MARCOS LEITE E SEU ARRANJO VOCAL PARA O SAMBA LATA D’ÁGUA: UM ESTUDO ANALÍTICO DOS PROCEDIMENTOS COMPOSICIONAIS Rogério Carvalho ∗ RESUMO: O presente trabalho faz uma análise do arranjo vocal de Marcos Leite para o samba Lata D’água. Busca-se destacar os procedimentos composicionais adotados pelo arranjador e traçar comparações com a gravação original. Serão discutidas aqui a influência e importância da gravação no processo de criação do arranjo. PALAVRAS-CHAVE: Arranjo vocal, Marcos Leite, Música Popular Brasileira. ABSTRACT: The present work shows an analysis about Marcos Leite’s vocal arrangement for the samba Lata D’áqua. The composing procedures adopted by the arranger and comparisons to the original recording are emphasized. Moreover, the influence and importance of the recording in the process of the arrangement creation will be discussed here. KEYWORDS: Vocal arrangement, Marcos Leite, Brazilian Popular Music. BREVE HISTÓRICO DO ARRANJO VOCAL NA MPB No Brasil, possivelmente, o primeiro compositor a incorporar o universo popular à escrita coral foi Heitor Villa-Lobos, quem escreveu muitos arranjos deste tipo – os quais vão desde melodias folclóricas até músicas de seresta, incluindo canções escolares, cívicas e militares. Boa parte dessas obras podem ser encontradas nos livros de Canto Orfeônico, volumes 1 e 2, e no Guia Prático. Um dos primeiros arranjos de Música Popular Brasileira 2 , que se tem registro, foi escrito por Villa-Lobos no início dos anos 30, de Luar do Sertão para coro a cappella. Esse movimento precursor iniciado por Villa-lobos e seus contemporâneos teve importantes conseqüências para a Música Popular Brasileira que se seguiria. Marcos Leite, ao comentar a importância de Villa-Lobos para o canto coral, diz: “Do Villa-Lobos para cá tem uma historinha no canto coral brasileiro. Acho que ele é o cara mais importante, no sentido de utilizar a música folclórica numa estrutura de música européia. Pegar uma técnica de escrita de coro européia (S,C,T e B) e escrever ponto de macumba, escrever ciranda, maracatu, estas coisas. Ele foi o primeiro cara que fez isso. Se não o primeiro, foi o primeiro a ser reconhecido a nível nacional e tal... Acho que ele foi fundamental, genial”. (AFONZO, 2004, p.213) Com a chegada das gravadoras multinacionais ao Brasil e a enorme popularidade alcançada pelo rádio, instala-se um mercado fonográfico em ascensão. É nesta fase, considerada a Época de Ouro da Música Popular Brasileira 3 , que começam a surgir os primeiros grupos vocais, em sua maioria formados apenas por homens. Estes grupos eram, no início, bastante influenciados por grupos vocais estadunidenses, e as principais referências na época eram o The Pied Pipers, grupo vocal que foi ligado à big band, de Tommy Dorsey, e o ∗ Bacharel em Música/ Regência Coral e mestrando em Música/ Composição, ambos pela Escola de Música UFRJ. E-mail: [email protected] 2 O termo música popular brasileira será usado aqui sempre para se referir à canção popular brasileira autoral, normalmente lançada no mercado fonográfico, tendo ou não um êxito comercial. 3 Segundo Severino e Mello (1997) a Época de Ouro, seria o período compreendido entre 1929 e 1945. 1 The Modernaires, que trabalhou por anos com Glenn Miller e sua orquestra. Esses grupos vocais estrangeiros tinham como principal característica o uso da harmonização em bloco (soli) nos arranjos - técnica largamente utilizada na escrita para sopros. Como eram os mesmos arranjadores que escreviam tanto para as big bands quanto para os grupos vocais, podemos supor que a técnica de soli tenha migrado de forma natural para a escrita vocal. Dessa época, podemos destacar, como grupo brasileiro de maior expressão, o Bando da Lua. Formado em 1929, contava com a liderança de Aloísio de Oliveira, que foi o grande responsável pelo lançamento, em 1952, do primeiro LP de João Gilberto, o histórico Chega de Saudade, que se tornou o marco inicial do movimento Bossa Nova que dominaria, por completo, a cena musical brasileira durante toda a década de 50. O grupo Bando da Lua é considerado o precursor de um estilo vocal mais genuinamente brasileiro. Segundo Ricardo Cravo Albin 4 , o conjunto possuía características próprias, apresentando novidades no estilo vocal. O grupo acompanhou, por vários anos, a cantora Carmem Miranda e alcançou grande sucesso, tanto no Brasil quanto no exterior. Embora os arranjos vocais do Bando da Lua não se equiparassem em complexidade aos arranjos dos grupos estadunidenses, eles refletiam uma brasilidade própria, sendo pioneiros no gênero, e tornaram-se uma referência para a nova geração de grupos vocais que surgiria no Brasil ao longo das décadas de 30 e 40, principalmente no Rio de Janeiro. Segundo nos relata Cravo Albin: “O grupo marcou época no cenário musical brasileiro, fundamentalmente pela característica vocal”. A nova geração de grupos vocais que se formou sobre a influência do Bando da Lua foi grande. Entretanto, podemos destacar alguns dos grupos mais importantes dessa segunda fase. São eles: Anjos do Inferno, Quatro Ases e um Coringa, Demônios da Garoa e Os Cariocas, cujos repertórios eram constituídos, principalmente, de sambas e marchas da época. Dentre estes, Os Cariocas se sobressaíram por algumas razões, segundo nos relata Cravo Albin: “O grupo caracterizou-se por seus arranjos vocais que, diferentemente dos conjuntos de sucesso da época de sua formação original, (...) passou a elaborá-los a quatro ou cinco vozes”. Aqui percebemos a importância que tiveram Os Cariocas no desenvolvimento do arranjo vocal na Música Popular Brasileira. Cravo Albin conclui enfatizando a relevância do grupo para o movimento Bossa Nova: “Participou (o grupo) de inúmeros espetáculos de Bossa Nova, sendo o conjunto vocal mais representativo desse gênero”. Kátia Lemos, integrante do Garganta Profunda desde sua formação, nos relata a admiração de Marcos Leite pelo grupo Os Cariocas: “(...) ele (Marcos Leite) fez uma série de arranjos em homenagem, transcreveu arranjos de Os Cariocas, coisas que ele não tinha nem mais escrito, arranjos lindos. Dois arranjos que a gente faz até hoje: “O samba da minha terra” e um outro que Os Cariocas nem cantavam mais, e a gente chamou pra eles verem, mas já tem um tempo”. (BORBOREMA, 2005, p.184) Mais tarde, nos anos 60 e 70, a Música Popular Brasileira sofreria inúmeras transformações no âmbito postural e estético, em grande parte, por influência do rock internacional e, principalmente, dos The Beatles. Certamente, a música coral não escaparia também a estas transformações e influências, segundo observou Roberto Gnattali (LEITE, 1997, p.5). As principais mudanças se deram em três âmbitos: (1) na escolha do repertório a ser cantado, privilegiando a Música Popular Brasileira urbana; (2) na forma de cantar, buscando um timbre próximo ao canto popular; (3) e, por fim, na escrita coral, com arranjos que aproximavam a estética da música popular à composição tradicional para vozes. O canto coral no Brasil emancipou-se, em poucos anos, da postura ortodoxa pela qual era vinculada ao canto lírico e à música erudita, tornando-se um importante meio sócio-cultural de integrar 4 Bando da Lua, Bibiografia. Disponível em http://www.dicionariompb.com.br. Acesso em 07/05/2007. 2 pessoas e fazê-las se expressarem através da música em conjunto, de forma simples e gratificante. Fig. 01 Cobra Coral (Coral da Cultura Inglesa) no Parque da Catacumba, Rio de Janeiro, 1981. É nesse contexto histórico que, em meados da década de 70, Marcos Leite (1953 – 2002) monta o seu primeiro coral, o Coro da Cultura Inglesa, que ficou conhecido como Cobra Coral, grupo vocal que viria a projetá-lo como uma das maiores referências do gênero no Brasil - posição consolidada ao longo das décadas de 80 e 90 com o grupo vocal Garganta Profunda. Marcos Leite nos narra o objetivo do seu trabalho com o Cobra Coral: “Era um trabalho superexperimental. Era um trabalho coral. Eu nunca fui cantor de coro, então eu não tinha nem uma referência de canto coral tradicional. Era uma coisa de usar aquela estética vocal pra mexer com a minha música. Sem nenhuma pré-determinação. Era um trabalho experimental, início de carreira, como se fosse um coro independente, embora tivesse um vínculo com a Cultura Inglesa. A Cultura me dava completa liberdade para trabalhar. Então na verdade a coisa funcionava como coro independente.” (ALFONZO, 2004, p.227) Seus quase quatrocentos arranjos vocais, realizados em grande parte a partir da Música Popular Brasileira, possuem o mérito de terem se tornado peças freqüentes no repertório de inúmeros corais e grupos vocais por todo o país, e também no exterior. A obra de Marcos Leite tem influenciado e estimulado o surgimento de um número expressivo de arranjadores e regentes corais dedicados à MPB, cujo trabalho tem sido o de estender a prática musical à comunidade, através de corais amadores, como os de empresas, escolas, igrejas e obras sociais. MARCOS LEITE Marcos Leal Leite nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 25 de março de 1953. Pianista, arranjador e regente coral, Marcos Leite foi aluno da Escola de Música da UFRJ, onde estudou composição e regência, entretanto, não concluiu a sua graduação. Em 1976, época em que o canto coral no Brasil sofreu relevantes transformações, Marcos Leite funda o Coral da Cultura Inglesa, mais tarde renomeado de Cobra Coral. Esse grupo possuía um perfil bastante inovador, desvencilhando-se de velhos paradigmas consolidados pela música coral erudita européia, como, por exemplo, o timbre característico do canto lírico e a postura sempre estática, séria e polida dos regentes e cantores nas apresentações. Em 1981, o Cobra 3 Coral grava o seu primeiro e único disco intitulado Ao(s) Vivo(s), registro ao vivo do grupo sobre a regência de Marcos Leite. O LP já revela, no seu título, o tom irônico, e, no seu conteúdo, traços estilísticos da escrita do músico em arranjos que se tornariam famosas, como: Lua, lua, lua, lua e Alguém Cantando, de Caetano Veloso, e She´s Leaving Home, dos Beatles. Em mais de três décadas de trabalho com música vocal, Marcos Leite deixou uma obra bastante significativa de arranjos para as mais variadas formações vocais, abrangendo talvez quase todas as fases da Música Popular Brasileira. Este repertório possui desde temas folclóricos, até canções do rock nacional, passando por choros, sambas, bossas novas, músicas da Tropicália e da Jovem Guarda. Seus arranjos refletem particular atenção às características vocais do cantor brasileiro, em especial do cantor amador. Marcos Leite sempre esteve atento a prover o repertório coral com arranjos que atendessem aos diversos níveis de proficiências dos coros. Além do seu conjunto principal de obras, composto de canções brasileiras, Marcos Leite escreveu curiosos arranjos vocais sem letra, como o da marchinha carnavalesca Vassourinhas - peça baseada em sons onomatopaicos e sem nenhum tipo de texto. Podemos destacar como importante obra conceitual, o conjunto de arranjos vocais escritos sobre músicas dos Beatles e gravado no disco Garganta Canta Beatles ao Vivo, de 1993. Muitos de seus arranjos originalmente escritos para quartetos, como é o caso dos destinados ao grupo vocal Garganta Profunda, são freqüentemente cantados por corais, revelando a sua versatilidade e abordagem flexível da realização musical. O músico faleceu prematuramente aos 48 anos, vítima de câncer, no Rio de Janeiro, em janeiro de 2002. GRUPO VOCAL GARGANTA PROFUNDA Fundado por Marcos Leite na capital carioca em 1984 e com o nome inicial de Orquestra de Vozes Garganta Profunda, o grupo contava, na época de sua formação, com 23 integrantes. O grupo vocal Garganta Profunda foi o meio pelo qual Marcos leite pôde se consolidar como uma referência dentro do gênero, difundindo suas idéias inovadoras por todo o Brasil e também no exterior. Com a formação inicial, em 1986, lançou seu primeiro disco homônimo. No ano seguinte, com o número de integrantes já bastante reduzido e adotando o nome pelo qual é conhecido até hoje, o grupo gravou o seu segundo disco, Yes, nós temos Braguinha. Aliando recursos cênicos, técnica vocal apurada e arranjos modernos, o grupo tornou-se bastante conhecido e respeitado. Mesmo após a morte de Marcos Leite, o Garganta Profunda tem mantido um atividade expressiva, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, apresentandose regularmente em importantes encontros sobre música vocal/ coral e divulgando os arranjos de Marcos Leite ao longo de duas décadas e oito CDs gravados. DISCOGRAFIA DO GRUPO VOCAL GARGANTA PROFUNDA 1986 - Orquestra de Vozes A Garganta Profunda - Selo Arco e Flecha - LP 1987 - Yes, nós temos Braguinha: 80 anos -Funarte - LP e CD 1991 - Isto é Que é MPB – CID - CD 1993 - Garganta Canta Beatles: Ao vivo – CID - CD 1995 - Vida, Paixão e Banana: Garganta Profunda Canta Tropicália – Albatroz - CD 1998 - Deep Rio - Independente - CD 2000 - Chico & Noel em Revista - Independente - CD 2003 - Cantando a História - Positivo - CD 5 5 Primeiro e único Cd do grupo sem Marcos Leite. 4 SOBRE O SAMBA LATA D’ÁGUA O COMPOSITOR O autor da música de Lata D’água ficou conhecido como Luis Antonio, mas o seu verdadeiro nome era Antonio de Pádua Vieira da Costa. Foi compositor de sucessos do carnaval carioca como, por exemplo, Sassaricando, tendo também atuado muitas vezes como letrista. Começou a compor a partir de 1944, quando deixou a Escola Militar de Realengo como aspirante. Freqüentou também o Colégio Militar do Rio de Janeiro, onde compôs inúmeras músicas que eram cantadas nas solenidades desta instituição, tendo criado ainda o Hino da Escola Militar, até hoje cantado como hino oficial da escola. Construiu uma carreira militar paralela a de compositor popular, tendo estado em combate na Segunda Guerra Mundial como tenente na campanha da FEB. Nos últimos anos de sua vida, trabalhou como funcionário público no Museu do Carnaval, na Praça da Apoteose. O LETRISTA O autor da letra de Lata D’água foi Jota Junior, cujo nome completo era Candeias Jota Júnior. Começou a compor no início dos anos 50, com o pseudônimo de Jota Jr. e chegou a um impressionante número de quase duzentas obras gravadas por diversos cantores. Suas composições ficaram bastante conhecidas em boa parte do Brasil, dentre as quais podemos citar: Sapato de Pobre é Tamanco, Confeti - Pedacinho Colorido de Saudade, Favela Amarela, Garota de Saint Tropez e inúmeras outras. Pesquisando sobre a parceria de Jota Jr. com Luiz Antonio, chegamos à história da marchinha Sassaricando, escrita no final de 1951 sob encomenda da atriz Virginia Lane para o carnaval de 1952. A canção foi apresentada, pela primeira vez, no Teatro Recreio, onde Walter Pinto montava peças de grande sucesso todos os anos. A marchinha agradou muito aos presentes e, poucas semanas após o lançamento do registro fonográfico, alcançou enorme sucesso em todo o país, motivo pelo qual Walter Pinto não hesitou em incluir a música na sua peça teatral, trocando o título original de Jabaculê de Penacho para Eu Quero Sassaricar. A LETRA DE LATA D’ÁGUA Lata d’água na cabeça Lá vai Maria Lá vai Maria Sobe o morro e não se cansa, Pela mão leva a criança... Lá vai Maria! Maria lava a roupa lá no alto Lutando pelo pão de cada dia Sonhando com a vida do asfalto Que acaba onde o morro principia. 5 A PRIMEIRA GRAVAÇÃO O primeiro registro fonográfico do samba Lata D’água, que se tem conhecimento, é da gravadora Columbia, em disco de 78 rpm feito em 1951, e lançado no ano seguinte pela cantora Marlene, com arranjos de Radamés Gnattali, que também acompanha a cantora na gravação, com a sua orquestra. Esse samba tornou-se logo um enorme sucesso no carnaval daquele mesmo ano e inúmeras regravações a partir dele foram feitas. Entre as mais famosas estão as de Jair Rodrigues e a do grupo vocal MPB-4. Severino e Mello nos relatam o enorme sucesso que fazia a dupla de compositores na época: “Uma das raras duplas de talento formadas nos anos 50 para se dedicar ao repertório carnavalesco, Luis Antonio e Jota Junior, já tinham feito sucesso no ano anterior com o samba Sapato de Pobre”. (SEVERINO E MELLO, 1997, p. 292). Sucesso este, também cantado por Marlene. Comentando a história do samba, Severino e Mello nos trazem um breve relato do que inspirou os parceiros a escrevem o samba: “Na ocasião, capitães do Exército, servindo na Escola Especializada da Academia Militar, os dois passavam diariamente por um morro ao pé do qual uma bica servia aos moradores. A inspiração nasceria ao verem a cena que descreveram na composição: uma negra equilibrando uma lata na cabeça, enquanto levava uma criança pelo braço”.(SEVERINO e MELLO, 1997. p.292) O ARRANJO VOCAL DE MARCOS LEITE No prefácio do livro O Melhor de Garganta Profunda, Marcos Leite nos relata que este arranjo foi escrito para o coral Brasileirão, grupo que ele dirigia no Conservatório de MPB de Curitiba. Fig. 02 Capa do Livro O Melhor de Garganta Profunda Pela não disponibilidade da gravação feita pela Brasileirão, baseamos a nossa escuta no registro feito pelo do grupo vocal Garganta Profunda. A gravação deste arranjo encontra-se no CD Deep Rio, lançado em 1998; já a partitura, no livro O Melhor de Garganta Profunda. Em linhas gerais, o arranjo se assemelha muito à outros escritas por Marcos Leite para o Garganta 6 Profunda, nos quais o elemento recorrente seria o estilo vocal-band, muito utilizado pelos grupos vocais, como Swingle Singers e Take Six. Esta técnica de escrita vocal seria, a grosso modo, a adaptação para vozes do arranjo instrumental de uma canção popular, mas sem deixar de aproveitar os recursos que são peculiares à escrita para vozes. No caso de Marcos Leite, somou-se ainda a influência de grupos vocais brasileiros surgidos a partir da primeira metade do século XX, tais como: Anjos do Inferno, Quatro Ases e um Coringa, Bando da Lua, os Cariocas, Demônios da Garoa etc. Grupos que Marcos Leite admirava e estudava, segundo Kátia Lemos em entrevista concedida à Denise Borborela: “Uma coisa que a gente também fez bastante no início foi estudar grupos vocais, ele estudava, e a gente estudava também, por conta disso a gente fez uma série de arranjos antigos, do Bando da Lua, Quatro Ases e um Coringa. Ele tinha esse prazer, especialmente com o Bando da Lua e Demônios da Garoa, de São Paulo, (...)”. (BORBORELA, 2005, p.183 a 184) Fig. 03 Capa do Cd Deep Rio do Garganta Profunda ASPECTOS GERAIS SOBRE A FORMA DO ARRANJO A canção possui uma forma binária (A-B). Existe uma introdução que é cantada duas vezes e segue para a seção A, que é repetida uma vez, fixando assim a idéia principal ou refrão do samba. Logo após, temos a seção B e, em seguida, o retorno à introdução, que é usada como intermezzo para se repetir toda a canção. Ao término das repetições, reaparece a introdução - neste momento sendo usada como uma codeta. A forma total do arranjo se estabelece no seguinte esquema: Introdução Seção A Seção B Intermezzo Seção A Seção B Codeta 2 vezes 2 vezes 1 vez Intro. 2 vezes 2 vezes 1 vez Intro. 1 vez Fig. 04 Tabela com a forma do arranjo vocal 7 Transcrevemos agora a forma encontrada na gravação original: Introdução Seção A Seção B Seção A 1 vez 2 vezes 1 vez 2 vezes Intermezzo Instrumental Seção A Seção B Seção B 2 vezes 1 vez transposta 1 vez Fig. 05 Tabela com a forma do arranjo original Seção A Codeta 1 vez Intro. 1 vez A forma apresentada por Lata D’água era bastante recorrente nos sambas carnavalescos da época. Dentre outros sambas das décadas de 40 e 50 que apresentam a mesma forma temos: Cabeleira do Zezé, Bandeira Branca, Chiquinha Bacana e muitos outros. É importante enfatizar que, com exceção do intermezzo modulante, a forma original foi mantida pelo arranjo vocal. MEIO/ EXTENSÕES Esse arranjo foi escrito para uma formação coral “quase” tradicional, ou seja, coro misto a quatro vozes. “Quase” tradicional porque a configuração Standard seria SCTB, disposta desta forma: soprano, contralto, tenor e baixo. Entretanto, Marcos Leite substitui este último por um registro de barítono. Damos a voz ao próprio Marcos Leite que nos justifica o porquê dessa escolha: “Nós não temos baixos, e sim barítonos. As melodias escritas com notas abaixo do lá1 não soam muito bem nos nossos corais” (LEITE, 1995, p.5). Tratemos agora das extensões utilizadas para cada naipe. Para o soprano, foi utilizada a extensão que vai do la2 ao mi4, que é um registro relativamente grave para essa voz. Leite, mais uma vez, vem nos explicar este procedimento, apontando, como justificativa para esta tessitura, o problema da articulação do texto. Concordamos com André Protásio quando comenta esta posição de Leite e acrescenta que existe também uma problemática estilística. Segundo Protásio: “Melodias com letra, cantadas pelo soprano em uma região muito aguda, se distanciam das referências de canto popular brasileiro e se aproximam do canto erudito”. (PROTÁSIO, 2006. p.135). Isso explica porque a extensão do soprano é reduzida (la2 ao dó4), quando este naipe está com a melodia, e expande para o agudo nos contracantos (mi3 ao mi4). Marcos Leite, conhecendo o pouco brilho e volume que o soprano possui na região grave, usa o Contralto em uníssono com este sempre que o soprano atinge notas mais graves, como nos compassos 15 e 37. A extensão total 6 do naipe de contralto é a própria extensão da melodia da música, ou seja, do la2 ao dó4. Marcos Leite usa, neste naipe, o mesmo procedimento adotado no soprano: nos compassos 27 e 35, quando o contralto atinge as notas mais agudas, o naipe está em uníssono com o soprano. A extensão do contralto nos contracantos é reduzida a uma oitava, limitando-se à tessitura, que vai do lá2 ao lá3. O tenor equipara-se em extensão com o soprano, do mi2 ao fá3, excetuando assim o fato de que a região grave do naipe não é usada em momento algum do arranjo e que, como o soprano, não tem muito brilho. Quando o tenor está com a melodia principal, a sua tessitura se reduz a uma sexta menor, do mi2 ao dó3, enquanto, nos contracantos, o naipe faz uso de sua 6 A expressão Extensão total aqui se refere ao âmbito compreendido entre a nota mais aguda e a mais grave usada por cada naipe dentro do arranjo. 8 extensão total. O fá3 - nota mais aguda para o tenor neste arranjo - aparece apenas nos compassos 55 e 56. O naipe de barítono tem a sua extensão total compreendida entre o lá1 e o mi3. Esta é a mesma tessitura usada pelo naipe para cantar os contracantos. Contudo, quando o barítono está com a melodia principal, a sua extensão se reduz um pouco, ficando entre o lá2 e o dó3. Se confrontarmos as extensões de todos os naipes neste arranjo, chegaremos a algumas conclusões como, por exemplo, a existência de um faixa única para os uníssonos entre as vozes femininas, que vai do lá2 ao dó4, e para as vozes masculinas, compreendida entre o mí2 e o dó3. Se ordenarmos as extensões totais por tamanho, encontraremos o naipe de soprano e de barítono sendo possuidores da maior extensão entre todas as vozes, ou seja, uma oitava + uma quinta justa. Em seguida, o contralto com a segunda maior extensão, uma oitava + uma terça menor. E, por último, o tenor, como a menor extensão de todas, uma oitava. Podemos concluir afirmando que as tessituras usadas neste arranjo, confirmam o que o próprio Marcos Leite propõe em sua apostila de arranjo vocal. RESUMO DAS EXTENSÕES Vozes Soprano Contralto Tenor Baritono Melodia Principal Contracanto Extensão Total Lá2 ao Dó4 Mí3 ao Mí4 Lá2 ao Mí4 Lá2 ao Dó4 Lá2 ao Lá3 Lá2 ao Dó4 Mí2 ao Dó3 Mí2 ao Mí3 Mí2 ao Mí3 Lá1 ao |Dó3 Lá1 ao Mí3 Lá1 ao Mí3 Fig.. 06 Tabela com todas as extensões usadas no arranjo vocal. GRAVAÇÕES DE REFERÊNCIA Vamos analisar os procedimentos composionais desse arranjo através de três instâncias de representação relacionadas à obra. São elas: uma gravação feita em 1951 pela Marlene, lançada em disco de 78 rpm No.16509 7 pela gravadora Columbia no ano 1952, com arranjo e acompanhamento de Radamés Gnattali e sua orquestra; a partitura do arranjo vocal de Marcos Leite; e a gravação deste arranjo pelo grupo vocal Garganta Profunda presente no CD Deep Rio, lançado em 1998. Tentaremos correlacionar os processos composionais adotados pelo arranjador com o registro lançado em 1952 e, em seguida, confrontar a partitura com resultado estético alcançado pela execução do Garganta Profunda. Sabemos que existem inúmeros registros sonoros feitos a partir deste samba, contudo, ouvindo boa parte dessas gravações, podemos supor que este registro da cantora Marlene, de 1952, em especial, tenha servido de referência para o arranjo vocal de Marcos Leite devido à tamanha similaridade de idéias encontradas em ambos. O próprio Marcos Leite recomenda, na sua apostila de arranjo vocal, que se estimule o processo de criação pesquisando diferentes versões gravadas da mesma música a ser arranjada (LEITE, 1995. p.6) 7 O instituto Moreira Salles possui um exemplar desse disco catalogado na coleção Humberto Franceschi. 9 HARMONIA E TEXTURA Vamos analisar a harmonia do arranjo de Marcos Leite e compará-la à harmonia da gravação de 1952. Apesar de na gravação original encontrarmos uma orquestração que envolve um grande número de instrumentos de sopro, a harmonia é bastante simples, e se repete sem variações. O acorde de Am6 que permeia os cinco primeiros compassos da introdução (mais de 50% desta parte, já que ela possui nove compassos), dá a esse trecho inicial um sabor bastante modal (Lá Dórico), que se torna ainda mais evidente com a progressão Am6 / F#m(b5) / Am6, encontrada nos compassos seguintes. O uso do acorde Am6 permeia todo o arranjo, fazendo com que a harmonia pareça sempre meio híbrida, meio tonal, meio modal. Tal procedimento harmônico está presente também no arranjo de Radamés Gnattali, o que nos leva a supor que a idéia foi aproveitada por Marcos Leite no seu arranjo vocal. Vamos agora nos deter um pouco a Radamés Gnattali. Ele era um compositor erudito que, esteticamente, pertencia ao movimento nacionalista e, como sabemos, os compositores do nacionalismo faziam largo uso do sistema modal, pois o consideravam mais próximo da música brasileira do que o sistema tonal, tendo em vista que boa parte do folclore brasileiro é modal. É bem possível que Radamés quisesse estabelecer este “clima” harmônico melódico brasileiro antes de entrar com a parte cantada. Prosseguindo a análise e a comparação entre as harmonizações, encontramos no arranjo do Marcos Leite alguns acordes com função dominante secundária. Nos compassos 16, 22, 32 e 38 temos o acorde de F7 funcionando como um dominante da dominante principal, neste caso um acorde tipo Sub V, que resolve por aproximação cromática descendente com o acorde dominante seguinte (E7). Nesses mesmos lugares, nós encontramos o acorde Bm7(b5), IIº do tom principal no arranjo de Radamés. Ainda tratando dos dominantes secundários, há um outro caso no compasso 46 e 47, onde o acorde A7(b9) depois A7/C# é o dominante do IV grau (Ré menor). No arranjo original também é possível achar este dominante, entretanto, sem a dissonância b9 e no estado fundamental. Existe também, no arranjo de Marcos Leite, muito uso dos acordes invertidos, como nos compassos 13, 20, 47 e 49, resultando, com isso, numa boa condução da linha do barítono. Tais inversões não se encontram no arranjo de Radamés. Nos compassos 35 e 56, Marcos Leite substitui o V7 grau pelo VIIº. No arranjo original, nesses trechos, temos apenas o acorde de I grau (Lá menor). Concluindo, além de tudo que já foi dito, devemos ressaltar que Marcos Leite adicionou 6, 7, 7M, b9 e 11 aos acordes que, no arranjo de Radamés, era apenas tríades. Dessa forma, podemos dizer que houve um trabalho de re-harmonização do arranjador vocal. De modo geral, nos parece que as mudanças aconteceram motivadas por dois aspectos: primeiro, a intenção de tornar as linhas melódicas bastante cantáveis, e, segundo, para dar ao arranjo vocal um caráter moderno, mediante à exploração de uma harmonia mais próxima da atual Música Popular Brasileira. Concordamos com esse procedimento de Marcos Leite, pois, lembrando que esse samba foi escrito no início da década de 50 para que hoje fosse ouvido novamente com interesse, se fez necessária uma “atualização” harmônica. De forma alguma acreditamos que isso tenha descaracterizado a canção. A partitura a seguir ilustra o que já foi dito até aqui, expondo os dois processos harmônicos, a harmonia original da gravação de 1952, acima da pauta, e a re-harmonização proposta pelo arranjo vocal de Marcos Leite, abaixo da mesma. 10 Fig 7 Partitura de Lata D’água apresentando a harmonia original e a re-harmonização. 11 Com relação ao aspecto textural deste arranjo vocal, podemos dizer que o arranjador se preocupou em trabalhar com texturas variadas, tendo sempre em vista a clareza formal da peça. Como se trata de uma canção, a riqueza textural traz mais fluidez às linhas vocais do arranjo. Na introdução deste, encontramos um motivo rítmico em soli quase totalmente paralelo nas vozes femininas, sendo respondido com outro motivo, também rítmico, em uníssono pelas vozes masculinas. Esse esquema estabelece um contraponto no estilo “pergunta e resposta”. Nos três últimos compassos da introdução, as quatro vozes entram em um soli livre para encerrar o trecho. Na seção A, as vozes masculinas iniciam a melodia principal em uníssono, sendo respondidas pelas vozes femininas em soli, com o motivo rítmico que era das vozes masculinas na introdução. Em seguida, o barítono segue com um fragmento da melodia, sendo agora respondido pelas três vozes - soprano, contralto e tenor - em soli. Após isso, as vozes femininas assumem a melodia em uníssono, tendo por acompanhamento as vozes masculinas fazendo motivos rítmicos provindos da introdução em soli. O tenor segue com a melodia e é respondido pelas vozes femininas com o motivo rítmico da introdução e, após a melodia, passa para o barítono, sendo acompanhado pelas três vozes em soli cantando motivos rítmicos variados dos motivos da introdução. Em seqüência, todas as vozes se unem em soli para encerrar a primeira exposição da seção A. Em linhas gerais, esta seção pode ser entendida como possuindo uma textura predominantemente homofônica, isto é, apresentando sempre uma melodia principal que, em algum momento, foi cantada por uma das vozes e sendo, por fim, cantada por todos os naipes. A variedade textural está na forma como o acompanhamento se relaciona com a melodia principal. Nesta seção, o acompanhamento é feito, quase sempre, por motivos rítmicos oriundos integralmente da introdução ou variados destes. O contraponto no estilo “pergunta e resposta” é usado para preencher os espaços da melodia. Encontramos nesta seção, também como na introdução, o uso do tutti em soli para encerrar o trecho. O arranjador usa o uníssono entre as quatro vozes para iniciar a repetição da seção A, com exceção apenas para o tenor na anacruse. Segue aqui o jogo de “pergunta e reposta” entre as vozes: primeiro, as vozes femininas em uníssono são respondidas pelas vozes masculinas; em seguida, as vozes femininas seguem com a melodia em uníssono, sendo acompanhadas pelas vozes masculinas com notas longas que lembram um contraponto passivo. Mais uma vez, encontramos o soli a quatro vozes para encerrar a re-exposição da seção A. Se compararmos a primeira exposição da seção A com a sua repetição, concluiremos que houve uma variação textural, pois na primeira exposição encontramos uma recorrência dos acompanhamentos em motivos rítmicos e, na repetição, notas longas nos acompanhamentos. Na seção B, encontramos um misto dos procedimentos presentes nas seções anteriores. A seção B inicia-se com o contralto cantando a melodia, sob o acompanhamento das outras vozes e com notas longas. No intervalo da melodia, encontramos as vozes masculinas fazendo um contracanto rítmico com os motivos já conhecidos. Em seguida, o soprano canta a melodia e o acompanhamento de notas longas se mantém nas outras vozes. Neste momento, o barítono assume a melodia, sendo acompanhado pelas outros naipes com os motivos rítmicos em soli. A seção B se encerra como as outras, com todas as vozes cantando a melodia em soli quase totalmente paralelo. Este momento nos parece o clímax do arranjo, quando o movimento ascendente das vozes leva o tenor e o barítono a atingirem suas notas mais agudas, respectivamente fá3 e mí3. Concluímos então que as principais características texturais deste arranjo são: homofonia (melodia acompanhada); contracantos (pergunta e resposta), sendo usados para preencher espaços da melodia; motivos rítmicos (no estilo vocal-band), que caracterizam o gênero samba; a melodia, que “passeia” pelos naipes em um estilo que lembra as 12 orquestrações de Glenn Miller; e o uso das variações entre uníssono, soli a duas, três e quatro vozes. A tabela abaixo resume a textura do arranjo vocal: Seções Compassos Introdução 01 ao 08 A A’ B Frases s1 Compassos 01 ao 04 s2 05 ao 08 a1 09 ao 16 a2 17 ao 24 a’1 25 ao 32 a’2 33 ao 39 b1 40 ao 43 b2 44 ao 47 09 ao 23 25 ao 39 40 ao 55 b3 48 ao 51 b4 52 ao 55 Fig. 08 Tabela de Textura Texturas Soli a2 Uníssono Soli a4 Uníssono Soli a2 Estruturas Rítmicas Soli a3 e 4 Uníssono Estruturas Rítmicas Uníssono Soli a2 e 4 Uníssono Soli a2 e 4 Contracantos Passivos Soli a2 Contracanto Passivo Estruturas Rítmicas Soli a3 Contracanto Passivo Soli a3 Estruturas Rítmicas Soli a4 MELODIA E RITMO Como já vimos anteriormente nos outros tópicos, em certos momentos o arranjador fez uso de dobramentos em uníssono com a intenção de dar reforço à melodia principal ou aos contracantos. Encontramos uníssonos entre as vozes masculinas nos compassos 2, 4, 11 e 27; e, entre as vozes femininas, nos compassos 15, 20, 26, 27, 29, 30, e do 34 ao 37. Nos compassos 26 e 27, encontramos um uníssono entre soprano, contralto e barítono, oitava a baixo das vozes femininas. O uníssono entre as quatro vozes foi achado apenas uma vez em todo o arranjo, no inicio da seção A’. Existe, neste arranjo vocal, uma tendência à condução paralela entre as vozes. Esta técnica de escrita em blocos harmônicos (soli) nos remete aos arranjos de grupos vocais, tais como: Bando da Lua, Os Cariocas, Demônios da Garoa etc. Marcos leite conhecia bem esse tipo de escrita, pois transcreveu arranjos vocais de gravações de vários desses grupos e os inseriu nas apresentações do grupo Garganta Profunda. Como já foi visto antes, um dos principais momentos de paralelismo do arranjo são os cinco últimos compassos, quando as quatro vozes mantêm o movimento em toda a frase final. A harmonização em bloco, também conhecida como Soli 8 , surgiu primeiro na escrita para instrumentos de sopro e depois foi introduzida na escrita vocal. Tal técnica foi amplamente utilizada na escrita instrumental por compositores como: Debussy, Ravel, De 8 Termo em italiano que significa o plural de solo. 13 Falla, Respighi etc. Segundo Carlos Almada: “a técnica de soli (também conhecida por “escrita em bloco”) é, sem dúvida, a mais bem documentada de todo o estudo do arranjo.” (ALMADA, 2000. p.133). Comentando o soli paralelo, Ian Guest diz que este movimento ressalta a melodia e traz leveza ao arranjo, sem sacrificar a harmonia (GUEST, 1996, p.112). Hawley Ades concorda com Guest na questão de que a movimentação paralela traz fluidez e leveza ao arranjo vocal, mas acrescenta que, no entanto, o movimento contrário torna a harmonia mais clara, e conclui dizendo que a alternância dos movimentos é sempre bemvinda (ADES, 1986, p.53). Podemos assim concluir que Marcos Leite utilizou o soli paralelo em trechos do arranjo para ressaltar a melodia e proporcionar leveza e fluidez ao todo. O arranjador trabalha a melodia principal de diversas formas e com grande liberdade, evitando assim a pura e simples repetição. É o que acontece na sessão B, onde o contralto canta a primeira frase; o soprano, a segunda; o barítono, a terceira; e a seção se encerra com todos cantado a frase final. Esta, por sua vez, é ressaltada com os acordes em movimento paralelo, enriquecidos pela re-harmonização do arranjo. Com relação ao ritmo, devemos aqui analisá-lo tendo em vista o uso que Marcos Leite fez dele nos contracantos que acompanham e respondem à melodia principal. Quando as vozes não estão cantando o texto, o arranjador faz uso de apenas dois tipos de prosódia. As notas longas (semínimas e mínimas) são vocalizadas com a vogal “o” - nesses casos, as linhas cumprem a função de sustentar os acordes de acompanhamento que, em geral, são escritos utilizando duas (c. 34 a 38, vozes masculinas) e três vozes (c.46 a 49, contralto, tenor e barítono) que encontram-se harmonizadas em intervalos de terças ou sextas, com quase total predominância do movimento paralelo entre as vozes. Nas notas curtas (colcheias e semicolcheias), o arranjador fez uso das sílabas “pa – ra”, onde a consoante de explosão “p” é usada para proporcionar precisão rítmica aos motivos e a consoante “r” tem a função de proporcionar um efeito percussivo ao ritmo; já a vogal “a”, define a altura das notas e ajuda a sustentá-las. Como já dissemos antes, estes motivos rítmicos que acompanham e/ou respondem a melodia principal foram extraídos da introdução, onde alguns aparecem inalterados (compassos 12 e 14 nas vozes femininas) e outros variados (compassos 16 e 17 nas vozes masculinas). A mudança mais radical dos motivos da introdução encontra-se nos compassos 50 a 53, onde houve uma mudança de acentuação dos motivos. André Protásio, comentando esse trecho, diz: “O ritmo desse trecho se assemelha muito com o ritmo de um tamborim no samba”. (PROTÁSIO, 2006, p.109). Existe uma grande recorrência desses motivos rítmicos, que funcionam dialogando com a melodia principal e também a acompanhando de forma eficiente, trazendo unidade e fluência ao arranjo. Estes motivos rítmicos extraídos do instrumental do samba, como observou Protasio, auxiliam a sustentação e a condução rítmica e, sobretudo, caracterizam o gênero samba em um arranjo vocal a cappella, um meio de execução muito diferente do original. É interessante observar como Marcos Leite varia o acompanhamento sempre subordinado ao caráter da melodia principal que, se está ritmicamente mais ativa, conduz por si só a rítmica do samba. Quando ela se encontra menos ativa, em silêncio, ou sustentando longas notas, o arranjador escreve linhas rítmicas que mantenham o fluxo constante do ritmo de samba no arranjo. CONCLUSÕES Neste momento, retomaremos as nossas comparações entre a gravação que adotamos como referencial para o arranjador vocal, ou seja, a datada de 1952, cantada por Marlene, com arranjo e acompanhamento de Radamés Gnattali e sua orquestra. Confrontaremos esse 14 registro com as informações encontradas na partitura do arranjo de Marcos Leite e, por fim, faremos comparações entre a partitura e a gravação feita em 1998 desse arranjo pelo grupo vocal Garganta Profunda no Cd Deep Rio. A primeira observação que faremos se encontra já no início da gravação, onde um grupo de sopros expõe toda a introdução, totalmente transcrita para vozes e aproveitada por Marcos Leite em seu arranjo. Os motivos expostos por Radamés, nesse momento, permeiam todo o samba, seja respondendo à melodia principal, preenchendo espaços desta, ou conduzindo o ritmo. Na gravação original, pode ser ouvida também uma seção de instrumentos de percussão que acompanha toda a obra, proporcionando o fluxo rítmico do samba, reforçado em muitos momentos pela intervenção dos sopros. Como vimos anteriormente, todas estas idéias de aproveitar fragmentos rítmicos da introdução no decorrer da peça foram, de alguma forma, aproveitadas por Marcos Leite no seu arranjo vocal. Outra similaridade do arranjo original com o vocal é a forma como foram dispostas as partes da melodia, divididas entre a cantora solista e o coro (sempre em uníssono) no arranjo original. No arranjo de Radamés, os tuttis se encontram nos finais das frases e no início da re-exposição da seção A, exatamente como no arranjo de Marcos Leite. Na seção B, a melodia principal é toda da cantora solista, excetuando o tutti no final da frase. Essa mesma conformação está presente também no arranjo vocal, sendo a melodia apenas partilhada entre os naipes. Podemos concluir, então, o quanto foi fundamental para a construção do arranjo vocal a audição de referida gravação. Aspectos essenciais do arranjo vocal foram oriundos da gravação. Acreditamos que, com isso, o arranjador tenha conseguido trazer para o arranjo vocal toda a estética da gravação original do samba. Tratando agora da execução da partitura pelo grupo vocal Garganta Profunda, já de início percebemos uma seção que precede a introdução. Esta seção não está representada na partitura porque trata-se de um improviso, onde os membros masculinos do grupo simulam vocalmente, em entradas sucessivas, os instrumentos de percussão encontrados no samba. Este trecho nos remete à sonoridade de um pequeno bloco carnavalesco. O barítono inicia a seção imitando um surdo; em seguida, entra o tenor simulando um tamborim; em seqüência, surge uma voz masculina imitando um chocalho; e, por fim, uma outra voz sugere uma caixa clara. Devemos supor aqui que houve uma sobreposição das vozes masculinas, já que, na época desta gravação, o grupo contava apenas com cinco integrantes, incluindo o próprio Marcos Leite. Essa pré-introdução, se escrita, compreenderia oito compassos. Nos compassos 8 e 9 as pautas estão vazias, o arranjador escreve, em cima do sistema, a seguinte sugestão: “Solo vocal livre, sugerindo ritmo de samba”. Aqui temos os “instrumentos” da introdução improvisada solando livremente. Acreditamos que a idéia do improviso no início da gravação provenha das interessantes soluções que o grupo tenha encontrado para este trecho. Tratando agora das recorrências desses eventos ao longo da gravação, podemos dizer que o surdo vocal do barítono permeia toda a execução, seguido pela caixa - esta substituída apenas na Seção B por um chocalho e, vez por outra, aparece uma voz imitando um pandeiro. Na repetição da peça, surge uma voz masculina que improvisa frases com sabor jazzístico, imitando o que nos parece um instrumento de sopro. Temos a impressão de que se trata de um tipo de pastiche, ou seja, uma referência irônica ás primeiras influências do Jazz norteamericano sobre os sambas gravados na Brasil a partir da década de trinta. Nesta análise foi impossível ignorar essas gravações, pois elas trouxeram a compreensão sobre inúmeros aspectos do fazer criativo do arranjo e de sua execução. Esperamos que este estudo analítico tenha, de alguma forma, exemplificado os processos que permeiam o trabalho do arranjador vocal e que, de algum modo, sejam compreendidos e absorvidos pelo regente coral que pretende uma execução estilisticamente correta desses gêneros de música popular, aproximando-a da realidade que ela pretende caracterizar, evitando, assim, uma execução 15 equivocada de arranjos como este, que foram escritos para soar como Música Popular Brasileira, e não como peças de concerto. Uma última observação pode ser feita: como o arranjo vocal quase sempre trabalha com elementos oriundos das gravações, enfatizamos a enorme importância de se aprofundar as informações sobre o compositor popular e sua obra, incluindo a sua história e o contexto no qual a canção foi composta, de ouvir diferentes gravações da mesma música e procurar ter o conhecimento técnico e estilístico dos gêneros sobre os quais se pretende arranjar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADES, H. Choral arranging. 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