados se a transferência se estruturar em torno
de um interlocutor que atraia um “campo gravitacional de significantes e libido” para si
(Mattos, 2003)267.
Após termos descrito o modo precário com que os novos atendimentos
psiquiátricos eram feitos, é fácil concluir que pouco ou nada da história do sujeito
aparece nas consultas. No caso da emergência, em que muitas vezes o paciente reluta em
ser atendido, era necessário passar “da urgência segundo o Outro à urgência do sujeito
(Barreto, 2004)268. Quando a equipe do SETA se defrontava com um caso destes, ela
tinha a possibilidade de encaminhar o paciente para um dos residentes de psicologia, que
atenderia o paciente de quatro até dezesseis vezes com um a freqüência de uma ou duas
267
268
Mattos, S., O uso da psicanálise em uma instituição invisível, p. 39
Barreto, F.P., A urgência subjetiva na saúde mental (uma introdução) p.47
208
vezes por semana, visando encontrar alguma solução terapêutica. Somente após este
período, eventualmente alguns pacientes necessitavam a inscrição regular no
ambulatório, mas uma grande parcela dos casos era equacionada ali mesmo, no GRUS.
Deve-se levar em conta que, apesar do número máximo de dezesseis atendimentos
parecer reduzido, se estes pacientes entrassem no esquema de consultas do ambulatório
de psiquiatria, à média de três consultas por ano, seriam necessários quase cinco anos
para realizar as dezesseis consultas. Uma vez que se criou um dispositivo em que os
pacientes poderiam ser atendidos semanalmente, a orientação era resistir o máximo
possível à idéia de propor a medicalização do sofrimento logo de entrada.
A psiquiatria, em seu momento atual, tem mostrado nítido distanciamento da
psicanálise, privilegiando os aspectos biológicos e a medicalização de sua disciplina. Nos
Estados Unidos, onde as neurociências dominam os ideais de pesquisa e terapêutica,
Sonnenberg desde os anos noventa chama atenção para a necessidade de trazer de volta o
pensamento psicanalítico na formação do jovem psiquiatra (Sonnenberg, 1990). Essa
orientação, de não prescrever de imediato algum medicamento, não deixou de causar
estranheza e protesto por parte de alguns psiquiatras. O fato é que um grande número de
pacientes passou pelo GRUS, teve alta da instituição, e não fez uso de nenhum
medicamento. Essa situação é praticamente impossível em um ambulatório de psiquiatria.
São raros os casos de pacientes que se dirigem a um ambulatório de psiquiatria e saiam
sem alguma receita nas mãos. A medicalização do sofrimento é tamanha que justifica a
resposta que nos foi dada por uma paciente à pergunta sobre o que é um psiquiatra: “Ora,
um psiquiatra é um médico que passa remédios”.
209
A experiência do SETA e do GRUS abriu, conseqüentemente, uma perspectiva
inédita para a cultura institucional. Surgiu uma nova possibilidade de escutar os
pacientes, mesmo nas crises, buscando uma posição ativa destes na subversão do real em
jogo nas crises que motivaram a ida à emergência ou ao ambulatório. O gerenciamento de
casos passou a ser mais importante no âmbito da instituição do que o gerenciamento das
normas. Não que estas sejam dispensadas, mas o paciente se tornou o pivô das ações
onde, antes, era a própria afirmação do discurso da instituição que ocupava esse lugar.
210
Capítulo VI – A LOUCURA ENTRE NÓS
211
A clínica psicanalítica das psicoses é feita de casos clínicos singulares. Trata-se,
portanto, de uma clínica que não interessa aos que procuram, na saúde mental, apenas
soluções coletivas e modelos reproduzíveis em larga escala. À medida que a
reformulação da assistência psiquiátrica avança no Brasil, surgem nos CAPS’s,
ambulatórios e centros de saúde, a possibilidade de uma clínica voltada para o
acompanhamento de pacientes com uma freqüência regular, às vezes semanal, pelo
tempo necessário para conhecimento e direcionamento dos casos clínicos. Acreditamos
que essa clínica é perfeitamente compatível com a psicanálise.
Propomos, nesse capítulo, abordar a especificidade da clínica psicanalítica sob
dois aspectos. Inicialmente refletindo sobre as apresentações de pacientes realizadas
habitualmente nos hospitais psiquiátricos. Referimo-nos especificamente ao modo como
Lacan inovou o método das apresentações e fez delas sua principal fonte de teorização
sobre as psicoses.
Em seguida apresentaremos três casos de psicose. São pacientes que transitam
livremente pela cidade e cujo papel do analista é secretariá-los nos momentos difíceis,
sobretudo na relação com o outro, tal como propunha Lacan no Seminário das psicoses
(Lacan, 1981)269. Em dois deles o passado de internações psiquiátricas deixou uma dura
recordação, mas em nenhum dos três ela se fez necessária no longo período de
acompanhamento psicanalítico que se seguiu. À sua maneira, cada um foi capaz de uma
criação que mantivesse juntos os registros do real, simbólico e imaginário. A loucura
assume uma perspectiva muito mais sutil, longe da situação limite que a internação
269
Lacan, J., Le Séminaire III, Les psychoses, p.233
212
psiquiátrica representa para o sujeito. Nos três casos, algo da localização do gozo
permitiu que o sujeito obtivesse um distanciamento do Outro sem recorrer a uma
passagem ao ato.
Os três casos nos servem igualmente para uma reflexão sobre o que seria uma
clínica do sinthoma em relação à saúde mental. Lacan, ao colocar como paradigma do
sinthoma o caso Joyce eleva a barra a um nível muito elevado. Joyce não era um
paciente, tampouco se submeteu a um tratamento clínico. Assim, em nossa hipótese de
trabalho Joyce seria precisamente a psicose que não é recoberta pelo campo da saúde
mental.
É possível, contudo, pensar a “sinthomatização” da psicose tal como ele retoma a
questão do sintoma no ano seguinte ao Seminário XXIII, a saber, como a descoberta de
uma amarração suficientemente tenaz para que o sujeito adquira um savoir y faire avec le
sinthome (Lacan, 1977). Ou seja, um saber fazer com o sintoma no momento em que o nó
rateia. Nesse sentido é possível estender a expressão de sinthomatização igualmente às
psicoses desencadeadas. Ela seria mesmo a condição de cura das psicoses diante do
campo da saúde mental. Aprendemos com o último ensino de Lacan que é possível
dispensar o pai, mas não é possível dispensar o sinthoma.
213
VI 1. - Apresentação de pacientes: fazer surgir o sujeito
Trecho de uma carta de Karl Abraham a Sigmund Freud de
11.02.1911:
(... ) Para terminar, mais uma pequena peça satírica tirada da clínica do Doutor
Ziehen: apresentação de uma neurose obsessiva. O paciente tem a obsessão de
que, nas ruas, ele deve passar a mão sob as saias das mulheres. Ziehen ao
auditório: “Senhores, nós devemos cuidadosamente examinar se tratamos aqui
de uma obsessão sexual”. Eu vou perguntar ao paciente se ele experimenta
igualmente esta impulsão na presença de mulheres de certa idade”. O paciente,
interrogado: “Infelizmente, Professor, até mesmo com minha própria mãe e
minha irmã”. Nesse ponto, Ziehen: “Vejam os senhores que não pode haver
aqui nada de sexual em jogo”. Ao assistente: “Escreva no processo verbal: o
paciente sofre de uma obsessão que não é de conteúdo sexual e sim absurdo!”
(Freud e Abraham, 1969)270.
Antológico e humorístico, o tom desse fragmento histórico nos deixa com uma
série de impressões indefinidas. Há, inicialmente, o sentimento de entrar na vida de dois
homens célebres, permitindo conhecê-los de outra forma. A severidade dos textos
publicados pelos autores cede espaço para a humanidade de protagonistas surpreendidos
em uma hora de folga, menos épicos e mais próximos. O humor, contudo, não deixa de
nos indicar que um ponto de resistência fora tocado. Aqui, Freud ri de uma clínica
psiquiátrica que se esforçava na negação do inconsciente e da palavra.
As apresentações de pacientes realizadas por psicanalistas constituem um
instrumento que difere do modelo clássico de apresentação de pacientes realizado pela
medicina em geral, e a psiquiatria em particular (Johansson e Eklund, 2003). Com Lacan,
a apresentação de pacientes não trata de verificar a existência de um saber préestabelecido pela gama de profissionais que se ocupa do paciente. Para além da
manifestação de uma doença, busca-se apreender o caminho que cada paciente encontrou,
270
Freud, S., e Abraham, K., Correspondance, p.104, tradução nossa
214
ou ainda procura, para reconstruir sua vida após o desencadeamento da psicose. Miller
sugere uma expressão subversiva para definir as apresentações de pacientes realizadas
por Lacan: “o ensinamento dos pacientes na apresentação de Lacan” (Miller, 1977).
No hospital Juliano Moreira foi possível retomar a prática de apresentação de
pacientes feitas por psicanalistas convidados. No geral, ela atraía os psicólogos e as
equipes de enfermagem, mas pouca atenção da equipe médica. Apesar do interesse geral,
as apresentações suscitaram críticas de alguns setores da saúde mental. Alguns
representantes do movimento da Luta Antimanicomial alegavam que as mesmas
reforçavam a submissão dos pacientes e os reduzia a objetos da curiosidade do público.
A crítica, de inspiração foucauldiana, se baseava na análise das relações entre terapêutica
e poder, situando o psicanalista como mais uma das figuras de cerceamento da loucura.
A apresentação lacaniana e o desconforto da contingência
Quando trazemos à tona o tema das apresentações de pacientes, há, sem dúvidas,
a evocação de uma exposição de pacientes que tem função de demonstração para um
terceiro. Constitui-se desse modo uma tríade composta pelo entrevistador, o entrevistado
e a audiência, em que o desconforto da falta de um roteiro clássico para a entrevista,
quando essa é efetuada pelo psicanalista, abre espaço para a surpresa. Esse desconforto
gera uma tensão que não se limita ao par entrevistador-entrevistado. A exigência da
presença in loco da audiência, descartando vídeos ou espelhos, impede que o expectador
seja totalmente passivo, tornando o ato mesmo de presenciar a entrevista uma decisão que
implica um referendo ético daquele que escuta. A semelhança com o teatro é forte.
215
Enquanto no cinema ou na televisão o público pode se levantar, conversar entre si ou
mesmo comer pipocas, no teatro o público sabe da responsabilidade do seu silêncio.
Podemos dizer, contudo, que a apresentação de pacientes segue a lógica de um
encontro dessa tríade precedente com o advento de um quarto elemento que escapa aos
cálculos, o inconsciente. Sua irrupção não segue o cálculo coletivo e sim os descaminhos
da contingência. Um dos modos mais conhecidos de negar o desconforto desse encontro
inesperado é a tentativa de dominar a surpresa deixando-a apenas do lado do paciente.
Trata-se aqui do modelo clássico de apresentação psiquiátrica. Transformado, assim, em
objeto de amostragem, o paciente será isolado da tríade e tratado como elemento que fala
sem interlocução (Grivois, 2007). Seus ditos, nessas modalidades de apresentação,
perdem o valor de demanda ao outro se tornando objeto de contemplação de um saber
pré-estabelecido. A entrevista psicanalítica busca escapar dessa armadilha através de uma
manobra que impede que o saber sobre o caso seja exclusivamente do entrevistador.
Surge um saber construído no momento mesmo da entrevista, recaindo sobre o
entrevistador apenas o saber fazer, saber técnico que permite o alcance do saber inédito.
Justifica-se, conseqüentemente, tomar o encontro com um psicanalista como um lugar
vacuolar, espaço entre parênteses dentro da instituição psiquiátrica, onde o paciente “tem
o lazer, por certo tempo restrito, de ser sujeito, ou seja, de faltar a ser” no discurso que
habitualmente o captura e disciplina (Miller, J-A., 1998).
É possível sustentar que os efeitos de formação das apresentações de pacientes
são “contingentes”, uma contingência que só se torna formação devido à implicação de
cada um na assistência (Briole, 2002). A ética que preside essa formação é a mesma que
elevará a contingência desta transmissão a “uma modalidade do real” (Laurent, E., 1998).
216
Apresentação versus avaliação
Com a psicanálise, somente podemos pensar a apresentação de pacientes quando
um espaço é aberto para tentar alcançá-los em um discurso. Mesmo nos casos de
esquizofrenia, onde para Lacan o sujeito não se serve de nenhum discurso estabelecido
(Lacan, 2001c), entendemos que, em sua fala, tal como na língua fundamental do
presidente Schreber, o simbólico é mobilizado na tentativa de um enodamento. Em 58,
Lacan afirma que "a condição do sujeito (neurótico ou psicótico) depende do que se passa
no Outro” (Lacan, 1966a)
271
. Trata-se, aqui do Outro simbólico, ou seja, marcado pelo
equívoco do significante. Desse modo, ele demarca uma posição distinta da psiquiatria
clássica e passa da clínica do olhar para a clínica do discurso. Esta se assenta na premissa
de que é impossível separar a doença mental do sujeito falante. No caso das
apresentações, não devemos pensar, contudo, que lançar mão de um procedimento que
convoca a palavra implica em decifrar o sentido do sintoma do sujeito. Na entrevista,
busca-se separar o que é dialético, o que pode mudar a posição do sujeito diante de algum
ponto que lhe impulsiona à passagem ao ato, do ponto de delírio que é inamovível, que
retorna sempre ao mesmo lugar, ponto de real. Trata-se de atingir, pela fala do paciente, a
opacidade do gozo que exclui qualquer sentido (Miller, 2008d)272.
A apresentação é, portanto, um procedimento que visa o real como redução de
toda a extensão da cadeia significante à um significante assemântico, ou seja, dissociado
dos efeitos de sentido que a fala do paciente comporta. Ela nos ensina, precisamente,
271
272
Lacan J., D´une question preliminaire..., p.549
Miller, J-A., Semblants et sinthomes, p.131
217
como o paciente reage diante do real sem sentido, e que invenções ele será levado a
elaborar para manter coesos os três registros.
Este procedimento é bastante diferente de um interrogatório, anamnese ou
questionário. Os questionários são cada vez mais utilizados nas pesquisas em psiquiatria
e saúde mental. O uso é tamanho que não são mais apenas os pacientes que são avaliados
por eles, há igualmente os questionários para os que aplicam questionários (Banzato,
Pereira et al., 2007). A objetividade crescente das entrevistas estruturadas e semiestruturadas fez com que experiências visando programar entrevistas de pacientes
realizadas mediante vídeo conferência dispensassem a presença física do entrevistador.
Uma pesquisa demonstrou que a dimensão do encontro pessoal não deve ser
negligenciada. Ficou evidenciado que o fracasso na abordagem à distância não se deveu à
qualidade da conexão técnica e sim à ausência da presença física do entrevistador (May,
Ellis et al., 1999).
O real, como impossível de ser dito, não pode ser alcançado a partir de um
questionário padrão, o que faz da avaliação proposta pela psicanálise algo muito distante
dos rumos que toma a ciência atual (Miller e Milner, 2004). No que tange à apresentação
de pacientes, o fato de Lacan sempre ter sustentado que o sujeito da psicanálise nada mais
é do que o sujeito da ciência (Lacan, 1966g)273, não faz da apresentação um procedimento
científico. Ela não é uma experiência reproduzível, cada apresentação deve ser vista
como singular.
Para compreendermos melhor essas afirmações podemos partir da tese maior do
texto A ciência e a verdade de que há foraclusão do sujeito pelo discurso da ciência
(Lacan, 1966g). Ao eliminar a subjetividade implicada em seu objeto de estudo, o
273
Lacan J., La science et la vérité, p.858
218
dispositivo científico rompe uma dialética entre o sujeito e o Outro onde se ancora o
saber. Para Lacan, o saber designado como S2, pressupõe sua articulação com o S1,
estabelecendo desse modo o par ordenado: S1-S2 (Lacan, 1991). Já para a ciência o S2
não remete ao S1. Somente é valorizado o que faz sentido ou pode ser demonstrado sem
furos. Ora, para a psicanálise, o mais importante desse par ordenado é justamente que o
saber (S2), conectado ao S1, aponta para o gozo do sujeito. Essa situação é mencionada
no título de um dos capítulos do Seminário XVII: Saber, meio de gozo274.
O S1, como significante assemântico, conclama outro significante (S2) para
aliviá-lo de sua pane de sentido (Lapeyre e Sauret, 2008). A apresentação de Lacan visa
precisamente esse S1 assemântico. Ele não surge necessariamente como uma pequena
invenção tipográfica. Apesar de chamá-lo de significante assemântico, o que importa é
deduzir, da fala do paciente, um neologismo, uma frase ou mesmo um gesto que possua
apenas uma significação pessoal, não fazendo parte da comunidade de sentido presidida
pelo Outro, tão como nos foi possível demonstrar com o exemplo da “Donadecasa”.
Contudo, não se trata meramente de atingir esse ponto de real, o saber que se constrói na
apresentação é na verdade um saber fazer a partir desse ponto. Quando conseguimos
promover a báscula e passar a construção do saber para o lado do paciente nos
aproximamos da clínica do sinthoma.
O Curinga, os efeitos da uma apresentação sobre um caso clínico
Maria localiza o início do seu padecimento aos nove anos, após a morte da mãe
em decorrência de um parto. Assim diz: “depois que minha mãe morreu tudo se acabou”.
274
Lacan J., Le Séminaire XVII, p.43
219
O desencadeamento acontece aos 18 anos, após o nascimento do primeiro filho. Durante
a internação, mesmo hiper-medicada, é considerada refratária a qualquer tratamento.
Ao vir para a apresentação os sinais de impregnação neuroléptica eram muito
fortes, mas mesmo assim, quando lhe foi dada uma oportunidade, ela falou longamente
de sua história. Na apresentação de pacientes, o significante “curinga”, ao invés de
“carimbo”, referente à seus documentos, mais do que um equívoco da fala, aponta para
um neologismo do sujeito. “Eles colocaram um curinga na minha carteira de identidade”,
diz Maria, mais de uma vez durante a apresentação. Ali onde deveria surgir a palavra
carimbo, que funciona como sanção do Outro, surge o neologismo curinga, que permite
que a paciente utilize a identidade e possa se reinscrever em um mundo habitável.
Em sua história, percebemos que a invenção do “curinga” em sua carteira
responde a uma filiação que traz, para a paciente, um conteúdo enigmático. É possível,
assim, extrair da história algo das condições de desencadeamento da psicose. Maria
suportou a separação do pai e a morte da mãe sem que uma psicose se desencadeasse. É
no momento em que a paciente ocupa uma posição (o puerpério) que foi causa mesma da
morte da mãe (um parto) que o sentido da existência e do amor materno fracassou, não
podendo se sustentar na lógica familiar. É essa função de restabelecer a ordem familiar,
fazendo existir um lugar no mundo para a paciente, que o significante curinga, escrito em
sua carteira de identidade, poderá eventualmente exercer.
A partir da apresentação de pacientes uma nova orientação clínica foi
estabelecida. Não mais se tratou de calar o delírio. A psiquiatra da equipe registrou da
seguinte maneira no prontuário da paciente: “foi decidido reduzir o neuroléptico sedativo
para melhor observar a produção delirante da paciente”. Com a redução drástica da
220
medicação foi possível uma escuta que ajudasse Maria a estruturar um delírio de modo a
extrair os elementos que lhe permitam fazer uma suplência à nomeação que lhe falta.
Assim o delírio em sua identidade trouxe um pouco de alívio para o seu sofrimento.
Finalmente, o que se ensina nas apresentações de pacientes? A resposta
certamente incidirá muito mais sobre a particularidade da cada caso do que sobre a
constituição de um corpo de saber homogêneo e assimilável como doutrina. Quando
acompanhamos as apresentações de pacientes e seus efeitos institucionais, devemos levar
em conta que o saber individual sobre um caso pode, e deve ter o poder de transformar a
instituição. É o que nos levou até aqui a sustentar que a presença da psicanálise subverte
a clínica no que ela tem de universal. Trata-se de observar a singularidade dentro das
políticas coletivas, transformando a emergência do sujeito como ponto mesmo de
reorientação dessas políticas.
221
VI. 2 – A amor impossível em um caso de esquizofrenia
O caso a seguir nos serve para pensar a questão da alteridade e do amor na
esquizofrenia. Uma paciente esquizofrênica, hoje na casa dos 60 anos, teve sua primeira
crise psicótica logo após o nascimento de sua segunda filha, por volta dos 25 anos de
idade. Seu quadro psicótico, apesar de todas as dificuldades que sua doença trouxe, não
impossibilitou que fosse boa esposa e criasse bem todos os seus filhos, hoje profissionais
bem sucedidos.
A transferência para com o analista é muito boa, uma vez que ele é a única pessoa
com quem se abre quando está em crise. Com a experiência dos anos de doença, adquiriu
a prudência de evitar falar de seus delírios e alucinações com a família, para não
aborrecê-los. Muitas vezes, durante as crises, ela sequer precisa vir até o consultório.
Basta um telefonema para ouvir a voz do analista, e ela se tranqüiliza e consegue suportar
o tumulto das crises. Contudo, de todas as questões, a que mais a incomoda nesses anos
de doença é a persistente incapacidade de amar.
A paciente, segundo suas próprias palavras, “sofre por não sofrer de amor”. Isso
não impede que, no plano das identificações, exerça com poucos entraves os papéis
sociais de esposa, mãe e avó dedicada, assim com foi funcionária exemplar antes de se
aposentar devido à doença. Sempre teve uma vida sexual constante apesar do medo
atrelado ao sexo. Esse medo deve-se a recordação de uma de suas crises iniciais,
desencadeada precisamente durante um ato sexual onde o que parecia ser um orgasmo se
transformou em sensação de morte e de estar etérea. Desde então, somente se permite ao
222
sexo onde o gozo é obtido mediante a masturbação. O sexo, portanto, não se ancora
suficientemente na dialética fálica para impedir que o real de um gozo por demais
intrusivo tome conta de seu ser. A masturbação, nesse sentido, não deve ser atrelada à
lógica fálica, e sim à possibilidade de localizar em um ponto corporal o gozo que fazia
seu corpo se esvair.
“Etérea” é como ela descreve os momentos em que seu corpo não mais lhe
pertence. Relata que entra em conexão com o cosmos e com a vida de todos os seus
mortos, como se todos eles invadissem seu corpo, proferindo mensagens que se
superpõem sincronicamente. Partindo do que expusemos no capítulo IV, constatamos que
aqui se rompe a temporalidade instalada pela cadeia significante, uma vez que a condição
do dizer, estruturada a partir do eixo a - a’, é precisamente que tudo o que pode ser dito
obedeça à diacronia dos significantes encadeados um a um.
Retomando os desenvolvimentos do esquema L veremos que somente é possível
romper essa diacronia quando o inconsciente se manifesta a céu aberto. O fato de não
haver, no inconsciente, contradição e do mesmo ser atemporal garante que os
significantes possam co-existir sincronicamente.
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In
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s
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a
cé
u
ab
er
to
(A) Significantes
em
sincronia
223
“Não são as idéias malucas – diz ela - o que me faz diferente dos outros, é o fato
de não ter sentimentos, não conseguir amar nada. Gosto de meus netos, de meu marido,
mas não sou normal, fico só, com meus números, embora todos achem que eu estou bem
por que converso com todos e faço tudo em casa normalmente”. Trata-se de um mundo
onde é possível aplicar a denominação clássica de Helen Deutsch de As if, “como se”,
onde as atividades da vida cotidiana são realizadas “como se” tudo estivesse normal em
uma tentativa de resgatar os efeitos da foraclusão através das identificações imaginárias.
Fora das crises, contudo, queixa-se de que a vida é muito monótona. Para não
perder o domínio de seus pensamentos ela cifra o mundo contando tudo que pode. Conta
quantos passos dá até o consultório, quantos postes tem na rua, ou simplesmente
números.
Podemos tomar a incapacidade amar dessa paciente como a incapacidade de
constituir um discurso amoroso que faça suplência a inexistência da relação sexual.
Como vimos anteriormente, em seu texto Étourdit275, ele afirma que o sujeito
esquizofrênico afronta o real do gozo sem o recurso de um discurso estabelecido. Essa
afirmação inclui o discurso amoroso. O fato de não haver extração do objeto a na
esquizofrenia está aqui diretamente implicado no fracasso da condição amorosa, uma vez
que clinicamente os efeitos se verificam em dois aspectos cruciais: o corpo e a parceria
sexual. Por não haver extração de objeto, a paciente não se serve da pulsão para dar uma
função de gozo aos órgãos de seu corpo (Laurent, Eric, 1998). Igualmente, na relação
amorosa, a pulsão não se instrumenta do fantasma neurótico ($ ◊ a) para capturar um
parceiro.
275
Lacan Jacques, Étourdit, in Autres écrits, Éditions du Seuil, Paris 2001, p. 474
224
Nesse caso clínico, isso não impede que os laços familiares existam de modo
bastante sólido. Seu marido é fonte constante de seus cuidados e preocupações. As
relações sexuais, mesmo não sendo satisfatórias, sustentam a relação com o parceiro
fazendo parte das práticas contábeis que lhe trouxeram a percepção de um mundo em que
pudesse viver. Não por acaso sua escolha profissional, da qual foi aposentada por
invalidez, foi ligada ao mundo da contabilidade financeira. Até hoje uma de suas
principais ocupações é ir ao banco gerenciar sua aposentadoria e suas aplicações. Fora
desse mundo de números ela é consumida pela loucura, perde seu corpo, as idéias
descarrilam, não mais sente o tempo e nem o espaço.
Seu mundo contábil, contudo, não pode se apoiar em uma garantia universal.
Nesse sentido, descrente do pai, ela se torna igualmente descrente do amor. Como efeito
da foraclusão, a relação com o Outro não lhe traz nada de bom. A paciente tem que
assegurar, por si mesma, a ordem dos números sem apoio da função paterna, apesar de
fazer do exercício de contar um arremedo de nome do pai. Aqui nos apoiamos em um
comentário de Eric Laurent (Laurent, 1998b)276 de que para o sujeito psicótico, que não
que crê no pai, lhe resta o recurso à letra para estabilizar o buraco do significante. Desse
modo, a busca pelo amor é uma tarefa impossível, uma vez que a paciente separa a
mensagem do código. Enquanto a mensagem é um discurso que depende da crença ao pai
e é a condição mesma do labirinto amoroso, sua contabilidade não expressa mais do que
as letras que configuram um código esvaziado de sentido.
Ao analista cabe a função de assegurar esse código quando tudo mais vacila. Nos
momentos de crise chega a ligar dez, quinze vezes por dia para seu telefone. Às vezes,
276
Laurent, E., Seminário sobre “De una question preliminar a todo tratamento possible de la psicosis” ,
p.44
225
quando o mesmo está incomunicável, fala com qualquer pessoa da casa, até mesmo a
faxineira semanal. As ligações são geralmente muito rápidas e produzem alívio imediato
à sua angústia. É necessário, contudo, que alguém esteja do outro lado da linha. Nos
períodos em que vai bem, chega a passar semanas sem dar um telefonema ou ir ao
consultório.
A transferência ao analista igualmente se passa sem que a dimensão do amor
esteja presente. É possível identificar que sua função na cura obedece à mesma lógica de
assegurar que o código é eficaz e que ela não será “sublimada” – expressão dela - pelas
idéias vindas do Outro. É o que pode ser demonstrado pelo modo como procurou o
analista atual pela primeira vez, há quase duas décadas. Simplesmente ligou para ele se
apresentando e dizendo: “Há vinte anos sou tratada pelo Dr. X, ele morreu ontem e, como
não posso ficar sem psiquiatra, decidi ligar logo para o senhor”. Logo na primeira
consulta as bases foram estabelecidas sem que nenhuma sombra de luto pela morte
daquele que foi seu médico por anos a fio fosse esboçada.
Nesse caso a impossibilidade de amar não deixa de ser uma defesa do sujeito
contra a aniquilação de sua existência pelo Outro. A contingência do encontro amoroso,
sob os auspícios do Pai, faz do amor um acontecimento, ou seja, algo que na vida de um
sujeito cessa de não existir. Essa existência, contudo, está longe de ser eterna uma vez
que, seguindo o dito popular “não há amor que nunca se acabe”. Todavia, quando a
crença no Pai não pode ser sustentada, no caso de sua foraclusão, as coisas do amor se
passam de modo bem diferente. Quanto ao sujeito “dito esquizofrênico”, como ressalva
Lacan, nenhum discurso amoroso permitirá que o parceiro escolhido sustente o objeto
perdido, uma vez que o objeto “a”, ele o tem em seu próprio bolso (Lacan, 1967a).
226
VI. 3 - O homem das academias
Um pedido em urgência de familiares me fez atender M. pela primeira vez há
cerca de dez anos. O Outro se tornara para ele insuportável, tornando a dimensão de uma
passagem ao ato uma constância em sua vida. Recém chegado à cidade, M. não se
adaptava a cultura local, terra natal de sua mãe, lugar que desconhecia até então.
O desentendimento freqüente e a irritação para com todos era cada vez maior.
Os inúmeros problemas com a vizinhança se sucediam sem que M. concedesse ao
outro qualquer sinal de indulgência. A mínima desordem ou perturbação da vizinhança
gerava acessos de cólera, chegando a demonstrar a violência gritando e esmurrando as
paredes do playground na frente de moradores. Pouco antes da primeira consulta havia
confidenciado, para pânico de seus familiares que pensava em explodir o local em que
estava morando, morreria juntamente com os vizinhos desrespeitosos. Não havia
relatos de agressão física embora os desentendimentos com os familiares e, sobretudo
com sua mãe, se tornassem igualmente cada vez mais freqüentes. Nessas ocasiões,
sempre se mostrava muito irritado, gritando energicamente e proferindo ameaças
extremadas. Entre as
acusações, M. alegava que seus familiares somente se
interessavam pelo seu dinheiro.
É assim que, isolado de todos e com muita resistência, finalmente acata procurar
um profissional, dizendo de antemão que a psicanálise nada poderia fazer para aplacar
sua cólera. Em suas palavras, procurar um analista era “o reconhecimento de sua
situação patética de ter que pagar para ter um interlocutor". Foi essa condição,
justamente, o único meio para tentar certo enganche da transferência: ele vinha porque
não tinha com quem falar.
227
As primeiras sessões se passaram sob um clima misto de tensão e agressividade
contra o analista. Ele reconhecia ter encontrado neste, contudo, alguém a quem julgava
menos rude que os demais. Por vezes se mostrava ameaçador, gritando muito e dizendo
que nada o demovia da idéia de que a psicanálise era uma tapeação, já em outros
momentos, quando as coisas se passavam bem, conversava com o analista por quase
uma hora. Eram conversas que continham uma erudição um pouco afetada. Discutiam
sobre cultura, literatura, vinhos, etc. Essa etapa do trabalho, que durou aproximadamente
cinco meses, finalmente permitiu, com cautela, restituir um pouco de sua história.
Sua mãe, havia se casado com um forasteiro e se mudado para a terra do pai,
onde logo as coisas se passaram muito mal. A mãe de M. era espancada e vivia em um
regime de extrema repressão. Essa situação se prolongou após o nascimento do bebê. Os
relatos, tanto do paciente quanto
da
mãe, com quem pude falar
algumas
vezes, confirmaram que o pai, "sem nenhuma razão aparente", se punha a espancar o
paciente desde a mais tenra idade, chegando por vezes a bater sua cabeça no chão até
sangrar. Quando M. tinha três anos, a mãe se separa do pai e foge para sua cidade natal.
Devido às condições muito precárias, ela foi obrigada a colocar seu filho em um
internato durante a semana. Nos fins de semana M. voltava para a casa da mãe
onde dormiam em uma pequena cama de solteiro até a adolescência.
Refere-se a esses anos como os piores de sua vida, uma vez que era tratado no
orfanato como franzino e branquinho, sempre vítima de trotes e agressões por partes dos
outros alunos. É assim que, a partir da adolescência, passa a se dedicar à prática de lutas
marciais, alegando que desde então jamais alguém conseguiria agredi-lo novamente.
228
Alguns anos mais tarde, sua mãe constitui um novo relacionamento com um rico
estrangeiro, melhorando muito a situação da família. Passam a viver confortavelmente,
deixando para trás os anos passados no subúrbio, em condições precárias. M. realiza
estudos universitários, inicialmente Direito - que logo abandona por não conseguir
acreditar nos ideais de justiça nesta profissão - e, em seguida, na área de comunicações,
onde consegue obter seu diploma. Nesse momento, sua mãe decide morar no exterior e
propõe que M. e sua atual namorada tentem a vida no novo país às custas de sua ajuda
financeira. Apesar de ser custeado pela mãe, M. consegue manter uma relação estável
de muitos anos com essa namorada.
A relação, contudo, se desmorona aos poucos devido às constantes intromissões
da mãe que, segundo M., usava de seu poder financeiro para controlar a vida do casal.
Encontrando-se só, M. decide se mudar para a terra do pai, em busca de conhecer mais da
cultura paterna e, de um modo mais velado, se lançar na busca desse pai, que
praticamente não conhecera. Quando perguntado sobre o motivo que o movia a fazer tal
busca, ele dizia que não era por razão afetiva, mas que via aí a possibilidade de conseguir
uma pensão ou herança que o ajudasse a se estabelecer na vida.
Uma rápida passagem por esse país também termina mal. As relações com a
dona da pensão onde morava se deterioram e surge o sentimento de perseguição.
Acreditamos poder localizar nesse momento, em que se encontra na terra do pai, o
desencadeamento da psicose. Trata-se do momento que Lacan designa de momento
fecundo, que surge da descontinuidade que marca o desencadeamento da psicose (Lacan,
1966j)277. Tendlarz chama atenção para o fato de que Lacan, em sua tese – em que trata
precisamente de um caso de paranóia - não fala ainda de desencadeamento e sim de
277
Lacan, J., Propos sur la causalité psychique, p.169
229
“pontos fecundos”. Essa expressão demarcaria uma oposição às idéias de Sérieux e
Capgras, que pensavam que a evolução do delírio era algo incerto e que se confundia com
a vida do paciente sendo, portanto, impossível determiná-lo (Tendlarz, 1999)278.
M. passa a acusar a dona da pensão de tentar prejudicá-lo indiretamente,
relatando diversos incidentes que, na sua leitura, teriam sido orquestrados exclusivamente
com intuito de provocá-lo. Após sucessivas reclamações e queixas na polícia, decide
sair do local, ainda sem ter estabelecido um vínculo com o pai, temendo que todos
fizessem parte de uma mesma conspiração contra ele.
Miller, ao comentar sobre a paranóia, relembra que é a extração do objeto olhar
que nos permite ter o sentimento da realidade perceptiva. Ocorre que devemos entender a
extração do objeto como a possibilidade desse objeto, alternadamente, faltar para o
sujeito ou para o Outro. É mesmo a condição para a alternância de papéis na fórmula da
fantasia. No caso da paranóia, embora o objeto não esteja colado ao sujeito, tampouco
podemos falar de extração, uma vez que o objeto olhar está permanentemente colado ao
Outro. O olhar nesse caso “se impõe ao sujeito e o sevicia permanentemente” (Miller,
2008b)279. No caso de M., a partir do momento em que se encontra na terra do pai o olhar
do Outro passa a segui-lo permanentemente. É quando, finalmente, chega à Bahia, onde
conhece suas origens maternas.
Seus familiares recém conhecidos, igualmente, se transformaram em pouco tempo
em inimigos que apenas queriam saber de seu dinheiro. Essa desconfiança se confirmava
parcialmente, pois o mesmo havia emprestado uma quantia razoável de dinheiro a um
familiar e este tardava em lhe devolver o valor devido.
278
279
Tendlarz, S., Aimée con Lacan, p.48
Miller, J-A., A imagem do corpo em psicanálise, p.27
230
O corpo e as mulheres
Uma única coisa parecia lhe trazer certo bem-estar:
as horas em que se
exercitava na academia de ginástica. Desde jovem alimentava o projeto de se tornar
proprietário de uma academia de ginástica. M. despendia muitas horas por dia na busca
do aprimoramento de sua forma física. É, igualmente, nas academias que ele buscava
suas conquistas amorosas. Com o avanço do tratamento, o analista passou a fazer
semblante de Leporello, fiel escudeiro de Don Giovanni¸ tornando-se testemunha de suas
conquistas e proezas sexuais. Eram sempre conquistas efêmeras, que fazia questão de
contar em minúcias.
As mulheres se sucediam e a história era sempre a mesma. Nos encontros iniciais
prevalecia um grande romantismo, porém, a partir de um momento, sentia que sua
virilidade estava sendo posta a prova pela parceira. Às vezes isso ocorria em algum jogo
sexual que ele não considerava apropriado aos homens, outras vezes, quando elas se
mostravam mais intelectuais ou refinadas do que ele. Muitos desses relacionamentos
terminaram com insultos e brigas. No momento dessas rupturas seu ânimo despencava,
pensando em suicídio ou extermínio do mundo. Questionava, com freqüência, se elas
achavam que ele não era suficientemente viril. Essa preocupação, por vezes, o levava
a gestos desesperados. Certa feita não hesitou a baixar as calças em plena sessão para
que o analista conferisse se algo estaria errado com seus órgãos sexuais. Ao analista
somente coube lhe dizer que poderia ficar tranqüilo, que ele era realmente um homem e
que seus órgãos lhe pareciam normais.
Foi então que um novo projeto de vida foi plenamente apoiado pelo analista na
tentativa de interpor palavras onde prevalecia a agressividade imaginária. Ele decide
231
resgatar sua atividade de jornalista, deixando um pouco de lado a idéia de montar uma
academia. Passa então a escrever sobre o mundo. Semanalmente passou a encaminhar ao
analista suas opiniões sobre os acontecimentos políticos. Suas fontes eram colhidas
através de consultas pela internet dos diversos jornais de grande circulação mundial.
Eram textos sempre bem escritos, onde as opiniões refinadas procuram desvendar o
sentido menos evidente dos temas que tratava. A hipocrisia de determinado país, o
estímulo à produção de serial killers em determinada culturas, o fanatismo religioso, o
capitalismo selvagem, etc. Apesar de viver de rendas, M. é um homem de esquerda que
condena a corrupção e o imperialismo financeiro. Seus textos sempre traziam grandes
críticas à exploração capitalista e aos governos de direita.
Essa fase de crítica ao mundo contemporâneo abriu uma nova etapa em seu
tratamento. M. passou a criticar muito menos os hábitos e a cultura da cidade em que
vive. Passou da crítica aos vizinhos à denúncia do gozo do Outro na forma de crítica às
superpotências que esmagam os países mais pobres. As perspectivas de um mundo
globalizado permitiram que o Outro perseguidor deixasse de habitar o apartamento ao
lado para se localizar no horizonte assintótico dos sites da internet. Aos poucos,
conseguiu estabelecer alguns laços de amizade em um novo grupo social, ainda ligado
ao corpo, mas com menos preocupações viris, uma prática oriental.
A função de crítico do gozo transgressor do Outro foi redobrada pela função de
educador. Passa a se dedicar a projetos sociais de crianças desfavorecidas, resgatando
assim a tragédia de sua própria infância. Nas visitas que faz às entidades de assistência,
ele é sempre muito querido pelas crianças. M. crê que educar é uma função possível. É
232
assim que ele espera poder restaurar o campo dos Ideais corrompidos pelo gozo
incessante do Outro, que marca sua estrutura paranóica.
Nos últimos anos, embora o convívio com os outros tenha se tornado mais fácil,
um novo sintoma irrompeu, perturbando o laço social duramente resgatado. Uma
compulsão escópica, olhar para os objetos valiosos dos outros, tornou-se um obstáculo
permanente nas suas relações. Passou a mudar, com relativa freqüência, de ambiente
social, julgando que seu olhar sobre os objetos seria interpretado como vontade de roubar
algo do outro. Perguntamo-nos se não haveria, aqui, o retorno no real do objeto olhar.
Temos inicialmente o gozo do olhar do Outro, a perseguição sem tréguas desse olhar, e
em seguida, uma reversão que gera a compulsão a olhar, sem que o sujeito se reconheça
como aquele que olha. Diferente, aqui, do momento em que a subjetivação do olhar foi
possível na condição de observador e crítico do mundo pela internet. Esse terceiro tempo
trouxe um temor derivado do gozo localizado em seu próprio olhar, mas experimentado
como outro280.
Em uma supervisão surgiu a idéia de uma interpretação do analista que desse
algum sentido ao real desse gozo, lhe permitindo, assim, resgatar algo da subjetivação.
M. sempre se interessou pela psicanálise, atormentado por sua compulsão a olhar,
perguntava freqüentemente como a psicanálise poderia ajudá-lo, o que a teoria dizia
sobre isso. A resposta do analista à compulsão escópica foi a seguinte: “Não sou eu quem
diz, mas te darei uma interpretação freudiana, se você melhorar é porque a psicanálise
está certa: a bolsa que você olha significa a política de direita, o capitalismo”. M. ouviu
atentamente essa interpretação e, nas sessões seguintes, me disse que era bem possível
que Freud estivesse certo, a compulsão havia diminuído bastante.
280
Tal como vimos no comentário de Maldiney do capítulo III.1
233
Atualmente M. me procura apenas quanto tem algum aborrecimento maior com o
outro. Essas situações têm sido cada vez mais raras. A iminência de uma passagem ao ato
reduziu sensivelmente, mesmo quando o analista temeu uma reviravolta no dia em que
sua mãe, “a única pessoa que, apesar das brigas, realmente o amava”, faleceu. Há alguns
anos conseguiu estabelecer um relacionamento estável e, após a morte da mãe, vem
pensando em se casar.
Alguns comentários sobre o caso
Durante todos esses anos, a direção do tratamento visava evitar que M.
concretizasse a passagem ao ato auto ou heteroagressiva que tanto anunciava. Uma das
vertentes da passagem ao ato na psicose, como comenta Tendlarz, aponta para a tentativa
de estabelecer uma diferença simbólica no real, ou seja, produzir uma extração de gozo
do ser, localizando-o, desse modo, no campo do Outro simbólico (Tendlarz e Garcia,
2008)281. No caso de M. observamos um equilíbrio difícil entre a localização do gozo no
campo do Outro, que gerava um delírio de perseguição, e a possibilidade de localizá-lo
no próprio analista, fazendo dele próprio a imagem do Outro perseguidor.
Inicialmente, para fugir dessa posição, o analista optou por assumir a posição de
confidente das seduções frustradas. Submeter-se à prova de virilidade, no episódio em
que baixa as calças, expondo seus órgãos genitais ao olhar do analista deu a este a certeza
de não ocupar o lugar do Outro que poderia fazer-lhe algum mal. A partir desse momento
foi possível adotar uma posição mais ativa na cura, encorajar novos rumos, desaprovar as
ameaças aos próximos, enfim, assentar-se em uma posição mais cômoda na transferência.
281
Tendlarz S., e Garcia, C., A quién mata el asesino?, p.80
234
Contudo, M. permanecia se servindo do imaginário para fixar o gozo no outro
especular. As horas de exercício diante do espelho buscavam lhe dar uma forma que
fosse capaz de evitar qualquer escape de gozo feminilizante. M. defendia-se do gozo não
mapeado pela sua lógica viril tentando capturá-lo mediante o excesso de corpo adquirido
nas academias de ginástica.
Um dia M. pede ao analista uma sessão em urgência. Como em raras vezes, surge
transtornado, evocando uma “experiência corporal horripilante”. Deitado, meio
adormecido, em sua sala, teve a certeza de que seu corpo não lhe pertencia, que algo
estranho se apoderara dele a tal ponto que pensou em se matar para matar também a
coisa. Aos poucos foi se tranqüilizando, na medida em que o analista lhe assegurava que
era apenas um sonho. Por um instante M. perdera sua imagem corporal. Essa experiência
nos faz lembrar do clímax do conto Horla, de Maupassant, no momento em que o
personagem aterrorizado perde sua imagem no espelho:
Levantei-me, com as mãos estendidas, virando-me tão depressa que quase caí!
Pois bem!...enxergava-se como em pleno dia, e eu não me vi no espelho!...Ele
estava vazio, claro, profundo, cheio de luz! Minha imagem não estava lá...e eu
estava diante dele!
[...] e não ousava mais avançar, não ousava mais fazer qualquer movimento,
sentindo, no entanto, que ele estava lá, mas que me escaparia de novo, ele, cujo
corpo imperceptível havia devorado meu reflexo (Maupassant, 1997)282.
Percebemos que a tentativa de localização do gozo real pela via da imagem, além
de relançar a agressividade imaginária, relançava M. em uma constante disputa com o
Outro. A compulsão escópica buscava estabelecer uma medida fálica que permitisse ao
sujeito se equilibrar entre os homens. Quando a questão do olhar tornou-se uma ameaça
para o laço social foi necessária uma intervenção que recolocasse, mediante um risco
calculado, o gozo perturbador no campo do Outro. A manobra foi possível na medida em
282
Maupassant, G., O Horla, p.113
235
que o Outro perseguidor não se situava mais tão próximo a ponto de ter que ser
eliminado. Ele se tornou muito distante, um vago Outro capitalista ou país imperialista,
ou seja, algo suficientemente consistente para poder apoiar a estrutura e suficientemente
distante para não suscitar a passagem ao ato.
Acreditamos que o que M. espera do analista é precisamente uma interpretação
que impeça que o imaginário parta a deriva. O enodamento dos três registros não seria
possível caso a interpretação da carteira se apoiasse no sentido. Quando M. pede ao
analista uma interpretação, ele não busca saciar o seu desejo de saber, ele busca a fixação
de um gozo pela letra. O que mantém a transferência, nesse sentido, não é uma suposição
de saber de M. sobre o analista e sim sua posição de secretário que possibilita a escritura
de um sinthoma.
Allouch parte deste mesmo raciocínio para constatar que a suposição de saber do
caso Aimée procede do próprio Lacan. Para este autor, não é por acaso que ele tenha
escolhido nomear Margueite Duflos de Aimée – amada -, e que tenha igualmente
designado a suposição de saber na transferência como amor ao saber (Allouch, 2005)283.
Com o passar dos anos, foi possível perceber que M. situa o analista na
transferência como aquele que interpreta algo de sua experiência enigmática. No caso da
paranóia torna-se problemática a interpretação já que o Outro do simbólico está sempre
sob suspeição. A interpretação, portanto, deve ser feita com cautela para não fazer com
que algum excesso de sentido se converta em delírio. Em uma das últimas vezes que
procurou o analista fez o comentário, muito pertinente, por sinal: “Seus comentários
nunca tem muito pé nem cabeça, acho que você chuta um pouco, mas sei que me
aliviam”.
283
Allouch, J., Paranóia, p.432
236
VI. 4 – Um corpo em anamorfose
Pois o limite em que o olhar se converte em beleza, eu o
descrevi, é o limiar do entre-duas-mortes, lugar que defini e
que não é simplesmente aquilo em que acreditam os que estão
longe dele – o lugar do infortúnio (Lacan, 2003d)284.
Propomos narrar o caso de Ana em quatro momentos, não cronológicos, que
obedecem a uma lógica que foi se configurando no transcurso de uma observação que se
estende por mais de vinte anos. Ana é uma mulher cultivada e de rara beleza que, nos
ambientes em que se encontra, atrai o olhar de homens e mulheres. Sua conexão com o
mundo, contudo, não se centra nas relações humanas. A presença do outro lhe é na
maioria das vezes, incômoda e persecutória. É pela cultura e pelas artes que ela
experimenta a vida e consegue se inscrever no mundo, esboçando um laço social.
Durante todos esses anos, paradoxalmente, o leitmotiv das sessões é a busca incessante de
um lugar no mundo onde possa não sentir-se excluída do campo do Outro.
Primeiro momento: o discreto gozo do Outro
Nos últimos tempos, Ana freqüenta o analista de modo esparso, porém
regulamente, em uma média de dois a três atendimentos por mês. O espaçamento entre as
sessões não deve ser visto como enfraquecimento do seu tratamento. Muito pelo
contrário, Ana encontrou na análise, segundo ela mesma, o único ponto sólido em que
pode se apoiar, o que indica que a transferência provavelmente tenderá a se prolongar até
o infinito.
284
Lacan, J., Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, p. 204.
237
É possível concluir que bons avanços foram feitos. Aos cinqüenta anos,
finalmente encontrou um parceiro fixo, um emprego na área de seu interesse, as artes, e
pôde realizar o sonho de conhecer o mundo.
O emprego e o atual companheiro (ainda que, não por acaso, morando em casas
separadas) lhe permitiram finalmente uma autonomia e uma separação da família
numerosa. Essa separação melhorou consideravelmente as relações familiares. Um
comentário feito por Ana define, não somente sua família, mas, de modo geral, o modo
como prefere estar no mundo: “família é boa para se ver nas fotos, no cotidiano é que é
horrível”. Essa frase, que ordinariamente muitas pessoas já disseram, é nesse caso uma
condição necessária. O mundo da contemplação é bem melhor que o mundo da
intersubjetividade.
Na análise, sua queixa de sempre é a dificuldade de relacionamento com os
colegas de trabalho. Nada muito explícito, nenhum delírio persecutório maior, porém não
há uma sessão sem que as “picuinhas” dos colegas contra ela sejam alvo de longa
explanação. Cada gesto ou comentário de seus colegas pode ser vivido como a prova de
que lhe perseguem e afirmam sua incompetência. Ao analista não cabe mais do que
acusar o recebimento dessa indignação e, por vezes, dissuadi-la de realizar uma ação
mais brusca como resposta.
Apesar de tudo, o que lhe sustentou por muito tempo em um emprego fixo foi a
possibilidade de transitar diretamente no mundo das artes. Em seu último emprego,
passava o dia pesquisando obras de arte, organizando exposições. É o que lhe permitia
suportar o cotidiano do trabalho sem brigar explicitamente. O olhar do outro, portanto,
estava sempre presente em seu cotidiano. Cada movimento da equipe podia ser
238
interpretado como uma segregação. Às vezes, a segregação tomava aspectos tão radicais
que pensava concluir o suicídio que tentara aos vinte anos de idade.
Lembrando-se desse passado dramático, nas raras vezes em que pede uma
consulta fora do dia marcado, é necessário atendê-la imediatamente, nem que seja por
telefone, muitas vezes apenas para lhe assegurar que ela conseguirá suportar as
dificuldades e que pode contar com o analista. Ainda assim, a morte é um tema que
sempre retorna e ocupa um lugar muito particular na organização de seu sistema
delirante.
Recentemente, uma possibilidade se descortinou para modular o interesse pela
morte. Trata-se de um longo e detalhado estudo que fez sobre uma obra de arte célebre,
cuja principal importância não residia propriamente na imagem central e sim na
exuberância da moldura. Veremos como esse deslocamento da obra de arte para seu
entorno é crucial na estabilização dessa psicose.
Segundo momento: arte e estabilização
Com efeito, o momento atual não deixa transparecer o tumulto que foi sua vida
dos dezessete aos trinta anos. Ana pouco fala desse período, mas o descreve como um
inferno de consultas e internações em hospitais psiquiátricos. Sua história começa,
aparentemente, a partir do encontro com o sexo, no final da adolescência. Aos dezessete
anos é seduzida por uma mulher mais velha, participante do universo social paterno, com
a qual se lança em uma paixão proibida. Lembra-se bem que, no dia em que o pai
surpreendeu o relacionamento, este lhe deu uma bofetada no rosto que ficou para sempre
239
marcado em sua memória. É importante relatar que, em todos esses anos, essa é a única
cena em que seu corpo é questão.
Relata que desde os dezessete anos o mundo ficou “bizarro”. Eram os anos 70 e a
jovem Ana se confundia com os hippies da época, sem que sua estranheza, cada vez
maior diante do mundo, fosse vista como algo muito diferente das viagens de seus
companheiros no mundo dos cogumelos alucinógenos.
Contudo, ela mesma se dá conta de que sua estranheza não era como a dos outros.
O mundo se tornou “psicodélico” e ela passou a vagar pela praia junto aos hippies, sem
muita noção do que fazia. Recorda-se de uma experiência “mística” que lhe marcou
particularmente. Bem na época hippie, foi convidada a assistir uma palestra de um mestre
esotérico. No momento em que ouvia a palestra, tudo se tornou silêncio e teve a
impressão de que não mais pertencia a seu corpo. Saiu da palestra vagando por dias pela
cidade como se fosse um “corpo sem alma”. Após dias andando “no total vazio” foi
encontrada pela família.
A partir desse momento encontra a psiquiatria e passa a fazer uso de
medicamentos. Esse período marca igualmente um abandono paulatino das relações
tumultuadas com parceiros de ambos os sexos para se dedicar a um amor por uma mulher
célebre. Esse amor perdura até hoje, mas é, sobretudo, um amor platônico, sem a mínima
necessidade de reciprocidade. Assim, sua vida afetiva e sexual segue o mesmo destino
que passa do campo da experiência ao campo da contemplação.
Ao retornar à casa da família, acorda um dia no meio da noite com a sensação de
que sua vida somente teria sentido se “encontrasse” a morte. Pega então um revólver da
casa, se dirige a um ponto distante e dá um tiro no peito. Relata que não se tratou de um
240
gesto desesperado, ao contrário, experimentou uma sensação mista de alívio e serenidade.
Ao perceber que, apesar do ferimento em seu peito, ainda era capaz de andar, caminha até
sua cama, se deita e se cobre. Relata ainda que as horas que passou na cama esperando a
morte foram de grande paz. Ficou deitada, rezando, aguardando morrer tranqüilamente.
Na manhã seguinte, quando é descoberta pelos familiares, é levada em estado grave para
o hospital. Seguem-se muitas cirurgias, semanas em UTI, e finalmente um longo período
em um hospital psiquiátrico.
Data desse período crítico de internações e consultas psiquiátricas, o contato com
a arte. Dedica-se ao aprendizado da técnica e ao convívio com as artes. A partir desse
momento não mais necessita de internações e aos poucos o tumulto da época das
hospitalizações fica para trás. O papel das artes é crucial na estabilização dessa psicose,
mas não deve ser entendido no sentido de um sinthoma. Ou seja, constatamos que a arte
fixa para Ana uma posição, na qual ela faz uso do olhar para reordenar os fragmentos de
sua imagem corporal. Não se trata, portanto, de um fenômeno de criação, e sim de
extração do objeto olhar.
Terceiro momento: entre duas mortes
Ana está na faixa dos quarenta anos e há muito não apresenta qualquer crise
psiquiátrica que lembre o passado. Usa regulamente um neuroléptico em dose mínima e
vem regularmente ao analista. Ocupa as sessões falando do cotidiano, das tensões
familiares e da dificuldade em se afirmar profissionalmente como artista. Um encontro
contingente dará um giro importante em sua vida. Em uma ocasião social ela é
apresentada a um homem que se tornara viúvo recentemente. Uma amizade rapidamente
241
se instala. Um aspecto fundamental da relação é relatado ao analista pouco depois do
encontro. Esse homem ficara impressionado com a semelhança física entre Ana e sua
esposa falecida. Eles iniciam um relacionamento que se fixa, de forma gradativa, e com
muita cautela. Não se trata de um relacionamento mediado pelo desejo. Viajam juntos e
por muito tempo dormem no mesmo quarto, abraçados apenas. Somente após alguns anos
de relacionamento passam a ter uma vida sexual. Mesmo assim, as questões do desejo e
do prazer jamais foram motivos de análise nas sessões. É assim que, pela primeira vez
após anos, Ana estabelece uma relação estável com alguém. Embora não morem juntos,
mantêm uma união sólida até hoje.
Quarto momento: um tiro na imagem
Foi necessário um período de mais de dez anos de tratamento para que Ana
comente um episódio ocorrido em sua primeira infância. Mesmo havendo a possibilidade
de se tratar de uma alucinação mnêmica, o relato é crucial para situar o modo como esse
sujeito organiza seu corpo e se serve de uma identificação imaginária para se defender da
intrusão do gozo do Outro. Eis o relato. Brincava no quarto dos pais onde havia um
espelho. A família se encontrava em outro aposento. Ana lembra que sabia de um
revólver guardado em um armário. Ela pega o revolver e, brincando diante do espelho, a
arma dispara provocando um forte estampido. Lembra de ver pedaços do espelho
estilhaçado. Para além do susto, o que ela afirma ter sido o mais angustiante foi ver a
imagem de uma menina “muito parecida com ela”, desfigurada no espelho. A menina lhe
fazia caretas estranhas e enigmáticas. Um desconforto se instala entre Ana e a imagem
242
que não consegue decifrar diante do espelho. Ao relatar esse episódio é possível perceber
que, mesmo atualmente, essa imagem não é associada a seu ser.
Em uma sessão posterior, ela mesma conclui que o tiro que dera em si mesma,
anos mais tarde, é a finalização de um processo iniciado com o primeiro tiro. “O espelho
agora era o meu corpo”, diz Ana.
Alguns comentários sobre o caso
Podemos abordar o caso Ana a partir das considerações que faz Miller sobre a
relação do Un-Corps e o Outro (Miller, 2007a). Essa relação se apóia na alteridade
radical entre sentido e real, estabelecida por Lacan a partir de Seminário 22, R.S.I. Miller
se refere à identificação ao S1, como sendo a primeira identificação freudiana. O conceito
de identificação é formalizado por Freud no célebre capítulo VII de seu texto sobre a
psicologia das massas (Freud, 1981). Nesse texto, a identificação primordial, também
chamada de identificação canibal, é em suma, uma incorporação, einverliebung. Ou seja,
a identificação primordial como sendo identificação ao S1 indica que a einverliebung é
um fenômeno do simbólico, e não do imaginário.
O paradoxo dessa identificação é que, contrariamente à identificação ao traço
unário, em que qualquer significante pode ser válido, contanto que seja procedente do
campo do Outro, a incorporação apaga a relação de alteridade ao produzir o corpo
próprio, substância gozante a ser modelada pelas identificações que se sucederão. Assim,
a complexa relação entre o “corpo que se tem” e o “corpo que se é” vem do fato de que o
corpo imaginário se liga é esse misto de real do gozo e significação obtida do simbólico.
Para Lacan, essa operação se produz precisamente por meio da entrada do sujeito na
243
linguagem, uma vez que a incorporação converte o real do corpo em corpo habitado pela
linguagem. Ou seja, seguindo suas palavras, a linguagem come o real (Lacan, 2006b)285.
Essa operação, contudo, deixa um resto que encontra uma consistência lógica quando o
sujeito logra fazer dele seu objeto a.
Nada garante que uma incorporação tenha dado um corpo à Ana. Aqui nos
remetemos aos comentários que faz Miller sobre Lol V. Stein, presentes nas últimas aulas
de seu curso Os usos do Lapso (Miller, 2004b). Assim como na história de Lol, o hiato
entre o primeiro e o segundo tiro produz um “instante eterno”, que não se inscreve no
tempo pela cadeia significante, Ana não subjetiva o gozo como sendo o gozo de seu
próprio corpo. Nesse sentido podemos aplicar o matema que Miller utiliza para descrever
o caso Lol.286
Onde a imagem deveria recobrir o gozo narcísico do sujeito: invólucro i(a)
(a)
a imagem se torna o próprio ser do sujeito ocultando um vazio: i(a) ≡ (a)
Vazio
Assim como no caso precedente, podemos evocar a passagem do Horla de
Maupassant, em que o personagem acorda e não identifica sua imagem no espelho. O
primeiro tiro, no espelho, obedece a uma estrutura que bem poderia ser a de um
desencadeamento. O curioso é que não é nesse momento e sim na entrada da fase adulta
que a psicose irrompe. É aos dezessete anos que, de uma forma bruta, rompe-se a
conexão entre o corpo vivo e sua imagem no espelho. A imagem especular, estilhaçada,
285
Lacan, J., O Seminário, livro 23 : O sinthoma. p. 31.
286
Miller, J.-A, Los usos del lapso, p.503.
244
torna-se incapaz de manter a localização do gozo no campo do Outro. O real surge no
espelho sem nenhuma mediação fálica. Nesse momento de angústia, o corpo perde seu
envelope, promovendo a irrupção do elemento dismorfofóbico (Besset e Veras, 2007): as
caretas. Essas, inicialmente, são percebidas como um enigma, mas em seguida se
transformam em sinal de que o outro tem alguma intenção maligna sobre ela. Esse
sentimento a acompanha por toda a vida, transformando sua relação com os pequenos
outros em algo infernal.
Contudo, não é nesse momento que Ana enlouquece. Após o primeiro tiro, é
possível guardar uma distância desse duplo que, tal como Horla, é tão íntimo e tão
estranho. Do mesmo modo, esse outro no espelho é algo que fascina e causa horror. O
interesse pelo mesmo sexo, nesse caso, não tem nada do caráter “homo” que regularia
uma relação mediada pelo desejo. O interesse de Ana pelas mulheres é orientado,
precisamente, pelo duplo que fascina e causa estranheza. O distanciamento do duplo evita
um encontro com o vazio enigmático que o espelho cessou de ocultar. Assim, é
precisamente no momento em que se depara com o sexo, sob a forma de uma relação
homossexual, figura do duplo, que se produz o atravessamento da imagem e o encontro
ameaçador. A psicose se desencadeia.
Sob transferência, a recordação do primeiro tiro traz uma significação para o
segundo tiro. Ana elabora como saber, em análise, que o segundo tiro foi um momento de
concluir. “Na verdade quis atirar no espelho quando dei o tiro em mim!”, exclama Ana
em uma sessão capital. Ou seja, no ato suicida do segundo tiro a verdadeira dimensão é
do assassinato de seu duplo. Aqui, igualmente, evocamos a semelhança com a solução
final proposta pelo personagem de Maupassant.
245
Enquanto a passagem ao ato (o segundo tiro) apenas precipitou a angústia e
aumentou o quadro alucinatório, após duas décadas, a possibilidade de inscrever sua
tentativa de suicídio como uma resposta ao enigma do primeiro tiro trouxe um
apaziguamento inédito para o sujeito. Uma formulação como essa dificilmente seria
valorizada fora de um contexto analítico.
É importante voltar ao ponto de que uma melhora significativa foi obtida bem
antes dessa fase do tratamento, quando, ainda internada, Ana descobriu a arte. Qual o
papel efetivo da arte em sua estabilização? A busca de um ofício ligado às artes pode, a
princípio, sugerir que a obra de arte surge como suplência nesse caso. A fórmula, porém,
nos parece diferente. Apesar da grande melhora do quadro clínico, após a aproximação
com as artes, o sofrimento narrado em análise ainda era muito importante.
Para além das artes, o encontro com o parceiro, que lhe assegura o lugar de morta,
reforça a posição de observadora que não precisa fazer parte do mundo. Ana passa a viver
com mais leveza e as queixas diminuem muito. Surge então outra resposta para a
pergunta sobre o papel da arte na organização, tanto de seu corpo, quanto na
sinthomatização de sua psicose delirante. Um dia Ana fala longamente de seu interesse
particular por uma obra de arte que, na verdade, é uma moldura para o portal de um
jazigo. Trata-se da Porta do inferno de Rodin. Essa obra de arte, que a fascina, remete
diretamente ao espelho estilhaçado da infância, que é cercado por uma moldura. Assim,
ao se interessar pelo belo da moldura desse portal - que circunscreve as portas da morte Ana reconstrói a moldura como enquadramento da Coisa revelada pela fragmentação do
espelho. Essa estratégia lhe permite desviar seu olhar do gozo que pode tragá-la para a
loucura.
246
Voltemos à referência do aturdito, de que o esquizofrênico não se serve de
nenhum discurso estabelecido para poder dar função de gozo a seu corpo. Na escuta de
esquizofrênicos, com freqüência, observamos a fabricação de órgãos estranhos que fixam
o gozo na ausência da extração de um objeto que promova o circuito pulsional. Em
muitos casos há a convicção de que aparelhos foram implantados no corpo, ou a adoção
de objetos externos que assumem valor de órgão para o sujeito. No caso Ana, o objeto
olhar, não extraído, retornava no real fixando-a sob o olhar do Outro perseguidor. A
estratégia, nos anos de tratamento, passou pela construção de uma moldura com a qual
pudesse se defender do real fixando o gozo neste artefato/olhar. Assim como Rodin o fez,
transferir o belo para a moldura faz desta uma obra e não um simples suporte para a
imagem. A moldura se torna uma escritura que permite organizar o gozo escópico, que
antes partia à deriva em sua proximidade com a Coisa.
Ana cria a arte para sustentar seu olhar. Olhar para o espelho, porém, remete
diretamente ao real. O estudo sobre o portal do jazigo lhe permite sinthomatizar um
envelope para sua imagem em estilhaços. Esta passa a ser contida por uma borda que
impede a queda no abismo. Para continuar viva Ana não pode se separar de seu olhar.
Recentemente uma situação pôs a prova o dispositivo criado por ela. Ao caminhar
pela rua, foi assaltada e, além de levarem seus pertences, sofreu diversas escoriações dos
ladrões. Passadas algumas semanas ela me traz uma seqüência de desenhos que narram os
momentos difíceis. Três deles particularmente chamam atenção. O primeiro, em que
retrata a cena do assalto, ela associa a figura dos agressores às agressões dos tempos de
internação psiquiátrica. Assim, ela substitui as armas por faixas de contenção e seringas
de medicamentos:
247
No segundo desenho Ana traz o que ela mesma chama de “resultado de anos de
análise”. É possível uma reconciliação com o Outro materno, expressa em um desenho
onde mãe e filha formam uma única imagem, mas ao mesmo apontam para um
movimento de separação. As duas mulheres estão vestidas da mesma forma, dando a
impressão de que de uma imagem surge o outro especular. Ao contrário de sua própria
imagem desfigurada após o tiro na infância, a imagem especular se descola do Outro
agressor e passa a ser uma imagem de consolo.
248
O momento que ela chama de “cura” permite que ela veja o outro lado da
moldura. Temos então a construção de uma seqüência:
1 – O espelho espedaçado e a ruptura da imagem;
2 – O tiro no próprio corpo como tentativa de eliminar o outro;
3 – A descoberta da arte e a invenção do olhar;
4 – A identificação à morta que lhe situa um ponto para ser olhada pelo outro;
5 – A construção da moldura, que sustenta o olhar, através do estudo da Porta do inferno.
Finalmente a cura surge para Ana como possibilidade de olhar através da
moldura. A imagem não mais é ameaçadora como na infância, nem opaca ou mortificada,
como nas soluções anteriores. Surge uma imagem que ela relata como sendo de
felicidade, o seu corpo ereto, parece querer se levantar e sair da posição de morta. Ela
finalmente pode conceber algo do outro lado da moldura sem se sentir ameaçada.
249
250
CONCLUSÃO
251
Para concluir lembramos nossa hipótese tal como a escrevemos em nossa
introdução: a psicanálise tem uma teoria sobre a loucura que lhe é própria e que se
distingue das teorias que influenciam os discursos que guiam a saúde mental no Brasil.
Trata-se de uma teoria que aponta para o sujeito, buscando resgatá-lo da condição de
objeto a, ao qual ele é freqüentemente reduzido nos dispositivos institucionais, para
interrogar seu sintoma como criação que faz suplência ao que rateia na constituição do
laço social.
Nosso trabalho buscou confirmá-la através dos três eixos de desenvolvimento de
nossa pesquisa, o campo, a teoria e a clínica. Propomos, no momento de concluir, tomálos como suscetíveis de uma amarração borromeana.
O imaginário pode definir nossa pesquisa sobre o campo da saúde mental287. Nos
capítulos I e II, abordamos os problemas do campo e sua interseção com a psicanálise.
Foi possível constatar que a pluralidade discursiva gera muitas vezes desconfianças e
equívocos. Na atualidade, os diversos fragmentos da saúde mental sofrem o risco de ser
reorganizados a partir de uma imagem unificadora cada vez mais presente, e cada vez
mais ilusória: o homem normal. O primeiro capítulo nos serviu para ver que, em suas
bases, a reforma psiquiátrica no Brasil foi um grito contra os poderes que fixavam o
modelo de atenção psiquiátrica. É preciso lembrar que, paralelamente, o Brasil
atravessava um período político em que as liberdades individuais, e não apenas dos
loucos, estavam sendo ameaçadas. Nossa pesquisa nos mostrou que a saúde mental no
Brasil foi uma conquista deve muito à militância quiçá mais do que à ciência.
287
Chamaremos doravante apenas de campo
252
Muito se avançou a partir dos textos de Foucault, Deleuze, Guattari e Basaglia,
entre outros. O descalabro das internações asilares suscitou a condenação de toda e
qualquer forma de poder sobre a liberdade da loucura. Na esfera social, constatamos que
a utopia do homem livre fez com que as questões subjetivas cedessem lugar às questões
de cidadania. Em vários pontos do mundo ocidental, a reforma encontrou seu
combustível nos movimentos de maio de 68. Seus efeitos sobre o campo foram tamanhos
que o IPUB lançou um volume inteiramente dedicado a 68 e a saúde mental no Brasil
(Filho, 2008).
Contudo, autores como Gauchet e Dufour, referindo-se ao mesmo período
apontam o fato de que, a “destruição das antigas sinalizações simbólicas (a religião, o
patriarcado, a família, a nação...)” confundiu muitas vezes autonomia com ausência de
leis e referenciais simbólicos (Dufour, 2005)288. Para o melhor e o pior, o campo nunca
mais foi unificado. Em nosso percurso, procuramos mostrar que a saúde mental passou a
viver a difícil era das conversações, apontada por Miller, em seu curso O Outro que não
existe e seus comitês de ética (Miller, 2005b), como um sintoma da queda dos grandes
significantes mestres.
Desde então, o próprio conceito de saúde mental tornou-se mais complexo ao
abranger, para além da loucura, toda a sociedade. O segundo capítulo serviu para que
atestássemos a predição lacaniana de que a queda de uma forma de poder pode ser
sucedida por outra forma ainda mais dogmática. É o que constatamos no momento em
que a ideologia da quantificação e normatização prospera no campo, ganhando espaços
cada vez maiores, inclusive na configuração do saber que instrumentaliza o homem
político em suas decisões sobre o mental. A plasticidade imaginária do campo ganha,
288
Dufour D-R, A arte de reduzir as cabeças, p. 190
253
conseqüentemente, novas formas. O espelho do homem normal passa pelas imagens de
ressonância magnética do cérebro e técnicas cada vez mais desenvolvidas para adequar o
paciente à sua imagem ideal.
Em nossa pesquisa constatamos que algumas críticas feitas à psicanálise por
autores como Foucault, Deleuze e Guattari não puderam ser confirmadas. Entre elas,
destacamos a crítica feita à manutenção do Édipo como pivô da psicanálise. Ao
analisarmos a cronologia dos fatos, supomos que muito dos equívocos do Anti-Édipo, por
exemplo podem ter se originado do fato de que os Seminários de Lacan apenas foram
publicados muito depois, e que somente os Escritos estavam disponíveis ao grande
público nos anos 70. Enquanto Foucault era pródigo em publicações e o Anti-Édipo
representava como poucos livros o esprit du temps de maio 68, Lacan, fiel à sua
transmissão oral do Seminário, resistia a publicar sua obra (Miller, 2008c)289. Boa parte
de seu último ensino conhecido apenas agora, três décadas após sua morte.
O simbólico pode ser representado pelos capítulos III e IV, onde falamos da teoria
lacaniana das psicoses. Nossa proposta foi identificar de que modo a teoria nos auxilia a
mapear um dentro e um fora do campo. Assim, foi possível identificar os significantes
mestres que permitem uma ordenação do campo da saúde mental a partir da psicanálise.
Dois pontos foram cruciais para o nosso desenvolvimento.
O primeiro foi o propósito de estudar a clínica lacaniana das psicoses em sua
continuidade, apostando que, apesar dos avanços e rupturas internas, Lacan formou um
grande e único corpo teórico para o estudo das psicoses. Procuramos recuperar, desse
modo, aspectos de seu primeiro ensino das psicoses que alguns consideravam obsoletos
após a teoria do sinthoma.
289
Miller, J-A., Conférence au Teatro Coliseu, p.105
254
O segundo ponto crucial foi a possibilidade de fazer uma leitura inédita da clínica
dos anos 50, sobretudo do esquema L de Lacan, a partir de dois livros de Miller, Silet e O
osso de uma análise. Até então, nos debruçávamos sobre esse esquema tomando a
diagonal do imaginário (eixo a – a’) como o ponto de localização do gozo no esquema. A
“conversão de perspectiva”, introduzida por Miller no final dos anos 90, nos permitiu
rever o eixo do inconsciente como local de gozo, dando assim uma função à linguagem
que excede em muito a função de comunicação.
Nossa pesquisa nos levou a constatar a importância do entendimento da trama de
alteridades em jogo na teoria lacaniana e o modo como é possível demarcar no simbólico
o que remete ao diálogo e o que remete ao monólogo na relação entre os homens. Daí a
importância da lalíngua como o “ponto de real onde se enlaçam a língua pública e a
língua privada” (Laurent, 2008c)290. A lalíngua faz com que toda comunicação tenha um
núcleo de gozo que se satisfaz sem o Outro, conseqüentemente fora do laço social.
Assim, a conversão de perspectiva nos permitiu propor uma nova leitura ao que é
do campo do Um - e prescinde do sentido - e o que é do campo do Outro. A psicanálise
se separa da saúde mental ao apontar para a existência de um fundo delirante em todo
discurso afirmando que, no fundo, o laço social nada mais é do que um delírio (Miller,
1993). O laço serve primordialmente para gozar e não para comunicar. Essa visão é
distinta dos ideais de reinserção social, tão comuns nos discursos da saúde mental.
Contudo, seria forçar demais os limites da aproximação entre saúde mental e
psicanálise se tivéssemos que prescindir do laço social. Ele representa a célula mínima
que une os dois campos. Daí a pergunta que nos ocupou durante todo o percurso, como
fazer o laço se o psicótico tem o objeto de gozo “no seu bolso” (Lacan, 1967a)? É, no
290
Laurent, E., Usages des neuro-sciences pour la psychanalyse, p.117
255
fundo, a questão que intrigava Lacan sobre Finnegans Wake, ele compreendia porque
Joyce o havia escrito, mas não porque ele havia publicado (Miller, 2008c).
Buscando responder essa indagação fomos levados à clínica da extração do objeto
a, clínica que visa separar o sujeito precisamente do gozo que é experimentado como
anomalia no corpo. Da extração e localização de gozo no objeto a (Lacan, 2004b) até a
teoria do sinthoma (Lacan, 2005b) percebemos que ganhou espaço na clínica lacaniana a
separação entre o que é útil, intercambiável, presente nas trocas relacionais, e o que tem
função de dejeto, de inútil e que não se encaixa nas identificações ideais.
Constatamos que o tratamento a ser dado ao resto marca, efetivamente, uma
diferença entre psicanálise e saúde mental. Por mais eficientes que sejam os discursos
sobre a loucura, por mais que a ciência avance nas descobertas genéticas, farmacológicas
e cognitivas, um resto real retorna, apontando a impossibilidade de um discurso se
sustentar apenas nos ideais. Buscamos demonstrar que o campo psicanalítico se separa da
saúde mental quando percebe nesses restos o índice de que a subjetividade está presente e
que é possível levar o sujeito a elaborar uma equação para o impasse de sua existência
entre o gozo do Um e o Outro.
Nosso trabalho nos fez vez que, na saúde mental, prevalece uma lógica de
reinserção da loucura pautada nos ideais, mais precisamente na cobrança de
reconhecimento do Outro. Trata-se de cobrar a cidadania, a igualdade, o tratamento digno
do Outro, etc. A psicanálise toma uma outra vertente, ela aposta na reinserção pelo fato
de que todos deliram, e não porque todos são cidadãos. Promovemos, desse modo, uma
báscula no modo como a psicanálise percebe a reinserção. Trata-se de obter o
consentimento do sujeito e não o consentimento do Outro, para que algo do gozo saia dos
256
limites da lalíngua e possa circular no campo do sentido. Na clínica dos anos 50, o
Nome-do-Pai era concebido como o pivô dessa báscula. A partir dos anos 60, o
Seminário da Angústia introduz a possibilidade do falasser equacionar sua
incomunicabilidade através da extração do objeto a. Finalmente, foi possível perceber
que a teoria do sinthoma nos permite uma reflexão sobre dois modos distintos de pensar a
questão do gozo nas psicoses, a extração e a criação sinthomática.
Nem toda extração é uma criação. A extração muitas vezes leva o psicótico à
passagem ao ato. Nós a encontramos com freqüência na clínica das emergências e
hospitais psiquiátricos. A criação sinthomática é, por excelência, a clínica que permite ao
sujeito uma estabilização suficientemente sólida para que a intervenção da clínica - se e
quando ela é necessária – tenha um papel muito menor. Passamos da posição de
secretários do alienado a leitores de sua escrita sinthomática.
Após termos apresentado o modo como a teoria lacaniana das psicoses promove
um novo recorte sobre o campo da saúde mental, nos foi possível escrever avançar sobre
o terceiro eixo de nosso trabalho, o real da clínica. Chegamos à conclusão que somente é
possível confirmar nossa hipótese inicial, de que a psicanálise tem uma teoria para a
saúde mental, distinta das demais teorias que habitam o campo, se preservarmos o real na
condição de impossível que escapa a todos os saberes. Nosso ponto de referência foi a
separação entre o sentido e o real que opera Lacan a partir do seminário XXII, situando o
sintoma do lado do real, ou seja, fora do campo do sentido (Lacan, 1974c).
Inicialmente, no capítulo V, nossa pesquisa nos levou a analisar a instituição
psiquiátrica intramuros. Fazemos coro aos que denunciam a degradação a que podem
chegar os hospitais psiquiátricos públicos e demandam investimentos dos governantes na
257
consolidação dos princípios da reforma psiquiátrica. Com isso, afirmamos que nossa
pesquisa não nos levou a constatar uma antítese entre os princípios da cidadania e os
princípios da psicanálise. Tampouco constatamos, porém, que a psicanálise teria vocação
para ser “O” discurso que daria a bússola ao campo político na saúde mental. Seu
discurso não opera através do ideal, ao contrário, ele aponta para o real que faz todos os
ideais fracassarem.
Apontar o real não é um gesto sem conseqüências. No hospital Juliano Moreira,
esse gesto motivou um novo olhar para a instituição. O hospital encontrado não era uma
instituição de doentes, era a instituição do objeto a. Aqui nossa pesquisa encontrou uma
visão original da instituição a partir da expressão objetalidade, proposta por Lacan no
Seminário da angústia (Lacan, 2004b)291. Foi possível pensar in loco a distinção entre
objetalidade e objetividade. Enquanto as denúncias à instituição psiquiátrica passavam
tradicionalmente pela crítica ao poder, que reduz o paciente a ser objeto de algum
discurso, a psicanálise nos ajudou a perceber que o paciente do Juliano Moreira havia se
tornado o resto real que escapava a todos os discursos que recortavam a instituição. Em
nossa pesquisa, foi revelador perceber a diferença entre considerar que a instituição
transforma o paciente em objeto e considerar que a instituição faz dele seu objeto a.
Encontramos aqui um ponto que nos pareceu inédito para apoiar o distanciamento
entre Foucault e Lacan. Na fábula do Rei Jorge III, percebemos que o poder passa do rei
ao médico, do médico aos servos e desses ao discurso que impõe a ordem e a disciplina.
A fábula, contudo, não deixa de mencionar o momento em que é dado ao Rei Jorge a
possibilidade de sua redenção. No momento em que ele joga os excrementos sobre seu
médico ele pode negar seu poder. Nesse momento ele se faz sujeito. Encontramos a
291
Lacan, J., Le Séminaire X, l’ angoisse, p.248
258
mesma recusa em ser objeto no riso de Artaud em sua Carta aos médicos-chefes dos
manicômios: “As leis e os costumes vos concedem o direito de medir o espírito. Essa
jurisdição soberana e temível é exercida com vossa razão. Deixai-nos rir” (Artaud, 1986).
A objetalidade é de outra ordem. Procuramos, com o apoio do estudo fotográfico
de Malysse (Malysse, 2001), mostrar que os pacientes haviam sido reduzidos a objetos a:
vozes, olhares, partes do corpo, excrementos, sem que nenhum discurso fosse alvo de
endereçamento de suas mensagens. Alguns pacientes se serviam da câmera para mandar
mensagens a um vago Outro por trás das lentes, outros pacientes passavam indiferentes,
muitos expondo, em sua nudez, o gozo limitado ao objeto que eles mesmos se tornaram.
A descrição das estratégias para o resgate da subjetividade nos fez ver que a
aposta na psicanálise gerou resultados. A apresentação de pacientes, o grupo de urgência
subjetiva, as supervisões e estudos de caso feitos por psicanalistas a partir da criação da
residência de psicologia, confirmaram que é possível passar da objetalidade à
sinthomatização do real em jogo.
Assim, no transcurso de nossa pesquisa, procuramos responder a hipótese inicial a
partir do campo de experiência, em seguida da teoria e, por último, apontando os desafios
da clínica. Restava-nos, conseqüentemente, a confirmação pela prática. Nos três casos
apresentados no capítulo VI, procuramos pensar a clínica lacaniana das psicoses como o
nó que mantém unidos os aspectos imaginários, simbólicos e reais de nossa tarefa. Nos
três casos nos deparamos com situações que são relativamente comuns no campo da
saúde mental. O modo como pudemos nos servir do legado de Lacan na condução do
tratamento fez, contudo um diferencial. Nos três casos, a clínica permitiu o surgimento de
invenções que os mantiveram entre nós.
259
Nosso percurso, ao mesmo tempo em que nos esclareceu, abriu as portas para
novas indagações. Ao menos uma das interrogações nos deixou o caminho que poderia
render uma nova tese. Procuramos estabelecer três pousos para a teoria das psicoses em
Lacan. Os Seminários das psicoses, da angústia e do sinthoma. Ao findar, percebemos
que poderíamos acrescentar à série o seminário XX, Encore. Não exploramos como
gostaríamos as fórmulas da sexuação e, sobretudo, uma passagem particularmente
instigante. Lacan interroga se não poderíamos interpretar uma das faces do Outro, a face
Deus, como sendo sustentada pelo gozo feminino (Lacan, 1975b)292. Sabemos que Lacan
avança a questão da feminilidade a partir da afirmação de que as mulheres não são folles
du tout. Seria esse um modo de se pensar o empuxo à mulher? O que Schreber pode ter
ensinado a Lacan sobre as mulheres?
Concluímos nossa tarefa com uma recordação do momento em que se executavam
as obras de recuperação do parque de lazer do hospital Juliano Moreira. Após a
contratação de uma paisagista e da recuperação dos espaços verdes, uma velha máquina
enferrujada, de quase uma tonelada, jazia no meio do jardim projetado. Inicialmente
causou frustração à equipe ver o novo jardim interrompido por um trambolho. As
inúmeras tentativas de remoção foram inúteis, já que as invasões da favela tornaram
inexeqüível a utilização de um guindaste.
Veio de uma conversa, com um antigo paciente morador, uma solução
perfeitamente afinada com a teoria lacaniana. A coisa foi pintada em cores vivas, elevada
à dignidade de uma peça de arte e, em seguida, colocou-se diante dela uma pequena placa
onde estava escrito: “Impossível de retirar”. Familiarmente, para a instituição, ela passou
a ser chamada de “impossível”.
292
Lacan, J., Le Séminaire XX, Encore, p.71
260
A coisa, convertida em obra de arte, acompanhou a equipe por toda a gestão. As
chuvas e o mau tempo degradaram e enferrujaram o “impossível”, mas ainda
recentemente, ao visitarmos o hospital, constatamos que ele continuava no mesmo local.
Nesse momento uma idéia atravessou nosso pensamento, as gestões passam, o impossível
permanece.
261
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