Universidade Federal do Paraná – UFPR Setor de Ciências Sociais Aplicadas Departamento de Economia Texto de Opinião Grandes Crises, Grandes Mudanças por João Basilio Pereima Neto Professor e Vice-Chefe do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná [email protected] A Universidade Federal do Paraná não se responsabiliza, nem de forma individual, nem de forma solidária, pelas opiniões, idéias e conceitos emitidos no texto, por serem de inteira responsabilidade de seu(s) autor(es). Curitiba, setembro de 2009 Grandes Crises, Grandes Mudanças Não podemos ser ingênuos quanto ao desenrolar da crise. Quando se olha para a história encontramos momentos determinantes que marcam as décadas que lhe seguem. O de agora parece ser um deles. Fazendo-se um retrospecto histórico, houve um período semelhante no fim do século 19, o qual pode nos fazer pensar para além dos planos macroeconômicos e esquemas de resgate em curso, em função da intensa mudança estrutural que se sucedeu, seja para o bem ou para mal. Das mudanças estruturais necessárias, mais do que uma solução para o capital, o mundo atual precisa de uma solução para o homem. Entre 1896 e 1914 o mundo ocidental viveu uma era de globalização maior do que a atual, proporcionalmente ao tamanho da economia internacional da época. Além da abertura comercial, do padrão ouro, da mobilidade de capital físico através do surgimento de grandes oligopólios e mobilidade do capital financeiro (veja-se a história de Nathan Mayer Rothschild na Inglaterra e J.P. Morgan nos EUA, entre outras), ocorreu também a mobilidade de mão-de-obra. A Europa aliviou a pressão social interna exportando mão-de-obra para Canadá, Austrália, Brasil, Argentina, Chile, Nova Zelândia e outros, evitando assim um derretimento dos salários no velho continente. Neste sentido a globalização sob o "Consenso" dos anos 1980-2007 é relativamente menor que a globalização de 1896-1914, pois hoje os indivíduos estão presos dentro (ou fora, como queira) dos muros das nações. Além disto, na época o Estado não representava mais 8% do produto das economias então desenvolvidas. Hoje representa em média 40%, mesmo nos países ditos liberais. Após esta idade de ouro do capitalismo, o sistema econômico mundial entrou em colapso abrupto. Entre outros motivos pela grande assimetria de riqueza criada internamente e entre as principais as economias da época, a partir da exploração de suas respectivas colônias e economias periféricas. O mundo livre de então ruiu por não ter universalizado a riqueza. No desespero e vertigens da queda os países entrincheiram-se em batalhas comerciais, monetárias e financeiras, sucedendo uma era de liberalismo econômico com uma era de mercantilismo e nacionalismo agressivo. Um ano depois, em 1915, entrincheirava-se nas lamacentas valas que recortavam toda a Europa. Incapaz de reorganizar-se interna e externamente, os velhos e os nascentes Estados-Nação foram às vias de fato e apelaram para as baionetas duas vezes, banhando de sangue boa parte do chão europeu. A grande assimetria na distribuição de riqueza exacerba os efeitos colaterais de uma crise e remete-a para além das consequências econômicas. Enquanto as populações inquietam-se, os oportunistas messiânicos alvoroçam-se e os governos modificamse. A paz social e econômica entre as nações foi restabelecida em Bretton Woods em 1948 e repactuada na Europa em Maastricht em 1993. Bretton Woods foi um grande acordo apoiado num regime mundial de cambio fixo com conversibilidade do dólar em ouro e no desenvolvimento do Estado do Bem-Estar e de modo mais amplo no Estado-desenvolvimentista. Este ciclo durou até 1971, quando a era Bretton Woods entrou em colapso pela incapacidade dos EUA manter a conversibilidade do dólar em ouro, dando-se início a um novo ciclo liberal, o qual terminou em 2008 do mesmo modo que havia terminado e agonizado ao longo de 1915, 1929 e 1946, numa grande crise do sistema capitalista. Note-se que agora o mundo entra na 2 mesma fase pós 1914, intensificando o mercantilismo e acirrando a disputa econômica entre as nações. A história não é linear e as consequencias não serão as mesmas. No passado o mercantilismo pós 1914 culminou em duas guerras mundiais. Argumentamos mais abaixo que duas grandes soluções pragmáticas, mais que ideológicas, poderão marcar o século XXI. Se estas duas alternativas de fato se verificarem, a história terá encontrado para uma mesma crise, a crise do capitalismo, um caminho diferente. As duas grandes soluções são um novo sistema monetário internacional supra-nacional e o avanço do Estado de Direito. Como ocorreu durante a era liberal de 1896-1914, agora no último ciclo liberal de 1970-2008, lentamente a economia política do capital foi convencendo os homens, nações afora, a entregar a gestão da riqueza mundial predominantemente ao mercado. Um mercado disputado por conluio estratégico de empresas e nações com o objetivo único e sincronizado de assumir literalmente o controle da geração e distribuição da riqueza. A entrega não foi feita à um mercado democrático e simétrico, mas a um mercado controlado por poucas grandes corporações e instituições financeiras, com matrizes concentradas em pouquíssimos países. Um mercado basicamente controlado por Wall-Street e London que determinava num pregão de futuro, o preço que Severino iria receber pelo algodão plantado em Santana do Ipanema, Alagoas, atualmente uma grande região produtora de algodão no Brasil. Como antes, novamente o mundo viveu uma "virtuosa" era de globalização seguida de uma nova grande crise do capital. Como Marx já notou, se a história se repete, o faz "a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa". A crise atual, além de seus impactos macroeconômicos, está pondo em movimento forças de transformações estruturantes, ainda pouco percebidas. Sistema Monetário Internacional A primeira destas forças diz respeito às hegemonias monetárias. Até agora o capitalismo sempre operou lastreado num único país. Primeiro na Inglaterra até 1914, com o sistema libra-ouro e depois na economia americana durante sistema dolar-ouro entre 1948-1971, o qual foi seguido do sistema dólar-ogiva até 2008. Uma nova ordem monetária mundial poderá e deverá emergir. Uma alternativa é a criação de uma moeda semelhante ao Bancor de Keynes, com a diferença de que ela poderia ser lastreada pelo PNB mundial e gerenciada pelo BIS. A ancoragem na economia real mundial e não na economia de um único país poderia ser um dos pilares de uma ordem monetária mundial estável. É uma mudança radical no sistema de governança monetária internacional a qual requer consensos políticos, soluções técnicas e reformas institucionais complexas. Uma das vantagens de um sistema monetário lastreado no PNB mundial é que ele evitaria o conhecido “dilema de Triffin” e a incerteza e desconfiança que naturalmente surge em um sistema nacional, quando a economia internacional depende de acontecimentos de uma única nação. A incerteza quanto à capacidade de uma única nação garantir a moeda de troca e a reserva de valor internacional é hoje maior do que nunca. A crise de 1914 destruiu o sistema financeiro londrino, num momento em que a Inglaterra garantia conversibilidade da libra em ouro assegurando o poder da moeda que todos pudessem negociar no mercado internacional em libras. A economia internacional encontrou um substituto da Inglaterra nos EUA e migrou da libra para o dólar. O regime monetário internacional baseado em dolar entrou em colapso em 1971, sendo salvo por uma acordo mundial e pelos próprios EUA que passaram grande devedor mundial. Este arrememo do sistema mundial do dólar 3 chegou ao fim em 2009. A crise de 2008/09 destruiu o sistema financeiro americano e mundial pelos excessos unilateriais de um único país. Estas três lições, libra-ouro, dólar-ouro e dólar-déficits ensinaram as nações que não se pode depender dos humores de uma única sociedade. É inevitável o fim da era dólar como é inevitável a busca de uma solução supra-nacional. A forma desta mudança ocorrer poderá seguir três etapas: flutuações do dólar no mercado mundial tendência de desvalorização, surgimento de uma nova moeda com capacidade de exercer a função de reserva de valor (moeda estável) e por fim o uso desta moeda como meio de troca. A candidata mais forte talvez seja uma moeda a ser inventada mais que uma solução binária, na forma de dolar-euro, ou ternária, na forma de dolar-euroyuan. Se este for de fato o caminho, então é inevitável uma moeda supra-nacional, gerenciada pelo BIS e lastreada no PNB mundial, de forma que se tenha uma proporção estável na relação moeda/produto como garantia da estabilidade mundial. No longo prazo o novo sistema supra-nacional será incompatível com grandes assimetrias do tipo sino-americana, de modo que os países deverão adotar políticas comerciais justas num ambiente de volatilidade cambial restrita, mantendo seus balanços de pagamentos em equilíbrio. Além disto, em termos pragmáticos, dado o tamanho gigantesco da economia mundial torna simplesmente impossível que uma ou duas nações forneçam a liquidez e a confiança numa moeda nacional ou bi-nacional. Inevitavelmente o sistema migrará para uma solução supra-nacional, mesmo que demore ainda um lustro ou uma década até que o nó sino-americano seja desfeito. A evolução do sistema monetário internacional deveria levar à uma busca por uma fórmula “automática” de reequilibração dos balanços de pagamentos, tanto pelo lado dos superavitários, como pelo lados dos deficitários. Na ordem de Bretton Woods e pelas regras do FMI até o momento, a fórmula usada prevê ajustes recessivos nos países deficitários, advindo daí toda a impopularidade desta instituição. Eles devem arcar sozinhos com o custo do ajustamento dos seus balanços de pagamentos. A recessão se impõe como fórmula macroeconômica por três canais: pela desvalorização cambial, pelo aumento das taxas de juros como forma de combater a inflação cambial e diminuir a demanda, e pela retração adicional da demanda interna via ajuste fiscal, a qual ao mesmo tempo gera superávits para pagamento de juros sobre dívida externa e reduz ainda mais a demanda e com isso as importações. Pela fórmula atual do FMI países deficitários ajustam o balanço de pagamentos via queda das importações obtida por meio de recessão. Se o sistema monetário evoluir para um modelo lastreado no PNB mundial os desequilíbrios esta fórmula de ajuste unilateral deve mudar. A mudança consiste em fazer com que os países superavitários e deficitários simultaneamente envolvam-se na solução dos desequilíbrios, como era a proposta do Bancor de Keynes, na qual os países superavitários financiam os ajustes nos deficitários em condições sustentadas. O esquema inibe ao mesmo tempo grandes superávits por uns e grandes déficits por outros, impondo um custo à ambos os extremos. Não há como não culpar a China a Alemanha e o Japão pelos desequilíbrios mundiais, pois eles são os financiadores de parte da pirâmide financeira americana. Afinal de contas eles são “o outro lado da moeda”. Uma ordem monetária estável, num sistema financeiro globalizado, requer que todos estejam em equilíbrio. 4 Estado de Direito e Economia Política do Homem A segunda força estruturante, ainda não posta em movimento, mas despertada, é o renascimento da economia política e, um pouco mais além, o renascimento da economia moral. Enquanto a economia política trata das escolhas a economia moral trata das razões e aspirações que orientam as escolhas atribuindo valor aos fatos e decisões e impondo classificações e distinções entre o que é certo e errado. Da mesma forma que um homem, ao cometer um erro, olha para seu passado e revisa suas escolhas, na tentativa de aprender e reorientar-se no futuro, os povos e governos deverão aprender alguma coisa com a crise. Por mais tênue e circunscrito que seja, por enquanto, a retomada dos problemas dos povos em termos de economia política e moral, ele é um tema inadiável, que poderá ser reavivado pelo sopro da crise à medida que se constatar que ela será mais duradoura do que se imagina, como conseqüência dos trilhões de dólares emitidos e pelas imensas dívidas adicionais que governos já endividados contraíram. Mas não basta o renascimento da economia política e moral. É necessária uma segunda qualificação e distinção sobre qual tipo de economia política estará ressurgindo. A história do pensamento econômico dos últimos dois séculos circunscreveu a economia política ao problema do capital e da teoria do valor. É possível que se avance para além do capital em direção ao que poderíamos de chamar de o nascimento da economia política do homem em contraposição à economia política do capital, na direção apontada para o que Michel Foucault chamou de o “nascimento da biopolítica” em suas aulas anuais no College de France durante os meses de janeiro a abril de 1979. Mas tudo o que tem sido visto até meados de 2009, em termos de intervenção à crise e discussões no âmbito do G20, é uma discussão sobre a salvação do capital, não do homem, como se a recuperação do capital em si, fosse condição suficiente para resolver a dimensão material da vida humana. Tome-se o mercado financeiro. Ele, em teoria, deveria desempenhar quatro funções básicas complementar e subordinada ao capital produtivo: a.) a intermediação financeira; b.) provimento de liquidez nos mercados secundários e c.) diluição de riscos, nos segmentos de seguro e previdência; d.) dissolução de incerteza fraca, através de operações de hedge. Quando o mundo financeiro vai além de suas funções básicas e resolve criar riqueza via inflação de preços de ativos e inventando veículos de valorização financeira sem base real, produz enriquecimento falso (a farsa de Marx). Um primeiro passo na direção de uma economia política do homem é restringir o raio de ação do mercado financeiro, subordinando a lógica financeira à lógica do capital produtivo, a única que cria valor de fato. Um segundo passo é condicionar a lógica do capital à lógica das necessidades humanas através de uma reengenharia jurídica e econômica que começa a tomar corpo no moderno Estado-de-Direito, mas cujos avanços estagnou e até retrocedeu nos últimos 38 anos liberais. A constituição brasileira, num arroubo de modernismo e vanguarda, no capítulo dos direitos e deveres fundamentais, dá o sentido que deve ser perseguido, ao garantir a propriedade privada e ao mesmo tempo determinar que ela deve “atender a sua função social” (Art 5º). No contexto atual, isto significa definir os limites do mercado e das liberdades individuais equilibrando-os com os interesses e direitos “naturais” e universais do homem. O Brasil, no entanto, parou por ai. Não foi além porque a interpretação sobre como 5 implementar de fato uma sociedade baseada no Estado-de-Direito está contaminada pelo pensamento binário de capitalismo versus comunismo e liberalismo versus estatismo, não sendo possível avançar para além da dicotomia. No caso do G-20, por excesso de pragmatismo e urgência está se discutindo as razões do capital, somente! A noção de Estado de Direito, apareceu pela primeira vez em Die deutsche Polizeiwissenschaft nach den Grundsätzen des Rechtsstaates (A Ciência Politica de acordo com os princípios do Estado de Direito), obra do jurista alemão Robert von Mohl publicada em 1835. A questão da economia política do homem, portanto, não é nenhuma novidade. Mas como ocorre com frequência na história econômica, política, científica e artística, certas idéias demoraram em ser compreendidas e demoraram para frutificar. O avanço do Estado-de-Direito é uma delas e ficou estagnado nos últimos 40 anos em todo o mundo, de modo que a noção de Estado e Economia que temos está congelada na discussão superficial sobre o tamanho do Estado na economia e a combinação ótima entre Estado e mercado. Ela não avançou para uma reformulação simultânea dos objetivos da política e da economia em direção à uma solução mais humanista. Quando se moveu, esta noção caminhou em direção ao capital e não ao homem. Grandes crises, grandes mudanças. Não podemos pensar o século XXI, apenas com as mentes financistas e capitalistas do século XX. Estariam os atuais lideres políticos à altura do desafio? Quem sabe valha a pena relembrar o espanto de Keynes diante de um diretor do Banco da Inglaterra que teimava em plena crise de 1929 usar a política econômica clássica do pré-guerra, quando afirmou ao banqueiro propondo uma nova interpretação dos fatos e solução para o problema monetário: “Não seja o Luis XVI da revolução monetária” (Skidelski, 1992, p 194). *** 6