05_352_04_Novelli_O conceito Hegeliano de lei

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O conceito Hegeliano de lei e a história da filosofia
Pedro Geraldo Aparecido Novelli
Departamento de Educação, Instituto de Biociências, Universidade Estadual Paulista (Unesp), Cx. Postal 510, 18.610.000,
Câmpus de Botucatu, Botucatu, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]
RESUMO. A história da filosofia, segundo Hegel, não é um amontoado de opiniões, mas o
esforço que o homem tem feito ao longo dos tempos de apreender e de compreender sua
própria existência. O objetivo do presente texto é o de construir parte dessa compreensão na
história da filosofia em quatro pensadores: Montesquieu, Rousseau, Kant e Hegel. Para
tanto, escolheu-se a lei como o elemento aglutinador entre os filósofos citados. Hegel é a
referência pela qual cada um deles é considerado e por meio da análise hegeliana do
conceito de lei que as demais abordagens filosóficas são tratadas. A lei representa, segundo
Hegel, a determinação histórica necessária para que a liberdade se efetive. Ao analisar as
posições de Montesquieu, de Rousseau e de Kant, Hegel recupera o que cada um realizou,
assinalando seus avanços e limites. A avaliação final de Hegel é a de que seus predecessores
confirmam a lei como característica central da vida na sociedade moderna livre.
Palavras-chave: pensamento, legalidade, modernidade.
ABSTRACT. Hegel’s concept of law and the history of philosophy. The history of
philosophy, according to Hegel, is not a collection of opinions but the effort that
humankind makes to understand their own existence. The aim of this paper is to
understand the history of philosophy according to four thinkers: Montesquieu, Rousseau,
Kant and Hegel. Law was chosen as a common point among these philosophers. Hegel was
taken as the landmark to analize the others, whose approaches of the concept of law are
taken as parameters. For Hegel, the law represents a necessary historical determination that
enhances freedom. Hegel recovers Montesquieu’s, Rousseau’s and Kant’s conception of
law, signaling their individual contribution and their limitations. Hegel's conclusion is that
his predecessors confirm that law is the central feature of life in a modern, free society.
Key words: thought, legality, modernity.
Introdução
A teoria do estado em Hegel é o resultado do que
ele acentua em sua filosofia, isto é, da história. Essa
é, segundo Hegel, o processo pelo qual o espírito
absoluto se desenvolve para que possa atingir sua
plena realização e efetivação. O espírito absoluto se
traduz na filosofia hegeliana, em última instância, no
indivíduo vivente. O absoluto deve ser encontrado
no relativo para não permanecer em uma abstração.
Duas conseqüências podem ser retiradas da
afirmação anterior: a primeira é a de que o relativo é
elevado à categoria de absoluto, e o alcance de sua
atividade passa a ser absoluto. Isso significa que o
momento histórico e as decisões que aí se operam
têm status de pertinência e de atualidade. Como se
trata do relativo mediando o absoluto, as mesmas
pertinência e atualidade são passíveis de superação
precisamente
pelo
seu
caráter
local
e
necessariamente
determinado.
A
segunda
conseqüência é a de que a relação está na base do
desenvolvimento do absoluto, ou seja, é necessário
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que ele deixe sua situação para que se possa efetivar.
Não há unidade sem separação e não há
permanência que não precise passar pela alteração.
Por isso, em Hegel, o absoluto exterioriza-se, deixa
seu ensimesmamento e, ao fazê-lo, revela o outro de
si, pois, na saída de si, o absoluto se desdobra. Tal
desdobramento adquire determinada expressão que
se caracteriza como uma aparência, o que representa
adequadamente o que sucede com o absoluto, isto é,
que o mesmo aparece. Para Hegel, a aparência não
esconde nem nega o ser, mas o mostra, o indica e o
confirma. Desse modo, o absoluto aparece
primordialmente na história e, como seu aparecer
precisa ser reconhecido, então se justifica o fato de
que, na história, esse reconhecimento se dá no
indivíduo vivente.
El concepto de la vida o sea la vida universal es la
idea inmediata, el concepto, al que es adecuada su
objetividad; pero ésta le es adecuada sólo por cuanto
él es la unidad negativa de esta exterioridad, es decir,
por cuanto se la pone como adecuada. La infinita
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referencia del concepto a sí mismo en sí como
individualidad subjetiva y en sí como universalidad
indiferente (Hegel, 1968, p. 674).
O próprio reconhecimento em si não garante
sua efetividade ou realização. De igual modo, faz-se
necessário que o reconhecimento se determine
historicamente no agir do indivíduo vivente que,
assim, traduz sua consciência do absoluto. Nesse
sentido, as instituições desempenham um papel
muito importante desde a ótica hegeliana, pois elas
são a tradução histórica de como os indivíduos se
entendem e representam sua compreensão da vida
em comum. Isso denota que Hegel está interessado
na vida na medida em que ela se efetive e, para
Hegel, ela se apresenta primordialmente no que
adquiriu forma histórica.
Sua filosofia é o esforço de proporcionar uma
resposta aos problemas de seu tempo. Ele não
propõe uma solução para o que não é de fato real.
Ele procura, por meio de sua filosofia, entender seu
tempo e sua realidade. Por isso, sua filosofia é a
compreensão de seu tempo. A compreensão
hegeliana de filosofia é a da história expressa no
pensamento, o que significa que a fonte do pensar
está no que os homens têm feito, o que também é o
que tem sido pensado. Dessa forma, a filosofia não
se dissocia de seu momento histórico mesmo que
não o considere diretamente, pois as condições a
partir das quais o pensar é exercido permanecem
como possibilidade para o pensar. Além disso, toda
filosofia somente trata o que lhe parece pertinente,
porque existem condições e expectativas para tanto.
Para Hegel, seria um equívoco desqualificar uma
filosofia com o pretexto de sua desatualização, visto
que toda filosofia é necessariamente histórica
enquanto atividade empreendida pelo homem, e a
história não se esgota no presente. “A história [da
filosofia] não é uma coleção de opiniões aleatórias,
senão uma interdependência necessária (...)” (Hegel,
1971, p. 15).
A afirmação de que uma filosofia foi superada
somente pode ser posta por uma outra que a tenha
sucedido; mas, segundo Hegel, a filosofia que surge
depois também se beneficia de todas as outras que a
precederam. Portanto a superação entre as filosofias
somente poderia significar a melhor ou a maior
pertinência de uma delas por alguma novidade que
ela encerra e não o abandono das outras, pois as
diferentes filosofias compõem o pensar humano
desenvolvido e construído em diversos momentos
pelo homem.
É a partir dessa perspectiva que se procura traçar
a história da filosofia em Hegel, tomando como
elemento aglutinador a lei.
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A teoria hegeliana da lei é ao mesmo tempo uma
análise das outras teorias e das compreensões dessas
sobre a realidade e a apresentação de uma
possibilidade, que Hegel entende ser a correta
interpretação da realidade. Para Hegel, interpretar
corretamente a realidade significa apreender a
totalidade do momento e não somente prender-se à
particularidade. A totalidade do momento está na sua
história. A verdade, segundo Hegel, está no todo
(Hegel, 1992, p. 31). Obviamente Hegel não
entende que a verdade represente somente o correto,
o justo e o desejado, mas sim a totalidade do que é
pensado, desejado e feito, e isso não exclui o que é
mal pensado, mal desejado e mal feito. Exclui-se,
isto sim, o que não é pensado, desejado e nem feito.
Aqui estaríamos no âmbito do provável, no qual
tudo é possível e até melhor, mas permanece uma
abstração, porque não se efetivou no vivente.
A lei, em Hegel, não é um feito aleatório, mas
resultado do esforço despendido para regular as
relações entre os viventes. A instituição da lei
representa um avanço na história da humanidade
porque se trata de uma regulamentação à qual todos
estão submetidos. Se a prática não confirma sempre
tal situação, isso não indica que a lei, enquanto
instituição, é inócua, mas que ainda não se atingiu a
universalidade que implica superação de imperativos
particulares.
A compreensão hegeliana da lei não se dissocia da
história da mesma enquanto objeto de igual
consideração por outros filósofos que o antecederam
no tempo e, Hegel diria, até no mérito.
What the history of Philosophy shows us is a
succession of noble minds, a gallery of heroes of
thought, who, by the power of Reason, have
penetrated into the being of things, of nature, and of
spirit, into the being of God, and have won for us by
their labours the highest treasure of reasoned
knowledge (Hegel, 1996. p. 1).
Hegel reconstrói a história da filosofia ao retomar
os posicionamentos sobre a lei que ele investiga e
analisa em autores como Montesquieu, Rousseau e
Kant, avaliando-os positivamente.
A lei em Montesquieu
Montesquieu é o primeiro pensador político que
teria influenciado Hegel de forma significativa,
embora Hegel reconhecesse que a problemática
tratada por Montesquieu já estava presente na
filosofia grega.
A obra de Montesquieu imortaliza-se no
reconhecimento de aspectos como a individualidade
e o caráter de um povo, que se ele embora não os
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Conceito Hegeliano de Lei
tenha elevado à compreensão da idéia viva, nem
deduzido da razão a lei e sua instituição, nem
abstraído da experiência e a elevado à universalidade,
tratou como uma das partes mais elevadas das
relações estatais, assim como também das menores
determinações das relações burguesas até o
testamento, o acordo matrimonial, tirando dessa
totalidade a individualidade. (Hegel, Naturaufsatz, p.
524 s)
Segundo Hegel, Montesquieu teria superado o
aspecto a-histórico do iluminismo. É digno de nota,
para Hegel, que Montesquieu tenha se diferenciado
a partir do próprio contexto iluminista que Hegel
avalia como possível somente pela elevada
consciência que ele tinha de seu próprio tempo.
Hegel entende que Montesquieu reconhece que o
sujeito precisa captar o que é a sua realidade e não
pretender que ela seja o que ele deseja. Montesquieu
mostra que não há uma lei universal que se aplique a
todos os povos, mas que necessariamente precisa
estar ligada à realidade de cada povo, levando
obrigatoriamente, em consideração, o aspecto
geográfico, o clima, a religião, a história nacional,
etc.
It is true that the caracter of the spirit and the
passions of the heart are extremely different in the
various climates, laws should be relative to the
differences in these passions and to the differences
in these characters (Montesquieu, 1989, p.231).
Tudo isso tem uma grande influência na
compreensão da lei, pois a mesma não pode mais ser
entendida como incondicionada pelas formas de vida
de um povo. Montesquieu denomina o estado e a
situação de um povo de ‘Espírito’, que a lei, por sua
vez, representa. A lei é uma instituição que, nesse
sentido, atinge o âmbito da representação universal,
segundo a qual as leis particulares devem ser
entendidas. A dependência que se estabelece entre a
instituição da legalidade e a sua aplicação significa
também uma relação entre o que deve ser e o que é.
Para Montesquieu, a lei não é uma ordem abstrata,
mas uma compreensão desenvolvida sobre o estado
de vida de um povo. Nesse sentido, a lei também é
descritiva, ou seja, nela, a vida de um povo é
representada. “O espírito em Montesquieu tem a lei
diante de si, o que o honra, e Montesquieu é, por
isso, o único na sua área” (Hegel, 1973, p. 85).
Hegel entende que Montesquieu aponta o
caráter positivo da lei, e isso tem como implicação a
aproximação com a vida concreta dos homens. A lei
somente faz sentido porque é resultado do que os
homens têm feito, o que desemboca em uma
determinada configuração social. A lei é a apreensão
da vida de um povo e de suas relações, e nada é posto
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como regulador das mesmas relações se já não
estiver presente na prática cotidiana de um povo. As
leis não criam situações, mas as pressupõem.
Laws, taken in the broaden meaning are the
necessary relations deriving from the nature of
things; and in this sense, all beings have their laws:
the divinity has its laws, the material world hás its
laws, the intelligences superior to man have their
laws, man has his laws (Montesquieu, 1983, p.3).
Embora a dimensão histórica do direito seja
importante e necessária, a positividade deve também,
de igual modo, ser considerada. O direito positivo
responde, segundo Montesquieu, assim como
também para Hegel, pela relação com o direito
natural. A lei positiva é, para Montesquieu, o
resultado de uma situação específica de uma
sociedade histórica e não uma mera repetição do que
ocorre na natureza. Segundo a natureza, as relações
são regradas pelas necessidades postas pelo instinto.
A fome, por exemplo, tem que ser saciada e não se
pode esperar que o seja de forma instituída. A
saciedade é obtida por meios não acordados por uma
coletividade. Aliás, a satisfação das necessidades pode
desembocar em um estado generalizado de guerra
ou de permanente alerta entre os membros de um
coletivo.
Natural laws order to feed their children, but it does
not oblige them to make them their heirs. The
division of goods, laws concerning this division,
inheritances after the death of the one who made
this division, all this can only be regulated by the
society and, consequently, by political and civil laws
(Montesquieu, 1983, p.494).
Montesquieu diferencia-se de Hegel, porque ele
não oferece a resposta adequada, embora tenha feito
a pergunta certa. Ele se divide entre a lei positiva e o
direito natural. Montesquieu descreve com
propriedade a existência tanto da lei positiva quanto
da natural e aponta para as interfaces entre as
mesmas. Ele ainda indica os méritos da lei positiva,
mas segue preso à dicotomia entre o positivo e o
natural. Levar em consideração as influências
climáticas, geográficas, etc. denota o reconhecimento
dos elementos constitutivos de um povo que, apesar
de seu caráter secundário, desempenha papel que
não pode ser desconsiderado. Apesar dessa
consideração perspicaz da parte de Montesquieu,
Hegel entende que o pensador francês permanece na
dicotomia entre o que é positivo e o que é natural. A
não-resolução dessa contradição permite atribuir voz
e vez ao direito natural. Assim, a lei permanece
determinada pela particularidade que caracteriza o
direito natural, pois, embora não se possa ignorar as
razões desse direito, o mesmo não pode mais,
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segundo Hegel, determinar as relações na sociedade
organizada, como no caso da sociedade civil.
Para Hegel, a lei deve ser vinculada à razão, o que
permite uma síntese que Montesquieu não atingiu.
A lei não pode mais ser fundada a partir de sua
presença intrínseca nos seres. Hegel se posiciona
contrariamente à associação da lei à uma tendência
natural, pois ele entende que a lei sempre é uma
formulação posta por um determinado sujeito, no
caso sempre o sujeito humano, o qual faz uso
predominantemente da razão. A razão em Hegel não
exerce mera reprodução do que se encontra na
natureza,
age
sobre
essa,
alterando-a
e
determinando-a. A universalidade, apontada como
necessária por Montesquieu por meio do direito
natural, parece ser impedida pela institucionalização
do direito. Em Hegel, o infinito encontra-se no
finito! Isso significa que a afirmação do direito
natural somente alcança universalidade na
particularização da lei positiva. Sem essa
determinação, a qual precisa pagar tributo às
conseqüências derivadas do enfrentamento do
particular na assunção de certas formas, não há
efetivação que se ponha para além da abstração. A
positividade da lei é a expressão do reconhecimento
do particular que se quer elevar à universalidade do
todo.
A lei em Rousseau
A idéia da completude entre infinito e finito
encontra lugar em Rousseau. Como Montesquieu,
Rousseau procura dar uma resposta aos desafios de
sua época. Ele experimenta de perto e intensamente
as contradições sociais de sua época, as quais se
caracterizavam por grandes contrastes entre
abastados e carentes. Desde a sua infância, Rousseau
passou por privações, obrigando-se a buscar ajuda
para defender-se da fome. A natureza sempre foi
vista como parâmetro para o homem feliz. O
filósofo genebrino expressou tal posição na idéia do
bom selvagem e no Emílio ou Da Educação.
(Rousseau, 1992). O bom selvagem sugere a
bondade natural do homem que seria corrompida
pela sociedade. Rousseau tem diante dos olhos a
situação da Europa de seu tempo. A solução indicada
por ele é a reaproximação da natureza pelo homem
que o Emílio traduz. Esse texto de Rousseau é a
descrição do processo de educação ao qual o homem
deveria ser submetido. Naturalmente, bom Emílio
tem sua bondade preservada na medida em que é
trabalhado próximo à natureza. Rousseau, ao afirmar
o estado de natureza como estado da felicidade
humana, explicita que se trata de um estado deixado
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pelo homem, pois esse não é mais feliz. Para
Rousseau, não há muita precisão com respeito ao
motivo pelo qual o homem deixou o estado de
natureza, mas é possível indicar como se legitima a
fundação da sociedade civil. É por esse aspecto que
Rousseau é muito importante para Hegel, na medida
em que ele afirma a idéia do contrato e a desenvolve.
A saída do estado de natureza pode ter sido motivada
pela insegurança que pairava sobre todos os
indivíduos que, até então, viviam cada qual por si. A
força de cada um somente se torna suficiente se
associada à dos outros. O problema é como
preservar os indivíduos em sua singularidade,
superando pela associação os perigos do isolamento.
O resultado da associação entre os homens é um
contrato pelo qual os homens se comprometem a
preservar a liberdade de todos por meio da alienação
da liberdade individual em favor da organização
estabelecida. O contrato é, para Rousseau, resultado
da atividade da razão, visto que se trata de uma
elaboração complexa que exige a compreensão da
situação na qual se encontra e para onde se deseja ir
ou reconhecimento do que se tem para o que se
poderá ter. Contudo Rousseau não atribui grande
importância ao papel da história, pois o contrato
surge da associação e dos indivíduos que se realiza
em um dado momento sem que houvesse qualquer
predisposição para tanto. Aqui Rousseau se distancia
de Hegel. Mesmo assim, Hegel entende que
Rousseau fundou a filosofia do estado e a teoria da
lei.
No exame deste conceito, teve Rousseau o mérito de
estabelecer como fundamento do Estado, um
princípio que, não só na sua forma (como, por
exemplo, o instinto social, a autoridade divina), mas
também no seu conteúdo, pertence ao pensamento,
e, pensar é ter a vontade como princípio do estado
(Hegel, 2000, § 258).
O contrato encerra em si o conceito de vontade
universal que, na filosofia de Rousseau, é um grande
avanço. A vontade que quer o contrato se reconhece
no que faz e, ao querer em associação o que outros
querem, ela se reconhece também nesses outros. A
lei é, para Rousseau e Hegel, expressão da vontade
universal na medida em que a comunidade participa
no processo de construção da lei para alcançar o fim
que foi escolhido. A lei somente garante o direito e a
liberdade se se orienta por meio da universalidade.
Isso significa que o alcance da lei deve ser a
totalidade, pois, embora cada indivíduo seja
reconhecido enquanto tal, faz-se necessário o
reconhecimento do indivíduo na sua totalidade, ou
seja, nas relações com os outros indivíduos em
sociedade. O caráter universal da lei somente é
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Conceito Hegeliano de Lei
garantido pela efetivação de sua função sobre a
totalidade dos indivíduos. A idéia de contrato
fundado na razão, a presença de uma vontade com a
dimensão da universalidade e a lei como resultado da
vontade universal são elementos de afinidade entre
as filosofias de Rousseau e de Hegel. A afinidade
entre os pensadores, no entanto, não é completa.
Mas ao conceber a vontade apenas na forma definida
da vontade individual (o que mais tarde Fichte
também faz), e a vontade geral não como o racional
em si e para si da vontade que resulta das vontades
individuais quando conscientes – a associação dos
indivíduos no Estado torna-se um contrato, cujo
fundamento é, então, a vontade arbitrária, a opinião
e uma adesão expressa e facultativa dos indivíduos
(...) (Hegel, 2000, § 258).
Segundo Hegel, o ponto de partida de Rousseau
não é uma situação histórica, mas uma hipótese e,
assim, a relação entre o estado e o indivíduo tem
uma solução calcada na individualidade. Entretanto a
constituição do status da individualidade deriva
necessariamente da igual constituição do estado. É
no estado que o indivíduo é reconhecido enquanto
tal e, por conseqüência, o estado é confirmado. Por
isso, no entender de Hegel, a individualidade em
Rousseau não passa de uma ficção cuja sustentação
não pode ir além de uma suposição. O indivíduo,
portanto, funda-se a partir de si mesmo e não por
meio da relação com o outro conforme a
compreensão hegeliana. “O estado deve sustentar-se
na vontade geral, que não é outra senão a vontade do
indivíduo, conforme Rousseau no Contrato Social.”
(Hegel, 1971, p. 358).
Por isso, Rousseau alcança, no máximo, o status
de uma comunidade, mas não a universalidade,
posto que, nele, a idéia de contrato está
fundamentada mais na vontade singular. A diferença
entre a vontade universal e a vontade de todos
representa, para Rousseau, a dificuldade de atingir a
universalidade. Hegel entende que Rousseau afirma
muito mais uma vontade do que a vontade, isto é,
Rousseau afirma uma parte da comunidade.
A diferença entre a abordagem comunitária e
universal em Rousseau é que a lei de um estado
obtém sustentação na vontade da maioria e não na
vontade geral. O aprofundamento dessa diferença
traria
a
Rousseau,
segundo
Hegel,
o
aperfeiçoamento de uma teoria do estado. A vontade
universal é o conceito da vontade, e as leis baseiamse nesse conceito enquanto são determinações da
vontade.
A lei é, para Hegel, a expressão da verdadeira
universalidade e não se efetiva a partir de uma
abordagem atomística e mecanicista como em
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Rousseau. Apesar desse aspecto crítico Hegel,
entende que Rousseau operou um grande avanço na
filosofia política: “Hume e Rousseau são ambos os
pontos de partida da filosofia alemã” (Hegel, 1971, p.
311).
A revolução francesa teve uma importante
influência sobre a filosofia hegeliana, e o pensador
alemão reconhece, por sua vez, a importância de
Rousseau para a mesma revolução. Mais uma vez,
Hegel reconhece a influência do genebrino sobre
seu pensamento.
Ao chegarem ao poder, tais abstrações produziram,
por um lado, o mais prodigioso espetáculo jamais
visto desde que há uma raça humana: reconstituir a
priori e pelo pensamento a constituição de um
grande Estado real, anulando tudo o que existe e é
dado e querendo apresentar como fundamento um
sistema racional imaginado, por outro lado, como
tais abstrações são desprovidas de idéia, a tentativa de
as impor promoveu os mais horríveis e cruéis
acontecimentos (Hegel, 2000, § 258).
Rousseau afirma o conceito de liberdade em sua
filosofia e tal afirmação somente pode tornar-se real
na medida em que assume forma institucional. Por
outro lado, Rousseau também indica que as
instituições sociais não têm contribuído para o
progresso do homem de seu tempo. Não sem razão,
a revolução francesa se volta contra as instituições
sociais realizando a derrocada das mesmas. Desse
modo, o problema apontado por Rousseau não pode
ter uma solução bem sucedida na França, porque “A
liberdade absoluta vai de sua realidade destruída a
uma outra terra onde o espírito tenha consciência de
si.” (Hegel, 1971, p. 332).
O princípio da ordem institucional será
implantado por meio da filosofia alemã, e a
dimensão da liberdade será alcançada como princípio
da história universal. O que se institui não é o
melhor, mas o melhor possível na medida em que se
contempla a história e o que tem sido feito. Não é da
natureza das instituições o descaso com a coisa
pública, embora isso possa ser observado. Hegel
entende que as sociedades não instituem a usurpação
e a exploração e, se permitem que isso ocorra, ela
mina
seus
fundamentos,
privilegiando
a
particularidade em detrimento do universal. Não é a
prática dissociada do pensado que opera as
alterações, mas sim uma prática já pensada que tão
somente se efetiva na ação. Daí, a mudança do olhar
implica a mudança do olhado, mas não porque o
olhado não importa, e sim porque o novo olhar é
novo em relação ao olhado. “Quando o reino da
representação é revolucionado, a realidade não se
sustenta mais.” (Briefe von und an Hegel, p. 1.253).
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A própria revolução francesa não se detém no
decretar a falência de instituições milenares como a
Igreja e a Monarquia, mas estabelece novas
instituições ou novas relações institucionais que
contemplem a nova ordem. Hegel vê o curso da
revolução em três momentos distintos. Quando
estudante em Tübingen, Hegel se encanta com o
significado e a implicação da revolução. Em Jena,
Hegel aponta os exageros cometidos pela revolução e
por ocasião da publicação de suas Lições sobre a filosofia
da história universa, avalia positivamente o papel da
revolução. A avaliação hegeliana ancora-se na
história e nas suas mudanças. A idéia da revolução
como transformadora da ordem histórica encanta o
jovem Hegel, mas os exageros dos revolucionários
não escapam de sua atenta observação como adulto.
Mesmo assim, Hegel não se decepciona com a
revolução enquanto possibilidade histórica, mas
aponta para os riscos sempre existentes em qualquer
que seja a ação. Nenhuma ação pode ser dissociada
daqueles que a praticam, pois são sempre os sujeitos
de uma ação que atualizam o que quer que ocorra.
Aqui se encontra uma outra diferença entre
Rousseau e Hegel. Enquanto para o primeiro a ação
em comum está fadada a deturpações, para o
segundo, as deturpações não são o destino da ação
em comum, porém uma possibilidade na medida em
que os indivíduos não abandonam suas
especificidades, apesar de estarem organizados
socialmente.
A lei
lei em Kant
Hegel reconhece Kant como o filósofo que
entendeu o princípio da Revolução Francesa. Kant
apresenta a liberdade e a vontade como bases da lei e,
embora Rousseau tenha também tematizado tal
tema, Kant é o primeiro a dar-lhe um tratamento
filosófico.
É um grande avanço, que esse princípio seja
estabelecido, que a liberdade seja o último ângulo, ao
qual o homem se volta, a última instância que não é
imposta por nada. A vontade determina-se em si e da
liberdade brota todo direito e eticidade (Hegel, 1971,
p. 367).
Hegel compreende a liberdade como um
processo, que se torna real na história, isto é, nas
relações que os homens travam entre si. Se assim
não for, a liberdade permanece uma abstração; pois,
conforme afirma o próprio Hegel, não basta saber-se
livre, mas é necessário, de fato, experimentar a
liberdade. A maior realização que se pode dar à
liberdade é o status de instituição que se universaliza
a todos os indivíduos. A Revolução Francesa é uma
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expressão da liberdade na medida em que essa
revolução afirmou a universalidade, no entanto a
realização da universalidade provocou problemas
que precisaram ser resolvidos. Hegel e Kant
concordam que critérios universais devem ser
estabelecidos. Tal determinação tem por objetivo
cercear, ao mesmo tempo, a arbitrariedade e a
indeterminação também universalmente.“O destino
dos indivíduos está em participarem numa vida
coletiva” (Hegel, 2000, § 258).
Embora Kant tenha afirmado a universalidade
como aspecto central para a lei, Hegel critica que ela
não ultrapassou o limite da generalização. A
generalização não representa nenhum critério para a
lei na medida em que o conteúdo não desempenha
papel algum na compreensão kantiana. Segundo
Hegel, o conteúdo deve ser entendido como uma
determinação. Não só o comportar-se é importante,
mas também como se comportar. Para Hegel o
comportamento somente se efetiva na medida em
que se determina. A determinação significa o
reconhecimento das possibilidades do real, em que o
que deve ser feito liga-se obrigatoriamente ao que
pode ser feito. Não se trata aqui de se reduzir ao
dado enquanto limite empírico, mas sim de tomar o
dado como expressão da ação humana. É nesse
contexto e a partir do mesmo que as resoluções
devem ser empreendidas. Nesse sentido, as
afirmações devem ser feitas para o homem e não
sobre o homem e nem menos ainda sem o homem.
(...) a afirmação do ponto de vista simplesmente
moral que não se transforma em conceito de
moralidade objetiva reduz aquele progresso a um vão
formalismo e a ciência moral a uma retórica sobre o
dever pelo dever (Hegel, 2000, § 135).
A afirmação formal do dever não produz
qualquer conteúdo. Além do mais, tal afirmação
resulta da dedução de uma ordem estrutural
idealizada. A ordem pensada é a ordem dada. O
pensar que não se alça a partir do dado não vai além
do estado de abstração. Tal pensar não se efetiva
porque não passa de si para si ou não se põe como
um devir. Pode-se falar de um tal pensar como um
pensar que não se situa historicamente. Esse não será
esquecido, pois não permite que seja lembrado.
Que nenhuma propriedade existe é proposição que
não tem para si mais contradição do que a de que
este povo, esta família etc. não existem ou a de que
nenhum homem vive. Se, por outro lado, se afirmar
e supuser que a propriedade e a vida humana devem
ser respeitadas, então será uma contradição efetuar
um assassínio ou um roubo (Hegel, 2000, § 135).
Kant não percebe que uma lei somente possui
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Conceito Hegeliano de Lei
significado a partir da interdependência geral de
relações sociais, as quais transformam a totalidade
dessas mesmas relações. Por isso, a lei não representa
papel importante em Kant enquanto determinação
do agir, pois ela poderia ser um empecilho ao
princípio do dever ser. A lei sempre representa um
condicionamento na medida em que estabelece as
possibilidades da ação e rejeita a indiscriminação.
Kant empenha-se em buscar um princípio que
oriente a ação independentemente de quais sejam
suas condicionantes. Hegel critica também Kant por
seu dualismo entre um interior e um exterior, que se
traduz no dualismo do jurídico e do moral. Kant
diferencia entre lei moral e lei jurídica. A lei estatal,
institucionalizada é, para Kant, uma regra abstrata.
“(...) um por todos e todos por um coincidem”
(Kant, 1966, p. 46).
A lei estatal permanece sempre como algo
exterior, ou seja, como uma iniciativa por meio da
legalidade dos comportamentos. Para Kant, isso não
é nem moral nem ético, na medida em que esses
atributos somente podem ter fundamento em um
conhecimento interior. Embora, para Kant, o
resultado da ação seja importante, não é esse que
deve condicionar ou orientar a ação. Kant insiste em
uma disposição interior do indivíduo que não se
realize em sua materialização, mas que já esteja
previamente garantida como princípio.
A separação entre moralidade e legalidade de
ética e filosofia do direito é a negação de todos os
direitos possíveis na sociedade, conforme entende
Hegel. Um princípio universal que não se sustente a
partir da situação dada significa uma porta aberta
para a arbitrariedade. A legalidade não é somente o
esforço para alcançar a moralidade, mas sim deve
tornar-se real e, ao mesmo tempo, a moralidade deve
reconhecer-se na legalidade.
A autodeterminação, para Hegel, já é uma
formalidade, pois ela não se determina pelo
conteúdo, que somente na comunidade pode ser
alcançado.“Tais leis permanecem no dever ser, mas
não possuem nenhuma efetividade, não sendo,
portanto, leis, mas tão somente mandamentos”
(Hegel, 1971, p. 305).
Sem o elemento factual, a lei não realiza o seu
conceito enquanto tal. Isso é o que, para Hegel, Kant
não considerou ou não quis considerar, porque,
segundo Kant, a determinação da liberdade não
garante dimensão universal alguma. Hegel, no
entanto, não quer compreender a liberdade por meio
de uma definição. A pergunta é muito mais como a
liberdade é compreendida no presente e como ela é
vivida do que como a liberdade deveria ser. É
precisamente no que é vivido pelos homens que a
Acta Sci. Human Soc. Sci.
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liberdade é definida e seu conceito tem sua
realização. A liberdade não é uma aplicação à
realidade, mas uma apreensão do que está presente
na realidade. O instituído é a determinação do ser da
liberdade e é uma determinação que se impõe sobre
a totalidade dos homens. Trata-se de uma
determinação de como a liberdade pode e deve ser
vivida. As instituições não são meras barreiras à
liberdade, mas sim a sua possibilidade. Contudo as
instituições também são barreiras, porém somente
no sentido em que nem tudo pode ser permitido na
comunidade ou não deveria ser. A determinação é a
explicitação do que se deve fazer enquanto
representa o que se pode fazer. Com isso, a
universalidade considera a particularidade e esta, por
sua vez, aceita a universalidade. O universal precisa
abarcar em si o particular e este deve reconhecer-se
naquele. A moralidade que não se reconhece na lei
do estado, permanece na esfera da exterioridade. A
moralidade que assim se sustenta encontra-se ao
sabor das casualidades e dos interesses voluntariosos
do momento. A prevalência dos particularismos
torna-se a tônica. A garantia legítima da moralidade
subjetiva afirma-se, segundo Hegel, somente na lei
do estado. No âmbito do estado, a moralidade é
contemplada com a universalidade e posta como a
sustentação necessária da lei. A lei traz a moralidade
para a amplitude da totalidade enquanto deve ser
expressão da vida em comum. A lei é resultado de
uma moralidade que se sabe no outro de si, isto é, na
lei. Por isso, a lei deixa de ser aleatória adquirindo,
status de intencionalidade e de uma determinação
que se quer realizada. Aqui desempenha papel
importante a compreensão de vontade em Hegel,
que ele diferencia da visão de Kant. Essa
compreensão pode proporcionar um importante
desenvolvimento da relação entre liberdade e lei.
A definição kantiana geralmente admitida, em que o
elemento essencial é a limitação da minha liberdade
para que ela possa estar de acordo com o livre
arbítrio de cada um segundo uma lei geral, apenas
constitui uma determinação negativa. Por outro
lado, o positivo, que há nela, a Lei da razão universal
ou como tal considerada, o acordo da vontade
particular de cada um com a de cada outro, leva à
bem conhecida identidade formal e ao princípio da
contradição. A citada definição contém a idéia muito
divulgada desde Rousseau de que a base primitiva e
substancial deve estar não na vontade como existente
e racional em si e para si, não no espírito como
espírito verdadeiro, mas na vontade como indivíduo
particular, como vontade do indivíduo no livrearbítrio que lhe é próprio. Uma vez aceito tal
princípio, o racional só pode aparecer para essa
liberdade como uma limitação, não, portanto, como
razão imanente, mas como um universal exterior,
Maringá, v. 27, n. 1, p. 31-39, 2005
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Novelli
formal. (Hegel, 2000, § 29).
Em Hegel, é a vontade livre. A liberdade não é
uma dádiva, mas uma construção histórica que tem
início com a consciência de sua realização maior e
única no homem. Tal consciência não é ainda tudo,
pois não basta saber-se livre, porém é necessário sêlo de fato. A liberdade somente se torna um fato na
medida em que é realizada pelos homens. A própria
realização da liberdade pressupõe sujeitos livres que
se confirmem enquanto tais no ato de construção de
si mesmos como livres. Como, para Hegel, o
homem se define pela relação com outro homem ou
a consciência somente se confirma como
autoconsciência, a liberdade se põe como atividade e
atividade que se constrói em conjunto. Dessa forma,
não é possível pensar em liberdade no isolamento ou
fora da relação que os homens estabelecem entre si.
As relações travadas pelos homens nem sempre são o
que deveriam ser, mas sempre são o que podem ser.
Como resultado da relação estabelecida, a liberdade
será mais ou menos promovida. Embora se busque a
instauração plena da liberdade, não se pode fugir da
constatação de que o contrário assumiu forma na
história. Apesar disso, Hegel insiste que a relação é a
essência da liberdade e os pólos dessa relação
precisam ser preservados. A liberdade será
obrigatoriamente promovida pelo outro e não
limitada. A negação da liberdade é ainda sua
afirmação. Na dialética do senhor e do escravo,
Hegel faz notar que a resignação do escravo que
aceita sua condição e se submete ao seu senhor não é
unicamente a negação da liberdade, pois o escravo
ainda escolhe entre a revolta e a sua vida sob a
dominação.
Para Hegel, a liberdade não se traduz em fazer o
que se quer, mas em querer o que se faz. Por isso,
ser livre implica saber e aceitar o que se pode fazer e
, assim, reconhecer-se livre. Nesse sentido, a
legalidade e a liberdade individual não se opõem,
mas se completam. Quando a lei não é entendida
como o resultado da relação entre os indivíduos e
também não como condição da liberdade, o
indivíduo permanece no nível da sociedade civil.
Essa é a compreensão do liberalismo, na qual as
instituições e a lei são tomadas somente como
barreiras. A liberdade, para Hegel, somente se torna
real por meio das formas institucionalizadas na
sociedade. Somente o que se determina se efetiva.
Os homens vivem na realidade e essa, quando
determinada, conduz à definição da liberdade.
Conclusão
Aprender a história da filosofia, segundo Hegel, é
Acta Sci. Human Soc. Sci.
também aprender a filosofar. Aprender a história da
filosofa significa apreender a história expressa no
pensamento. Para Hegel, a filosofia sempre
procurou, ao longo de seu desenvolvimento,
apresentar aos homens a realidade vivida pelos
mesmos. Portanto a filosofia não é mera invenção
que se constitui de forma alheia em relação à vida.
Toda filosofia é sempre filha de seu tempo e é daí
que ela obtém sua consistência. A pertinência da
filosofia se determina pela sua necessária sustentação
na realidade, contudo a atualidade da filosofia não se
dá pela sua inserção nas questões do presente, pois
ela poderia tornar-se vítima de casuísmos e de
modismos, mas ela se insere pelo que oferece para
compreender o que ocorre e assume forma histórica.
Hegel afirma em suas Lições sobre a filosofia da história
universal (1970, p.114), que o que interessa na
história é o que já aconteceu e o que acontece. Sobre
o futuro, não se pode fazer senão conjecturas e
previsões que não merecem o status de realidade por
se caracterizarem pela indeterminação. Hegel
entende que a filosofia não pode ter a pretensão de
dizer como as coisas serão ou devem ser. Por outro
lado, a consideração atenta sobre o que se realizou e
o que se realiza pode oferecer elementos para o
reconhecimento das direções predominantes e
possíveis na história. Mesmo assim, o ponto de
referência, para Hegel, é sempre a consideração do
passado e do presente. A própria filosofia hegeliana
se funda por meio do diálogo com as propostas
filosóficas que a precederam e com as
contemporâneas. A partir da perspectiva hegeliana,
não há filosofia que exista por si só e dissociada das
outras. A história é a determinação da filosofia que,
desse modo, efetiva-se como existência.
A efetivação da filosofia é plural e, assim, a
realidade é posta também como plural. A pluralidade
se singulariza no pensar a realidade e no realizar o
pensamento. Desse modo, história e filosofia se
identificam assim como o ser e o pensar que
estabelecem relação de proximidade entre si e não de
exclusão. A história não se estranha na filosofia e
essa, por sua vez, não se dissocia da história. Tanto a
história quanto a filosofia guardam as suas
especificidades, diferenciando-se, assim, uma da
outra; porém o que é próprio de cada uma não se
constitui em limite intransponível entre elas. É a
partir dessa perspectiva que Hegel vê a relação entre
o que é pensado e o que é feito e é, também, como
Hegel entende o que se trava entre as diversas
filosofias existentes. A diversidade filosófica
confirma não somente a variedade de abordagens do
real, mas confirma a própria filosofia enquanto
esforço de compreensão e de manifestação sobre o
Maringá, v. 27, n. 1, p. 31-39, 2005
Conceito Hegeliano de Lei
que é tomado como real.
Hegel avalia, com tal olhar, as contribuições de
Montesquieu, Rousseau e Kant por meio de um
elemento de pertinência histórica determinante
como a lei. Em cada um dos pensadores, Hegel
aponta o que ele considera um marco significativo e
o que entende como problemático e discutível. Na
verdade, o que Hegel faz é promover os criticados,
elevando-os a uma maior consideração em sua
filosofia. Em momento algum, Hegel desconsidera
ou relega ao esquecimento o que eles realizaram.
Para Hegel, cada um fez o que era possível enquanto
filho de seu próprio tempo. Por isso, a lei recebe em
Montesquieu a inserção necessária na vida de um
povo, mas não avança para além da dicotomia com o
natural. Em Rousseau, a lei já adquire o teor da
racionalidade intencional na idéia do contrato,
porém também traz resquícios de uma existência
humana na natureza que fundamentaria a
construção histórica da lei. Com Kant, a lei encontra
o seu local privilegiado no sujeito humano, mas não
se efetiva para além do mesmo. Como Kant, Hegel
coloca a centralidade do sujeito, entretanto não se
perde em sua objetivação ou não se desconhece no
outro de si. Assim, o contrato, contrariamente a
Rousseau, não seria uma alienação da liberdade dos
sujeitos, mas sim uma garantia de que a liberdade
deixe de ser uma abstração. As condições físicas e
culturais, como pensava Montesquieu, são
elementos relevantes para a organização social,
contudo não podem traduzir-se em determinações
de ordem absoluta.
A lei é, em Hegel, uma necessária determinação
da liberdade para que essa não permaneça uma
afirmação que não seja histórica, isto é, real. A
história da filosofia, aqui brevemente exemplificada
em Montesquieu, Rousseau e Kant, não é senão o
esforço de efetivação da liberdade que se expressa no
pensamento sobre o mundo e que, nessa reflexão,
reconhece-se como sujeito.
O acompanhamento do desenvolvimento e
estabelecimento da lei por intermédio da história da
filosofia permite reconhecer a formação e a
sedimentação do conceito de liberdade expresso de
forma institucional. A liberdade pensada é a
liberdade realizada e a realizada é a pensada. É um
conceito ao alcance do homem, pois não se encontra
senão no homem e nas relações que ele trava com os
da sua espécie. A liberdade se universaliza na espécie
ao não se reduzir nem se identificar em sua
totalidade com o indivíduo. No entanto é pelos
indivíduos que a liberdade se determina, ou seja, de
forma localizada e até condicionada. Não se é livre
de qualquer forma, assim como não se faz filosofia,
Acta Sci. Human Soc. Sci.
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segundo Hegel, de qualquer modo. A lei é uma
determinação do ser livre para que esse se realize. De
igual modo, o pensar filosófico somente se efetiva ao
se determinar e não atinge a necessária
universalidade senão por meio da particularidade.
Assim como a lei representa o esforço humano
na história para confirmar-se como livre, de igual
modo, a história da filosofia ilustra a afirmação do
sujeito livre que se posiciona diante de seu tempo
como vontade que faz sua existência.
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Received on October 10, 2004.
Accepted on June 21, 2005.
Maringá, v. 27, n. 1, p. 31-39, 2005
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