A crise do fundamento

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Eduardo Luft
Eduardo Luft*
A disciplina que denominamos Filosofia da Ciência
teve sua gênese nos debates ocorridos no Círculo de Viena,
grupo fundado na primeira metade do século XX por M.
Schlick. Ela nasce marcada por dois pressupostos à época
incontestes: interpretação empirista do saber científico e
fundacionismo em teoria da justificação. De certo modo,
podemos compreender a própria história da disciplina1
como a crise contínua do paradigma fundacionista, o que
Refiro-me aqui, sempre, à tradição predominante em Filosofia da Ciência
que considerava a disciplina uma investigação sobre o sentido da ciência enquanto ciência e suas peculiaridades em contraposição a outras formas de saber. A Filosofia da Ciência é, todavia, uma disciplina mais vasta: além dessa
abordagem metacientífica, que poderíamos denominar Epistemologia das
Ciências, há uma abordagem predominantemente ontológica – por exemplo, a
investigação dos pressupostos mais gerais de determinada ciência na busca
por compreender o mundo –, uma Ontologia das Ciências, portanto, que deixo
aqui inteiramente não tratada.
1
conduzirá à revisão do empirismo algo ingênuo dos primórdios, fazendo
emergir, entre outras alternativas plausíveis, uma nova abordagem capaz
de integrar empirismo (criticamente concebido) e coerentismo. É o que
esclarecerei a seguir.
O projeto filosófico do Círculo de Viena ancorava-se na tentativa de
demarcar claramente o terreno em que se movimenta o saber científico,
excluindo dele o que chamavam de pseudociência. Como distinguir com
rigor, por exemplo, Astronomia e Astrologia, Física e Metafísica? Uma
tese era compartilhada por vários integrantes do Círculo, e foi levada às
últimas conseqüências por Carnap (1998) em sua obra Der logische Aufbau
der Welt: somente o discurso científico possui sentido. Mas o que vem a ser
“sentido”? Uma sentença qualquer tem sentido se e somente se for possível, por algum tipo de procedimento, determinar a sua verdade (ou falsidade). E nesse ponto torna-se explícito o caráter estritamente empirista da
posição defendida por Carnap na obra citada2. Há apenas dois procedimentos adequados para determinação da verdade (ou falsidade) de uma sentença: ou a verificação empírica ou a explicitação das regras que exaurem o
sentido estritamente formal das verdades lógicas e matemáticas. Uma afirmação como: “O dia está nublado” tem a determinação de seu sentido garantida pelo procedimento simples de indicação das condições atuais do
clima em certo tempo e lugar, ou seja, por sua verificação empírica3; por
outro lado, sentenças como o princípio do terceiro excluído têm sentido
enquanto somos capazes de explicitar as regras formais que determinam a
sua verdade necessária no contexto de certo tipo pressuposto de lógica.
O Aufbau de Carnap pretendia demonstrar a viabilidade desse projeto
de um empirismo renovado à luz dos novos procedimentos da lógica con-
O empirismo rigorista defendido por Carnap no Aufbau foi reformulado e atenuado em obras
posteriores do autor (cf. W. Stegmüller, Carnap e o Círculo de Viena, in:
, A Filosofia
Contemporânea,São Paulo, Edusp, 1977, p.305).
3
“Diz-se que um enunciado p é ‘testável’ se se pode indicar as condições sob as quais ocorreria
uma experiência E que fundamenta p ou a contradição de p” (CARNAP,R. Pseudoproblemas em
Filosofia. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1975, v. 44, p.164).
2
4
Cf. W. Stegmüller, A Filosofia Contemporânea, São Paulo, EDUSP, 1977, v.1, p.284ss.
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temporânea constituindo todos os conceitos científicos a partir de uma fina
base observacional. Embora o fenomenismo típico da posição de Carnap
tenha sido criticado no interior do próprio Círculo de Viena – por Schlick,
por exemplo4 –, a ênfase na base empírica como o lugar adequado para
fundamentação das sentenças sintéticas (dotadas de conteúdo fatual) torna
explícito outro pressuposto central do novo empirismo vienense:
fundacionismo em teoria da justificação.
De fato, é o apelo a dados observacionais, sejam eles as percepções de
um determinado agente epistêmico ou os registros de um dado pesquisador
ao realizar seus experimentos – os protocolos que sustentam as “sentenças
protocolares” –, que dota de caráter científico as afirmações dos Físicos,
Biólogos, etc. “O único fundamento último de meu reconhecimento de uma
sentença como verdadeira encontra-se naquelas experiências simples que
podem ser consideradas como o passo definitivo para a comparação entre
sentença e fato”, dirá Schlick (1986, p.228).
Pelo menos duas dificuldades resultam da tentativa de encontrar nas
sentenças observacionais ou protocolares o fundamento último da ciência.
Vamos à primeira delas. Como é possível destacar tão claramente as sentenças protocolares do sistema geral de nosso discurso? Como purificá-las
de elementos não-empíricos a ponto de considerá-las livres de todo e qualquer pressuposto metafísico – ou seja, de todo elemento não redutível a
dados observacionais? Ou, pior, que sentença cientificamente relevante
pode ser qualificada de estritamente protocolar? Devemos a Popper a
explicitação desse problema: mesmo a sentença empírica mais banal, como
“água é H2O”, diz muito mais do que o suposto no contexto de um
empirismo ingênuo. Ela contém, implicitamente, uma interpretação sofisticada a respeito da estrutura do mundo. De fato, todos os conceitos fatuais
cientificamente relevantes contêm não apenas descrições de estados atuais
no mundo experienciado, mas o extrapolam na direção de hipóteses
universalíssimas sobre o modo de funcionamento do real.
Mesmo se fossemos capazes de afastar da ciência o fantasma da especulação, mesmo se fosse possível uma ciência radicalmente não
especulativa (o que identifico aqui com o termo não metafísica), ainda assim cairíamos na segunda dificuldade – tão bem investigada por Popper
(1994) em Logik der Forschung – que parece minar o projeto de um
fundacionismo empirista: o problema da indução. Nenhuma experiência
atual é capaz de servir como fundamento da verdade das afirmações
universalíssimas que constituem o cerne e – se verdadeiras – a razão de ser
da prática científica, ou seja, das teorias científicas, pois a verdade de sentenças universais não pode ser deduzida da verdade de sentenças singulares. Faltando o elo capaz de fundamentar radicalmente a verdade das sentenças universais – das teorias – na verdade das sentenças singulares – as
observações –, mesmo as ciências mais rigorosas terminam por se revelar
especulativas.
Popper dedicou boa parte de suas pesquisas à constituição de uma
nova metodologia capaz de enfrentar essa segunda dificuldade inerente ao
projeto empirista. Se o critério do sentido fosse a medida diferenciadora de
ciência e pseudociência, não apenas a Metafísica, mas todas as disciplinas
que atualmente denominamos científicas, carregadas como estão de especulação, cairiam no rol das pseudociências. Era preciso mudar o método de
demarcação entre ciência e pseudociência. É nesse contexto que Popper
propõe a abordagem falsificacionista, pilar do Racionalismo Crítico. Se
não podemos fundamentar positivamente a ciência na experiência, então
devemos fazê-lo negativamente. Se não se pode deduzir a verdade de sentenças universais a partir da verdade de sentenças singulares, podemos a
partir dessas provar a falsidade daquelas. Embora a ciência não possa ser
positivamente constituída a partir da estreita base empírica, é a partir desta
que podemos controlá-la criticamente.
Desse modo, Popper dava uma resposta original ao problema da demarcação. A diferença entre a ciência e os saberes não-científicos não é
estanque como pensavam os neopositivistas. As sentenças de saberes como
a Metafísica não são destituídas de sentido, mas apenas carentes da
Cf. K. Popper, “Que é dialética?”, in:
. Conjecturas e refutações, 4.ed., Brasília, UNB,
1972, p.343-365. Devemos a H. Albert o reconhecimento do forte vínculo da intuição central do
falsificacionismo com as idéias da tradição dialética (Cf. o seu Tratado da Razão Crítica, Rio de
Janeiro, Tempo Brasileiro, 1976).
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contrapartida de evidências empíricas capazes de colocá-las em xeque. Não
uma barreira intransponível, mas a linha tênue de um a caminho separa a
Metafísica da Física. De outro lado, o verdadeiro divisor de águas não se dá
entre discurso com sentido e sem sentido, mas entre saberes fechados (ou
dogmáticos) e saberes abertos à correção (ou críticos). O status de ciência
ou de saber em vias de se tornar ciência deriva não de certa disposição de
nosso discurso, mas da postura prática dos agentes epistêmicos enquanto
se mostram abertos à problematização de seus pressupostos teóricos.
É curioso notar o quanto essas idéias inovadoras aproximam Popper
da tradição dialética, sempre por ele tão severamente combatida5. A
criticidade é o núcleo central dos diálogos platônicos, erguidos sobre o
modelo da confrontação entre diversos pontos de vista na busca das posições teóricas mais plausíveis. E mesmo Hegel, embora não raro refém de
tendências dogmáticas, ergueu uma abordagem epistemológica muito próxima dos resultados posteriormente alcançados pelo falsificacionismo.
Como compreender o longo itinerário descrito na Fenomenologia do Espírito, se não como o desenvolvimento contínuo do saber humano, por tentativa e erro, na direção do conhecimento objetivo?
Há, todavia, uma diferença crucial entre o falsificacionismo e a
dialética que tem muito a nos dizer sobre a abordagem popperiana, ou melhor, sobre suas limitações. Os pensadores dialéticos estão longe de considerar a experiência, ou algo como a base empírica, o fundamento da dimensão crítica da ciência. Para Platão, como vimos, o terreno adequado
para exercício da crítica é o diálogo filosófico, realizado em níveis altamente especulativos. No caso de Hegel, a criticidade emana, por um lado –
na Fenomenologia do Espírito –, do próprio modo de desenvolvimento do
pensamento humano no percurso histórico, sob o impacto permanente de
novos desafios, revisão contínua de visões de mundo pregressas e consti-
tuição de abordagens teóricas renovadoras; de outro lado, ela brota do diálogo especulativo com a vasta tradição filosófica na procura por uma visão
integradora capaz, ao mesmo tempo, de preservar o tesouro da história da
filosofia e renovar a disciplina à luz do estágio atual do saber – o que é
característico na Ciência da Lógica. Em ambos os casos, a criticidade brota do contínuo embate desenvolvido no ambiente de ar rarefeito da vida
especulativa, e não na atmosfera supostamente purificada da empiria.
Popper segue caminho bem diverso. Apesar de todas as críticas que
sempre direcionou aos neopositivistas, ele manteve-se até o fim estritamente dentro da tradição empirista. Isso se levarmos em conta o postulado
primordial de sua forma de criticismo: a consideração da experiência, ou
da base empírica, como o lugar privilegiado de exercício da crítica. O confronto contínuo com a experiência é considerado por ele a marca fundamental do saber científico.
Como no caso da posição predominante dentro do Círculo de Viena,
também em Popper o empirismo está vinculado a uma abordagem
fundacionista em teoria da justificação e a uma forma de conceber o conhecimento que denomino epistemologia linear. Também nesse ponto o
criticismo popperiano não tem nada de dialético: a ciência deveria ser concebida à luz da metáfora da arquitetura – uma grande construção assentada
sobre a base empírica, mesmo se entendermos tais fundamentos como precários. Assim como a solidez de cada andar do vasto prédio depende da
solidez das fundações, também cada argumento científico ganha sua legitimidade da capacidade que temos de vinculá-lo à sua origem legitimante,
ou seja, o confronto com a experiência.
Poderíamos perguntar, contudo, por que teria a experiência tamanho
privilégio. Que característica torna as sentenças de base (o análogo
popperiano às sentenças protocolares dos neopositivistas) tão diferentes de
afirmações puramente especulativas? Por outro lado, haveria mesmo sentenças estritamente não especulativas? No todo da nossa linguagem, caberia algum lugar para a presença de enunciados puramente empíricos? Esse
purismo seria mesmo plausível? Já vimos que o próprio Popper questiona-
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ra duramente o rigorismo empirista que desconhecia que mesmo sentenças
empíricas científicas singelas contêm forte teor especulativo. Popper questionou esse ponto, é verdade, mas não levou suas problematizações às últimas conseqüências: “Somente denominamos uma teoria falsificada se podemos reconhecer as sentenças de base que a contradizem.” (POPER, 1994,
p.54). A experiência permanece sendo a fundação onde repousa o edifício
da ciência. Se esse pressuposto fosse questionado, a abordagem popperiana
original precisaria ser abandonada. Foi exatamente isso que ocorreu no
decorrer da história da Filosofia da Ciência.
Se o traço predominante na Filosofia da Ciência desenvolvida no Círculo de Viena era a defesa de uma perspectiva atomista em filosofia da
linguagem e fundacionista em teoria da justificação, novos desenvolvimentos tenderão a enfatizar abordagens exatamente opostas. O atomismo defende que sentenças tenham sentido independentemente de seu vínculo
com outras sentenças, constituindo-se no pressuposto basilar que torna crível a idéia de que uma ou algumas sentenças protocolares podem representar o fundamento – positivo ou negativo – de legitimidade do conjunto da
ciência. O fundacionismo, como já vimos, parte de uma leitura linear do
processo justificacional, de tal modo que o conjunto da ciência termina
suportado por algumas poucas afirmações consideradas seguras – ou, ao
menos, sólidas o suficiente para suportar o edifício complexo da ciência.
Na abordagem empirista analisada até aqui, as sentenças teóricas, de traço
marcadamente especulativo, apresentam-se ancoradas nas sentenças de
base, que constituem sua fonte de legitimação. Sendo assim, atomismo e
fundacionismo estão estreitamente ligados.
Uma perspectiva holista em filosofia da linguagem parte do pressuposto de que nem conceitos, nem sentenças, têm sentido isolados da totalidade de um sistema de discurso. Uma sentença científica tem seu sentido
esclarecido apenas a partir da compreensão da totalidade de um determinado sistema de crenças científicas. Note-se que tanto os programas de pesquisa de Lakatos quanto os paradigmas de Kuhn, para citar apenas dois
exemplos de abordagens renovadoras na Filosofia da Ciência pós-Popper,
implicam interpretações holísticas do discurso científico. Para Lakatos,
nenhuma falsificação centrada apenas em algumas sentenças de base é suficiente para pôr em questão um projeto de pesquisa atualmente em vigor.
Na verdade, um programa de pesquisa é compreendido como um sistema
total, abarcante de crenças, composto por zonas passíveis de revisão e um
núcleo duro que deve permanecer sem modificações no decorrer de execução do programa. No caso de Kuhn, é a totalidade de um paradigma que
guia a prática científica, dando gênese ao que o filósofo denominava a ciência normal.
No contexto de uma abordagem holística, o fundacionismo torna-se
inaplicável, ao menos quando estritamente observado. A ciência não pode
estar fundada em uma ou em algumas sentenças, quando a legitimação do
discurso científico deriva de uma totalidade abarcante de sentido. Sendo
assim, a justificação de uma dada crença científica não se processa ao
reconduzi-la a alguma sentença de base, mas ao reinseri-la no todo do discurso científico. A sua legitimidade deriva diretamente de sua coerência
com o sistema total de nossas crenças, e não de seu vínculo com certa
sentença protocolar. A abordagem holística exige a substituição de modelos fundacionistas por modelos coerentistas em teoria da justificação.
Essas novas abordagens nasceram, em parte, do reconhecimento de
que as supostas sentenças de base ou sentenças protocolares são fortemente dependentes de teorias. Na verdade, qualquer observação cientificamente concebida pressupõe uma grade semântica altamente complexa – possibilitada por teorias refinadas – que é a precondição para a interpretação dos
dados observados6. Sendo assim, se é verdade que as sentenças especulativas que compõem a dimensão teórica do discurso científico devem permanecer coerentes com as sentenças protocolares, tendo nesse sentido um certo lastro empírico, também é verdade que os protocolos somente podem ser
constituídos sob a pressuposição da grade semântica disponibilizada pelas
sentenças universais e especulativas que compõem as teorias. Resulta des-
6
Cf. A. F. Chalmers, O que é ciência afinal?, São Paulo, Brasiliense, 1993, p.46ss.
Cf. a meritória exceção de D. Koppelberg, Die Aufhebung der analytischen Philosophie – Quine
als Synthese von Carnap und Neurath, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1990.
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sa breve análise a constatação de que o discurso científico parece ser estruturado circularmente, e não linearmente como a analogia arquitetônica anteriormente mencionada levava a crer. Que o discurso científico seja estruturado circularmente significa que ele deve ser compreendido como um
todo auto-sustentado, autocoerente, ou seja, a ciência é melhor compreendida quando adotamos paradigmas holísticos.
Gostaria de finalizar com a exposição de uma metáfora esclarecedora
da compreensão holística do discurso científico, em contraposição ao
paradigma atomista e fundacionista ilustrado pela metáfora arquitetônica.
Trata-se de uma complexificação de metáfora desenvolvida por Otto
Neurath, representante do Círculo de Viena ainda não citado no presente
artigo. Neurath andava na contramão das idéias comumente aceitas por
pensadores como Schlick e Carnap: notável pensador holista, questionou a
fundo os dogmas centrais do empirismo, introduzindo – talvez por seu vínculo político com idéias marxistas – postulados dialéticos nas discussões
do Círculo, e dando origem a uma vasta ramificação “dialética” no interior
da tradição analítica – uma dimensão da complexa trama da história da
filosofia contemporânea ainda pouco pesquisada7 –, de onde derivam, por
exemplo, o holismo de Quine e Davidson.
Mesmo Popper ainda acreditava possível dotar a ciência de – ou, pelo
menos, torná-la autoconsciente de que possui – uma metodologia capaz
não apenas de distingui-la claramente das pseudociências, mas de promover uma contínua aproximação à verdade. Se iniciarmos a substituição da
metáfora arquitetônica pela nova metáfora que agora quero expor, uma
metáfora náutica, então poderíamos imaginar a situação do cientista (interpretada à luz da epistemologia clássica, ainda não inteiramente abandonada por Popper) da seguinte forma: estamos em uma embarcação precária,
singrando os mares à busca da verdade (uma ilha remota, qualquer que
seja); notando que nossa embarcação está prestes a emborcar, e avistando
um vasto e seguro navio próximo a nós, não hesitamos em pedir auxílio.
Uma vez dentro do navio, somos conduzidos com segurança ao nosso destino. Desse modo, dotados do método adequado para o desenvolvimento
do saber científico, nos aproximamos cada vez mais da verdade.
Neurath desconfiava fortemente da crença ingênua de que detenhamos ou possamos vir a deter algum dia uma metodologia eficaz a ponto de
promover o desenvolvimento contínuo e seguro do saber científico na direção da descoberta da verdade. Não apenas a ciência não detém – nem plausivelmente deterá algum dia – tal metodologia, mas tampouco a Filosofia
seria capaz de desenvolvê-la, pois “estamos todos, cientistas e filósofos, no
mesmo barco”, dizia Neurath: se o barquinho começa a apresentar defeitos, se um buraco no casco surge por algum motivo, não temos nenhuma
embarcação mais segura ou potente a recorrer para buscar auxílio. Tudo o
que podemos fazer é procurar peças de reparo no interior do próprio barco
que nos suporta, e tratar de consertá-lo.
Agora aprimoremos a metáfora. Imagine um grupo de velejadores alojados em seus barquinhos, navegando isolados em um vasto oceano, contando apenas uns com os outros – e com ninguém mais – para realizar um
antigo sonho: encontrar uma ilha situada em algum lugar do oceano, e parcamente indicada no mapa que o líder do grupo tem em mãos, um presente
querido de seu velho pai. Agora equipare essa imagem com um grupo de
cientistas participando em um projeto de pesquisa comum. Os cientistas
também trabalham orientados por uma meta bem definida: o encontro da
verdade em seu campo de pesquisa. Também eles contam com métodos de
descoberta mais ou menos eficazes para a realização de seu objetivo. Por
fim, da mesma forma como os navegadores, os cientistas também não começam do zero: pertencendo a uma certa tradição, eles herdam estratégias
de pesquisa, meios de investigação de seus antecessores, enfim, eles contam com trilhas já desbravadas por outros pesquisadores, embora continuamente devam checar se de fato o caminho até então traçado é o correto. Os
navegadores também têm o mapa legado pelo pai do líder apenas como um
CARNAP, R. Der Logische Aufbau der Welt. Hamburg: Meiner, 1998.
CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993.
POPPER, K. “Que é dialética?”. In:
. Conjecturas e Refutações. 4.ed.
Brasília: UNB, 1972, p.343-365.
POPPER, K. Logik der Forschung. 10.ed. Tübingen: Mohr, 1994.
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indicador de direção, mas devem constantemente reavaliá-lo de acordo
com as situações específicas com as quais se defrontam.
Podemos tornar a metáfora ainda mais forte dispensando a idéia preconcebida de que há mesmo uma ilha a ser encontrada (abandonando o
apelo a uma noção purista de verdade). Em vez disso, tudo o que os navegadores precisam é permanecer singrando os mares. Assim compreendo a
prática da ciência. Pesquisadores pertencem a certas tradições de pesquisa
e visam mantê-las de pé, resistindo aos problemas que continuamente
emergem do diálogo com outros saberes, outras tradições de pesquisa, ou
simplesmente do confronto com novas informações que surgem a todo
momento – também, e não apenas, da experiência. Um dado pesquisador
tem suas idéias corroboradas quando seu sistema de crenças resiste aos
problemas que enfrenta, permanecendo coerente consigo mesmo (coerência intra-subjetiva), com as idéias predominantes em seu grupo de pesquisa (coerência intersubjetiva) e – detalhe importante a acrescentar – quando
a tecnologia que emana das teorias traz resultados objetivos coerentes com
as previsões teóricas (coerência objetiva). Coerência no pensamento próprio, coerência entre os pensamentos de diversos agentes, e coerência entre
nossas crenças e nossas ações compõem os três níveis de corroboração em
que se resolve a práxis científica. Como não há nenhuma medida absoluta
de aproximação da verdade, o processo de corroboração é potencialmente
infinito, e a abertura à crítica e revisão deve ser compreendida como marca
constitutiva do saber. Essa metáfora é apenas uma ilustração de idéias que
nos distanciam em muito dos dogmas empiristas que preponderavam no
Círculo de Viena.
SCHLICK, M. Tatsachen und Aussagen, In:
. Philosophische Logik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986.
STEGMÜLLER, W. Carnap e o Círculo de Viena. In:
. A Filosofia Contemporânea. São Paulo: Edusp, 1977.
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