Redução de leitos Ansiedade A busca pela perfeição

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ANO 07
IMPRESSO E ON-LINE - BOLETIM Nº 26
OUT/NOV/DEZ - 2014
CONFIRA TAMBÉM
Redução de leitos
Ansiedade
A busca pela perfeição
Fechamento de quase 15 mil leitos
destinados à internação Pág. 3
Doença afeta pelo menos 20% da população
de São Paulo Pág. 6 e 7
Crítica do filme Cisne Negro
Pág. 7
CANAL ABERTO
MORADORES DE RUA
PELO CAMINHO
Caminhando pelas ruas sujas da cidade para chegar ao trabalho, deparei-me com
várias pessoas dormindo nas calçadas, sob o sol da manhã, em geral enroladas num
cobertor em frangalhos, quando não cobertas apenas por um pedaço de papelão.
Sensibilizei-me duramente. Cada uma com sua história de vida, com sua experiência mal sucedida, denunciando que tem aí algo de muito errado. Uma delas era
um menino bonito, loiro de olhos azuis, muito comprometido pelo uso de alguma
substância psicoativa, com um cigarro na orelha, falando coisas sem nexo, andando
a esmo e se colocando em situação de risco, no meio do trânsito conturbado da
cidade. Penso que para chegar a esse ponto, faltaram laços familiares e políticas
de educação e de saúde, que deveriam ter sido implementadas há anos.
Essas pessoas têm direitos renegados pelo Estado. São criaturas que estão desamparadas, na linha extrema da miséria e promiscuidade e à mercê da própria sorte.
Muitos dos moradores de rua são portadores de transtornos mentais que não são
tratados por absoluta falta de acesso ao precário sistema de Atenção à Saúde Mental.
Por mais que se divulguem alternativas a esses cidadãos, na prática, o caminho
da rua é o que mais se vê.
Com a ânsia instituída nas três esferas do governo de fechar leitos psiquiátricos,
faz com que essa estatística aumente ainda mais. São mais moradores de rua que
não têm acesso ao tratamento e que adotarão as vias públicas como a única opção
de vida. São abandonados pelas famílias e pelo Estado. O CREMESP estudou o
assunto e disse que essa população aumenta a cada ano e que tem maior risco de
desenvolver doenças cardiorrespiratórias e até tuberculose. O estudo aponta que
entre os transtornos psiquiátricos, a depressão, a esquizofrenia – principalmente
nas mulheres – e quadros psicóticos, associados ou não à dependência de álcool
ou drogas, são os mais frequentes. Segundo um estudo da FIPE, é comum o uso
de substâncias psicoativas pelos moradores de rua. Entre uma amostra aleatória da
população de desabrigados do centro da capital, 74% dos entrevistados admitiram
consumir álcool, drogas ou ambos. Considerando apenas as pessoas entre 18 e 30
anos, esse número chega a 80%. Muitos vão parar nas ruas por serem portadores
de uma doença psiquiátrica e, o contrário também acontece, ou seja, muitos desencadeiam distúrbios mentais pelo fato de morar nas ruas.
A pobreza extrema é outro coadjuvante para o aumento dessa marginalizada
população. Estudos comprovam que a mortalidade dessas pessoas é quatro vezes
superior à da população em geral, pela vulnerabilidade a que estão expostas. A
vulnerabilidade passa pela má alimentação, precárias condições de higiene, exposição ao sol e ao frio, uso e abuso de álcool e outras drogas, desmascarando uma
impiedosa realidade. Do que adianta apregoar uma política que pouco oferece,
que tem estruturas cujos alicerces semelham a castelos de areia e que não dá o
acolhimento que essas pessoas precisam?
Após o longo período de eleições que vivemos
no país, é hora de focarmos as atenções para as
propostas que virão, de fato, de todas as esferas
de poder, a fim de tirar os cidadãos brasileiros
deste flagelo. Pois de nada terá adiantado todo
o clamor democrático do voto se nós, como
representantes da sociedade, não apontarmos
os nossos dedos indicadores para os políticos,
e as políticas aí instituídas. É preciso cobrar
mudanças em relação ao cuidado com a saúde
mental das pessoas e, sobretudo, resgatar
nossa capacidade de indignação. Porque não
dá para se acostumar com o abandono. Ao
menos eu não consigo. E você?
*Ricardo Mendes coordena o departamento
de Saúde Mental do SINDHOSP
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EXPEDIENTE
Saúde Mental em Foco é uma
publicação do SINDHOSP
DIRETORIA:
EFETIVO
Yussif Ali Mere Jr. (presidente)
EDITORA:
Ana Paula Barbulho (MTB 22170)
REDAÇÃO E REVISÃO:
Ana Paula Barbulho, Aline Moura,
Fabiane de Sá e Rebeca Salgado
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA:
Carlos Eduardo, Felipe da Fonseca
(Marketing)
COLABORARAM NESTA EDIÇÃO:
Ricardo Mendes, coordenador de Saúde
Mental do SINDHOSP, e Carlos Eduardo
Silva (Marketing)
TIRAGEM:
2.000 exemplares
CIRCULAÇÃO:
Entre diretores e administradores de
hospitais psiquiátricos e clínicas
PERIODICIDADE:
Trimestral
FOTOS MATÉRIA CAPA:
Thinkstock
DEMAIS FOTOS:
Thinkstock e divulgação
CORRESPONDÊNCIAS PARA:
Assessoria de Imprensa
R. 24 de Maio, 208 - 14º andar
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NOTÍCIAS
IEPAS REALIZA PRIMEIRO CURSO VOLTADO PARA SAÚDE MENTAL
Com foco em alteração de comportamento, evento lotou auditório do SINDHOSP
Nenhum hospital, mesmo que geral, está a salvo de
receber pacientes com alteração de comportamento
em seus prontos-socorros. Seja por uso de álcool,
drogas ou até mesmo por algum distúrbio mental,
pacientes que batem às portas de emergências muitas vezes precisam de atendimento especializado,
que possua um olhar que vai além do físico. Muitos
profissionais, no entanto, não estão preparados para
prestar este primeiro atendimento. Pensando nisso,
o Instituto de Ensino e Pesquisa na Área da Saúde
(IEPAS) realizou, em 5 de novembro, o primeiro
curso voltado para a área de saúde mental, chamado
“Manejo clínico e comportamental de situações de
emergência nas alterações comportamentais”.
“Pensamos neste curso, pois emergências e urgências psiquiátricas são situações que necessitam de
intervenções rápidas e precisas, uma vez que o comportamento do paciente apresenta-se descontrolado,
podendo gerar danos a ele próprio ou às pessoas a sua
volta”, afirmou o presidente do IEPAS, José Carlos
Barbério, que abriu o evento.
Representantes de hospitais gerais do Estado de São
Paulo lotaram o auditório do SINDHOSP, e estiveram
atentos às palestras de Silvana Reis Vicentin, enfermeira especialista em saúde mental e psiquiátrica
pela UNIFESP, e Simone Granado Alons, também
enfermeira e mestre em saúde mental e psiquiátrica
pela Universidade de São Paulo.
Segundo ambas, reconhecer os sintomas de um paciente em sofrimento mental é de suma importância
para o sucesso do atendimento. Os quadros podem
ser divididos entre psicogênicos e orgânicos, levando em consideração comportamentos ansiosos, agitados e agressivos, depressivos, desconfiados, assim
como a presença de sinais para risco de
violência, suicídio, automutilação e danos
a si mesmo ou aos outros.
“Esta inciativa é de suma importância para a área de saúde mental.
Somos carentes de cursos e
informações que auxiliem os
profissionais a lidar com
situações tão complexas”,
explicou Ricardo Mendes,
coordenador do departamento de Saúde Mental do
SINDHOSP, também presente
ao evento. “Saber diferenciar
alucinações de realidade, déficit de
raciocínio, problemas de memória ou
na linguagem do paciente são itens que
podem diferenciar o atendimento e torna-lo efetivo para quem o busca”, completou.
Como principais regras no bom atendimento ao paciente emergencial de saúde
mental destacam-se a importância do vínculo e do canal aberto de comunicação,
o respeito ao silêncio e o controle da comunicação extra verbal, além de ajudar a
trazer o indivíduo à realidade, reconhecendo também tentativas de manipulação.
A contenção mecânica (uso de medicamentos sedativos, por exemplo) é sempre o
último recurso do qual a equipe deve recorrer. A intervenção verbal é a estratégia
eleita para ser usada de imediato. Segundo Ricardo Mendes, novos cursos serão elaborados ao longo de 2015,
voltados especificamente para a área de saúde mental.
Confira a agenda de cursos no site: www.iepas.org.br
Levantamento do CFM revela redução de leitos no país
O Conselho Federal de Medicina (CFM) anunciou,
em outubro último, o fechamento de quase 15 mil
leitos hospitalares destinados à internação nos últimos quatro anos, sendo que a pediatria e a psiquiatria
foram as áreas mais afetadas. Segundo os dados, a
pediatria perdeu 7.492 leitos e a psiquiatria perdeu
6.968 leitos.
O Ministério da Saúde alega que avanços da medicina
e da tecnologia médica, além de políticas organizadas
de desospitalização, explicam tendência mundial de
redução de leitos hospitalares. A pasta ainda anunciou que, no Brasil, uma parcela significativa da
diminuição de leitos hospitalares de internação se
deu pelo fechamento dos chamados manicômios, que
atendiam pessoas com problemas de saúde mental.
Ainda segundo o Ministério, desde a criação da Política de Saúde Mental no Sistema Único de Saúde, de
2001, e com o fim das internações em manicômios,
houve redução de 17% do total de hospitais especializados em psiquiatria com
habilitação pelo SUS para esse tipo de internação – em 2010 eram 215 e, em
2014, são 178.
Em 2010, diz o Ministério da Saúde, o Brasil possuía 39.587 leitos psiquiátricos
no SUS contra 32.290 em 2014. Em contrapartida, estão em atuação no país
2.129 CAPs (Centros de Atenção Psicossocial), 695 Residências Terapêuticas, 60
Unidades de Acolhimento, 119 consultórios de rua e mais 800 leitos em Hospitais
Gerais para atendimento a essa população.
“Entendemos que mesmo com os serviços extra hospitalares em ascensão no
país, com o que concordamos, não dá para deixar de calcular o índice de leitos
psiquiátricos por mil habitantes, conforme segue: 202,7 milhões de habitantes,
segundo o IBGE em julho de 2014, e 32.290 leitos psiquiátricos segundo o Ministério da Saúde. Chegamos a um índice de 0,16 leitos por mil habitantes, ou
seja, observamos um déficit de 84% em relação ao que deveria ter instalado no
Brasil, que preconiza a manutenção de 1 leito psiquiátrico por mil habitantes”,
contabiliza Ricardo Mendes, coordenador do departamento de Saúde Mental do
SINDHOSP. “Logo chegamos à conclusão de que o Ministério da Saúde não
explica adequadamente o fechamento de leitos psiquiátricos no país”, completa.
MATÉRIA DE CAPA
MATÉRIA DE CAPA
auxílios-doença em decorrência do uso de álcool e outras drogas, pois “não há
como afirmar que o aumento do uso de drogas seja real e pode ser superficial,
porque os benefícios não representam a população em sua totalidade, apenas os
trabalhadores contribuintes do regime geral de Previdência Social”.
Explosão no consumo de cocaína no Brasil faz com que a droga
seja a segunda que afasta pessoas do trabalho
Por Fabiane Sá
O uso de drogas que alteram o estado mental, chamadas de substâncias psicoativas (SPA), acontece
há milhares de anos e acompanha toda a história
da humanidade. Quer seja por razões culturais ou
religiosas, por recreação ou como forma de enfrentamento de problemas, para transgredir ou transcender, como meio de socialização ou para se isolar, o
homem sempre se relacionou com as drogas. Essa
relação do indivíduo com cada substância psicoativa pode apresentar poucos riscos, em alguns casos,
mas também pode assumir padrões de utilização
altamente disfuncionais, com prejuízos biológicos,
psicológicos e sociais.
No ambiente de trabalho, o uso de drogas lícitas (álcool) e ilícitas (maconha, cocaína, crack, opiáceos,
sedativos ou hipnóticos, alucinógenos, solventes e
outros estimulantes) afeta até 15% dos empregados,
aumenta em cinco vezes as chances de acidentes de
trabalho, é responsável por 50% do absenteísmo e
licenças médicas e aumenta os custos com rotatividade dos funcionários.
Dados do Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS) apontam que o alcoolismo é o principal motivo de pedidos de auxílio-doença por transtornos
mentais e comportamentais por uso de substância
psicoativa. O número de pessoas que precisaram
parar de trabalhar e pediram o auxílio devido ao
uso abusivo do álcool teve um aumento de 19,6%
em quatro anos, ao passar de 12.055, em 2009,
para 14.420, em 2013. Até agosto deste ano foram
concedidos 9.079 afastamentos por este motivo em
todo o território brasileiro. Os dados mostram que
os auxílios-doença em todo o país às pessoas com
transtornos mentais e comportamentais devido ao
uso de drogas ilícitas de 2009 a 2013 passaram de
140,3 mil.
Mas o número que mais chama a atenção é o que
revela uma explosão no consumo de cocaína no
Brasil, tornando-a a segunda droga responsável pelos afastamentos (34.026), um aumento de 84,6%.
No mesmo período, os auxílios por consumo de
múltiplas drogas aumentaram 67,3%. Em 2014, já
são 4.761 benefícios concedidos para dependentes
de cocaína e seus derivados, como o crack e a merla, seguido pelo uso de maconha e haxixe (214), de
opiáceos - como morfina e heroína – (71) e alucinógenos (67).
Esses índices são muito altos principalmente nas
regiões Norte e Nordeste. O número de auxílios-doença por alcoolismo ou dependência química
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cresceu mais de 50% em nove Estados brasileiros e no Distrito Federal de 2009
a 2013. Amapá, Pernambuco, Goiás, Paraíba, Distrito Federal, Pará, Ceará e
Mato Grosso lideram o aumento dos pedidos de afastamento. Mais populoso,
São Paulo é o Estado com o maior número de auxílios-doença. Foram 42.649
casos em 2013, contra 26.181 em 2009, um crescimento de 17,9%. No Brasil,
foram 134.649 no ano passado, o que representa um aumento de 19,8% em
relação a 2009.
O crescimento do uso de entorpecentes é puxado pelo aumento do poder aquisitivo no
Brasil, acreditam os especialistas. “Quanto mais dinheiro a pessoa tem e quanto
mais estressante for o trabalho mais risco há de se usar a droga", afirma Arthur
Guerra de Andrade, médico psiquiatra,
especialista em dependência química e
presidente do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa). Segundo ele,
a justificativa para a explosão do uso de
cocaína por trabalhadores é que ela é uma
substância que, quando usada, não causa suspeita. "Se a pessoa bebe, fica meio mole. Com
maconha, ri à toa. Com a cocaína, ele consegue ir ao trabalho e fazer algumas atividades."
Subnotificação e subdesenvolvimento
Os números, acredita Thatiane Fernandes, são ainda maiores visto que parte
da população não contribui para o INSS e por isso não tem direito a esse benefício. “O impacto do álcool e das drogas ilícitas na vida das pessoas é muito
maior. Os jovens têm experiências cada vez mais cedo com este universo”,
conta. Ela também lembra o aumento sensível de mulheres e de profissionais
com mais qualificação usuários de drogas que não aderem ao tratamento
por preconceito social. “Na minha experiência, o consumo abusivo
de álcool, uma droga lícita, é cada vez maior por adolescentes,
mulheres e homens, independentemente de classe social. Há
uma concentração de políticas públicas dirigidas a substâncias ilícitas e faltam campanhas que falem do impacto
de todo tipo de droga, inclusive o álcool e o tabaco, na
vida das pessoas.”
Para Arthur Guerra, os transtornos de uso de álcool
têm origem multifatorial e uma hipótese formulada é
o consumo da bebida cada vez mais como escape, em
uma tentativa (sabidamente ineficiente) de combater o
estresse cotidiano. Também pode estar associado a poucos
investimentos em certos ambientes, onde faltam, por exemplo, locais e eventos de lazer. “Um estudo recente feito na região metropolitana de São Paulo indicou que bairros com maior
privação social tendem a concentrar maior ocorrência de transtornos
relacionados ao álcool. Observa-se que essas regiões costumam ter muitos pontos de venda como bares e poucos pontos de lazer como praças e parques”, diz
Guerra.
Arthur Guerra de Andrade
Opinião compartilhada pela psiquiatra forense do Núcleo de Psiquiatria Forense do Hospital das Clínicas de São Paulo e médica psiquiatra da Fundação Casa,
Thatiane Fernandes. “Quem bebe, tem cheiro. Quem usa crack em dois ou três
meses é perceptível a mudança de comportamento. A cocaína, não. Ela não tem
cheiro, os transtornos por ela provocados são mais lentos e demora mais para
quem convive com o usuário começar a notar que há algo de estranho com a
pessoa já dependente do entorpecente. É também por isso e por toda a cobrança,
pressão e estresse que muito profissionais qualificados estão buscando refúgio
na cocaína.”
Prejuízos
Segundo cálculos do Banco Interamericano do Desenvolvimento (BID), o Brasil perde por ano US$ 19 bilhões por absenteísmo, acidentes e enfermidades
causadas pelo uso do álcool e outras drogas. Dados levantados pela OIT, no
ano passado, indicam que de 20% a 25% dos acidentes de trabalho no mundo
envolvem pessoas intoxicadas que se machucam a si mesmas e a outros. O
auxílio-doença é concedido a trabalhadores segurados pelo Instituto Nacional
do Seguro Social (INSS), que não perdem o emprego ao se ausentar. Para pedir
o benefício em decorrência do uso abusivo de droga, o trabalhador deve ter pelo
menos 12 meses de contribuição à Previdência Social, e é preciso comprovar,
por meio de perícia médica, a dependência do entorpecente e sua incapacidade
de exercer a profissão. O valor recebido depende do salário e vai de R$ 724
a R$ 4.390,24. Uma vez que o benefício é dado, não há prazo máximo para
o encerramento de sua utilização. De 2009 até agosto deste ano, o governo
federal já gastou mais de R$ 206 milhões com auxílios-doença para dependentes de drogas em todo o país.
O INSS informou, em nota, que não comenta os dados fornecidos sobre os
Algo que também pode estar influenciando o aumento de profissionais licenciados, de acordo com Guerra, é o fato de que o alcoolismo tem sido cada vez mais
reconhecido como doença, o que viabiliza afastamentos com e sem concessão
de benefícios. “O álcool ainda é uma substância lícita no Brasil e, portanto, um
bem de consumo. A ampliação do uso pode estar relacionada com o fato de o
Brasil ter passado por um período de crescimento econômico. É possível que a
ampliação mais notadamente em determinadas regiões se deva a uma consequência regional de desenvolvimento nesse período”, explicou.
Ele também ressaltou que o Brasil ainda carece de estudos nacionais sobre o
consumo e transtornos relacionados ao consumo de álcool. “As análises e pesquisas que temos mais consistentes são de grandes cidades, capitais ou regionais. Não há estudos aprofundados em âmbito nacional para melhor entendimento dessa questão”, alertou.
Relatório do Ministério da Previdência Social de
2012 revelou que a cada três horas uma pessoa
é afastada do trabalho para tratar a dependência química no país. Os números refletem
uma das faces da influência das drogas no
mercado de trabalho e confirmam que a
dependência está em alta entre os empreendedores, médicos, advogados,
economistas, profissionais liberais,
lixeiros, professores, funcionários
públicos, todos do grupo cada vez
mais amplificado nas estatísticas
de transtornos de saúde desencadeado pelo uso de entorpecentes. “É muita informação e o mundo está rápido
demais. Os brasileiros são um dos povos
com a autoestima mais baixa no mundo, e,
em um cenário desfavorável, isso pode levar as pessoas a buscarem as drogas para o enfretamento da
situação”, explicou Thatiane.
De acordo com a psiquiatra, a realidade poderia ser
outra se houvesse vontade política e investimentos
na saúde pública. O Brasil é um dos poucos países
onde o consumo de drogas não para de crescer. Nos
Estados Unidos e no Canadá esses números estão
estáveis. “Aqui há algo que a própria cultura predispõe para que a juventude tenha fácil acesso desde
muito cedo às drogas e ao álcool. A política antidrogas não é suficiente e nem tampouco eficiente,
e o programa antimanicomial e de desospitalização do governo federal está acabando
com as poucas opções de tratamento
para a saúde mental, tão estigmatizada e que sempre é a última a receber algum tipo de investimento”,
indigna-se Thatiane.
Thathiane Fernandes
Prevenção no ambiente
de trabalho
O debate envolve aspectos não
só trabalhistas, mas também médicos, sociais e políticos e merece uma
abordagem ampla e multidisciplinar que
abranja a sociedade. “O benefício do auxílio-doença para o tratamento dos transtornos decorrentes do uso de drogas é um grande avanço para o
trabalhador brasileiro, pois assegura a manutenção
financeira da família, contribui para o tratamento e
mantém o vínculo do profissional no emprego. Mas,
os dados do INSS servem para mostrar a importância de ser trabalhada a prevenção dos problemas
relacionados ao uso de álcool e drogas”, afirma Arthur Guerra.
Para os psiquiatras entrevistados, a prevenção é
fundamental para evitar o uso e/ou o agravamento
do problema com as drogas. “Nas empresas, a prevenção deve ter como foco o trabalhador, baseando-se em estratégias que visem à qualidade de vida,
preservação das relações interpessoais, à segurança
e à produtividade. Não existe um modelo ideal e
único de programa, e sim diferentes possibilidades
de abordar estas questões.
O que se percebe é que terão mais sucesso as ações
que contemplam abordagens multidisciplinares,
com o trabalho e estudo de profissionais de diversas áreas e especialidades, como recursos humanos, saúde, saúde ocupacional e segurança”, sugere
Guerra. Entre as possíveis ações de debate do assunto ele sugere palestras, campanhas (permanentes
ou temporárias) e workshops, envolvendo funcionários e a própria chefia.
No ponto de vista de Thatiane Fernandes, é preciso
ir além e buscar junto aos governos federal, estadual e municipal investimentos para á área de saúde
mental. “A saúde pública está falida e a área da psiquiatria ainda mais. Faltam profissionais qualificados e condições para que as pessoas possam buscar
tratamento.
REPORTAGEM
REPORTAGEM
Ansiedade à espreita: doença ava nça e é o retrato de nossa sociedade
Insônia, medo, nervoso, e suor frio. Esses foram os
primeiros sintomas escolhidos por Martha Marques
para descrever sua história de convivência com aquilo que é considerado o mal do século. Diagnosticada
com “ansiedade generalizada” há cerca de quatro
anos, Martha, 47, aceitou conversar com a reportagem do Saúde Mental em Foco para contar um
pouco de sua luta para superar o problema. Com fala
rápida e olhar cuidadoso, a mulher, que à primeira
vista esbanja beleza e educação, abre sua nécessaire e
mostra as cartelas que a acompanham nesta jornada.
São seis. Cada uma com sua substância. Entre ansiolíticos e remédios para controlar o sono e o humor,
Martha ingere 10 comprimidos por dia.
A ansiedade, que hoje afeta pelo menos 20% da população de São Paulo – segundo estudo da Organização
Mundial da Saúde (OMS) – não é um fenômeno
novo. Mas é uma doença que tem aumentando proporcionalmente à velocidade com que as mudanças
se propagam em nossa sociedade. Nos Estados
Unidos, 50% dos trabalhadores americanos sofrem
de algo nomeado de “technologyrelated anxiety”,
uma ansiedade que surge quando o computador trava.
E de ringxiety, que é a impressão de que o celular
está tocando o tempo todo. Já 68% sofrem com a
ansiedade de estar desconectado da internet e não
saber o que acontece no mundo.
O significado mais aceito de ansiedade vem do
psiquiatra australiano Aubrey Lewis que, em 1967,
descreveu o termo como “um estado emocional com a
qualidade do medo, desagradável, dirigido para o futuro, desproporcional e com desconforto subjetivo”.
De uma forma geral, a ansiedade é um sentimento
incômodo e projetado para o futuro. A pessoa ansiosa
vive num estado de alerta constante por causa de uma
situação que pode acontecer – e causar sofrimento.
Medo e ansiedade surgem no mesmo sistema do
nosso corpo, o límbico, e estão localizados nas
mesmas regiões do cérebro: a amígdala, a
substância cinzenta periaquedutal e o
septohipocampal.
Não é preciso que um indivíduo
tenha qualquer tipo de problema
psicológico para acordar em uma
manhã e, sem motivo específico, sentir-se incapaz, infeliz ou
ansioso. A ansiedade, segundo
os especialistas, tem a ver com
tristeza e frustração e, muitas
vezes, está associada à depressão.
Mas, para compreender se ela é um
problema, de fato, é preciso observar
como se manifesta. Ficar ansioso diante
de uma situação que representa ameaça
real é saudável, porque fundamental para a
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capacidade de adaptação do ser humano. Pessoas que apresentam transtorno de
ansiedade, no entanto, tendem a perder mais tempo com informações irrelevantes,
como observar o mesmo ambiente repetidas vezes procurando algo ameaçador,
interpretar informações de maneira desfavorável e quase sempre demonstrar
pensamentos negativos.
“Existem dois tipos de ansiedade: a normal e a
patológica. A diferença está na forma discerni-las”, afirma Marcio Bernik, médico psiquiatra
e coordenador do Ambulatório de Ansiedade
do Hospital das Clínicas, do Instituto de
Psiquiatria da Universidade de São Paulo.
“A ansiedade patológica deve ser tratada
quando se torna disfuncional, levando de
um modo geral a sofrimento excessivo ou a
prejuízo funcional. Os pacientes com transtorno de ansiedade generalizada têm um quadro
crônico, com normalmente mais de seis meses,
preocupando-se demais com pequenas coisas.
Normalmente apresentam também sintomas como insônia, tensão muscular, irritabilidade, entre outros”.
Marcio Bernik
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), os transtornos mentais
atingem cerca de 700 milhões de pessoas no mundo, representando 13% do total de todas as doenças. No topo da lista estão a depressão e a ansiedade. “Não
somente os transtornos ansiosos, mas também os transtornos de humor como a
depressão, estão ficando cada vez mais prevalentes na população, por isso devem
ser diagnosticados e tratados com relevância”, explica Fernanda Gatti, diretora
técnica do Hospital Vera Cruz. “Estudos mostram que transtornos crônicos
de ansiedade podem aumentar a taxa de mortalidade relacionada a problemas
cardiovasculares. Dois terços dos pacientes deprimidos cogitam o suicídio e de
10% a 15%, cometem-no”.
Gatti afirma também que o transtorno de ansiedade generalizada é provavelmente o que coexiste com mais frequência com outro transtorno mental, em sua
maioria fobia social, fobia específica, pânico ou transtorno depressivo. Segundo
ela, é
possível que de 50% a 90% dos pacientes com este diagnóstico
tenham outra condição mental. Até 25% das pessoas
afetadas eventualmente experimentam transtorno de
pânico e uma alta porcentagem tem chance de
desenvolver depressão.
Para Bernik, até 30% da população, em um
determinado momento, pode desenvolver
sintomas ansiosos significantes, mas a
maioria não se trata e realmente nem
deve se tratar, pois apresenta sintomas
transitórios. “Há estudos epidemiológicos indicando que o mais comum é a
pessoa com transtorno ansioso demorar
de 7 a 15 anos para procurar tratamento.
Isso ocorre especialmente com os homens.
Há a necessidade de tratamento em larga
escala, com disponibilização de mais psiquiatras para a população”. De acordo com o
médico, há ainda de se considerar o fator genético
na sociedade. Cerca de 80% dos casos de transtorno
do pânico podem ser estudados seguindo a genética familiar.
A família Marques, da personagem citada no início desta reportagem, se enquadra
neste contingente. Segundo Martha, sua mãe e sua tia, já falecidas, conviveram
com ansiedade e depressão durante toda a vida. A filha mais velha também foi
diagnosticada há poucos meses. No caso de Martha, foi o fim de um casamento
de trinta anos que fez virem à tona os sintomas da doença. O caminho até o
tratamento, segundo ela, também foi árduo. A filha mais jovem, cansada de
ver as crises da mãe, que a orientou a procurar ajuda. “Com o término do casamento, meu mundo desabou, mas logo percebi que não estava sozinha”. Além
dos medicamentos, Martha se trata semanalmente com terapias presenciais e
diariamente auxilia pessoas no Centro de Valorização da Vida (CVV), que lida
com indivíduos que querem cometer o suicídio. “É estranho, pois ainda me sinto
ansiosa, quase não saio de casa, já imagino se quando sair vou enfrentar algum
tipo de situação de risco como um acidente de carro, um assalto ou simplesmente
o fato de encontrar algum conhecido que vai me questionar sobre como estou.
Ainda não sei como lidar com essas situações”, revela. No CVV, no entanto, o
trabalho a ajuda a lidar melhor com a própria condição. “É impressionante porque
as pessoas ainda têm medo de lidar com essa situação. Eu demorei muito tempo
para me abrir com alguém sobre meus problemas. A maioria das pessoas não
entende, acredita que é frescura, doença de gente rica e desocupada. Me chamaram de louca e disseram que era viciada em medicamentos de tarja preta. Nunca
fui assim, sempre fui batalhadora, trabalhei e lutei pelos meus sonhos, acho um
absurdo alguém me dizer que o que tenho é algo supérfluo, por isso faço o
meu melhor para ajudar quem precisa”.
O tratamento multidisciplinar é fundamental para que os pacientes se estabilizem.
Apenas a farmacoterapia, feita com
antidepressivos e ansiolíticos, não
basta. “Muitos pacientes tomam
apenas os calmantes, que aliviam
temporariamente os sintomas e
causam dependência, dificultando
assim a retirada dos mesmos”, avalia Fernanda Gatti. “A dependência
medicamentosa pode ocorrer com o
uso prolongado de benzodiazepínicos.
Quando este uso é inapropriado ou desnecessário, torna-se ser um problema quase sem solução”, completa Márcio Bernik.
A precariedade da rede brasileira de atenção
Fernanda Gatti
à saúde mental eleva os riscos de tratamentos
inacabados e mal- sucedidos. Embora a lei nº
10.216, de abril de 2001, tenha sido criada para o desenvolvimento de uma política
de saúde mental que englobe assistência, prevenção e promoção, a realidade vivida
no país é bem diferente. Para o coordenador do departamento de Saúde Mental do
SINDHOSP, Ricardo Mendes, o Ministério da Saúde tem investido mais em acabar
com os leitos psiquiátricos do que construir uma rede efetiva e interligada. “Interpretaram a lei de maneira ideológica, e deste então têm sido criados mecanismos
regulatórios para que se façam extintos os leitos psiquiátricos. Há inclusive um
ponto de vista que considera a visão psiquiátrica equivocada, levando a crer que
diagnosticar alguém é estereotipar. Esta ótica leva ao não tratamento e à cronificação
das doenças, além de inverter a lógica de que devemos desmistificar a questão. Ir
a um psiquiatra, enfrentar um problema como uma depressão, um transtorno de
ansiedade ou até algo mais permanente, como esquizofrenia, deve ser encarado
como o enfrentamento de qualquer outra doença”, afirma.
“A minha sensação, nos 30 anos que exerço a profissão de médico, é que o Estado, principalmente a nível
federal via repasses do SUS, vem se afastando da
responsabilidade no financiamento da saúde, sem que
outras fontes tenham surgido”, comenta Bernik. “A
falta de leitos hospitalares para quem trata pacientes
com transtorno bipolar, psicoses e outras doenças é
desesperador. A prevenção de transtornos, como os
de ansiedade, por exemplo, requerem intervenção
a nível escolar, com medidas psico-educacionais
mas infelizmente isso está longe de acontecer”.
De opinião semelhante, Fernanda Gatti defende
também a boa qualidade de vida para prevenção
de sintomas de ansiedade. “É difícil pensar em
prevenção para os transtornos ansiosos, visto
que sua etiologia pode ser por fatores biológicos,
genéticos e psicossociais. Acho importante tentar
ter uma boa qualidade de vida, buscando atividades
prazerosas que diminuam o estresse, e quando necessário, buscar ajuda precoce para evitar a evolução
dos sintomas e suas consequências. Além disso, é
preciso repensar os repasses, leitos e o futuro da
saúde mental no Brasil”.
No Brasil, São Paulo é a cidade com o índice mais
alto de habitantes com transtornos mentais, segundo o estudo “São Paulo Megacity”, realizado pelo
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. O
trabalho fez parte da Pesquisa Mundial sobre Saúde
Mental, de iniciativa da OMS, que integrou e analisou
pesquisas epidemiológicas sobre abuso de substâncias e distúrbios mentais e comportamentais. Além
de transtorno de ansiedade generalizada, outros tipos
mais comuns de transtornos de ansiedade incluem
síndrome do pânico, fobias e transtorno de estresse
pós-traumático.
CRÍTICA DE CINEMA
ANSIEDADE PELA PERFEIÇÃO
Por Carlos Eduardo Silva*
As produções cinematográficas em geral são vistas como puro entretenimento. De fato, a grande parcela das obras tem esse fim, mas existem
aquelas que vão além e servem como estudos sociais, de comportamento,
estilo de vida ou até mesmo como pura representação artística. É o caso do
filme Cisne Negro. Certamente, ele entra para o hall das obras fenomenais
que fazem refletir profundamente sobre nossos valores mais intrínsecos.
A trama que envolve o longa-metragem é
sobre a vida de Nina (Natalie Portman),
uma bailarina que há integra uma
companhia de balé e que acaba de
ser escolhida para protagonizar
o próximo espetáculo, depois
que a antiga estrela da companhia se aposenta. Nina,
que sempre teve a super
proteção de sua mãe, vê-se
pressionada por encontrar
a perfeição que o papel
exige, mas têm dificuldade
inicial de se libertar do
puritanismo que até então a
acompanhava. O diretor do
espetáculo, Thomas (Vincent
Cassel), exige de Nina uma
postura mais sensual, o que a
deixa sufocada. Tudo piora com a
chegada de uma nova bailarina, Lily
(Mila Kunis), que logo atrai a atenção de
todos pela postura descolada e sensual.
O roteiro de John J. McLaughlin (Hitchcock) nos coloca dentro da mente
perturbada de Nina, que diante da pressão que vive, mistura o real com o
imaginário. E a precisa direção de Darren Aronofsky (Noé), leva o espectador
a não saber ao certo o que de fato acontece e o que é fruto do psicológico
de Nina, o que torna o longo mais sensacional.
Aronofsky é brilhante nas escolhas e utiliza o espelho em praticamente
todas as cenas, utilizando-o como uma metáfora do Narciso, da mitologia
Grega. Assim como o papel principal da peça
que Nina ensaia, Lagos dos Cisnes, que precisa
se transformar, a própria Nina passa por essa
metamorfose ao longo do arco dramático da
narrativa. Para o deleite do espectador, Natalie
Portman se esmera, e arrasa. Uma das cenas mais
impactantes do cinema, na atualidade, é a dança
do cisne negro, interpretada pela atriz nos últimos
minutos do filme.
Mas a trama não se encerra na dança. A peça de
balé é apenas a parte superficial da história, que
tem como pano de fundo a vida da própria Nina,
uma garota massacrada pela mãe (Érica), uma
ex-bailarina frustrada por nunca ter atingido o
sucesso e que projeta, na filha, a tão sonhada chance de consagração profissional. A inveja permeia
este relacionamento. Assim como a ambiguidade.
Enquanto a mãe é caracterizada com coque no
cabelo e roupas em tons escuros - algo como a
representação do que Nina precisa encontrar para
conseguir viver o Cisne Negro – Erica insiste em
tratar a filha como uma criança. O quarto de Nina
é decorado em tons de rosa e repleto de bichos de
pelúcia, como se a menina não tivesse crescido.
A cena de Nina descobrindo-se sexualmente, e
sendo interrompida pela mãe, é o estereótipo da
repressão imposta pela mãe à filha.
Todo esse thriller psicólogo ganha contornos
sufocantes com a excepcional edição de Andrew
Weisblum, que lança mão de cortes curtos e
precisos, elementos que ressaltam a angústia da
protagonista em chegar ao que considera ser a
perfeição da dança, ao mesmo tempo em que tem
de lidar com o próprio recalque.
Cisne Negro é um primor em todos os pontos
de vista, e mais ainda sob a ótica da violência
psicológica a que pode ser submetido um ser
humano quando castrado pela própria mãe. As
consequências deste comportamento dominador,
de mãe para filha, podem ser catastróficas, segundo o filme. Na vida real, também.
*Carlos Eduardo Silva é coordenador do departamento de Marketing do SINDHOSP e desenvolve,
paralelamente, o site CCine10, voltado para a
publicação de críticas de cinema.
www.ccine10.com.br
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