PROCEDIMENTALISMO E POSITIVISMO: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA* PROCEDURALISM AND POSITIVISM: A NEEDED REFLECTION Santiago Artur Berger Sito Carolina Salbego Lisowski RESUMO O presente trabalho pretende investigar as nuances da corrente procedimental da teoria do direito, principalmente em seu desdobramento processualístico, em relação à corrente positivista do direito, de cariz kelseniano, compreendida como alvo das críticas da corrente pós-positivista da segunda metade do Século XX. Buscou-se, a partir do procedimentalismo habermasiano, de caráter comunicativo, compreender as linhas gerais de uma teoria sociológico-jurídica rica, capaz de pensar o processo legislativo muito além de seu caráter meramente positivo, de participação democrática. Identificouse, conclusivamente, que a figura central deste processo que a razão move contra si mesma, é o cidadão. O positivismo, filho dos paradigmas estatais liberalistas, e filosóficos iluministas, efetuou um recorte axiológico na sociedade, pondo direito de um lado e sociedade de outro. O procedimentalismo habermasiano se insurge contra esse momento, e pugna por um agir democrático-comunicativo. PALAVRAS-CHAVES: PROCEDIMENTALISMO, POSITIVISMO, CIDADANIA, DEMOCRACIA ABSTRACT This paper aims to investigate the features of the current theory of procedural law, especially in it’s processualistic relationships, with the current Positive Law Theory, drafted by Kelsen, understood as a target of criticism from the current post-positivism of the second half of the twentieth century. Was sought, from the Habermas’s proceduralism, communicative character, to understand the outlines of a rich sociological-legal theory, able to think the legislative process beyond its purely positive character of democratic participation. It was found conclusively that the central figure in this process that the reason moves against itself, is the citizen. Positivism, son of liberalist state paradigms, and philosophical Enlightenment, made a cut set of values in society, putting the Law side and Society aparted from each other. The Habermas’s proceduralism protested this moment, and strives for a democratic and communicative act. KEYWORDS: PROCEDURALISM, POSITIVISM, CITIZENSHIP, DEMOCRACY INTRODUÇÃO * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009. 313 A problemática que se utiliza como pano de fundo adota proporções que por si só seriam suficientes para a realização de uma nova abordagem acadêmico-científica. Mas pela amplitude das objeções levantadas, impossível condensar, em um só paper, toda a riqueza argumentativo-filosófica daquilo que é proposto, tanto por procedimentalistas, como por substancialistas. Porém, parte-se da conjuntura jurídica brasileira, que atravessa um período de requestionamento e reflexão extremamente oportuno e profundo. As exigências de políticas públicas prometidas (dirigismo constitucional) e não implementadas (insuficiência estatal) apenas acirram o debate acerca de que mudança precisa (ou não) o sistema jurídico sofrer. A ordem social exige (em especial as classes menos favorecidas), do sistema jurídico, maior proteção/efetivação/aplicação de direitos, cujo Estado Democrático de Direito, ainda não incorporado, jura garantir. Aliás, a primeira divergência se dá na própria compreensão do que é e como deve se operar, interna e externamente, o Estado Democrático de Direito. Contudo, a tradição positivista no Direito se mantém condicionando o fazer jurídico a uma série de paradigmas e dogmas, ainda resquícios de outras interferências que afetaram o direito de forma decisiva. Assim, os pensadores do direito, reduzidos pelo positivismo a meros “aplicadores” ou “operadores”, restam na condição de reféns desse paradigma que desconsidera qualquer condição ideológica, idiossincrasia, própria dos sujeitos e, por conseqüência, do Direito feito por eles. Crê-se em uma suposta eficiência do sistema advinda da supremacia das regras, por elas mesmas, em detrimento, por exemplo, do reconhecimento das interfaces entre o fazer jurídico e outros campos do conhecimento. É a autoreferência que da Luhmann fala. Acontece que, em face à condição de Estado Democrático de Direito em que se vive, as referidas concepções dogmáticas restam insuficientes à demanda da sociedade. Cada vez envolta em relações - e por conseqüência, conflitos – mais e mais complexas, o corpo social clama pelo judiciário na resolução dessas questões. Assim, o Estado Democrático de Direito enfrenta essa questão e, dentro dele, o Direito permanece apartado, pelo abismo existente entre previsão e aplicação, da sociedade. A referida concepção, se adequada ou não, não exclui o fato de que o processo, enquanto instrumento/meio de satisfação do direito material, também é afetado por tais fatores. Assim, a compreensão que se tem sobre esse instrumento, nessas condições, é imprescindível para que seja revelada qual a própria concepção de Direito dos sujeitos. Inerente a todos esses questionamentos, situa-se o embate entre a tese procedimentalista e a substancialista tomando a perspectiva processual. Partindo do escopo da questão constitucional, tem-se que sua força normativa não mais pode/deve ser subsumida à “ordem” que direciona a ação dos indivíduos e faz o intermédio entre cidadão e Estado. Pelo contrário, conforme as palavras de Hommerding (2007), “a Constituição determina procedimentos políticos, segundo os quais os cidadãos, assumindo seu direito de autodeterminação, podem perseguir cooperativamente o projeto de produzir condições justas de vida”. 314 Disso, tem-se que força normativa, o grau de dirigismo, enfim, o entendimento sobre o papel constitucional dentro do conjunto de leis vai estar relacionado à concepção que se tem acerca das teses procedimentalista e substancialista. Nesse mesmo sentido, também relacionado à substância e procedimento – e por esse viés que se encaminha o presente texto – configura-se o processo civil. Em linhas bastante gerais, poder-se-ia dissociar duas concepções, quais sejam: que o processo é compreendido, reduzidamente e de maneira encerrada, como um instrumento, sendo que a Democracia aconteceria por ele ou, de outra banda, como um meio apto a implementar os valores constitucionais substantivos (claro, sem desconstituir o procedimento), questionando o princípio da maioria a partir de uma intervenção efetiva da jurisdição constitucional (entenda-se de todas as instâncias do Poder Judiciário). A opção por um dos dois caminhos ocasiona a (des)identificação do sujeito – e aqui, em especial, daqueles estudiosos do Direito – com uma concepção do que seja o próprio fazer jurídico. Essa determinação leva a soluções completamente diferentes, o que instiga, por assim, dizer, a abordagem desta temática. Como foi referido, o papel do processo civil perante o Estado Democrático de Direito vai manter relação direta com o entendimento que se estabelece acerca da noção de procedimento e substância e, assim, o que está instaurado é a supervalorização do procedimento, mas enquanto fazer esvaziado, e não em sua relação, inevitável, com a substância. Talvez seja possível identificar uma grande questão, em se tratando do procedimentalismo, que são as noções mobilizadas para se tratar de tal tema, e aqui se toma essa tese para desenvolvimento do presente estudo. Há um espaço muito tênue que afasta, porém, em alguns momentos, parece aliar procedimento e dogmática positivista e é desse espaço sinuoso que se pretende tratar, apontando convergências e afastamentos nessas noções, tão relevantes à reflexão do Direito. O positivismo, do procedimantalismo, aciona um entendimento no qual o procedimento é um simples instrumento pragmático, através do qual o direito deve ser aplicado, descomplexificando o entendimento. Trata-se de um movimento necessário ao se reconhecer a insuficiência do sistema direito. Leonel Severo Rocha, calcado em Luhmann, aponta que devido às intermináveis possibilidades do mundo da vida, resta ao sistema direito filtrar as questões que entender relevantes. Ao fazê-lo, juridiciza, seletivamente, aquilo que “acha” que pode resolver. O termo entre aspas revela que a incapacidade do sistema direito (enquanto positivista em sentido estrito) deriva de sua pretensão completude e certeza. Contudo, ao se tomar algumas noções procedimentais que se sustentam a partir da participação cidadã, têm-se os diálogos enquanto entes fundantes da formação e justificação do Direito. Aqui a certeza é uma construção. Nessa concepção, não se pode pensar em um Direito que se encerra em seu próprio fazer, o qual, muitas vezes, sendo intolerável a interferência de outros sujeitos, afora aqueles autorizados pelo sistema, na construção de uma discursividade, ou evocando para si a tarefa de legislador político. O que resta disso é a mais antidemocrática limitação das potencialidades da sociedade civil, no exercício de sua cidadania. Aqui há um uso autoritário do poder jurídico. 315 Não se quer desautorizar ou deixar de reconhecer a função do sistema Judiciário, mas sim, conforme Hommerding (2007), “reconhecer que os discursos de justificação do Direito não se confundem e não podem ser usurpados pelos discursos de aplicação”. Contudo, algumas características do procedimentalismo já indicam que, conforme tomase de entendimento neste texto, suas percepções confundem-se, e muitas vezes podem ser tomadas não da maneira teórica que se quer. Aponta-se, desde já, por exemplo, que uma das preocupações da teoria procedimental é justamente convidar todos (amplitude do agir comunicativo) sujeitos a contribuírem na formação do consenso, eis que este fomentará a formulação do discurso de fundamentação (lei). E a lei somente será legítima no momento que possuir a contribuição ampla e democrática dos seus destinatários. Habermas, postulando acerca da concepção procedimental, é incisivo na defesa da tripartição dos poderes, como condição procedimental de um direito legítimo e público. Um dos princípios do substancialismo (corrente adversária da compreensão procedimentalista do direito), como mencionado, é a exigência de um Judiciário forte e intervencionista. Assim, entende-se papel do Estado Democrático de Direito implementar uma jurisdição constitucional capaz de garantir, efetivamente, o amplo catálogo de direitos fundamentais e sociais, à uma população carente de efetividade jurídica. PROCEDIMENTALISMO OU POSITIVISMO: relações entre os institutos Há uma corrente procedimental do direito que regula a faticidade da segurança jurídica e a validade da correção jurisdicional através de um sistema normativo compreendido sistematicamente, seguro em si e que seria suficiente para a satisfação da demanda social-jurídica. Esse fator aproxima-o da corrente positivista. Isso se deve a observância prioritária da ordem legal, eis que essa representa o ideal democrático, comunicativamente construído, em ampla construção produzida por sujeitos de direito emissores de atos de fala em condições de simetria argumentativa. Daí a confusão erigida por aqueles que consideram o procedimentalismo com longa manus do positivismo. Assim, a dúvida trazida pelo título, de fato, se justifica. Tanto que Luiz Moreira afirma: No entanto, estes processos políticos de formação e institucionalização da vontade democrática dos cidadãos, livres e iguais, são necessários, mas não suficientes para a efetivação da liberdade. A sua circunscrição nos limites da faticidade procedimental instituída pelo ordenamento jurídico pouco ou nada difere das formulações do positivismo ou do normativismo jurídico – dado que resultaria no abandono de uma instância crítica ou regulativa –, uma vez que assumiríamos, agora sim, uma posição dogmática em sentido estrito. Se Habermas pretendesse alongar a percepção exegético-normativista, não teria reconstruído o direito, como sistemática interpretativa. Nem pretenderia uma via capaz de solidificar correção jurisdicional com segurança jurídica. Simplesmente optaria pela 316 via kelseniana de direito conforme a lei. O recorte axiológico produz uma certeza (dogmática) que mascara um resultado correto, mas que ao menos produz “certa” segurança jurídica. Atualmente o modelo encontra seu declínio, principalmente pelo fato de ser incapaz de produzir, efetivamente, seu desiderato justificador. Mas a idéia habermasiana não pretendeu esses trilhos. A terceira via sempre foi seu objetivo, e tal pensamento fica claro no seguinte trecho: O direito formal burguês e o direito materializado do Estado social constituem os dois paradigmas jurídicos mais bem-sucedidos na moderna história do direito, continuando a ser fortes concorrentes. Interpretando a política e o direito à luz da teoria do discurso, eu pretendo reforçar os contornos de um terceiro paradigma do direito, capaz de absorver os outros dois. Eu parto da idéia de que os sistemas jurídicos surgidos no final do século XX, nas democracias de massas dos Estados sociais, denotam uma compreensão procedimentalista do direito. Ou seja, Habermas reconhece e parte destas duas paradoxais compreensões da ciência jurídica para reconstruir o direito, a partir dele mesmo. Utilizando esses pressupostos, Habermas oferta a terceira via, para regular a tensão entre a facticidade e a validade, interna e externamente ao direito. E se pode considerar o positivismo como um derradeiro fim do procedimentalismo, então é preciso compreender as limitações do próprio positivismo em si. Desse ponto em diante, aplicável a doutrina de Lenio Luiz Streck, cujo maior mérito é, sem dúvida, perceber e enumerar as razões da inaplicabilidade da teoria discursiva habermasiana (e de forma mais ampla, a insuficiência do positivismo jurídico) no Brasil. A incapacidade brasileira de absorver a contingência teórica de Habermas se revela de muitas formas, e destas tratar-se-á a partir de então. Que o procedimentalismo alimenta-se do dogmatismo, Habermas deixa claro, quando afirma que esta idéia [procedimentalismo] é ‘dogmática’ num sentido sui generis. Pois nela se expressa uma tensão entre facticidade e validade, a qual é ‘dada’ através da estrutura lingüística das formas da vida sócio-culturais, as quais nós, que formamos nossa identidade em seu seio, não podemos eludir. O que não resta claro é esse sentido sui generis que Habermas menciona. Até onde se pode perceber, o dogmatismo referido tem as mesmas características de qualquer outro dogmatismo, ou seja, pré-determinando comportamentos e interpretações, esquivandose da realidade delineadora de casos concretos, eis que pretensiosa ao ponto de préjulgar os fatos, antes de compreendê-los. Para o filósofo alemão, o grande mérito de sua 317 teoria está no fato de superar a necessidade de pré-determinação daquilo que é bom, ou ideal, para a sociedade, como faziam os paradigmas liberais e sociais. A única formalidade está na observância do procedimento para a construção de uma materialidade comprometida com a coletividade. Seu conteúdo não é o mais importante. Aliás, nem importante é. O importante é que a tensão entre facticidade e validade resta apaziguada por um contexto estrutural lingüístico, das formas de vida sócio-culturais, que permitem aos sujeitos identificar-se com aquilo que são e com aquilo que defendem. Porém, Streck é perspicaz quando ataca o dogmatismo, pois engendra contra tal compreensão a culpa pela indeterminabilidade do direito. Os contextos normativos que pretendem a completude do ordenamento não o fazem sem recorrer às conjunturas principiológicas. Recorda-se que completude é “a propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para cada caso. Tendo em vista que a ausência de uma norma costuma ser chamada de ‘lacuna’, ‘completude’ significa a ‘ausência de lacunas’”. Mas a suprema dificuldade de previsão de todas ocasiões é ressaltada por Perelman: Para construir um instrumento perfeito, o sistema de direito deveria ter todas as propriedades exigidas de um sistema formal, a um só tempo completo e coerente: seria necessário que para cada situação dependente da competência do juiz houvesse uma regra de direito aplicável, que não houvesse mais que uma, e que esta regra fosse isenta de toda ambigüidade. Neste trecho Perelman salienta todas características pretensamente abarcadas pelo positivismo jurídico, quais sejam: a completude, a unidade e a coerência. E Habermas, mesmo intencionado a quebrar tal barreira, nela apenas se soma. Pois não há como pretender construir uma nova ordem (legal!) para um modelo (brasileiro) de tamanhas desigualdades sociais. Talvez o maior obstáculo a proliferação conceitual da teoria discursiva habermasiana no Brasil resida justamente nesse ponto, qual seja: sendo a democracia representativa alvo de tantas críticas, é natural que o simples observar do procedimento legislativo não represente suficiente garantia acerca da materialidade do ordenamento, principalmente por que o contexto positivista (e seus defeitos) não seria(m) sequer abalado(s) por tal teoria. Assim, a grande crítica ataca a frase habermasiana de que “somente as condições processuais da gênese das leis asseguram a legitimidade do direito”. E nesse ponto merece razão Streck, pois a condição (imposta por Habermas) nada diz com a observância, mínima, ao dirigismo pretendido pela norma superior. A substância legislada, mesmo respeitando procedimento legislativo prescrito constitucionalmente, pode ter caráter inconstitucional. Basta que contradiga, reduza ou negue imediata aplicabilidade a qualquer direito fundamental e está feito o exemplo. Como se a participação dos sujeitos na produção legislativa fosse garantia suficiente para elidir qualquer problema de cunho jurídico-social! Mas e a substância do direito? Como o direito material será determinado/constituído? A sistemática habermasiana não se 318 preocupa com o a posteriori do direito “legitimamente” construído. Esse fator fica claro quando Habermas afirma que a teoria do direito, fundada no discurso, entende o Estado Democrático de direito como a institucionalização de processos e pressupostos comunicacionais necessários para a formação discursiva da opinião e da vontade, a qual possibilita, por seu turno, o exercício da autonomia política e a criação legítima do direito. A preocupação com a indeterminabilidade do produto legislativo não resta trabalhada. Isso reflete, possivelmente, num distorcido conteúdo. O texto positivado ainda será composto de frases, sujeitas à composições semânticas, à imprecisões terminológicas, incompletudes (pois como supra ressaltado, é impossível prever todos comportamentos jurídicos do ser humano em sociedade), etc. Tudo isso aliado ao descaso (aceito) acerca do dirigismo constitucional, tem-se uma manifesta inaplicabilidade. Os objetivos fundamentais elencados pela Constituição Federal, em seu art. 3º, restam abandonados, democraticamente isolados do território jurídico, deixados à implementação do executivo, cujas políticas públicas também desenham amplo panorama de críticas e admoestações. É dessa forma que se visualiza, em Habermas, um movimento contra o natural desdobramento da doutrina brasileira: enquanto o fluxo das obras se têm posicionado amplamente em “ampliar as leituras constitucionais” ou “interpretar à luz da constituição”, Habermas deixa tal aspecto à deriva. Isso decorre, naturalmente, da diferença gritante entre as realidades do autor e do contexto brasileiro (texto-contexto), como mencionado no início do capítulo. Tal (pretensa) regularidade emprestada à tensão proeminente entre facticidade e validade não teria o condão de produzir uma resposta correta. Isso por que a barreira legalista impede um conhecimento aprofundado das questões judiciais, aliás, sequer tem esse intuito. Se há processo legislativo, há lei. Se há lei, há problemas interpretativos de ordem contextual. Assim que a contingência liberal-individualista-patrimonialistanormativista se perpetua, fincando mais profundas as raízes e impedindo uma efetivação complexa da Carta Magna (e sua principiologia). Lenio também aponta (outra) importante deficiência do positivismo neste trecho: A toda evidência, tais questões devem ser refletidas a partir da questão que está umbilicalmente ligada ao Estado Democrático de Direito, isto é, a concretização de direitos, o que implica superar a ficcionalização provocada pelo positivismo jurídico no decorrer da história, que afastou da discussão jurídica as questões concretas da sociedade. Desta forma, o que se toma aqui como procedimentalismo possui sim suas críticas ao sistema (pós) positivista. As regras, tais como postas na conjuntura jurídica brasileira, 319 possuem perceptíveis lacunas. Habermas deixa clara a preocupação com a indeterminabilidade do direito causada pelo positivismo ao afirmar que: O leque das formas do direito foi ampliado através de lei relativas a medidas, leis experimentais de caráter temporário e leis de regulação, de prognóstico inseguro; e a inserção de cláusulas gerais, referências em branco e, principalmente, de conceitos jurídicos indeterminados na linguagem do legislador, desencadeou a discussão sobre a “indeterminação do direito”, a qual é motivo de inquietação para a jurisprudência americana e alemã. A própria tese procedimentalista reconhece problemas com o positivismo e é nesse momento que há oscilações, em pontos que convergem e outros que afastam-se. Não se desvencilha, não sugere intervencionismos, mas reconhece uma profunda dúvida acerca da indeterminabilidade dos termos jurídicos. Justamente este aspecto é criticado por Lenio, já que Habermas reconhece os problemas do positivismo, mas calca a tese procedimentalista sob premissas positivistas, apenas remodelando-as. Tem-se em Habermas o principal defensor da idéia do procedimento como medium entre sociedade e sistema jurídico. Logo nas primeiras linhas procura evidenciar a importância da razão procedimental, aduzindo que: Após um século que, como nenhum outro, nos ensinou os horrores da não-razão existente, os últimos resquícios da confiança numa razão essencialista evaporaram-se. E a modernidade, uma vez consciente de suas contingências, cada vez mais fica dependente de uma razão procedimental, isto é, de uma razão que conduz um processo contra si mesma. Mas a configuração habermasiana não encerra a totalidade do pensamento acerca do procedimentalismo. Remete-se o leitor ao autor estadunidense John Hart Ely, outro expoente do pensamento procedimentalista do direito. Por fim, revisita-se as questões abordadas acerca do procedimento. LIÇÕES CONSIDERADAS PELA DISCUSSÃO Interessante é verificar como Habermas conduz parte da sistemática do direito para fora do Judiciário. Ou melhor, como o direito acontece, em razoável parte, fora dos tribunais. 320 A começar pela reafirmação da tripartição dos poderes estatais, reforçando o checks and balances, de alma democrática. A estrutura semântica dos discursos intersubjetivos é que seria a responsável por impulsionar os poderes a trabalhar, seja implementando políticas públicas num sentido de atender a vontade emitida via poder comunicativo transformado em poder administrativo (Poder Executivo), seja construindo comunicativamente os contornos de diplomas legais mais comprometidos com o ideal social solidário (Poder Legislativo), ou ainda, seja protegendo a simples possibilidade de tudo isso acontecer (Poder Judiciário). É como se o direito estivesse para o Judiciário assim como está para o Legislativo e para o Executivo. Não deslocamento de tensão e sim partilhamento (harmônico) de pressão e administração jurídica. Especial comentário precisa ser tecido acerca da construção legítima do direito. A lei, expressão natural da ordem normativa, é e precisa ser uma identidade, um reconhecimento mimético daquilo que o social desenha como importante. E isso só se constrói com um povo autonomamente considerado. Só pode respeitar o princípio da autolegislação o cidadão que for ciente do quanto ele representa para a sociedade e o quanto ele representa pra si mesmo. Nesse ponto, ressalta-se a importância que Habermas deu ao conceito de cidadão. Este é muito mais que um portador de título eleitoral, que é convidado a depositar papel em uma urna periodicamente. O verdadeiro cidadão é o agente social integrador, autônomo o suficiente para liberar-se do discurso dominante, para averiguar o que é melhor para si, e principalmente, é aquele que, independentemente da idade, sexo, cor, religião, pensa e reflete, atendendo o pedido de Baruch de Espinosa. É aquele que compreende que o seu sucesso está intrinsicamente ligado ao sucesso coletivo que lhe circunda, que considera o alter, e além disso, nunca finaliza a dialogicidade natural da democracia. Aqui estaria o embrião da justiça que Kelsen, na sua contrução lógico-matemática do direito, não permitiu encaixe, ou para usar um termo luhmaniano, acoplamento. Por isso Habermas evidencia, e assim se procurou demonstrar, que a tese procedimentalista tem, em seu núcleo duro, a preocupação em aproximar o direito e a sociedade. Isso se daria pelos contextos comunicativos e pela atuante expressão do cidadão. Preocupação que naturalmente o afasta da abstração produzida pelo positivismo frio, cujo núcleo de autonomização não permitia esse enlace. O questionamento que se apresenta, por fim, é: o descompasso do direito e da sociedade se dá no nível da substancialização do direito ou na sua aplicabilidade procedimental? Quem arrasta e quem é arrastado? Algumas modificações legais comprovam que a substância do direito tem encontrado problemas de atualização. Os conceitos erigidos nos diplomas legais, incomodativamente, insistem em se manter alheios às exigências sócio-culturais. O procedimento democrático de concepção legal não tem sido o real óbice. Recorda-se que direito material e formal não equivalem à substância e procedimento, respectivamente. Até por que a alteração processual penal é prova cabal desse detalhe. A alteração é processual (formal), mas o cerne modificado é substância jurídica (modelo acusatório, ajustamento constitucional, etc.). Mas, por outro lado, não há garantias de que o problema legislativo não represente um câncer procedimental ainda maior e mais abrangente. 321 Por todas essas considerações, inclusive as últimas, pode se considerar, reafirmando a introdução deste trabalho, que a tese procedimentalista não coincide com a proposta kelseniana de direito positivo. As diferenças, mesmo que sutis, precisam ser exploradas. Tal trabalho demandaria nova abordagem. Mas que os equívocos de generalização não se perpetuem. Não resta dúvidas acerda da complexidade e da riqueza do edifício teórico procedimental, ainda mais de cariz habermasiano. O presente trabalho apenas procurou, nessa imbricação, resgatar os principais conceitos capazes de delinear a amplitude jurídico-reflexiva do Procedimentalismo e sua relação com o positivismo. E o principal ator, nesse jogo aqui investigado é sem dúvida, o cidadão. O direito, revisitado e recompreedido, tranforma-se em importante instância de integração social. Este provoca a presença de um Estado Democrático de Direito que abandone a compreensão liberal de separação entre Estado e sociedade, carro-chefe de grande parte dos males sócio-jurídicos do Brasil. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Ed. Malheiros, 2000. BOBBIO, Noberto. O positivismo Jurídico – Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: ed. Ícone, 1995. ______. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste C. J. Santos. Brasília: ed. Universidade de Brasília, 9ªed, 1997. ______. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. Tradução de Alfredo Fait. 3ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 6ª edição. São Paulo: Malheiros, 1998. DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Traducción de Marta Guastavino. 4ª ed. Barcelona: ed. Ariel, 1999. FURASTÉ, Pedro Augusto. Normas Técnicas para o Trabalho Científico. Explicitação das Normas da ABNT. 13ª. ed. Porto Alegre: s.n., 2004. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 6ª edição. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade, Volumes I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 322 MACRIDIS, Roy. Ideologias políticas comtemporâneas. Tradução de Luis Tupy Caldas de Moura e Maria Inês Caldas de Moura. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia. Rio de Janeiro: Forense, 2004. ______. Jurisdição e Execução na tradição romano-canônica. São Paulo: RT, 1997. ______. Verdade e Significado. In: Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de pós-graduação em Direito da UNISINOS: mestrado e doutorado / orgs. Leonel Severo Rocha, Lenio Luiz Streck; José Luis Bolzan de Morais [et al.]. Porto Alegre: Livraria do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2005. HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. _______. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. _______. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. HOMMERDING, Adalberto Narciso. Constituição, Poder Judiciário e Estado Democrático de Direito: a necessidade do debate "procedimentalismo versus substancialismo, 2007. Disponível em http://www.lex.com.br/noticias/artigos/default.asp?artigo_id=1137025&dou=, acessado em 14/09/2009 MOREIRA, Luiz. (org.) Com Habermas, Contra Habermas: Direito, Discurso e Democracia. São Paulo: Landy Editora, 2004. PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. ______. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: ed. Livraria do Advogado, 2005. ______. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. ______. Verdade e Consenso – Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumem Iuris, 2006. STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. (orgs.) Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Anuário 2008. N.º 5. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; São Leopoldo: UNISINOS, 2009. 323 WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995. ______. Introdução geral do Direito I. Porto Alegre: ed. Fabris, 1994. LUHMANN, Niklas apud ROCHA, Leonel Severo. Uma nova forma para a observação do direito globalizado: policontexturalidade jurídica e estado ambiental. In: STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. (orgs.) Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Anuário 2008. N.º 5. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; São Leopoldo: UNISINOS, 2009. p. 143. ROCHA, Leonel Severo. Uma nova forma para a observação do direito globalizado: policontexturalidade jurídica e estado ambiental. In: STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. (orgs.) Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Anuário 2008. N.º 5. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; São Leopoldo: UNISINOS, 2009. p. 154. MOREIRA, Luiz. Direito, Procedimento e Racionalidade. In: MOREIRA, Luiz. (org.) Com Habermas, Contra Habermas: Direito, Discurso e Democracia. São Paulo: Landy Editora, 2004. p. 196. Denomina-se terceira via a opção de Habermas por afastar-se, primordialmente, do paradigma liberal-burguês, por entendê-lo insuficiente para os padrões complexos e principiológicos da pós-modernidade, e também do paradigma social (comunitarista), de funções distributivas e protetivas. O Estado Liberal e o Estado Social são nítidas opções abandonadas. A terceira via (Estado democrático de Direito) é o objetivo final. Sua implementação seria o berço perfeito para a construção e administração de todos seus conceitos e hipóteses, até aqui expostas. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 242. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 190. Tanto é verdade que Habermas cita: “One of the distinctive features of this approach is that the outcome of the legislative process becomes secondary. What is important is whether it is deliberation – undistorted by private power – that gave rise to that outcome.” In: SUNSTEIN, Cass R. apud HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 342. Tradução livre: (Uma das características marcantes desta abordagem é que o resultado do processo legislativo torna-se secundária. O importante é saber acerca da deliberação - não falseada pelo poder privado - que deu origem àquele desfecho.) BOBBIO, Noberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 259. PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.33-4. 324 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 181. Sobre distorções de conteúdo, há que se fazer menção à Lei dos Crimes Hediondos. É fascinante como no Brasil a mídia tem a capacidade de hipervalorizar o conteúdo fático do mundo, para dele extrair, provocar e induzir um legislar, muitas vezes, absurdo. A primeira lei dos crimes hediondos surgiu, como notoriamente se sabe, pela pressão midiática produzida por um assassinato de uma atriz de uma rede televisiva. A mãe da vítima, (naturalmente) inconformada, fazendo uso de suas influências políticas, fez repercutir o tema no parlamento. Pouco tempo após o acontecido a lei foi aprovada e sancionada. Em seu conteúdo (alvo de posterior Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI) havia dispositivos flagrantemente inconstitucionais, como a impossibilidade de progressão de regime e da concessão de liberdade condicional aos condenados por crime hediondo. Após a discussão da ADI, o texto foi reformado pelo congresso, que permitiu a progressão e a liberdade, apenas com proporções majoradas. Mas a lei ficou em vigor e produziu efeitos manifestamente inconstitucionais. Frise-se um aspecto: essa lei respeitou o procedimento legislativo. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária. A garantia do desenvolvimento nacional. A erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais. A promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação. Resposta correta é um termo cunhado por Ronald Dworkin. Guarda relação direta com aquilo que o positivismo jurídico chamou de hard cases (casos difíceis). Os “casos difíceis” são aqueles onde o ordenamento jurídico (nos sistemas civil law) ou as regras costumeiras e precedentes (nos sistemas common law) não conseguem fornecer ao juízo, as diretrizes e rumos a seguir em determinada questão litigiosa. O juiz, (pretensamente) amarrado ao código dogmático atenderia, no caso do Brasil, à utilização da LICC (Lei de Introdução do Código Civil), que prevê o uso da analogia e dos princípios gerais do direito, no preenchimento da lacuna legal. Conforme R. Dworkin, isso é um uso pleno e notório da discricionariedade. E explica: “na verdade ele legisla novos direitos jurídicos (new legal rights), e em seguida os aplica retroativamente ao caso em questão.” In: DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 127. A resposta correta seria o decidir jurisdicional não discricionário, ou seja, aquela resposta que, mesmo não presente prontamente no ordenamento jurídico, pode ser atingido através de processos interpretativos principiológico-filosóficos. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 45. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 1-2. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Vol. II. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 174. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 8. 325 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Vol. I. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 12. Aqui pode-se falar da Lei Maria da Penha, da reforma do Código de Processo Penal, das alterações do Processo de Execução, etc. Interessantes leituras sobre o tema podem ser encontradas em: STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. (orgs.) Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Anuário 2008. N.º 5. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; São Leopoldo: UNISINOS, 2009. 326