patologia Patologia cirúrgica: a tentativa de se aproximar da perfeição Q UANDO UM PACIENTE SE DEPARA COM UM LAUDO Divulgação ANATOMOPATOLÓGICO DE ALGUMA BIÓPSIA EFE- Fernando Soares * Médico patologista; diretor do Departamento de Anatomia Patológica e presidente da pós-graduação do Hospital A.C.Camargo Contato: [email protected] 20 maio/junho 2012 Onco& TUADA POR UM CLÍNICO/CIRURGIÃO, A TENDÊNcia natural é encarar aquele resultado como um dado objetivo, infalível, aritmético. Mas bem poucos pacientes têm ideia de como o processo de diagnóstico morfológico é executado. Muitos profissionais de saúde também desconhecem essa dimensão e os fatores que podem levar ao diagnóstico equivocado. Na área da oncopatologia esse aspecto é ainda mais crucial e crítico. Diante da possibilidade diagnóstica de uma neoplasia maligna, espera-se do patologista cirúrgico não apenas o diagnóstico preciso, mas a inclusão de diversos fatores que possam nortear o tratamento a ser estabelecido, o prognóstico da doença e, mais recentemente, a predição da resposta terapêutica. Em muitas instituições de ensino a patologia é ainda apresentada como uma especialidade não clínica, e falta ao aluno de graduação a dimensão da formação do raciocínio anatomopatológico. Isso só acontece com a inclusão no Departamento de Anatomia Patoló gica dentro dos serviços auxiliares de diagnóstico, mas ainda assim existe pouco ou nenhum contato dos alunos durante os anos de internato. A confusão com a medicina laboratorial está sempre presente e torna-se difícil entender a subjetividade interpretativa inerente ao processo diagnóstico da anatomia patológica. Se o anatomopatologista é um desconhecido do médico atendente, imagine do paciente. Poucas vezes em minha carreira vi um paciente escolher o patologista que irá examinar sua biópsia. Parece ser bastante intuitivo o paciente escolher o clínico geral, o cardiologista, o ginecologista ou o cirurgião. Mas escolher um patologista? Dizem os críticos desse pensamento que o paciente não teria conhecimento da especialidade para essa seleção. A título de exemplo, vale questionar se o paciente conhece os meandros da cardiologia para escolher o cardiologista. Usualmente, o médico atendente escolhe para qual laboratório mandar o exame, uma vez que a relação médico atendente/patologista é estabelecida por uma questão de confiança. Mas, mesmo nessa situa ção, essa escolha é pouco embasada. Algumas são inerentes à instituição de trabalho e outras pelo bom nome do laboratório, embora o médico atendente nem conheça qual patologista nesse laboratório irá analisar seu material. Na maioria dos casos, outras razões menos claras estão envolvidas na escolha. Realmente, muito dessa situação poderia ser revertida se o patologista participasse mais ativamente da decisão diagnóstica e não se comunicasse tão somente por um laudo. Conhecer o profissional que está analisando a biópsia é fundamental. Saber da experiência daquele patologista em uma dada especialidade clínica é muito importante. Um excelente patologista em uma determinada área pode não ser exatamente o melhor profissional para analisar outro determinado tecido de outro sítio primário. Quando um erro vem à tona, a primeira hipótese que ocorre é de negligência ou ignorância do profissional envolvido. Não acredito que os profissionais da área médica não convivam com o medo de prejudicar um paciente por um engano de interpretação. Entretanto, os erros por desconhecimento do assunto ou por negligência são pouco frequentes e os erros que predominam são aqueles que podem ser evitados por técnicas já conhecidas de checagem e processos bem estabelecidos. É importante que os patologistas implementem essas técnicas em seus laboratórios, mas que também os médicos atendentes conheçam onde estão as maiores fontes de erros e colaborem para evitar que ocorram, assim como é essencial que possam identificar alguma discrepância antes que qualquer mal ocorra ao paciente. Não há sistema perfeito, mas podemos, sim, minimizar esses problemas com prevenção e detecção precoce. Em outras palavras, em vez de entender que todo erro é devido à incompetência individual, deve-se perceber que muitos deles são gerados por causas evitáveis e que uma sistematização adequada pode evitar maiores danos. E ao patologista cabe entender que cada erro é uma oportunidade para melhorar o sistema, os processos e a sua educação. Podemos dividir os erros em anatomia patológica em três fases distintas: pré-analíticos, analíticos e pós-analíticos. Erros pré-analíticos: São aqueles erros que decorrem da submissão do material para o laboratório. É sobre esse tipo de erro que muitos pacientes se perguntam quando recebem um resultado. A maioria dos pacientes pensa na possibilidade de troca de identificação do material quando desconfia do resultado obtido. Na realidade, esses erros hoje são muito pouco comuns. Os sistemas informatizados têm mecanismos de checagem eficientes e identificadores únicos que não permitem o erro de identidade. Infelizmente, nem todos os laboratórios no país usam esses sistemas em seus blocos de parafina, mas a sua implementação é fundamental na segurança do laboratório. Lógico que a fase de identificação do material que ocorre previamente à chegada ao laboratório é de responsabilidade do médico assistente, e ainda vemos situações em que essa identificação é relegada a outros profissionais sem o mesmo treino. São famosos os erros de identificação do material e que viram verdadeiros elementos jocosos entre os patologistas. Entretanto, o maior indutor de um erro de interpretação é a carência de informação clínica. Infelizmente, a maioria do material enviado para um laboratório de anatomia patológica chega sem informações clínicas e/ou de imagem, que são fundamentais na interpretação do exame. De nada adianta enviar biópsias sem informar os dados clínicos, laboratoriais e de imagem que levaram à suspeição de uma neoplasia. Como interpretar uma biópsia de medula óssea sem o hemograma correspondente? Quando o patologista está baseado em um hospital, pode-se recorrer ao prontuário médico, mas quando se trata de um laboratório privado isso se torna muito mais trabalhoso. O exame anatomopatológico é interpretativo e depende da situação clínica. Há uma lenda, especialmente disseminada entre os pacientes, de que a informação detalhada pode “induzir” o patologista ao diag- nóstico, quando é justamente o contrário que pode ocorrer, pois a falta de um dado clínico não permite o diagnóstico mais preciso. Em nosso serviço de segunda opinião, não é raro que o paciente se recuse a entregar o laudo do primeiro patologista com medo de que haja uma repetição do diagnóstico previamente proposto. Os demais erros pré-analíticos decorrem do processo de acondicionamento e transporte da biópsia. Ainda hoje, em muitos centros, não se tem o hábito de usar o fixador adequado, em volumes corretos e com transporte imediato. Os acondicionamentos em frascos inadequados podem não permitir a fixação correta, pois a formalina é um líquido de baixo poder de penetração. Especialmente em oncologia, em que muitas vezes as peças cirúrgicas são volumosas, o maior objeto de estudo não fica exposto ao fixador. Essa fixação pobre pode impedir a análise adequada. O estudo de alguns biomarcadores, especialmente de patologia molecular, pode ser afetado pelo uso de formalina ácida (não tamponada). Tempos de fixação inadequados podem comprometer a qualidade do material para a análise ou mascarar a expressão de certos marcadores. Em resumo, os erros pré-analíticos podem ser facilmente evitáveis com medidas extremamente simples, treinamento adequado e procedimentos operacionais padrão bem estabelecidos. Os materiais bem identificados, com dados clínicos relevantes discriminados e acondicionados adequadamente, têm muito menos possibilidades de erros de interpretação. Erros analíticos Esses erros são inerentes à prática da patologia cirúrgica dentro do processamento e análise do material. O mais primário deles e completamente evitável é a checagem errada da correspondência entre o material examinado e aquele identificado pelo médico assistente. Hoje, os sistemas de informática checam, geralmente através de códigos de barras, a correspondência do material na lâmina e do que deu entrada no laboratório. Nessa fase, podem ser apontados problemas de identificação de sítio biopsiado e de incongruências com os dados clínicos. Todo laboratório tem de ter a capacidade de rastreabilidade do material para evitar surpresas desagradáveis. Outro erro analítico está no processamento do material na sala de macroscopia. As biópsias pequenas são geralmente incluídas em sua totalidade e muito raramente podem ser problemáticas. Entretanto, os espécimes decorrentes de ressecções cirúrgicas podem estar sujeitos a erros de amostragem. Em oncologia, esse é um problema frequente em duas áreas. Uma é a dissecção de linfonodos, que pode ser inadequada e pouco representativa. O processamento desse material é trabalhoso, demorado, entediante e requer atenção especial do macroscopista. O uso de substâncias clareadoras da gordura pode Onco& maio/junho 2012 21 “As informações do patologista definem o diagnóstico preciso e também fatores capazes de nortear o tratamento, o prognóstico da doença e até a predição da resposta terapêutica” 22 maio/junho 2012 Onco& ajudar nos casos em que o número de linfonodos está abaixo do recomendado. A segunda situação de amostragem pouco representativa em oncopatologia está naqueles espécimes em que o paciente foi submetido a tratamentos neoadjuvantes. A mensuração da resposta ao tratamento é dado fundamental e deve ser extremamente cuidadosa. Vários artigos na literatura estimam erros da ordem de 5% dos casos de tratamento neoadjuvante. Os protocolos de análise desse material devem ser particularmente bem detalhados e repetidos à exaustão para se evitar esse tipo de erro. Uma atenção especial deve ser dada às discrepâncias entre o diagnóstico pré-operatório e o exame macroscópico. É fundamental que o patologista conheça qual diagnóstico foi realizado na biópsia anterior e em que condições ela foi conduzida, para que toda a atenção seja dada na busca da lesão, que muitas vezes pode ser despercebida ao exame inicial. A confirmação ou negação do diagnóstico prévio é um dos aspectos mais fundamentais em oncopatologia. Com a melhoria da acuidade diagnóstica e o achado de lesões cada vez mais precoces, o exame macroscópico deve ser minucioso e integral. Não é infrequente hoje termos de procurar tumores microscópicos e pouco visíveis ao olho desarmado, diferentemente do que ocorria em passado recente. Hoje, com frequência vemos próstatas com tumores correspondentes a menos de 2% do volume do órgão ou mamas com lesões impalpáveis. O erro na análise do corte histológico é talvez o que mais incomode o patologista e é sempre a primeira suspeição do paciente e do médico atendente. Esse erro pode ocorrer por diversos motivos, mas todos eles dependem muito mais do ser humano do que de processos inerentes à prática laboratorial. Em outras palavras, quase todos os erros podem ser minimizados por processos adequados e padronizados, mas o erro de interpretação é o que nunca pode ser menosprezado e não é evitado por práticas de gerenciamento. Novamente, são erros que devem ser minimizados com atenção, cuidado, treinamento e redundância da observação. Feliz o patologista que ainda não se defrontou com uma interpretação diversa na revisão do material. Nesse sentido, a interação médico atendente/patologista é a arma mais eficaz para identificar discrepâncias entre a interpretação clínica e anatomopatológica, em tempo de evitar problemas para o paciente. Esse tipo de erro segue alguns padrões de ocorrência. O primeiro deles é que lesões mínimas podem passar despercebidas, especialmente quando há múltiplos fragmentos de tecidos na lâmina. Por vezes, um diagnóstico primário é realizado no primeiro fragmento e perde-se algum detalhe importante nos fragmentos vizinhos ou nas secções mais profundas. Geralmente esses erros são causados por sobrecarga de trabalho. Em algumas ocasiões, felizmente raras, o patologista pode falhar no reconhecimento de determinada entidade clinicopatológica. Isso pode ocorrer por falta de experiência em determinados campos do conhecimento, por falta de atualização de como interpretar determinado achado ou mesmo por completo desconhecimento. Nesse sentido, é fundamental que o patologista conheça suas limitações, que geralmente não decorrem de ignorância, mas sim de pouca oportunidade de se defrontar com aquela condição em particular. O melhor jeito de evitar esse erro é a educação continuada, a consulta a colegas mais habituados àquele tipo de lesão e a exposição com maior frequência a esse tipo de material. Certas neoplasias são pouco comuns e o diagnóstico restrito a centros terciários. Os patologistas que atendem comunidades menores, e que têm um número de casos pequenos, não podem ser especialistas em determinadas áreas. Eu, como oncopatologista, não me arrisco a diagnosticar material com o qual tenho pouca afinidade, como biópsias musculares ou de suspeitas de glomerulopatias. Nessas situações o melhor é recorrer a colegas especialistas, que podem contribuir com o diagnóstico preciso. Em biópsias de mama, por exemplo, algumas associações de especialistas recomendam que o patologista veja pelo menos 250 espécimes/ano para que tenha seu expertise reconhecido. Essa situação, embora ocorra com pouca frequência, ganha geralmente grande repercussão. Outra situação que requer atenção é aquela cujo diagnóstico morfológico é sabidamente muito difícil. Nesse caso, a interpretação entre dois patologistas pode ser discordante, ainda que sejam ambas viáveis e plausíveis. São frequentes os trabalhos científicos que mostram altos níveis de discrepância entre diagnósticos interobservadores e mesmo intraobservador. Esses geralmente usam o diagnóstico estabelecido no primeiro momento, um período para “esquecimento” (washout) e reapresentação da mesma lâmina para o mesmo observador. Em alguns tópicos específicos da patologia cirúrgica, esses resultados chegam a ter 50% de concordância. Felizmente, essas discrepâncias são menores e geralmente localizadas em subclassificações que não alteram condutas clínicas, nem são de maior importância na evolução da doença. É fundamental que o médico atendente conheça algumas dessas situações para tirar conclusões acerca da melhor conduta para o paciente. Em que áreas ocorrem esses erros? É possível dizer que em praticamente todos os campos de conhecimento, sítios primários de neoplasias e tipos histológicos temos alguma situação de particular atenção. Poderíamos fazer uma lista interminável apontando onde essas discrepâncias diagnósticas são mais frequentes. Algumas ganham a mídia como diagnósticos de carcinoma in situ baixo grau versus hiperplasia epitelial da mama; adenose esclerosante versus carcinoma ductal invasivo da mama; mesotelioma versus hiperplasia mesotelial da pleura; melanomas malignos versus lesões melanocíticas atípicas da pele; não identificação de células isoladas de carcinomas; classificação dos linfomas e seu diferencial com lesões reacionais etc. As situações são tantas que diversos livros as tratam com muito cuidado, e especial atenção é dada a elas em todos os encontros de patologia. Cada especialista deve conhecer esses limites da fronteira da interpretação e ter relacionamento estreito com o patologista para que erros sejam minimizados. Finalmente, entre os erros analíticos estão aqueles decorrentes da confecção do laudo. É preciso estar atento para evitar falhas de digitação que impeçam o entendimento correto. No entanto, os mais frequentes são os erros de omissão, em que informações fundamentais são deixadas de lado por esquecimento ou mesmo por desconhecimento da importância da informação. Hoje, os principais colégios de patologistas do mundo têm laudos padronizados para as doenças mais comuns, que devem ser de conhecimento de todo laboratório. Mas é frequente também que alguns médicos atendentes desejem alguns dados ainda não padronizados e que os solicitem para o patologista. Nesse sentido, a relação médico atendente/patologista deve prevalecer e a discussão do laudo pode ser feita em bases científicas para que o melhor atendimento ao paciente seja realizado. Erros pós-analíticos São erros caracterizados pela falha de comunicação entre o patologista e o médico atendente. O melhor exemplo deles é o diagnóstico inesperado ou o que foge das hipóteses diagnósticas. Esse tipo de erro, no entanto, é facilmente resolvido pela discussão anatomoclínica, pela revisão cuidadosa do caso e pelo entendimento pelos profissionais. Entretanto, o erro pós-analítico que mais preocupa ocorre quando a comunicação falha e há um precipício entre a informação do patologista e o entendimento do médico atendente. Em alguns sistemas, o clínico pode não tomar conhecimento de um laudo por período relativamente longo e deixar de adotar as condutas adequadas. Vemos isso em ambulatórios onde a rotatividade dos médicos é alta, tal como nos hospitais com rodízio de médicos residentes. Por vezes, um laudo pode “se perder” no sistema e causar grandes prejuízos para o paciente. Outra situação muito desagradável é quando um laudo suplementar passa despercebido. Hoje, com a premência do diagnóstico, algumas vezes há a emissão de um laudo provisório, com a observação de que mais algum procedimento está sendo realizado e terá seu resultado liberado posteriormente, em laudo suplementar ou adendo. É cada vez mais frequente a utilização de técnicas moleculares para identificar entidades específicas ou mesmo fatores preditivos/prognósticos. São técnicas que podem mudar completamente o direcionamento do caso, identificar uma doença anteriormente não suspeitada ou, principalmente, mudar o tipo histológico. A não observação de um laudo suplementar pode levar a erros extremamente danosos aos pacientes. Algumas vezes, o patologista favorece um diagnóstico e diz que um teste de imuno-histoquímica será necessário para excluir uma segunda possibilidade. São situações em que tanto o patologista quanto o médico atendente devem estar atentos, pois podem mudar o diagnóstico em direção diametralmente oposta. São mudanças de carcinoma para linfoma, de sarcoma para melanoma ou de entidade maligna para tumor benigno (ou vice-versa), somente para citar alguns exemplos. Considerações finais O diagnóstico morfológico é um exemplo de teste interpretativo, no qual a experiência e o conhecimento do patologista, bem como as técnicas laboratoriais disponíveis, podem ser fundamentais no diagnóstico definitivo. Alguns mecanismos de minimização e identificação do erro são de uso obrigatório nos bons laboratórios. A atualização e o perfeito treinamento do patologista são também fundamentais, tal como em qualquer área da medicina. O conhecimento do profissional envolvido em todo o processo diagnóstico é imprescindível não apenas para o diagnóstico correto, mas também para toda a sequência de ações definida a partir dele. Mas a arma mais importante de todas para evitar situações danosas ao paciente é a relação entre o médico atendente e o patologista. Essa interação poderá solucionar a maioria das situações e beneficiar enormemente nossos pacientes. Conhecer as principais situações de dificuldade na interpretação morfológica, saber as limitações do método e do laboratório e buscar o profissional mais treinado podem trazer benefício incalculável para o paciente. Onco& maio/junho 2012 23