FEBRE FAMILIAR DO MEDITERRÂNEO E GRAVIDEZ FAMILIAL MEDITERRANEAN FEVER AND PREGNANCY Antônio Carlos LOPES * Vera Lucia DELASCIO LOPES ** Renato Delascio LOPES *** Zied RASSLAN **** - DISCIPLINA DE MEDICINA DE URGÊNCIA DO DEPARTAMENTO DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO - ESCOLA PAULISTA DE MEDICINA * Chefe da Disciplina de Medicina de Urgência da Universidade Federal de São Paulo Escola Paulista de Medicina. Livre-Docente de Clínica Médica da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina. Fellow do American College Physicians. Governador do seu capítulo Brasileiro. Presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica. ** Obstetra da Maternidade Pró-Matre Paulista *** Acadêmico de Medicina **** Preceptor da Disciplina de Medicina de Urgência da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina. 1 FEBRE FAMILIAR DO MEDITERRÂNEO E GRAVIDEZ FAMILIAL MEDITERRANEAN FEVER AND PREGNANCY Antônio Carlos LOPES * Vera Lucia DELASCIO LOPES ** Renato Delascio LOPES *** Zied RASSLAN **** - DISCIPLINA DE MEDICINA DE URGÊNCIA DO DEPARTAMENTO DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO - ESCOLA PAULISTA DE MEDICINA RESUMO A Febre Familiar do Mediterrâneo (FFM) é doença autossômica recessiva cujo gene foi identificado no braço curto do cromossomo 16 e que acomete indivíduos oriundos do Sul e da costa Oeste do Mar do Mediterrâneo. Neste trabalho é apresentado o caso de uma paciente portadora desta doença cuja gravidez não exerceu influência sobre a mesma, que por sua vez, também não influenciou a gestação, parto, puerpério e recém-nascido. A análise crítica da literatura e o presente caso levam os autores a admitirem que a gravidez deverá ser evitada em pacientes com FFM somente quando houver comprometimento da função renal e que a colchicina, droga de escolha para o tratamento, sempre que possível deverá ser prescrita apenas após o primeiro trimestre da gravidez, sendo que o abortamento terapêutico não tem indicação. PALAVRAS CHAVE: Febre Familiar do Mediterrâneo. Colchicina. Gravidez. Dopamina. Beta-Hidroxilase. 2 INTRODUÇÃO A Febre Familiar do Mediterrâneo (FFM), também conhecida como poliserosite hereditária, é uma doença autossômica recessiva caracterizada por episódios recorrentes de febre, peritonite, pleuriz, lesões cutâneas eritematosas e artrite. Seu gene foi identificado no braço curto do cromossomo 16 e acomete indivíduos oriundos do Sul e da costa Oeste do Mar do Mediterrâneo. Neste trabalho é apresentado o caso de uma paciente portadora de FFM que após longo período de esterilidade engravidou, sendo que a gravidez não exerceu influência sobre a doença e esta sobre a gestação e o concepto, salientado-se os principais aspectos relativos à sua patogenia, seu diagnóstico e tratamento. RELATO DO CASO Paciente com 31 anos, primigesta, brasileira, descendente de árabe, portadora de FFM diagnosticada na infância. Após vários anos de esterilidade ficou grávida, fazendo uso contínuo de colchicina há anos, com o que se mantinha assintomática durante longos períodos. Os exames clínico e laboratoriais eram normais no início da gestação e assim se mantiveram durante toda ela. Optou-se pela suspensão da colchicina assim que a paciente ficou gravida, sendo reintroduzida na 28a. semana de gestação em vista de um surto de pleuriz ser refratário aos medicamentos em uso. Na ausência da colchicina apresentou alguns episódios de pleuriz que foram tratados com prednisona e antiinflamatório não hormonal. O parto foi cesáreo na 36a. semana da gestação por indicação obstétrica (placenta prévia com sangramento importante) e o recém-nascido apresentou-se normal ao exame 3 clínico e laboratorial. Durante o ato operatório foram constatadas inúmeras aderências peritoneais. 4 DISCUSSÃO A FFM inicia-se habitualmente na primeira ou segunda década da vida e caracterizase clinicamente por episódios recorrentes de febre, peritonite, pleuriz, artrite e lesões cutâneas eritematosas, sinais e sintomas que podem ocorrer isolados ou associados, sendo sua complicação mais grave o amiloidose renal que evolui habitualmente com síndrome nefrótico e insuficiência renal crônica11,14. Alguns estudos indicam que ela está relacionada ao metabolismo anormal das catecolaminas1,3,5,26,28,29,30, geneticamente determinado, uma vez que a atividade de Dopamina Beta Hidroxylase (DBH) plasmática encontra-se elevada em pacientes assintomáticos, sem tratamento, e durante surtos agudos, provavelmente por maior síntese e liberação ou baixa remoção do plasma. A colchicina é a droga de escolha para o tratamento por reduzir a atividade desta enzima. Embora o diagnóstico de FFM seja essencialmente clínico, em 1984 iniciou-se o emprego do teste provocativo com metaraminol para confirmá-lo laboratorialmente2,4,6. A DBH catalisa a conversão da dopamina em noradrenalina na medula da glândula suprarenal e nas terminações nervosas simpáticas extra medulares, existindo evidências de fontes extra neurais26. Em tecidos normais, a enzima liga-se às membranas das vesículas de catecolaminas, sendo liberada na circulação junto com elas por exocitose20. A liberação para corrente sanguínea dá-se após a estimulação fisiológica e/ou farmacológica do sistema nervoso simpático, resultando em aumento discreto e transitório dos níveis de DBH, não tão evidente quanto o aumento das catecolaminas séricas25. A atividade sérica da DBH em indivíduos normais varia de 100 a 149 µmol/min/l e valores superiores a 150 µmol/min/l confirmam o diagnóstico da doença16,26,27. Os pacientes submetidos ao tratamento com colchicina possuem valores de atividade sérica da DBH semelhantes aos de indivíduos normais e a interrupção do mesmo 5 por uma semana, pode determinar elevação dos mesmos. Estes achados sugerem que a colchicina tem efeito direto na síntese, liberação, remoção de DBH ou em toda a cinética enzimática. A droga interfere no sistema microtubular das proteínas intracelulares, causando ruptura das subunidades protéicas, determinando, provavelmente, redução na síntese de proteínas. Determina, também, inibição no transporte transaxonal de catecolaminas, interferindo no seu armazenamento e liberação18. O uso profilático de colchicina é eficiente na prevenção das crises de artrite e serosite e do desenvolvimento de amiloidose com consequente síndrome nefrótico e insuficiência renal32. Os principais efeitos colaterais da droga, em doses terapêuticas, são dor abdominal, diarréia e vômito. Em relação aos efeitos colaterais decorrentes do seu uso prolongado pelo homem, eles são consequência da interação da droga com microtubulos e do efeito inibidor mitótico, destruindo células germinativas7. FERREIRA & BUONICONTI15, em 1968, relatam duas crianças com síndrome de Down que nasceram de mães com gota em tratamento contínuo com colchicina, embora pacientes com artrite gotosa sejam mais idosas e portanto com maior risco de trisomia. Estudos retrospectivos de pacientes gotosas em uso de colchicina entre 5-20 anos não apresentaram comprometimento da fertilidade e teratogenicidade31. A prevalência geral de infertilidade entre casais em Israel10 varia de 10 a 15%, sendo o fator masculino responsável por 30 a 40% dos casos. Na FFM a prevalência de infertilidade é 30%19, sendo atribuída à aderências peritoniais12 e disfunção ovaniana19. O uso prolongado de colchicina pode estar associado a efeito adversos sobre a fertilidade. No acompanhamento de 36 mulheres, 13 (36%) apresentaram períodos de infertilidade, quatro com infertilidade primária e somente uma delas concebeu. Em 10 de 13 mulheres (77%) a causa de infertilidade pode ser determinada sendo que distúrbios de ovulação ocorreu em 6 (46%) e aderência pélvica em 4 (30%)13. Este índice de infertilidade é alto mas coincide com os apresentados por mulheres com FFM antes da colchicina ter sido introduzida. A fertilidade masculina foi admitida como 6 não sendo afetada pela droga21. Em, estudos recentes, a azoospermia e dificuldade de liberação do esperma foram encontrados em 20% de homens com FFM recebendo colchicina por longo tempo21. MATZNER & BRZEZINSKI22, em 1984, demonstraram que o fluido peritoneal de mulher com FFM perde um inibidor de quimiotaxia de neutrófilo (C5a) cuja deficiência tem importância na patogenese das crises inflamatórias peritoneais. Não há portanto evidências concretas de que a colchicina possui efeito adverso na fertilidade em mulher com FFM. Além do mais, ela tem reduzido a formação de aderências peritoneais17. Em relação ao abortamento, sua incidência em pacientes com FFM sem uso de colchicina é 26,6% e com o uso, 25% 13 , sendo que a perda precoce do concepto também é referido após a suspenção da droga 32. A mutagenicidade determinada pela colchicina merece especial consideração. Um significante aumento de células com número anormal de cromossomas foi encontrado em cultura de linfócitos de 3 pacientes com gota em tratamento com colchicina. De 54 crianças com trissomia 21, 2 nasceram de pacientes com artrite gotosa em tratamento contínuo com esta droga15. Pode ser salientado que pacientes com gota são relativamente idosos, tento portanto risco maior de trissomia. Em um estudo citogenético de 38 pacientes com FFM recebendo colchicina não foram encontradas alterações importantes 9. Ainda, de 52 mulheres que conceberam enquanto recebiam a droga diariamente, uma deu à luz criança com trissomia 2132. Além disso, revendo 55 gravidezes associadas à terapia com colchicina, uma evoluiu para aborto expontâneo após trissomia 23 ter sido detectada por amniocentese24. É recomendado que a cariotipagem fetal seja realizada em gestantes que fazem uso deste medicamento. Não há informações que suportem a possibilidade de maior risco de complicações em gestações posteriores, nem em alteração no curso natural da doença determinada pela gravidez, com excessão de pacientes com amiloidose renal. Em 7 pacientes com moderada nefropatia, curiosamente, durante gravidez a proteinúria desapareceu em um terço dos casos enquanto que em um terço a doença progrediu a despeito do tratamento com colchicina. Algumas pacientes com síndrome nefrótica podem evoluir para insuficiência renal, enquanto que algumas podem ter recuperação clínica total. Sugere-se, contudo, que nestas pacientes com amiloidose renal a gravidez seja evitada8,13,23. A colchicina, portanto, não parece representar um risco à mais ao obstétrico já existente em pacientes com FFM, a interupção de gestação não esta indicada e a cariotipagem deve ser realizada. No caso por nós relatado optou-se, no início da gestação, por suspender a colchicina tendo-se em vista seus possíveis efeitos colaterais sobre o concepto. As crises de serosite, principal manifestação da doença nesta paciente, foram semelhantes as que ocorreram fora da gravidez, não surgindo comprometimento da função renal e proteinúria que pudessem caracterizar a presença de amiloidose renal. Nota-se, portanto, que a gravidez e a suspensão de colchicina não pioram a evolução da doença. A colchicina foi reintroduzida na 28a. semana de gestação em vista de um surto de serosite ser intenso e refratário à terapêutica até então em uso. A cesárea foi por indicação obstétrica (placenta prévia com sangramento persistente e importante). Durante o ato operatório constatou-se intensa aderência peritoneal, certamente um dos fatores que vinham contribuindo para a esterilidade da paciente. O recém-nascido apresentou-se normal, não tendo sofrido influência da doença e de terapêutica. O estudo anatomo-patológico de placenta demonstrou apenas hemossiderose, sem evidências de alterações sugestivas de insuficiência placentária crônica. Em resumo, a gravidez deverá ser evitada apenas em pacientes com FFM com comprometimento da função renal, uma vez que, na ausência desta, a doença não piora o prognóstico materno e fetal, e não é portanto, indicação de abortamento terapêutico. Em relação à colchicina, somos de opinião que a mesma deve ser evitada no primeiro trimestre 8 da gravidez, a menos que haja refratariedade do quadro clínico ao corticóide e/ou antiinflamatório não hormonal, ou surja proteinúria com ou sem comprometimento da função renal. 9 SUMMARY The Familial Mediterranean Fever (FMF) is an autosomal recessive disease, the gene of which was identified as the short arm of chromosome 16. It occurs in individuals from the Southern and Westerm shores of the Mediterranean Sea. This paper reprots a case of a female patient with FMF whose pregnance, delivery, puerperium and newborn were not affected by the disease and the disease itself was not influenced by tem. The review of the literature and this case led to the conclusions that pregnancy should be avoided in cases of FMF only when there is renal dysfunction, the colchicine, the most important drug for the treatment, should be prescribed only after the first trimester of pregnancy, unless the symptoms of the disease are difficult to be controlled. The therapeutic abortion is not indicated. KEY-WORDS: Familial Mediterranean Fever. Colchicine. Pregnancy. Dopamine. Beta-Hidroxylase. Amyloidosis 10 BIBLIOGRAFIA 01. ARMENIAN, HK: Genetic and environmental factors in the aetiology of familial paroxysmal polyserositis. An analysis of 150 cases from Lebanon. Trop Georg Med, 1982; 34: 183-87. 02. 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Sr. Dr. SÉRGIO PEREIRA DA CUNHA DD. Editor Científico da RBGO Prezado Senhor Encaminhamos o trabalho “FEBRE FAMILIAR DO MEDITERRÂNEO E GRAVIDEZ”, para possível publicação nesta conceituada Revista, em sessão “Relato de Casos”. Antecipadamente agradecemos a atenção que dispensar. Atenciosamente Prof. Dr. ANTÔNIO CARLOS LOPES Chefe da Disciplina de Medicina de Urgência da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina