CRISE, ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS: o que nos apontam as lutas sociais, os intelectuais e algumas experiências de governos Lincoln Moraes de Souza1 Márcia da Silva Pereira Castro2 Paula Fernanda Brandão Batista dos Santos3 A mesa temática é proposta pelo Grupo Interdisciplinar de Estudos e Avaliação de Políticas Públicas (GIAPP) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e tem como principal objetivo ampliar o debate acerca da crise do capitalismo contemporâneo e dos seus vínculos com a configuração atual do Estado e, por conseguinte, como as políticas públicas tem se amoldado a essa realidade. É perceptível que a crise tem extrapolado o campo específico da economia, rebatido sobre o Estado e gerado um conjunto de problemas, mas, simultaneamente, provocado diferentes respostas que se colocam como alternativas ao ideário neoliberal. Dessa forma, para além das políticas públicas de cunho neoliberal, emergiram proposições de intelectuais, das lutas sociais e experiências de políticas de alguns governos visando diferentes possibilidades nos rumos à outra configuração da sociedade. Sendo o Estado e as Políticas Públicas, temas recorrentes no GIAPP, os autores intentam focar, problematizar e aprofundar as reflexões do que, atualmente, se tem colocado Para Além da Crise Global: experiências e antecipações concretas. Assim, um primeiro expositor se propõe a ressaltar aspectos mais gerais da crise capitalista contemporânea e algumas inferências de intelectuais para enfrentar o problema. Dentre outros autores, se dá destaque as propostas de Thomas Piketty, Boaventura de Sousa Santos e David Harvey. Muito embora, sejam constructos teóricos que não transpassam a estrutura da sociedade capitalista, trazem subsídios para a discussão de enfrentamento às medidas de austeridade (im)postas pelas políticas neoliberais. Por sequência, se apontará algumas experiências populares e iniciativas de governos não neoliberais com o propósito de ilustrar posicionamentos que se colocam ao enfrentamento da crise. É o caso de alguns países da América Latina e da Grécia. Um segundo expositor, 1 Doutor. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).E-mail: [email protected] Doutora. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail: [email protected] 3 Doutora. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).E-mail: [email protected] 2 abordará questões mais direcionadas e sistemáticas sobre a América Latina, particularmente, com dados da Venezuela, Bolívia e Equador, enfatizando, no sentido mais amplo, os avanços nas políticas públicas de caráter social e apontando características relativas ao campo da proteção social. Na subsequência e ainda referente aos países citados, um terceiro expositor voltará sua atenção, mais especificamente, para a política de saúde e seus vínculos com as demais políticas sociais. E, embora a análise e os próprios dados sobre estes governos não sejam tão conclusivos, o debate se inflige, já que se dispõe, no momento, de indícios do redirecionamento dado por estes países no enfrentamento da crise imposta pela mundialização do capital ou simplesmente globalização neoliberal como preferem alguns estudiosos. CRISE, ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS: lutas sociais, propostas de intelectuais e experiências de governos Lincoln Moraes de Souza4 RESUMO A crise tem extrapolado o campo específico da economia, rebatido sobre o Estado e gerado um conjunto de problemas, mas, simultaneamente, provocado diferentes respostas. Além das políticas públicas de cunho neoliberal, emergiram proposições de intelectuais, lutas sociais e experiências de alguns governos visando outras soluções nos rumos de outra sociedade. PALAVRAS-CHAVE Crise; Estado; Políticas Públicas; Propostas. ABSTRACT The crisis has extrapolated the specific field of the economy, reflected on the State and raised a serial problems, but at the same time, provoked different responses. In addition to the public policies of neoliberal slant, intellectual propositions emerged, as well as social struggles and experiences of some governments seeking other solutions in the direction of another society. KEYWORDS Crisis. State. Public Policies. Propositions. 4 Doutor. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).E-mail: [email protected]. 1. INTRODUÇÃO Parece não haver dúvida, que existe um consenso sobre a inexistência de propostas bastante satisfatórias para enfrentar a crise. Mesmo com seu estouro em 2008, Harvey (DERBYSHIRE, 2014) lembra que a situação continua e não há um projeto que polarize uma grande concordância e aglutine as forças sociais e políticas na direção da superação da crise. E ao referir-se a alguns movimentos sociais no momento, aponta muita ebulição, algo em movimento e fonte de esperança, mas não, segundo ele, pensamento novo e novas políticas, pois muitos protestos dispersos, incluindo os de rua, porém, prosseguem sem um projeto pós-capitalista. E a literatura especializada e predominante de políticas públicas, diríamos, não vem dando a merecida atenção ao assunto (SOUZA, 2013). Direcionando a análise do tema Para além da crise global: experiências e antecipações concretas, é necessário indicar alguns pressupostos e questões que têm guiado as discussões do nosso Grupo Interdisciplinar de Estudos e Avaliação de Políticas Públicas (GIAPP), tais como: a crise extrapola o campo estrito da economia e espraia-se por várias áreas; tem relações diretas com o espaço público e com determinadas ações do Estado capitalista e com as respectivas políticas públicas e com sua própria avaliação; com a avalanche da ideologia neoliberal gerou-se diferentes reações, sejam as propostas de intelectuais de esquerda ou próximos a ela, sejam as lutas sociais e algumas iniciativas de governos não pautados pelos princípios e diretrizes neoliberais e que surgem como as mais importantes. Por tudo isto, é que Harvey (2010) afirma que estamos assistindo ao início de uma crise de legitimação do capitalismo no mundo inteiro. No tocante às relações da crise com o espaço público, o Estado e as políticas públicas e com a mundialização do capital, a chamada austeridade têm gerado vários efeitos, como o desemprego e a perda das casas nos Estados Unidos, como aponta Harvey (2012). Ora, o mesmo autor, em entrevista a Bazzan e Gabriela (2012), ressalta que isto terminou agravando a própria crise, ou seja, as atividades gerais e as políticas dos governos neoliberais expandiram e alargaram os problemas, como a dívida pública (TOUSSAINT, 2015). Chesnais (2011), anteriormente, já enfatizava a existência da recessão na Grécia de -4% e alta dos preços dos alimentos e o desemprego em Tel Aviv como resultantes da ação neoliberal. Enfrentar a crise, assim, é também confrontar-se com a ideologia e diretrizes neoliberais e pensar em alternativas. Para este trabalho, além de textos mais analíticos, utilizamos várias entrevistas e notícia de jornais e revistas, especialmente de alguns intelectuais. Isto decorreu, principalmente, de que nas entrevistas as respostas são mais diretas e as observações e propostas estão mais atualizadas que trabalhos mais acadêmicos. E queremos ressaltar, que nossa atenção está voltada em grande parte para a atual conjuntura, o que significa que as contradições, os conflitos e os desdobramentos futuros não estão dados, pois dependem da correlação de forças. 2. ALGUMAS PROPOSTAS E EXPERIÊNCIAS PARA O ENFRENTAMENTO DA CRISE As propostas diante da crise devem ser vistas como algo mais variado e apresentam-se de forma heterogênea, que vão desde explicitações de princípios e diretrizes por parte de intelectuais e militantes de esquerda ou próximos a ela, até iniciativas mais localizadas decorrentes ou simplesmente ligadas às lutas sociais e ações, bem como de atividades de governos não neoliberais e suas iniciativas, dificuldades, confrontos e avanços. 2.1. O que dizem os intelectuais sobre a crise global e alternativas Para Intelectuais marxistas como Mészáros (2015), a ideia de sociedade civil e ONGs contra o poder do Estado capitalista seria ingênua e não superaria as dificuldades estruturais relacionadas à crise. No entanto, assinala a importância dos protestos e seus prenúncios de uma mudança mais fundamental e lembra, igualmente, a importância do Syriza e do Podemos contra as chamadas medidas de austeridade. Quanto a Harvey (2010), sua perspectiva global também passa pela própria superação da sociedade capitalista e corporifica-se, no fundamental e no sentido mais amplo da política, por medidas iniciais de caráter keynesiano e que terminariam, para ele, se transformando em possiblidades marxistas. Em uma entrevista a Bazzan e Gabriela (2012) e em outros escritos, fala de combate ao Partido de Wall Street. O que, evidentemente, já desde o início, passa pela luta do direito à cidade e ilustra essa ideia com a ocupação do espaço público pelos últimos movimentos sociais como o Occupy e outros, até porque, para o autor a crise e seu enfrentamento implicam também outro perfil das cidades. As referências ao espaço público para Harvey (2012), portanto, ressaltam a importância de contemplar formas alternativas de organizar a produção, a distribuição e o consumo. Direcionando a atenção para o espaço público como praças e ruas, fala do direito de regular este mesmo espaço e ser cidadão no sentido do acesso aos bens públicos de educação e saúde de forma gratuita para todos. E estes movimentos, pelo seu raciocínio, de uma maneira ou de outra, poderiam trazer efeitos sobre algumas políticas públicas. Para Boaventura de Sousa Santos (2002), dever-se-ia “atualizar” a concepção acerca da Emancipação Social a partir de uma “renovação” da teoria crítica que vai da além da teoria marxista. Ele propõe a generalização das experiências populares de âmbito local. A questão da emancipação social sob o fenômeno da globalização, é entendida via embate entre globalização alternativa e a globalização neoliberal. A partir das abordagens denominadas de “alternativas de produção” (desenvolvimento alternativo) e “alternativas ao desenvolvimento”, o autor vislumbra a recriação da emancipação social. No geral, as experiências defendem o chamado desenvolvimento alternativo, já que não rejeitam a ideia de crescimento econômico, mas impõem limites e são subordinadas a imperativos não econômicos. Elas propõem um desenvolvimento de base (bottom-up) em contraposição aos projetos de desenvolvimento econômico convencional que são concebidos e implementados “a partir de cima” (top-down development) com base em políticas traçadas e implementadas por agências tecnocráticas nacionais e internacionais. Em outras palavras, diríamos que as experiências populares deveriam ser a base de outra atuação do Estado e de suas políticas. No campo mais keynesiano, além das críticas moderadas de Krugman (2014) e outros sobre a crise, as propostas de Piketty (2013) têm alcançado grande repercussão ao sugerir a taxação da renda e da propriedade e a diminuição de impostos sobre o consumo. E mesmo que o autor não proponha uma sociedade além do capitalismo, são interessantes algumas observações. No seu entendimento, por exemplo, seria importante que a democracia retomasse o controle sobre o capitalismo e, desta forma, o interesse geral da população deveria sobrepor-se ao interesse privado. Para Piketty (2013), a difusão de conhecimentos e de educação de qualidade e competência seriam instrumentos para aumentar a produtividade e, simultaneamente, diminuir a desigualdade. Todavia, diríamos que, direta ou indiretamente, o Estado teria que ter um papel de maior peso e diferente da ideologia do mercado capitalista, ao instituir o que o autor denomina de políticas públicas visando promover uma sociedade mais justa e menos desigual. Mas o fato de propor uma maior taxação da riqueza e controle e imposto progressivo sobre o capital visando reduzir a desigualdade, como seria de esperar trouxe discordâncias com o campo do neoliberalismo. Desta feita, mesmo que algumas proposições estejam mais ligadas ao keynesianismo para enfrentar a crise e as políticas neoliberais que a ampliaram, gerou-se divergências dentro do campo ideológico do capitalismo, uma vez que isto remete para outro tipo de ação do Estado diante da crise e a utilização de outras políticas públicas que não as predominantes atuais. 2.2. A crise global e as lutas sociais: as experiências populares, o espaço público e as políticas públicas Como nos lembra Toussaint (2015), foram grandes mobilizações na América Latina que terminaram impactando, posteriormente, políticas dos governos de esquerda. Por isto, Harvey (2012), ao citar o Occupt Wall Street, nos Estados Unidos, a luta na praça Tahrir no Cairo, os Indignados na Espanha e a ocupação da praça do Sol em Madrid, a greve dos trabalhadores na Grécia e ocupação da praça Syntagma em Atenas e outros, como o Estelita no Brasil que pode ser incluído, afirma que usam como tática e instrumento de oposição a ocupação do espaço público e expressam o poder coletivo de corpos neste mesmo espaço público. Esta vinculação direta com a ocupação das praças e das ruas, diríamos, explicita claramente, a disputa pelo espaço público que foi bastante reduzido com a crise e as orientações neoliberais e pode abrir espaço para outras formulações de políticas. Aliás, o próprio autor diz que a ocupação passou a exercer alguma atenção da prefeitura de Nova York em termos da questão da desigualdade. As lutas sociais urbanas ou, nas palavras de Harvey (2013), o âmbito da experimentação ligado ao direito à cidade é bem variado. E refere-se ao que chama de formas coletivas de governança como o orçamento participativo, além dos comitês de vizinhos e associações voluntárias e comunidades sustentáveis que se colocam no espaço público. Assim, se pode depreender das análises do autor que estas experimentações, além dos seus protestos e lutas sociais funcionam, de certa maneira, como embriões de direitos à cidade e introduzem possibilidades de novas cidades e, complementaríamos, de nova sociedade. Mas, retomando suas palavras, a esfera pública de participação democrática deve envolver a reunião das inovações visando construir uma alternativa. Podemos, igualmente, apontar algumas experiências populares mais consolidadas que, de uma maneira ou de outra, procuram escapar da crise e situar-se além da orientação neoliberal. E é o que Santos (2002) aborda ao discutir e confrontar a globalização alternativa com a globalização neoliberal. Em um estudo realizado por pesquisadores sob sua coordenação, expõe os dados obtidos em experiências populares vivenciadas em seis países: África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal. No geral, são experiências que envolvem a chamada Economia Solidária (autogestão econômica), a organização de Associações e Cooperativas (principalmente de recicladores de lixo), bem como a luta pelo acesso à terra e a produção rural (MST; comunidades comunitárias). Em síntese, Santos (2002) atribui algumas características acerca dos dados empíricos obtidos e que fundamentariam, a nosso ver, novas formulações de políticas públicas: 1) inspiram-se nos valores de igualdade e da cidadania; 2) propõem um desenvolvimento de base (bottom-up) em que as comunidades marginalizadas deixem de ser objeto e passem a se configurar como sujeito (sujeitos coletivos); 3) privilégio da escala local, tanto como objeto de reflexão como de ação social; e, 4) excluem a produção capitalista e o controle do Estado, propondo alternativas baseadas em iniciativas coletivas. Em outras palavras e como se observa, também implicam em alguma reorientação do Estado e das suas políticas. Estas observações de Santos (2002), a nosso ver não excluem sua relação com as lutas urbanas, embora, para Mészáros, estes protestos e lutas sociais a que se tem assistido ultimamente ainda não signifiquem o motor de uma mudança fundamental no capitalismo, pois o central reside no poder de Estado e nas desigualdades estruturais. Não obstante, afirma, eles sejam um prenúncio de uma mudança central e precisem se unir para isto. 2.3. Algumas iniciativas/atividades governamentais e confrontos Estão ocorrendo algumas mudanças e confrontos diretos ou indiretos de governos com parcelas do grande capital e o Estado capitalista, bem como atividades alternativas às orientações neoliberais diante da crise. De forma ampla e preliminar, deveríamos lembrar as seguintes iniciativas: inúmeras atividades de governos locais que, não necessariamente confrontam-se de modo direto com o capital, mas que se revestem de significados diferentes como a participação popular, tentativas de políticas rumo a uma menor desigualdade e abertura do espaço público; experiências governos populares na América Latina, especialmente na Venezuela, Bolívia e Equador, onde o confronto com o imperialismo norte-americano deixa claro qual o posicionamento destes Estados; a recente experiência grega, onde o governo está publicamente confrontado com a Troika, no caso o Fundo Monetário Internacional (FMI), a União Europeia (EU) e o Banco Central da Europa (BCE). Mas é na América Latina e com governos nacionais de esquerda, que os embates têm sido mais antigos, amplos, frequentes e expressivos. Como diz Chomsky (2015), a América Latina constitui um exemplo de resistência diante do neoliberalismo e, inclusive, têm expressa influência sobre o Podemos na Espanha, como apontam Mendes e Cava (2015) e Toussaint (2015). E mesmo que não se negue dificuldades e contradições, são exemplos expressivos de algum redirecionamento do Estado e das políticas públicas e representam avanços diante do enfrentamento da crise e do capital em termos amplos e do neoliberalismo em particular. Como se sabe, a aplicação das orientações neoliberais, com variadas denominações elegantes como ajuste fiscal, medidas de austeridade e outras, tem trazido e/ou ampliado, como regra, os problemas de vários países que adotaram o receituário do FMI e outros órgãos ligados ao grande capital. O agravamento das condições gerais de vida da maioria da população, o caminho da recessão, o aumento do desemprego e subemprego, a privatização maior do espaço e das políticas públicas, a redução da soberania e do papel do Estado nacional e a ampliação da dívida pública constituem alguns dos traços mais óbvios do que tem ocorrido. Vejamos no geral e a título de ilustração, alguns dados importantes e alguns desdobramentos políticos. A Venezuela é bem expressiva de algumas transformações econômicas e dos confrontos intermitentes com o imperialismo norte-americano. Foi o primeiro país a enfrentar o imperialismo após o fracasso das orientações neoliberais, através do que Klein (2015) chama de reformas pró-revolucionárias e Zuck e Nogueira (2012) denominam de nacionalismo popular. Iniciativas divergentes com as diretrizes e políticas neoliberais para enfrentar a crise como o fortalecimento do Estado nacional, retirada do petróleo das mãos de empresa norte-americanas, a nacionalização de empresas falidas, a recuperação de espaço público, a criação de mídia estatal (KLEIN, 2015), ampliação dos investimentos sociais, a criação das Missões Sociais e outras iniciativas são bem exemplares e significativas (D`ELIA; CABEZAS, 2008). Com o governo Evo Morales, a Bolívia nacionalizou recursos naturais e, como aponta Halimi (2014), desde 2006, está apresentando um crescimento econômico anual superior a 5%, reduziu a pobreza em 25%, aumentou em termos reais o salário mínimo em 87% e diminuiu a idade da aposentadoria e ampliou os serviços sociais. O Plano Nacional de Desenvolvimento denominado “Bolivia digna, soberana, productiva y democrática para Vivir Bién 2006-2011”, possui propostas e orientações para transição que propõe o desmonte do colonialismo e neoliberalismo, objetivando a construção de um Estado Multinacional e Comunitário. No Equador, antes de 2007 o serviço da dívida constituía o dobro do investimento social e com o governo de Rafael Correa, assinala Ramírez (2010), o investimento social passou de 18% em 2001 para 24% em 2006. Não por acaso, Lassance (2015) aponta um diferencial relevante: a adoção de políticas de combate à pobreza e redução da miséria nesses países e exemplifica com o índice de GINI onde a Venezuela e a Bolívia reduziram a desigualdade em 10% e o Equador em torno de 7%. E não por coincidência são os governos que têm, simultaneamente, tomado iniciativas de apoiar a participação popular através de suas novas constituições e de mecanismos no plano local, como a Cadeira Vazia no Equador analisados por Gallegos (2013). E como seria de esperar, estas iniciativas fora da subordinação ao imperialismo norte-americano e diferentes das orientações neoliberais levaram a confrontos visando acabar com as experiências diferentes do enfrentamento da crise. Assim, o presidente Evo Morales (2013), cita os golpes de Estado na Venezuela contra o Governo de Hugo Chávez em 2002, contra seu próprio governo em 2008 e contra o governo de Rafael Correa no Equador em 2010. Através da OEA e governo do Panamá, além do golpe de Estado na época de Chávez o governo norte-americano tem feito várias tentativas mais atuais de desestabilizar o atual governo venezuelano, Nicolás Maduro. Não obstante algumas dificuldades (problemas no abastecimento, inflação etc.), o país conseguiu nos últimos dez anos a redução da pobreza em 50% como ressalta Main (2014). O próprio Evo Morales (2013), ainda se refere ao envolvimento da CIA e o incidente com seu avião presidencial: impedimento da aeronave de sobrevoar os espaços aéreos da França, Espanha, Itália e Portugal. Sob a desculpa de que estaria transportando Edward Snowden clandestinamente, este impedimento expressa claramente a tentativa de intimidação dos governos neoliberais para com outros de orientação distinta. E como a Venezuela e a Bolívia, o Equador terminou confrontando-se com o imperialismo e os governos neoliberais dos países de capitalismo central. Antes do golpe de 2010, por exemplo, o governo, dentre outras coisas, desmanchou agências de inteligência que tinham ligação com os Estados Unidos. E, em 2012, enfrentou o governo do Reino Unido e suas ameaças ao aceitar Julian Assange na sua embaixada e impedir sua provável extradição para os Estados Unidos, como lembra Lemoine (2012). Além do mais, várias iniciativas de ação conjunta de países na América Latina tomadas no começo pelo governo da Venezuela, como a Unasul, têm assumido maior importância e reduzido, pelo menos parcialmente, atividades do imperialismo norteamericano visando acabar com as experiências diferentes de enfrentamento da crise atual do capitalismo. No tocante à Grécia e antes do governo atual, sua dívida saltou de 96,2% do PIB em 2010 para 128,9% já em 2014, como assinala Lambert (2015a) e um em cada dois dos jovens estava desempregado, 30% da população vivia abaixo do limite da pobreza (LAMBERT, 2015b) etc. No momento, o governo do Syriza vem tomando iniciativas relevantes para enfrentar a crise e, por conseguinte, as orientações neoliberais. A mais recente e relevante foi a instalação e os trabalhos da auditoria da dívida pública, que ainda estão no início, mas que prometem profundas mudanças. Portanto, não surpreende que em seu programa de urgência o Syriza tenha defendido, dentre outras orientações diferentes do neoliberalismo, a criação de 300 mil empregos públicos, o reestabelecimento do salário mínimo ao nível de 2011 e um pequeno aumento das menores aposentadorias, como aponta Halimi (2015). Em comício antes das eleições, por exemplo, o líder do Syriza e futuro primeiro-ministro, Alexis Tsipras, defendeu o fim da austeridade, o aumento do salário mínimo e a isenção de impostos para os mais pobres. Estas e outras propostas, evidentemente, passam pela solução que for dada à questão da negociação da dívida, como aponta o mesmo Halimi (2015). E já na condição de primeiro-ministro, Alexis Tsipras, como recorda Costa (2015), reafirmou ao parlamento suas propostas de gratuidade de refeições e eletricidade para quem não tivesse condições de pagar, reabertura da TV pública, recontratação dos funcionários que tinham sido demitidos e aumento gradual do salário mínimo. De acordo com Costa (2015), a nova proposta grega sobre a dívida requeria um acordo-ponte de 10 bilhões de dólares visando pagar os próximos meses e a negociação para um programa definitivo sobre os títulos da dívida. Compreende-se, portanto, ao se levar em conta os obstáculos, a postura de Krugman (2015) ao saudar os resultados do novo governo da Grécia com os credores. Para o autor, o cerne da questão reside no tratamento dado ao superávit primário (recursos transferidos aos credores) e seria uma vitória do Syriza o fato de não ter aceito o percentual deste superávit acordado com o governo anterior, mesmo tendo feito algumas concessões e não ter revertido plenamente a chamada austeridade. E mesmo levando em conta que o país representa apenas 2,3% do PIB europeu, como lembra Halimi (2015), tem se revestido de grande importância, especialmente pelo seu significado político ao enfrentar à denominada Troika, no caso o Fundo Monetário Internacional (FMI), a União Europeia (EU) e o Banco Central da Europa (BCE). Por isto, as propostas e iniciativas do Syriza, não surpreende que implicaram na reação dos representantes do capital. Segundo Halimi (2015), Ângela Merkel, chanceler alemã, chegou a ameaçar a expulsão de Atenas da zona do euro se não seguisse a cartilha neoliberal referente ao orçamento e às finanças, uma vez que a Alemanha detém mais de 20% da dívida da Grécia. Estes pontos, por sua vez, ligados com a questão da dívida remetem para caminhos tortuosos, até porque, se o encaminhamento apontar para uma vitória do Syriza diante da Troika, isto pode servir de exemplo para outros países europeus que enfrentam problemas semelhantes. Ou, nas palavras de Costa (2015), outras nações de maior peso econômico, como a Espanha ao se pensar no Podemos (partido considerado radical), podem ficar tentadas a seguir os passos da Grécia, ou mesmo Portugal e outros. 3. A CRISE, AS LUTAS SOCIAIS, O ESTADO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS Para além das propostas mais gerais e atinentes a longo prazo e a uma estratégia bastante ampla, como a defesa de uma globalização socialista feita por Mészáros (2015), seria importante tecer algumas considerações que dizem respeito mais diretamente ao Estado e às políticas públicas. Assim, enquanto profissionais das políticas públicas, é necessário que reflitamos, também, a partir do nosso campo específico de ação, em direcionar nossas atividades. É importante atuar de maneira mais sistemática nas contradições e relações do Estado capitalista, como analisa Poulantzas (2000). Ora, diz Harvey (DERBYSHIRE, 2014), este mesmo Estado envolve-se em várias atividades que extrapolam sua defesa da propriedade privada. E, diferente de parte do anti-estatismo atual que terminaria casando com a ética neoliberal, precisaríamos centralizar nossa atenção na crítica ao Estado capitalista, mas sem descuidar de uma atuação no espaço deste mesmo Estado e das políticas públicas. Torna-se também necessário agir levando em conta os vínculos estreitos entre Estado, capital e trabalho como ressalta Mészáros (2015) e atuar visando a ampliação da face pública do Estado capitalista, especialmente via políticas públicas redistributivas e participativas. Recuperar, por sua vez, as experiências das populações e seus vínculos com as políticas públicas, especialmente aquelas que envolvam atividades coletivas e que derivem das lutas sociais, ou seja, explicitar melhor as relações entre estas lutas e seus efeitos nas políticas ligadas ao Estado. Um reforço a essa ideia nos é concedido por Harvey (2012), quando cita o papel do Occupy na denúncia da desigualdade e seus desdobramentos como já nos referimos. Além do mais, é fundamental e inadiável que nossas atividades de políticas públicas passem, necessariamente, por uma concepção mais crítica do Estado capitalista. E que ampliemos nossos trabalhos de avaliação de políticas públicas no sentido de contemplar e estudar mais profundamente as iniciativas dos governos que não seguem a ideologia neoliberal, bem como divulgar as inúmeras tentativas de fazer algo diferente na direção de uma nova sociedade. Por fim, que possamos ir Para além da crise global: experiências e antecipações concretas. REFERÊNCIAS BAZZAN, Alexandre; MONCAU, Gabriela. David Harvey fala à Caros Amigos da crise capitalista e outros temas. Caros Amigos, São Paulo, 07 mar. 2012. CHESNAIS, François. Crise financeira mostra regime em beco sem saída. Folha de São Paulo, São Paulo, 15 ago. 2011. (Entrevista a Eleonora de Lucena). Chomsky: a Europa é hoje uma das maiores vítimas do neoliberalismo. Esquerda.NET. 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CRISE, ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS: o que nos apontam as políticas de proteção social da Venezuela, Bolívia e Equador Márcia da Silva Pereira Castro5 RESUMO No contexto atual a crise tem interposto diferentes estratégias de enfrentamento aos chamados Estados Nacionais, com destaque aqui, para as medidas no campo da proteção social. Assim, ampliar o debate sobre a crise para além do campo específico da denominada política econômica é um intento em problematizar e aprofundar as consequências que recaem sobre a formulação e implementação das políticas sociais. Nesse cenário, países como Venezuela, Bolívia e Equador têm veiculado iniciativas que fortalecem mais as políticas de proteção social de caráter popular do que reproduzido as orientações neoliberais. PALAVRAS-CHAVE Crise; Estado; Políticas Públicas de Proteção Social; Propostas de Governo. ABSTRACT In this context, the crisis brought different coping strategies to socalled national states, being here evidenced, measures in the field of social protection. Thus broaden the debate on the crisis beyond the specific field of so-called economic policy is an attempt to discuss and deepen the consequences that fall on the formulation and implementation of social policies. In this scenario, countries such as Venezuela, Bolivia and Ecuador presented initiatives that strengthen social protection policies of popular character than produced the neoliberal guidelines. KEYWORDS Crisis; State; Public Policies for Social Protection; Government proposals. 5 Doutora. Universidade [email protected] do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail: 1. INTRODUÇÃO No atual contexto da crise vivida pela sociedade capitalista, as medidas de austeridade (im)postas pelos grandes organismos de financiamento internacional (Banco Mundial, FMI e BIRD) tem, de certa forma, agravado ainda mais a situação de alguns países periféricos, mas também provocado verdadeiros colapsos em alguns países da Europa. Nessa conjuntura alguns dos chamados Estados Nacionais tem interposto diferentes estratégias de enfrentamento à crise adotando políticas, principalmente, no campo econômico e social que contrariam o receituário neoliberal indicado pelas grandes potências econômicas. Frente a isso, nosso destaque, por ora, é conjecturar, especialmente, sobre as consequências que as medidas de austeridade repercutiram no campo social de alguns países, com destaque para Venezuela, Bolívia e Equador, bem como vem se dando as tentativas de superação dessa realidade através das medidas direcionadas ao campo da proteção social. Nessa reflexão, amplia-se o debate para além do campo específico da denominada política econômica, com o intuito de potencializar a problematização e o aprofundamento das consequências/alternativas que recaem sobre a implementação das políticas sociais. Mesmo corroborando com a assertiva de que inexiste propostas satisfatórias para enfrentamento da crise, a escolha de países como Venezuela, Bolívia e Equador para ilustrar as presentes reflexões, se respaldam na convicção de que são Estados que têm veiculado iniciativas que fortalecem políticas de proteção social de caráter popular. E isso, de certa forma, expressa práticas diferenciadas e a mobilização e ebulição dos movimentos sociais no contra fluxo da globalização neoliberal e da mundialização do capital. Essa reflexão advém, em grande parte, das discussões que o Grupo Interdisciplinar de Estudos e Avaliação de Políticas Públicas (GIAPP) tem reforçado na condução de seus estudos e que, por ora, tomamos como pressuposto. São elas: as crises cíclicas da estrutura capitalista extrapola o campo restrito da economia e espraia-se por várias áreas; tem relações diretas com o espaço público e com determinadas ações do Estado capitalista e com as respectivas políticas públicas; com a avalanche da ideologia neoliberal gerou-se diferentes reações, sejam as propostas de intelectuais de esquerda ou próximos a ela, sejam as lutas sociais e algumas iniciativas de governos não pautados pelos princípios e diretrizes neoliberais. Partindo desses pontos, o que estamos vivenciando é o início de mais uma crise de legitimação do capitalismo mundial. Para o presente texto, nos utilizamos de algumas entrevistas, notícias de jornais e revistas por nos possibilitarem observações e discussões mais recente. Mas também nos respaldamos em documentos oficiais para obter as proposições (programas, planos e projetos) de alguns governos, bem como textos acadêmicos com caráter mais teóricoanalítico. 2. A CRISE CAPITALISTA E AS REPERCUSSÕES NO CAMPO SOCIAL NA VENEZUELA, BOLÍVIA E EQUADOR Partindo da premissa de que inexistem propostas satisfatórias para enfrentamento da crise, não podemos olvidar que há uma efervescência no campo intelectual e político os quais emanam diferentes propostas/constructos de intelectuais, na sua maioria, militantes de esquerda, como também algumas iniciativas de abrangência local que se esquivam da concepção capitalista hegemônica. Da mesma forma, as experiências/iniciativas vivenciadas pela Venezuela, Bolívia e Equador não se configuram ainda em outra estrutura de sociedade, contudo, as políticas adotadas para o enfrentamento ao ideário conservador neoliberal primam pelo fortalecimento de um Estado caracteristicamente nacional, em que o cariz popular ganha relevância. É o que se evoca, por exemplo, nos Planos de Governo, dentre eles, o Vivir Bién e o Buen Vivir, da Bolívia e Equador, respectivamente. São exemplos de que há um empenho em se superar o modelo convencional de desenvolvimento colonizador através, prioritariamente, da construção de alternativas que possam potencializar o fortalecimento das culturas nativas/indígenas (SCHETTINI, 2012). Para melhor compreensão do contexto em que se emerge essas propostas de governo, apontamos a seguir algumas considerações sobre as repercussões que as medidas neoliberais impetraram na organização política e socioeconômica da Venezuela, Bolívia e Equador. 2.1. Um panorama sobre a Venezuela Até 1999, quando a Venezuela teve uma nova constituição aprovada garantindo direitos sociais básicos à população, o país vivia graves problemas sociais que envolviam pobreza, exclusão e desigualdade social que perduravam já há três décadas (CABEZAS; D’ELIA, 2008). Com a chegada de Hugo Chávez à presidência, várias mudanças estruturais foram efetivadas. A Venezuela foi o primeiro país da América Latina a tomar iniciativas de contraposição ao ideário neoliberal que resultou em expressivas transformações econômicas, mas que também tem instigado um contínuo confronto com o imperialismo norte-americano devido o argumento do fortalecimento do Estado Nacional, principalmente, através da retirada do petróleo das mãos de empresa norte-americanas, a nacionalização de empresas falidas e criação de mídia estatal (KLEIN, 2015). Frente a isso, a ampliação dos investimentos sociais foi significativa, apesar das controvérsias que emergiram quanto ao modo de aplicação dos recursos. Ligada ao fortalecimento do Estado nacional e de políticas públicas que se diferenciam das adotadas pelos governos neoliberais, a criação das Missões Sociais em 2003, se configurou como programas sociais estratégicos “voltados inicialmente para dar atendimento emergencial e primário aos principais problemas sociais do país – como o analfabetismo, o desemprego, a fome, a pobreza extrema” (SCARTEZINI, 2014, p. 100). A partir de 2006, sob a bandeira da Revolução Socialista, o governo de Cháves propôs soluções imediatistas de cunho ideológico sem aprofundar as questões estruturais (CABEZAS; D’ELIA, 2008), o que repercutiu, posteriormente, em resultados não tão exitosos. Foi o que apontou o estudo realizado por D’Elia e Cabezas (2008), em 2007, sobre os resultados das Missões Sociais em seus primeiros cinco anos de implementação que não se apresentavam satisfatórios6. Contudo, após mais de uma década de sua implementação e dos vários problemas enfrentados, as Missões Sociais foram apontadas por estudos como determinantes de avanços sociais significativos e potencializadoras das organizações populares, algumas já pré-existentes às próprias Missões Sociais (SCARTEZINI, 2014). Um 6 O estudo de D’Elia e Cabezas (2008) foi acompanhado de várias críticas da imprensa quanto ao êxito das Missões Sociais. Exemplos pode ser visto em publicações do El nuevo país de 25/07/2008 e Elsalvador.com de 27/07/2008. dado importante é o que nos aponta Main (2014) quando afirma que o país conseguiu no percurso de uma década reduzir a pobreza em 50%, mesmo enfrentando dificuldades caracteristicamente econômicas (abastecimento, inflação etc.). Por decorrência, a própria dinâmica de desenvolvimento das Missões e da Revolução bolivariana expandiram seus objetivos iniciais. Assim, as Missões Sociais enquanto nova estratégia e gestão das políticas sociais e recuperação do espaço público destruído em parte pelas atividades neoliberais, como na educação, saúde, abastecimento e moradia também denotavam a nova orientação governamental. No caso da educação, exemplo mais conhecido, passou a ser também financiada com recursos do petróleo, foi instituída a gratuidade do ensino incluindo proibição de cobrança de matrícula (ZUCK; NOGUEIRA, 2012), conseguiu-se o fim do analfabetismo (KLEIN, 2015). O avanço obtido após a instauração da Revolução bolivariana/Socialista levou o governo dos Estados Unidos a boicotar e tentar destruir a experiência venezuelana. Exemplos explícitos vão desde o golpe de Estado na época do governo de Hugo Chávez, até as várias tentativas de desestabilização do atual governo de Nicolás Maduro. 2.2. Um panorama sobre a Bolívia A Bolívia ao longo dos anos 1980 e 1990 vivenciou reformas estruturais que eliminaram uma planificação integral para o desenvolvimento, dando prioridade à estabilização e ao crescimento econômico em detrimento de uma agenda social. Ao final da década de 1990 se institui a Estratégia Boliviana de Redução da Pobreza (EBRP) apontando a prioridade do mercado e reduzindo o papel do Estado Central através de uma maior descentralização na implementação de programas sociais com uma política de compensação aos municípios mais pobres. A EBRP possuía um enfoque centrado na prestação de serviços sociais e na geração de empregos de curto prazo, desprezando as diferenças de gênero, culturais e de identidade (MORALES, 2010). Em 2004, durante o governo de Carlos Mesa, as políticas sociais passam a ser compreendidas como uma Rede de Proteção Social (Decreto Supremo 27331). Naquele momento os programas implementados eram: Plan Nacional de Empleo de Emergencia (PLANE), o Programa Nacional de Atención a Niñas y Niños Menores de seis años (PAN) e o Programa contra la Pobreza y Apoyo a la Inversión Social (PROPAIS), para a execução de pequenos projetos de infraestrutura local, comunitária e de equipamento. Com o governo de Evo Morales, em agosto de 2007 se aprova a reformulação e criação da Rede de Proteção Social e Desenvolvimento Integral Comunitário (RPS-DIC). Essa política uniu programas já existentes e criaram-se outros amparados pelo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) 2006-2011, denominado “Bolivia digna, soberana, productiva y democrática para Vivir Bién”7. O citado PND apresentava propostas e orientações para uma transição propondo o desmonte do colonialismo e neoliberalismo, objetivando a construção de um Estado Multinacional e Comunitário. Os programas que compõem essa rede são: 1) Programas de corto plazo: Programa PROPAIS y Empleo Digno e Intensivo de Mano de Obra (EDIMO); 2) Programas de Generación de Oportunidades y activos sociales: “Mi Primer Empleo Digno”, “Bono Juancito Pinto” y “Desnutrición Cero” y “Renta Dignidad”; y 3) Programas de Desarrollo Integral Comunitario (DIC): Comunidades en Acción, Comunidades Solidarias y Comunidades Recíprocas (MORALES, 2010, p. 14). Para Morales (2010), a articulação desses programas, mesmo sob a concepção de Rede encontraram vários obstáculos em sua implementação, haja vista que, dentre outros aspectos, os componentes conceituais e ideológicos debilitaram tanto os acordos formais, quanto os informais. A despeito das limitações, desde 2006, a Bolívia, tem apresentado um crescimento econômico anual superior a 5%, reduziu a pobreza em 25%, aumentou em termos reais o salário mínimo em 87% e reduziu a idade da aposentadoria (HAMILI, 2014). Corroborando com esses dados, um estudo realizado sobre as políticas sociais de saúde, educação e nutrição nos dois primeiros anos do seu governo (2006-2008), identificou uma ampliação desses serviços. E, mesmo a Rede de Proteção Social propondo a criação de dez programas, até o momento da pesquisa, apenas cinco estavam sendo implementados, mas, já era perceptível o caráter redistributivo da política social e a minimização da dependência financeira externa para essa área (MORALES, 2010). Seguindo estratégias semelhantes à Venezuela, compreende-se, portanto, as tentativas de desestabilização e intimidação da Bolívia por parte dos governos imperialistas e do capital. Um fato de grande repercussão na mídia foi o incidente com o avião 7 Em substituição ao PND 2006-2011, tem-se a elaboração do Plano de Desenvolvimento Econômico e Social 2012-2015. Segundo Moraes (2014), “O Vivir Bien desapareceu do título do documento [...]. Isso não significa, necessariamente, que ele deixe de servir como discurso basilar para os planos de desenvolvimento do país” (p. 152). presidencial da Bolívia que sob a suspeita de que estaria transportando Edward Snowden clandestinamente, a aeronave do presidente Evo Morales foi impedida de sobrevoar os espaços aéreos da França, Espanha, Itália e Portugal. 2.3. Um panorama sobre o Equador No Equador, após a crise do Petróleo de 1973, os bancos de investimento norteamericanos viram a possibilidade de aplicações lucrativas. Esse processo tem início durante as ditaduras militares de Guillermo Lara (1972-1976) e Alfredo Póveda (1976-1979) quando até então não havia empréstimos por parte dos bancos privados internacionais (REIS, 2014). Como resultante, em apenas dois anos, a estrutura do endividamento se alterou drasticamente, passando os bancos privados internacionais a deter, então, mais de 50% da dívida pública equatoriana; no ano seguinte (1978) já representavam cerca de três quartos de todo o endividamento público (AGUILAR, 2006). Como em boa parte dos países latino-americanos, o Equador vivencia o início do endividamento financeiro externo como resultante da grande oferta de créditos em nível mundial naquele período. E esse momento coincidiu com o processo de redemocratização na década de 1980 – que, por essa razão, foi fortemente pressionado pela adoção de políticas de ajuste estrutural: foram adotadas medidas de retração de gastos sociais orientados à promoção de direitos, de políticas fiscais rígidas, de “reformas” orientadas ao corte de gastos pelo Estado, bem como a privatizações sob a influência de organismos como o FMI e o Banco Mundial (REIS, 2014). Assim, como a Venezuela e Bolívia, no Equador, em 1989, houve a adoção de um Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social que reconhecia a existência da “dívida social” gerada pelas políticas de ajuste. Como em outros países, a intervenção do Banco Mundial sob a falácia de uma “Nova Política Social”, passou a desenvolver ações que oficialmente seria para erradicar a pobreza, combater o analfabetismo e promover o desenvolvimento, não deixaram de seguir a lógica da acumulação e do endividamento. O Comitê para a anulação da Dívida do Terceiro Mundo, em 2009, observou que somente 14% das somas emprestadas entre 1989 e 2006 foram empregadas em projetos de desenvolvimento (água potável, energia, irrigação, transportes, telecomunicação, infraestrutura social, apoio às empresas. Os 86% restantes serviram para pagar o serviço da dívida externa. (REIS, 2014, p. 44). Ainda com um agravante: dos 14% emprestados sob a justificativa do “desenvolvimento”, 34% foi destinada para reformar o setor financeiro. Nesse cenário, o gasto social foi drasticamente reduzido, passando de 11,4% do PIB em 1980, a 5% em 1987, a 4,5% em 1988 e 4,2% em 1989 (REIS, 2014). Como resultante, políticas focalizadas e reforço de políticas sociais assistencialistas através da racionalização do gasto público. Ainda, segundo o Comitê para a anulação da Dívida do Terceiro Mundo, em 2006, 47% do Orçamento Geral do Estado do Equador respondia ao serviço da dívida pública, enquanto apenas 9,7% e 4,7%, respectivamente, atendiam aos setores Educação e Saúde. Somente nesse ano de 2006, o serviço da dívida consumiu um montante de US$ 2,980 trilhões (REIS, 2014). Com a chegada de Rafael Correa em 2007 à Presidência, diversas mudanças no plano da economia repercutiram no cenário social. Segundo Ramírez (2010), se antes de 2007 o serviço da dívida constituía o dobro do investimento social, com o novo governo, o investimento social passou de 18% em 2001 para 24% em 2006. Semelhante à Bolívia, a proposição do Plano Nacional de Desenvolvimento do Equador denominado “Buen Vivir”, evoca a necessidade de construção coletiva advinda dos saberes e tradições indígenas sobrepondo-se ao desenvolvimento convencional do Modo de Produção Capitalista e extremado pela perspectiva neoliberal. Várias críticas são tecidas acerca do atual governante do Equador, dentre elas a que recai sobre a possibilidade de reforma da Constituição de 2008. Todavia, sua perspectiva diferenciada de governar aponta para a proporção crescente de recursos do Orçamento Geral do Estado destinados às áreas das políticas sociais (bem-estar, saúde, educação, habitação) (REIS, 2014). Como foi apontado, uma particularidade adotada pelo presidente Rafael Correa foi a composição de uma comissão para a Auditoria da Dívida Externa a qual conseguiu reduzir significativamente os valores dos empréstimos junto aos credores internacionais. Essa estratégia adotada pelo Equador diverge da que foi assumida pela Venezuela e Bolívia e isso tem resultado em diferenças no contexto atual desses países. Mesmo com uma estratégia diferenciada, o Equador não se eximiu de confrontar-se com o imperialismo norte-americano e os governos neoliberais dos países de capitalismo central, bem como esquivar-se da tentativa de golpe em 2010. Dentre outros feitos, o governo desmanchou agências de inteligência que tinham ligação com os Estados Unidos. 3. REFLEXÕES GERAIS SOBRE AS INICIATIVAS E O ENFRENTAMENTO DA CRISE PELA VENEZUELA, BOLÍVIA E EQUADOR O endividamento da Venezuela, Bolívia e Equador teve início praticamente concomitante à independência de cada país, assim como outros países latino-americanos, mas que foram ganhando diferentes proporções devido ao envolvimento com o setor financeiro. Em que pese as particularidades de cada um, as iniciativas proferidas pelos governos populares desses países apresentam algumas características em comum com destaque para o confronto direto ou indireto com parcelas do grande capital e o Estado capitalista com seu receituário neoliberal. Nessas ações cabe destacar a iniciativa de consolidar a participação popular garantida pelas novas constituições e a implementação de políticas orientadas a uma menor desigualdade e abertura do espaço público. Apesar da recente experiência grega onde o governo tem se confrontado diretamente com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e com a União Europeia (EU), é na América Latina e com governos nacionais de esquerda que os embates têm sido mais frequentes e expressivos constituindo-se exemplos de resistência diante do neoliberalismo (CHOMSKY, 2015). Exemplos dessa ofensiva são os Golpes de Estado deferidos contra o Governo Hugo Chávez, na Venezuela, em 2002, contra Evo Morales, na Bolívia, em 2008 e contra o governo de Rafael Correa, no Equador, em 2010. Sem dúvidas que as posturas assumidas por esses governos avançaram no sentido de garantir melhores condições de vida à população em geral. Vários índices referentes à qualidade de vida e desenvolvimento humano passaram por melhorias. Exemplo disso, são os índices de pobreza e indigência divulgados pela CEPAL em 2012 sobre a América Latina e que apontam para uma redução significativa dessas situações na Venezuela, Bolívia e Equador, deixando-os em situação bem melhor que países como Paraguai, República Dominicana e Panamá. Isso aponta que, no decurso de uma década, eles se colocam em situação satisfatória dentre o conjunto dos países latino-americanos. QUADRO 1: SITUAÇÃO DE POBREZA E INDIGÊNCIA EM TORNO DE 2002, 2010 E 2011 (Em porcentagens) Em torno de 2002 Em torno de 2010 Em torno de 2011 País Ano Pobreza Indigência Ano Pobreza Indigência Ano Pobreza Indigência Paraguai 2001 61,0 33,2 2010 54,8 30,7 2011 49,6 28,0 República 2002 47,1 20,7 2010 41,4 20,9 2011 42,2 20,3 Dominicana Panamá 2002 36,9 18,6 2010 25,8 12,6 2011 25,3 12,4 Bolívia 2002 62,4 37,1 2009 42,2 22,4 ------------Equador 2002 49,0 19,4 2010 37,1 14,2 2011 32,4 10,1 Venezuela 2002 48,6 22,2 2010 27,8 10,7 2011 29,5 11,7 Argentina 2004 34,9 14,9 2010 8,6 2,8 2011 5,7 1,9 Uruguai 2002 15,4 2,5 2010 8,6 1,4 2011 6,7 1,1 Fonte: Síntese extraída dos dados disponibilizados no Quadro: AMÉRICA LATINA (18 PAÍSES): PESSOAS EM SITUAÇÃO DE POBREZA E INDIGÊNCIA, EM TORNO DE 2002, 2010 E 2011. (CEPAL, 2012). Ligado a esses aspectos, um dos maiores problemas inerente à América Latina ainda é a distribuição de renda. Países como Brasil, Chile, Colômbia, Guatemala, Honduras, Paraguai e República Dominicana, apresentam proporções em que os ricos detêm cerca de 40% da renda e entre os mais pobres a concentração da renda gira em torno de 11% e 15%. Na Bolívia8 a apropriação por parte dos mais pobres é similar, mas um pouco menor a porcentagem que cabe ao decil superior. Por sua vez, Argentina, Equador, El Salvador, México, Nicarágua e Peru registram valores maiores no extremo inferior da distribuição (16% ou 17%) e um pouco menores entre os 10% mais ricos (em torno de 30%). Na Venezuela9 ocorre a menor concentração, já que as proporções são da ordem de 20% a 23% em ambos os extremos. (CEPAL, 2012). Mais recentemente, Lassance (2015) também reforça essa assertiva, dizendo que, de acordo com o índice de GINI, a Venezuela, a Bolívia e a Argentina reduziram a desigualdade em 10%. Já o Equador, juntamente com o Brasil, diminuiu em torno de 7%. Estudos já apontam para uma discreta melhoria no nível de Desenvolvimento Humano em alguns países periféricos, inclusive na América Latina. Contudo, há uma projeção maior para aqueles países em que o desenvolvimento econômico se sobressai como é o caso do Brasil (PNUD, 2013). No caso da Venezuela, Bolívia e Equador as decisões/estratégias 8 9 governamentais adotadas tendem a retroceder a pobreza Costa Rica e Panamá também mantém um percentual próximo ao da Bolívia (CEPAL, 2012). No Uruguai a concentração segue o mesmo padrão da Venezuela (CEPAL, 2012). multidimensional10 e não apenas a pobreza extrema através das políticas sociais focalizadas que são adotadas e, mais especificamente, pela implementação de uma proteção social que se sobrepõe ao restrito desenvolvimento econômico. Um dado relevante que merece ser considerado é que mesmo distanciando-se do receituário neoliberal, a Venezuela, Bolívia e Equador têm conseguido elevar os índices que apontam para a melhoria do quadro social (IDH, distribuição de renda, superação da pobreza extrema etc.). Essa afirmativa não oculta as dificuldades e contradições que esses países têm vivenciado, mas que no cenário mundial da crise são exemplos expressivos do redirecionamento efetivado pelos seus respectivos Estados e governos, e, por sequência, das políticas públicas ali implementadas, com destaque para o pioneirismo adotado pelo Equador que ao instituir uma comissão para a Auditoria da Dívida Externa reduziu significativamente os valores dos empréstimos junto aos credores internacionais e pôde ampliar os gastos sociais. Em uma análise breve e antecipada pode-se afirmar que esses países representam avanços diante do enfrentamento da crise e do capital e, particularmente, do neoliberalismo. As análises mais gerais, à longo prazo e concernentes a estratégias mais amplas, como a defesa de uma globalização socialista feita por Mészáros (2015), não minimizam a importância das ações mais pontuais das experiências populares e de alguns governos, bem como das políticas públicas setoriais11, particularmente, as sociais implementadas pelo Estado Capitalista. É nessa perspectiva em que retomamos Santos (2002) quando intenta “atualizar” a concepção acerca da Emancipação Social através de experiências locais que defendem o chamado desenvolvimento alternativo. Sob esse ponto de vista, as políticas públicas devem se configurar mais em ações bottom-up que privilegiam um desenvolvimento de base em contraposição aos grandes projetos de desenvolvimento econômico que negligenciam os interesses e experiências populares. É sob essa expectativa que enfatizamos, ainda, a importância de ampliarmos nossos trabalhos de avaliação de políticas públicas no sentido de contemplarmos e pesquisarmos de forma sistemática as iniciativas dos governos que não seguem a ideologia 10 A pobreza multidimensional é mais ampla que a pobreza restrita à compreensão de acesso ao rendimento, pois envolve aspectos da saúde, educação e padrão de vida. Ou seja, envolve o acesso das pessoas à disponibilidade de políticas públicas. 11 A implementação de políticas públicas setoriais pelo Estado Capitalista deve ser compreendida como uma correlação de forças. Ou seja, mesmo beneficiando parcelas da sociedade não se pode perder de vista as funções que elas desempenham no âmbito do Estado, como por exemplo, a de legitimação e acumulação (CASTRO; SOUZA, 2013). neoliberal, como também as experiências populares, para que os êxitos identificados possam se constituir em novos sentidos às políticas públicas, especificamente, as sociais. No nosso entendimento, é o que para Harvey (2012) se constitui na importância de contemplar formas alternativas de organizar a produção, a distribuição e o consumo; é ser cidadão num sentido pleno onde o acesso aos bens públicos de educação e saúde (e demais políticas sociais públicas) seja possível e se dê de forma gratuita e de qualidade para todos. REFERÊNCIAS AGUILAR, Pablo Dávalos. Marco teórico de la deuda externa ecuatoriana y análisis de la deuda multilateral. Quito: Comisión de Investigación de la Deuda Externa, 2006. ALIMONDA, Héctor. Desarrollo, posdesarrollo y “buen vivir”: reflexiones a partir de la experiencia ecuatoriana. In: Crítica y emancipación (Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales). Argentina: CLACSO. Año IV, n. 7, Primer semestre 2012. p. 27-58. CABEZAS, Luis Francisco; D´ELIA, Yolanda. La política Social en Venezuela. Caracas: ILDES, jul. 2008. 20 p. CASTRO, Márcia da Silva Pereira; SOUZA, Lincoln Moraes de. 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A CRISE E O ENFRENTAMENTO NA VENEZUELA, BOLÍVIA E EQUADOR: o caso da saúde Paula Fernanda Brandão Batista dos Santos12 RESUMO Nos últimos quinze anos, temos assistido a uma importante ascensão de governos de esquerda, bem como o surgimento de um movimento político diferente dos interesses dominantes. Nesse texto, apresentaremos a situação da Venezuela, Bolívia e Equador como países que apresentam essa característica, e que são emblemáticos, ao proporcionarem transformações significativas nos marcos legais, nas políticas, planos e estratégias nacionais no que tange à saúde. Com estes governos, devido às suas concepções e iniciativas importantes e diferentes da orientação neoliberal, a saúde, igualmente, termina configurando mais uma maneira distinta de se situar diante da crise. PALAVRAS-CHAVE Crise, Estado, Políticas públicas de saúde ABSTRACT Over the past 15 years, we have watched an important rising of left governments, as well as the appearance of a new political movement from dominant interest. In this text, we will present the Venezuela, Bolivia and Ecuador situation as countries that have this features and are emblematic when provide significant changes in legal mark, in politics, in national plans and strategies, when it comes to health. With this governments, due to own important conceptions and initiatives and different from neoliberal orientation, the health, equally, ends how one more way to situate in front the crisis. KEYWORDS Crisis, State, public health policies. 12 Doutora. Universidade [email protected] Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: 1. INTRODUÇÃO A década de 1980 representou para os países latino-americanos o enfrentamento de algumas consequências do ciclo expansionista no início do século. Caracterizado por problemas que resultaram no agravamento da situação de vida e saúde da população, o desafio estava em superar o endividamento do Estado, a inflação, a recessão e os efeitos das políticas de ajuste neoliberal adotada pelos governos. (FLEURY, 1995). A recessão e as políticas de ajuste estrutural tiveram um peso considerável sobre a redução no nível de emprego e da renda que resultou em maiores desigualdades e privações das condições mínimas para sobrevivência às populações. (FLEURY, 1995). É indiscutível as relações entre saúde e os processos sociais, econômicos e políticos, pois esta sofre suas influências diretas e indiretas nas condições de vida das populações. Uma boa saúde é capaz de garantir melhores resultados em outras políticas como educação, trabalho, além de garantir bem-estar geral às pessoas e vice-versa (PERIAGO, 2007). Porém, os efeitos perversos trazidos com as políticas de ajuste como o aumento das desigualdades sociais e de acesso aos serviços públicos, a pobreza, a exploração, a violência e as injustiças sociais tem um impacto direto e negativo sobre a situação de saúde. Ainda que consideremos as diversas teorias sobre os processos de mudança que ocorreram no final da década de 1990 e início da década de 2000 com a ascensão de governos de esquerda nos países da América Latina, é fato que elas têm resultado no destaque às políticas sociais, e nestas, as políticas de saúde. Tal cenário marca um momento histórico importante e que pode revelar configurações e contextos merecedores de análise e reflexão. Assim, nos últimos quinze anos, temos assistido a uma importante ascensão de governos de esquerda e o espaço de um movimento político diferente dos interesses dominantes e que vão além do simbólico, rebatendo na concepção de Estado e mercado, cidadania e bem-estar da população. (ARVELAIZ, 2011) e, vinculando-se às políticas públicas, como na Venezuela, Bolívia e Equador. Estes países tem apresentado uma melhoria significativa no tocante aos indicadores de saúde, principalmente no aumento do acesso aos serviços básicos de saúde. Para Gattini, Ruiz, (2012), as diferenças nos indicadores de saúde estão relacionados ao grau de desenvolvimento global e a influência dos principais determinantes sociais de relevância em saúde, além da influência decisiva dos avanços das políticas e cobertura dos sistemas de proteção social em saúde e da organização, estrutura e desempenho dos sistemas de saúde. Os três países anteriormente citados são emblemáticos nesse sentido, ao proporcionar transformações significativas nos marcos legais, nas políticas, planos e estratégias nacionais no que tange à saúde. Mas é preciso atentar que estas mudanças estão ocorrendo em meio a diversos fatores adversos políticos, econômicos, culturais e sociais que tendem a influir direta ou indiretamente na implementação destas propostas e nos seus resultados. Daí a importância de apontar as estratégias adotadas e os avanços alcançados por estes países visando à superação das históricas distorções sociais na organização e funcionamento dos sistemas e políticas de saúde e as mudanças políticas ocorridas na América Latina na última década com os governos de esquerda. Com os governos da Venezuela, Bolívia e Equador, devido às suas concepções e iniciativas importantes e diferentes da orientação neoliberal, a saúde, igualmente, termina configurando mais uma maneira distinta de se situar diante da crise. Assim, ao proporem outras estratégias para o enfrentamento das necessidades de saúde das populações, priorizam a participação política, a justiça social e a ampliação do acesso e garantia de serviços de saúde públicos. 2. A VENEZUELA E A REVOLUÇÃO BOLIVARIANA – SAÚDE NA MISIÓN BARRIO ADENTRO. Se é certo que os grandes meios de comunicação são discretos sobre o sucesso dos governos latino-americanos de esquerda, são também sobre os fracassos dos poderes conservadores (HAMILI, 2014), e ainda mais quando o país é a Venezuela iniciada com Hugo Chavéz. Mas não há como negar que a sua gestão provocou mudanças estruturais, econômicas e políticas, que tiveram impacto importante sobre o país e sobre as políticas sociais num geral, e a política de saúde, em particular. De acordo com D’ Elia e Cabeza (2008, p 1), Venezuela entra al año 1998 com problemas críticos em la situación económica de los hogares y com amplios déficits estructurales em la protección, bienestar y seguridad social de la población. Para ese año la pobreza afectaba al 40% de la población, la inflación se encontraba en un 20% anual y el desempleo se estimaba en 15%. (...) Por otra parte, el 70% de la población no asistía a controles de salud ni estaba cubierta por sistemas de protección financeira para recibir atención; la mayoría de los adolescentes y jóvenes de ambos sexos desertaban del sistema educativo, el sector informal absorbía más del 50% de los/as trabajadores/as, la falta de viviendas adecuadas afectaba a cerca del 60% de los hogares y aproximadamente el 80% de la población no contaba con la seguridade de médios de vida para la vejez. A Venezuela iniciou esse processo de mudança, ainda em 1999 com a nova Constituição que traz a saúde novamente para o centro do debate, entendendo-a de maneira integral, com ênfase no componente preventivo, ambiental e de transformação da realidade socioeconômica do indivíduo e da comunidade. (MARIANI, 2012). Com a instituição do Sistema Público Nacional de Saúde, foi adotado como estratégia para garantir uma atenção universal, intersetorial, descentralizada e participativa os Programas Misión Barrio Adentro. No Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social elaborado para o período de 2001 a 2007, o Plan Barrio Adentro, se destaca como o ponto de partida inicial para o desenvolvimento de uma rede de atenção primária, iniciada em 2003 e fundamentada nos princípios de: equidade, gratuidade, solidariedade, acessibilidade, universalidade, corresponsabilidade e justiça social. (MARIANI, 2012). Denominada de “Missões sociais”, as iniciativas governamentais logo foram se multiplicando com diversos objetivos: alimentação, alfabetização, ensino médio, técnico e superior. A Missión Barrio Adentro (MBA), foi implantada por etapas. Na primeira, a Mission Barrio Adentro I, foi de diagnóstico e implementação em algumas cidades, avaliando a participação dos profissionais Cubanos no processo. A segunda etapa (MBA 2) se constituiu na implantação de centros de apoio diagnóstico e emergência, salas de reabilitação e centros de alta tecnologia por todo o país. A terceira etapa, é marcada pela modernização tecnológica da rede pública de hospitais do país e a quarta etapa está constituída dos hospitais de ensino altamente especializados. Em sistema de rede, as Missões vão configurando o sistema de saúde a partir dos seus níveis de complexidade. (DA ROS, et.al, 2008) O singular da proposta recai sobre “a democracia participativa, a participação popular como um eixo da política, aberta a ação pública, ao conhecimento popular, à construção de dignidade, de identidade e de pertencimento” (individual e coletivo) (MARIANI, 2012, p. 6). O modelo de atenção adotado baseia-se nos princípios da atenção primária à saúde, com enfoque integral e comunitário a partir do conceito de territórios sociais. Integra-se com as outras missões sociais, e buscam articulações visando à superação das desigualdades sociais e no acesso aos serviços básicos. (PEREIRA, et.al, 2012). Um dos primeiros e principais desafios enfrentados para implantar o programa foi a ausência de profissionais de saúde com perfil e interesse de atuar na saúde pública. A formação dos profissionais estava voltada para o mercado privado de saúde e expandir os serviços para as áreas menos assistidas pelos serviços de saúde gerou resistência destes profissionais em atuar em situações de intensa carência, alto índice de violência etc. Diante disso, foi firmado convênio de cooperação internacional entre Venezuela e Cuba para disponibilização de serviços médicos, especialistas e técnicos para prestar atenção à saúde onde eles não existiam e para oferecer treinamento para os trabalhadores venezuelanos dos diversos níveis. Essa experiência também enfrentou resistência e discordância, em grau semelhante ao que ocorreu no Brasil, no entanto, a experiência desse programa tem demonstrado um alto índice de satisfação da população com os serviços prestados pelos profissionais cubanos e uma mudança efetiva na formação e no direcionamento das práticas de saúde visando uma saúde integral e participativa. Em estudo realizado sobre as metas e resultados alcançados com as Missões destacamos: aumento do grau de satisfação da população com os serviços e com a relação profissional-usuário; atenção médica integral, gratuita, e perto das pessoas; oferta imediata e gratuita de medicamentos; inserção e aceitação da medicina natural e tradicional como terapia; melhoria na atenção pré-natal e ao parto institucional (100% deles); aumento do controle de doenças infecciosas; modificações positivas nos hábitos de higiene da população; formação de agentes promotores comunitários de saúde; participação nos projetos de formação etc. (DA ROS et.al, 2008). O destaque da experiência Venezuelana está na forte oposição do governo contra os latifúndios, contra a exploração da miséria, contra o enriquecimento ilimitado da elite petroleira, numa gestão que busca reconstruir o espaço público e a cidadania, estimulando a participação social a partir de uma gestão cooperativa. A saúde, resgatada no reconhecimento da dignidade humana, da garantia do direito, da equidade e da gratuidade, vem revelar conquistas relevantes e fundamentais que vão ter reflexos nas desigualdades sociais, em especial, no acesso e garantia dos serviços básicos de saúde. A mudança pretendida está pautada num incentivo radical à democracia participativa e na melhoria das condições de vida da população. (MAIN, 2014). 3. BOLÍVIA DIGNA, DEMOCRÁTICA, PRODUTIVA E SOBERANA – SISTEMA ÚNICO, INTERCULTURAL E COMUNITÁRIO DE SAÚDE. A Bolívia é considerada um país de alta natalidade e baixo crescimento populacional, explicado, por sua vez, pelo grande índice de mortalidade e morbidades infantis. É considerado o quinto maior país da América Latina e está dentre os mais pobres do grupo. A maioria dos bolivianos pertence a grupos étnicos indígenas, um terço é constituído de mestiços e só 10% tem origem europeia. (TEIXEIRA, 1991). Com uma população de 10.426.155 habitantes, é eminentemente um país de grupos etários mais jovens e que apresenta uma expectativa de vida de 68,5 anos para mulheres e 65 anos para homens. (GIOVANELLA et.al, 2012). Também na contracorrente do movimento político que dominou os governos anteriores da década de 1980 e 1990, na Bolívia tem-se o Governo do líder indígena Evo Morales desde 2006 e com ele mudanças estruturais, políticas e sociais. Na saúde, o sistema encontrava-se fragmentado, de qualidade questionável e com acesso limitado da população aos serviços e com reflexos sobre os indicadores (PEREIRA, et.al, 2012). Para fazer frente às diversas necessidades sociais e sua articulação foi criado o Ministério do Planejamento e Desenvolvimento e elaborado o Plano Nacional de Desenvolvimento Bolívia Digna, Soberana, Produtiva y Democrática para Viver Bem 2006-2011 (MORALES, 2010). A primeira estratégia, Bolívia Digna, se refere aos setores geradores de ativos e condicionantes sociais e dos programas intersetoriais de proteção social e desenvolvimento integral comunitário. Entre seus objetivos estão: gerar um padrão equitativo de distribuição de riqueza e oportunidades, promover o exercício pleno da dignidade e dos direitos das pessoas e grupos sociais, implementar programas de desenvolvimento destinados a reduzir drasticamente as situações de risco e suas consequências. A estratégia Bolívia Democrática, defende a formação de um Estado sócio comunitário onde o povo exerça o poder social e seja corresponsável nas decisões para o seu próprio desenvolvimento. A Bolívia Produtiva é uma estratégia voltada para fazer uma frente a transformação da matriz produtiva a partir de complexos integral e atribuindo ao Estado gerar excedentes, emprego e renda em setores estratégicos da economia. E por fim, a estratégia Bolívia Soberana, refere- se política exterior com sua transformação através da maior representação “dos povos” no exterior e na defesa de recursos naturais e na biodiversidade. (MORALES, 2010). Na Estratégia Bolívia Digna, centra-se as principais políticas e suas articulações intersetoriais e é onde está a saúde. O país adotou como modelo de atenção e gestão a Saúde Familiar Comunitária Intercultural que tem como objetivos: aumentar o acesso efetivo aos serviços de saúde abrangentes; fortalecer e aprofundar a participação social na tomada de decisões e na gestão compartilhada; aceitar, respeitar, apreciar e articular a medicina biomédica com a medicina dos povos indígenas e camponeses, contribuindo para a melhoria das condições de vida da população. (PEREIRA et.al, 2012). Para Giovanella et.al (2012), la Salud Familiar Comunitaria Intercultural es la politica sanitária que encarna la esencia del quehacer sanitário boliviano, transformando el viejo modelo medicalizado y centrado em la enfermedad em um nuevo modelo centrado em la participación y el control social, y em la acción concertada e intersectorial sobre los determinantes sociais de la salud. Em 2009 foi dado outro passo importante na perspectiva da cidadania e na organização do sistema de saúde. Com a nova Constituição, foi criado o Sistema Único de Saúde que se pretende universal, equitativo, gratuito, participativo, intra e intercultural, com qualidade, eficácia e controle social. (PEREIRA, et.al, 2012). O estímulo a participação e inclusão dos povos indígenas na assistência à saúde é destacado pois não se restringe a inclusão destes povos nos serviços de saúde, mas o reconhecimento e valorização do saber popular, da medicina tradicional dos povos indígenas e de suas raízes culturais e históricas no processo de viver e cuidar da saúde. Assim, assiste-se a uma transformação relevante no paradigma da atenção à saúde com a incorporação da medicina tradicional e da interculturalidade como componentes chaves do novo modelo de atenção e gestão. Somando-se estes ao incentivo e valorização da participação das organizações sociais e da sociedade civil e ao direito da terra e defesa do meio ambiente, temos a configuração das mudanças que estão sendo buscadas para o setor saúde, que não se separa dos demais, mas que apenas representa parte do sistema maior de proteção e desenvolvimento social e comunitário. Outra mudança importante relacionada ainda ao combate à pobreza enquanto situação crítica para o país, tem implicações derivadas e resultantes das diversas políticas sociais e econômicas. Com o plano nacional de desenvolvimento a visão para erradicação da pobreza assume um caráter mais central e complexo que exige um novo modelo social, econômico e estatal baseado na diversidade e no multiculturalismo, com um enfoque centrado na população e na comunidade. Algumas características centrais desse novo modelo são: um planejamento centralizado dessas ações; maior intervenção do Estado no mercado, através da Estatização e nacionalização de empresas privadas; a priorização da renda por sobre o crescimento econômico e a introdução de um novo ator no cenário da política social, “as comunidades”. (MORALES, 2010). 4. EQUADOR E A REVOLUÇÃO CIDADÃ – A SAÚDE COMO UM BEM PÚBLICO E NÃO MERCADORIA. O Equador é um dos menores países da América Latina com uma população total estimada para o ano de 2010 em 14.2 milhões de habitantes, sendo 50,1% de homens e 49,9% de mulheres, com uma população urbana de 66% e rural de 33%. (LÚCIO et.al., 2011). Sua evolução política a partir de 2006 é representada por maiores investimentos no setor social com a nova Constituição de 2008 e do Plano Nacional de 2009-2013. A política social é marcada pela recuperação do Estado a partir dos princípios de solidariedade, universalidade e de gratuidade na provisão de serviços chaves considerados como bens públicos e não como mercadorias. E nesse sentido, a construção efetiva de uma cidadania passa, necessariamente, pela garantia dos direitos a educação, saúde, proteção e seguridade social, assim como o acesso a um ambiente que proporcione uma vida boa e digna. (GIOVANELLA et.al, 2012). O sistema de saúde do Equador é composto por dois setores, o público e o privado. O primeiro constituído pelo Ministério da Saúde Pública, Ministério da Inclusão Econômica e Social, os serviços municipais de saúde e as instituições de seguridade social (Instituto Equatoriano de Seguridade Social, Instituto de Seguridade Social das Forças Armadas e Instituto de Seguridade Social da Polícia Nacional). As instituições de seguridade social assistem à população assalariada filiada, já os ministérios da inclusão econômica e social e os serviços municipais oferecem assistência também à população não assegurada. O setor privado é composto por instituições com fins lucrativos e sem fins lucrativos da sociedade civil e de serviço social. Os seguros privados de saúde e as empresas médicas tem uma cobertura de 3% da população dos estratos de renda média e alta. (LÚCIO, et.al.,2011) O Equador, dentre os países citados foi o último a iniciar seu processo de mudança denominado de Revolução Cidadã e, assim como os demais, sofreu sérias restrições e o desmantelamento dos serviços e políticas sociais nos anos de ajuste e crise econômica. A adoção do modelo neoliberal privilegiou os interesses do sistema financeiro, o extrapolamento das perdas da crise bancária para toda a população, a economia foi dolarizada levando a uma intensa migração devido ao desemprego acentuado e as precárias condições de sobrevivência. A população apresentava 40% de pobreza e 17% de pobreza extrema. (SEVERO; BIANCHI, 2013). Em 2006, o governo liderado por Rafael Correa, propõe mudanças substanciais nas políticas sociais. Em 2008, a nova Constituição sinalizou uma superação do modelo neoliberal e a proposição de um novo modelo de desenvolvimento que recebeu o nome de Buen Vivir, para expressar a necessidade e o direcionamento de um crescimento econômico que refletisse um equilíbrio entre o bem-estar material e o desenvolvimento pleno da vida de todos num horizonte de bem-comum. (SEVERO; BIANCHI, 2013) Na Constituição, o Estado assume a garantia dos serviços de saúde públicos universais e gratuitos em todos os níveis de atenção e compreendem os procedimentos de diagnóstico, tratamento, medicamentos e reabilitação necessários. O seguro universal obrigatório deve ser estendido a toda a população urna e rural, independente da sua situação trabalhista e deverá cobrir as despesas com as enfermidades, maternidade etc. Outra conquista importante presente na nova constituição refere-se a participação social enquanto direito (art. 95) (GIOVANELLA et.al, 2012). Para a Ministra da Inclusão Econômica e Social, Dóris Carrión (SEVERO; BIANCHI, 2013), o êxito da Revolução Cidadã se configura em manter-se no eixo da Constituição defendendo um sistema de proteção social público, mesmo enfrentando as dificuldades para materializar esse novo marco constitucional. A defesa da educação e saúde públicas, de moradias sociais, política para os migrantes, geração de emprego e renda dignos, garantia da seguridade social, eliminação da terceirização no trabalho, salário “digno” e não apenas “mínimo”, garantia de água potável, saneamento básico e, sobretudo, o fortalecimento do controle social são ações que vem configurando a atuação na área social para gerar oportunidades e combater a pobreza. Está passando a ser entendida não apenas como um problema relacionado à baixa renda das famílias, mas, da presença de carências básicas, de falta de acesso a serviços públicos de qualidade como moradia, educação, saúde e trabalho. Até 2006 o sistema de saúde equatoriano estava direcionado para a privatização dos serviços. Os serviços públicos estavam sucateados, faltavam insumos, medicamentos, equipamentos básicos (SEVERO; BIANCHI, 2013). A proposta do regime de Buen Vivir, prevê a conformação de um sistema de saúde baseado na atenção primária à saúde pautado nos princípios da universalidade, igualdade, equidade, progressividade, interculturalidade, solidariedade e não discriminação, bem como, na bioética com enfoque de gênero e geracional. (GIOVANELLA et.al, 2012). A lógica buscada está na oferta de serviços de atenção primária como porta de entrada do sistema de saúde público, para tanto há uma recuperação do conceito de medicina familiar, e nesse mesmo processo a recuperação significativa do público como sinônimo de qualidade, de direito da população equatoriana. (SEVERO; BIANCHI, 2013). O modelo de atenção à saúde adotado passa a ser o de atenção integral de saúde com enfoque familiar, comunitário e intercultural. Destacamos também que para manutenção desse sistema de saúde e seguridade social, algumas medidas foram fundamentais para garantir o financiamento necessário. O país conseguiu triplicar o orçamento destinado à seguridade social nos últimos anos, principalmente decorrente da alta no preço do petróleo, da adoção de uma política de fidelização no pagamento dos impostos e na determinação fundamental de dar prioridade às questões sociais. (SILVA; ESCANHO, 2014). Outro aspecto importante foi o aumento do gasto em saúde, que saiu de 4,2% do PIB em 2006 para 5,9% em 2008. O gasto público aumentou de 31,2% do gasto total em saúde para 39,5%, porém o gasto privado em saúde para 2008 ainda representava 60,5% do total do gasto. (LÚCIO et.al, 2011). 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS São inegáveis os avanços alcançados, seja no plano legal, seja nas mudanças de caráter mais estrutural dos serviços. No entanto, é bem certo que os desafios ainda existem, e que para a consolidação destas mudanças ainda há muito o que fazer. Há que destacar a importância dessas mudanças para o conjunto da população e que, diferentemente, das políticas neoliberais, pretendem aumentar a cidadania, ampliando direitos e promovendo o controle social. É preciso considerar ainda que as reformas promovidas estão marcadas num contexto de polarização política e social, bem como de instabilidade institucional. Porém, é preciso destacar que alguns desafios ainda estão posto, pois há que avançar sobre muitos anos de desmantelamento das políticas sociais, das enormes desigualdades sociais e em saúde que ainda persistem nestes países. Os principais desafios a serem superados são: garantir maior financiamento para saúde, aumentando o gasto público; conseguir profissionais para compor o quadro do sistema de saúde público; aumentar a oferta de serviços para garantir a atenção integral, universal e gratuita em todos os níveis; assim como promover a integração de todas as instituições em um sistema de saúde; e ainda, o enfrentamento das elites tradicionais e conservadoras, além das instâncias e governos que fomentam a política neoliberal. REFERÊNCIAS ARVELAIZ, M.. Sob uma cortina de fumaça. In: Le monde diplomatique Brasil. Fev 2011. BORGES, L.F.P., MAZZUCO, N.G.(org). Democracia e políticas sociais na América Latina. São Paulo: Xamã VM Editora, 2009. DA ROS, M.A., HENRIQUE, F., GAMA, L.A., GORONZI, T.A., SOARES, G.B. Atenção Primária à Saúde na Venezuela – Misión Barrio Adentro I. Organização Pan americana da Saúde: Letras contemporâneas, 2008. FLEURY, S. Iniquidades nas políticas de saúde- o caso da América Latina. 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