SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(3) 1997 COMUNIDADE SOLIDÁRIA um projeto que tem tudo para não ‘dar certo’ AUGUSTO DE FRANCO Conselheiro da Comunidade Solidária e Membro da Secretaria Executiva do Fórum Nacional da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. É autor do livro: Ação local: a nova política da contemporaneidade, entre outros. M infundadas de que a Comunidade Solidária seria a adaptação brasileira do Pronasol mexicano; de que a proposta se reduzia, na prática, à distribuição emergencial de alimentos; de que o programa seria parte de um processo de desmonte da área social; de que a criação da Comunidade Solidária integrava um plano do governo para enfraquecer deliberadamente os legítimos conselhos representativos e deliberativos da área social legalmente instituídos; de que estava havendo corrupção, clientelismo ou favorecimento político, ou seja, de que o programa não passava de uma estratégia para conquistar ou fortalecer bases municipais aliadas, acumulando forças para futuros embates eleitorais; de que se deu à questão social um tratamento assistencialista, paliativo e benemerente, fato aliás confirmado pela presença do “primeirodamismo”; de que o esforço desenvolvido pela Comunidade Solidária para desenvolver projetos inovadores na área social não passava de “masturbação sociológica”; enfim – não por ser a última, mas para dar um remate nesta lista de críticas desfocadas que foi ficando tão infindável quanto a própria ignorância humana – de que, no geral e por todos os aspectos já evidenciados, desvelava-se a intenção, consciente, do governo, de esvaziar a área social retirando-lhe o poder e os recursos e os instrumentos para efetivar aquelas reformas estruturais capazes de eliminar ou reduzir a iniqüidade. Em suma, a Comunidade Solidária seria parte de uma conspiração perversa contra o social – exigência, como só poderia ser, do ajuste liberal. Talvez por inconsistentes, boa parte destas alegações, passados cerca de dois anos e meio da sua gênese, quase que se desfizeram espontaneamente, poupando-nos hoje do esforço de discuti-las. Não fosse por isso, ainda assim não valeria a pena debatê-las, porquanto este rol de fórmulas acusatórias ligeiras passa ao largo da problemática uito já se escreveu – e falou – sobre a Comunidade Solidária. As apreciações da inteligência – acadêmica, tecnocrática ou militante de organizações sociais e políticas – foram bastante críticas desde o princípio. Na imensa maioria dos casos, as críticas revelaram grande desconhecimento da proposta, porém não por culpa exclusiva dos críticos. Durante quase dois anos, tanto os responsáveis governamentais pela área social quanto aqueles setores da sociedade que se envolveram com a Comunidade Solidária permaneceram imersos na confusão advinda de um desenho inovador, porém conflitante com a cultura burocrática do Estado, com as culturas reivindicativas e denunciativas dos movimentos sociais, com um arcabouço institucional inadequado e com uma concepção de política social defasada das possibilidades reais do momento em que vive o mundo, ainda ligada à idéia de um Estado de bem-estar social, que nunca mais haverá e mesmo que fosse possível reeditá-lo, incapaz de responder ao conjunto de uma problemática social como a nossa, na qual se manifesta em larga escala o fenômeno da exclusão. Esta confusão só induziu ao equívoco e não permitiu, inclusive, a aplicação de uma estratégia de comunicação social que corrigisse a desinformação generalizada, menos por falta de meios e mais por falta de clareza quanto aos procedimentos que poderiam ser adotados para superá-la. Foi somente ao longo do tempo que os principais promotores e participantes da Comunidade Solidária se conscientizaram da magnitude dos obstáculos colocados ao cumprimento da missão institucional que reivindicaram para si, o que pouco tem a ver com os óbices apontados pela desinteligência inicial dos seus críticos mais apressados. É por esse motivo que, num vasto espectro que vai do insensato ao solerte, sucederam-se acusações 70 COMUNIDADE SOLIDÁRIA: UM PROJETO QUE TEM TUDO PARA NÃO ‘DAR CERTO’ realmente enfrentada pela Comunidade Solidária, da mesma forma como deixa de captá-la o novo discurso crítico centrado na insuficiência. Diz-se agora que tudo o que foi feito – vá lá – pode ter sido útil e em alguns casos até mesmo inovador, mas insuficiente. A revista Veja, na sua edição de 18 de junho de 1997, exemplifica bem a nova postura crítica: num “país (que) ainda tem 19 milhões de analfabetos (...) o Comunidade Solidária atinge menos de 10.000 deles”. Uma vergonha! A esse último tipo de objeção, mais atual, não se poderia escusar uma resposta também atual – mas o que talvez redunde inútil. Vá-se lá dizer-lhes que, por exemplo, a “Alfabetização Solidária” (um programa inovador promovido pelo Conselho da Comunidade Solidária) é um projeto-piloto, um novo software que até agora foi testado de propósito em pequena escala para, depois de avaliado, ser expandido progressivamente a uma escala capaz de atender às efetivas demandas sociais, como, aliás, já começa a ocorrer, pulando de uma dezena para centenas de milhares de alfabetizandos. Retrucarão estes críticos que isso é um preciosismo intelectual, de alguém que não tem sensibilidade para captar as urgências sociais, imaginando que basta vontade política de priorizar a solução do problema, despejando recursos financeiros para ações massivas de alfabetização, sem saber que, neste caso como em vários outros, se não alterarmos o modo pelo qual os recursos são gastos e não modificarmos o desenho dos programas, estaremos realimentando sistemas que simplesmente não funcionam. Porém qual é, afinal, a problemática realmente enfrentada pela Comunidade Solidária? Decorridos 28 meses da sua criação, cabe uma resposta mais substantiva a esta questão. O Conselho e o chamado Programa da Comunidade Solidária constituem tentativas de promover uma nova relação entre Estado e sociedade para o enfrentamento da fome, da miséria, da pobreza e da exclusão social e uma nova racionalização da atuação do Estado na área social. Porém, talvez nunca tenham sido apresentados, de forma assim tão explícita, os pressupostos conceituais que fundamentam a missão institucional da Comunidade Solidária, que podem ser resumidos nas três formulações seguintes: - a chamada questão social no Brasil não será resolvida unicamente pelo Estado. A ação do Estado nessa área, conquanto necessária, imprescindível mesmo, é insuficiente. Portanto, os principais problemas sociais do país não poderão ser enfrentados sem a parceria com a sociedade; Estado não conseguirá adotar uma nova racionalidade que evite o mal-aproveitamento dos recursos; - o enfrentamento da pobreza requer convergência e integração das ações. Nenhum resultado ponderável, em termos de melhoria efetiva das condições de vida das populações marginalizadas, poderá ser obtido apenas por decisão e no plano abstrato da União e dos estados federados, sem que se faça convergir as ações para promover o desenvolvimento integrado local. Esses pressupostos colocam a parceria com a sociedade, a articulação intra-estatal e a convergência e integração das ações como novos desafios, para a política social. Ao se colocar tais desafios, a Comunidade Solidária enfrenta dificuldades de grande magnitude, cuja explicitação pode revelar a problemática global que a envolve. A primeira dificuldade diz respeito às resistências da cultura burocrática do Estado e das culturas reativas dos movimentos sociais brasileiros de caráter setorial ou corporativo. Com algumas exceções, os governos, em geral, ainda têm uma idéia impressionista e negativa, inspirada pela mídia, ou decorrente de contatos desarmônicos com setores corporativos, mantidos em passado distante ou recente, das possibilidades da participação cidadã. Assim, nas instâncias de governo, vigora uma impressão geral segundo a qual: a) a sociedade não está preparada para participar, como protagonista, das políticas públicas de combate à pobreza. Observa-se aqui a vigência de uma visão ultrapassada, segundo a qual o público ainda é considerado sinônimo de estatal (ou monopólio do Estado); b) a sociedade não pode compartilhar da construção das condições políticas para tomar e implementar decisões (isto é, da governança) a não ser através de seus representantes eleitos para o Legislativo e para o Executivo. São desconhecidos aqui os limites das formas representativas tradicionais que, se devem ser mantidas, fortalecidas e aperfeiçoadas, não excluem outras formas participativas pelas quais se aportam novos recursos, necessários e fundamentais (que o Estado não possui) para dar um outro impulso ao desenvolvimento; c) a sociedade é encarada predominantemente como uma instância crítica, sempre de oposição ao governo, como um fator que atrapalha o bom andamento dos programas oficiais ou que contribui para desgastar a sua imagem política dentro e fora do país. Deixa-se de captar aqui o imenso potencial criativo que jaz em repouso nas esferas mercantis e não-mercantis da sociedade, adotando-se um parti pris defensivo em relação às organizações sociais. Destarte, os contatos dos governos com as organizações sociais ainda são cercados de cuidados, para evitar “problemas” e “confusões” que possam prejudicar de qualquer modo o “bom funcionamento” das instituições. Evidentemente, diversos setores sociais organizados contribuíram para que se formasse, dentro das instâncias de governo, a impressão descrita anteriormente, o que - uma intervenção eficiente do Estado na área social exige articulação entre as diversas ações que são empreendidas. Sem esta articulação, intra-estatal, dos diversos órgãos governamentais, nos – e entre os – três níveis de governo, o 71 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(3) 1997 gerou simetricamente, na sociedade civil, um clima de desconfiança e de suspeição em relação a tudo o que vem do governo. Estes preconceitos, de ambas as partes, são o resultado de uma velha política que ainda é praticada tanto pelo Estado quanto por boa parte das organizações sociais. Todavia, começam a surgir no país novos movimentos (latu sensu) que procuram escapar da velha polarização situação-oposição e superar a idéia arcaica de que as mudanças que visam melhorar a vida das pessoas estão condicionadas à destruição de algum inimigo supostamente responsável por toda a iniqüidade. Por outro lado, notase também uma crescente abertura das instâncias governamentais para a parceria com a sociedade, nos âmbitos local, regional e nacional, seja através dos conselhos, seja através da implementação de programas descentralizados e integrados que exigem a conjugação de esforços com outros atores não-estatais. Foi unicamente graças a essa abertura que pôde ser criada e mantida em funcionamento a Comunidade Solidária. A segunda dificuldade refere-se ao formato institucional inadequado do sistema de organizações governamentais encarregadas da área social que só favorece à desconexão, ao paralelismo e à superposição, à fragmentação das políticas públicas e à privatização clientelista, empresarial e corporativa do Estado, além de criar todo o tipo de entraves burocráticos, dificultar a alocação e a liberalização oportuna de recursos orçamentários e financeiros, reduzindo a capacidade administrativa do governo. Ademais, a divisão atual em ministérios e secretarias setoriais cria feudos políticos e permite a organização de verdadeiras quadrilhas, o que não favorece a valorização da dimensão interfacial em cada setor, a priorização das políticas inter-setoriais e a emersão de uma nova institucionalidade transetorial. Foi a partir dessa visão que a Comunidade Solidária colocou entre seus objetivos o de promover a articulação entre diferentes níveis de governo, visando a melhoria da gestão dos programas governamentais, selecionados em função do seu impacto positivo sobre as condições de vida da população mais pobre. A terceira dificuldade relaciona-se à própria concepção de política social. Embora o âmbito próprio da Comunidade Solidária seja o do enfrentamento da miséria e da pobreza, diante do fenômeno da exclusão, mesmo uma atuação restrita a este âmbito acaba polarizando todo o campo de ações de proteção e promoção social que são desenvolvidas quer pelo Estado quer pela sociedade e questionando a validade de uma política social que não seja, ao mesmo tempo, uma política de desenvolvimento – questão que ainda está para ser resolvida, inclusive no plano teórico. Com efeito, ainda permanece sem resolução a questão do encontro das políticas sociais com as políticas de desenvolvimento (econômico). A política social continua carecendo de um estatuto próprio. Pensa-se, habitualmente, que as questões sociais serão resolvidas em decorrência do chamado crescimento econômico (com a conseqüente geração de mais empregos e distribuição da renda). Porém, os fatos não ocorrem dessa forma, pelo menos não num país com as características do Brasil. O fenômeno da exclusão brasileira apresenta características próprias, ligadas, por exemplo, a aspectos raciais, de gênero, etários, de saúde, da miséria, que resistem a investimentos sociais convencionais. Portanto, é necessário desenvolver políticas sociais específicas de inclusão com caráter de promoção (e não apenas de proteção social) capazes de enfrentar as questões da feminilização da pobreza, da herança histórica de apartação da cidadania dos afrodescendentes, da desqualificação profissional de jovens e da exclusão de idosos, portadores de deficiência e doentes crônicos das atividades produtivas e das atividades socialmente significativas. Num país onde se manifesta o fenômeno da exclusão em larga escala, com profundas desigualdades sociais e regionais e com áreas resistentes à emancipação através das políticas universais clássicas, se a política social não se confundir com uma política de desenvolvimento, esta tenderá a reproduzir formas assistenciais – sempre necessárias, não há dúvida –, mas que, no limite, acabam “se alimentando da pobreza” ao se concentrarem na compensação (ou correção) das defasagens de inserção produzidas pelo chamado “modelo econômico” ou advindas da herança das desigualdades historicamente constitutivas da nação. Em outras palavras, a política social passa a ser uma política sobre os efeitos da exclusão, em seus diversos aspectos, ficando, por conseguinte, sujeita a ser acusada de não atingir as “causas estruturais” da iniqüidade. A geração e a reaplicação de novos softwares de políticas públicas e de novos “modelos” socioprodutivos, que consigam escapar da contradição apontada anteriormente, exigem a ação local integrada e convergente, envolvendo os três níveis de governo, setores empresariais, organizações não-governamentais e comunidade local. O encontro das políticas sociais com aquelas de desenvolvimento – ou melhor, a co-incidência destas políticas – deve se dar, necessariamente, no âmbito local, se se quiser potencializar soluções alternativas na direção da conquista de modos de vida mais sustentáveis, não baseados predominantemente na (impossível) universalização do emprego e na (limitada) capacidade de atração de capitais. Só no âmbito local torna-se possível concretizar as múltiplas parcerias entre Estado, mercado e sociedade civil, capazes de multiplicar os recursos disponíveis no sentido de produzir resultados ponderáveis na melhoria integral das condições de vida das populações marginalizadas. Mesmo que não tenha sido, explicitamen- 72 COMUNIDADE SOLIDÁRIA: UM PROJETO QUE TEM TUDO PARA NÃO ‘DAR CERTO’ te, com base nesta compreensão que a Comunidade Solidária decidiu focalizar as ações em favor das áreas e populações mais necessitadas, ela é a que responde pelos fundamentos da orientação adotada. Mas há ainda uma última – e potencialmente fatal – dificuldade, que diz respeito ao tempo. É óbvio que nenhum dos desafios mencionados anteriormente pode ser superado no curto prazo, na duração do mandato de um governo, constituindo tarefa talvez para mais de uma geração. Na melhor hipótese, em menos de 20 anos, ou antes de 2020 – para usar um marco temporal que está se consolidando como horizonte estratégico no Brasil e em outros países do mundo – dificilmente se conseguirá observar os efeitos da superação de tais desafios em termos da integração massiva dos excluídos. Isso significa que, por mais que avance no desempenho da sua missão institucional, sempre se poderá dizer que a Comunidade Solidária não “deu certo” enquanto dezenas de milhões de brasileiros continuarem marginalizados da cidadania – e do mercado e da propriedade e da política e da cultura – e não tiverem acesso satisfatório aos recursos da vida civilizada moderna. Esta última dificuldade coloca a questão da sustentabilidade política – quer dizer, da continuidade daquelas políticas de longo prazo – diante da alternância democrática do poder. Tal questão não foi – e nem poderia ser – resolvida pelo governo federal, muito menos pela Comunidade Solidária (embora o seu Conselho venha procurando contribuir nesta direção através do exercício da interlocução política, que visa construir progressivamente consensos sobre temas centrais de uma agenda social para o país, como será visto mais adiante). Ela exige um entendimento estratégico amplo, um verdadeiro pacto social em torno de prioridades, medidas, instrumentos e procedimentos de ação que devem ser mantidos para além dos mandatos dos governantes. As dimensões deste artigo, entretanto, não permitem um tratamento adequado deste tema tão crucial – matéria, aliás, para uma verdadeira reforma da política nas repúblicas e nos governos representativos modernos. Examinando objetivamente o quadro de dificuldades apresentado anteriormente, poder-se-ia concluir que a Comunidade Solidária tem tudo para não “dar certo”. Como não é um projeto que possa ser implementado centralizadamente, nem unicamente a partir do Estado, nem sujeito às dinâmicas convencionais da negociação sob pressão com grupos organizados para defender interesses particularistas, sofre, ao mesmo tempo, a oposição de todos os estatismos e corporativismos que ainda vicejam na sociedade brasileira. Ao procurar se desvencilhar do clientelismo, da política de balcão e de um assistencialismo que, ao fim e ao cabo, se nutre da pobreza e a reproduz, conta com a resistência, dentro do que já se chamou de “aparelho de Estado”, de todos os setores aos quais não interessa a mudança de uma prática que sempre utilizou a política social como uma moeda de troca e de promoção política, sobretudo naquelas ações voltadas para o atendimento das populações que não dispõem de meios para prover suas necessidades básicas. Por último, não se enquadra nos marcos teórico-programáticos da declinante “Estatal-Democracia” – curiosamente chamada de Social-Democracia, uma vez que sempre se concentrou na ocupação e na reforma de velhas instituições estatais, sem ousar inaugurar uma nova institucionalidade pública a partir da Sociedade Civil. Entretanto, esta nova institucionalidade, à qual se adequaria o desenho inovador da Comunidade Solidária, ainda não existe e sua construção não poderá se dar da noite para o dia. Em suma, a Comunidade Solidária é uma proposta francamente à frente do seu tempo e que precisa, para se realizar, de um tempo que não possui. Por isso não pode “dar certo”. Inexplicavelmente, porém, ela vem avançando. Exemplos disso são alguns resultados obtidos. No que se refere à atuação do Conselho da Comunidade Solidária, a apresentação de resultados é problemática, porque pode desinformar mais do que esclarecer, caso não fique explícito o que ele realmente faz. Para resumir, o Conselho da Comunidade Solidária busca, fundamentalmente, contribuir para a convergência de esforços entre Estado e sociedade, do ponto de vista tanto político quanto de projetos concretos de desenvolvimento social. Sob o prisma político, o Conselho vem realizando, desde meados de 1996, rodadas de interlocução com o objetivo de construir uma agenda mínima de consenso sobre prioridades, medidas, instrumentos e procedimentos de ação social a ser adotados quer pelo governo (ou por outras instâncias do “primeiro setor” – o Estado), quer por organizações da sociedade (do “segundo setor”, lucrativo – o mercado; e do “terceiro setor”, não-lucrativo – a sociedade civil). Até o momento, foram realizadas quatro rodadas de interlocução – sobre Reforma Agrária; Renda Mínima e Educação Fundamental; Segurança Alimentar e Nutricional; e Criança e Adolescente –, envolvendo centenas de interlocutores governamentais, empresariais e sociais e gerando tanto consensos de natureza mais programática (identificando, 24 prioridades) quanto encaminhamentos concretos (traduzidos em cerca de 80 propostas de medidas), cuja implementação vem sendo acompanhada por Comitês Setoriais formados por membros do Conselho. Ainda para 1997 estão programadas mais duas rodadas de interlocução política sobre Alternativas de Ocupação e Renda e Marco Legal (regulatório das relações entre o Estado e o Terceiro Setor). Tudo deverá resultar, no final do ano, numa síntese preliminar de Agenda Mínima Social para o Brasil. Por trás desse esforço de interlocução política há uma determinada visão estratégica que foi sistematizada há 73 SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(3) 1997 mais de um ano pelos membros do Conselho e que poderia ser resumida nos quatro pontos seguintes: - existe um “outro lado da moeda”, ou seja, é possível a convivência de uma política de estabilidade da moeda com uma política social antiexcludente. Mas para que os efeitos sociais das medidas antiinflacionárias possam criar condições para um efetivo e adequado enfrentamento da exclusão brasileira, é necessário que Estado e a sociedade negociem um “real” projeto de desenvolvimento para a área social, que estabeleça uma nova relação do econômico com o social, na qual este último ganhe atenção semelhante à conferida ao primeiro; - o reconhecimento da necessidade e da insuficiência do Estado deve apontar para a busca de uma sinergia Estado-mercado-sociedade civil como caminho para reverter a realidade da exclusão social; - para tornar disponível a quantidade necessária de recursos do Estado e da sociedade no enfrentamento da miséria e da pobreza, é preciso desencadear um amplo movimento nacional nesta direção – talvez das proporções de um new deal –, capaz de dinamizar potenciais que existem, mas que estão adormecidos; - esta ampla mobilização nacional exige uma solução política: um entendimento estratégico entre parcela significativa dos principais atores das esferas do Estado, do mercado e da sociedade civil sobre a importância a ser dada à questão social e sobre as prioridades e medidas capazes de traduzir em ação concreta tal atenção. Do ponto de vista das ações concretas de desenvolvimento social, o Conselho vem implementando, em parceria com o governo, empresas e organizações da sociedade civil, projetos inovadores com o objetivo de gerar novas abordagens, novas rotinas, novos padrões de atuação e novos modelos de relacionamento que permitam a reaplicação, em escala mais ampla, dos programas que se mostrarem bem-sucedidos. Deste ponto de vista, o papel inovador do Conselho é o de desenvolver experimentos, testados inicialmente como pilotos, que, uma vez avaliados coletivamente, possam ser realizados na escala necessária para atender às demandas efetivas da sociedade. Em especial, encontram-se neste processo de transição, de experiências-piloto para uma escala mais abrangente de atuação, quatro projetos inovadores, cuja experimentação tem revelado grande potencial de generalização de novas formas de enfrentamento de problemas sociais de modo mais eficiente, participativo e descentralizado, envolvendo sempre uma nova relação de parceria Estadosociedade: alfabetização solidária; capacitação de jovens, universidade solidária; e promoção do voluntariado. Esta “operação do piloto à escala”, pouco compreendida até agora, nada tem a ver com políticas assistencialistas e compensatórias, e só por total desconhecimento ou máfé poderia assim ser confundida. “Do piloto à escala” significa, por exemplo, que um programa bem-sucedido de capacitação de jovens, que hoje atenda a milhares de pessoas, poderá, amanhã, atingir centenas de milhares e, depois, quem sabe, alguns milhões. Também não é fácil falar das realizações da parte governamental da Comunidade Solidária, coordenada pela sua Secretaria Executiva. Em primeiro lugar porque não é a Comunidade Solidária que promove, banca ou realiza diretamente os programas – ela apenas prioriza, articula e estimula a sua convergência em certas áreas escolhidas a partir de critérios objetivos, fornecidos pela combinação de indicadores de pobreza e indigência. Por trás desses resultados, há um imenso trabalho de organização que dificilmente se torna visível, existe uma rede de entidades governamentais e não-governamentais, da qual participam interlocutores ministeriais, estaduais e municipais, autoridades e lideranças municipais, instituições do Terceiro Setor, etc. Assim, apresentar apenas os resultados numéricos obtidos dificulta a compreensão da proposta porque, ao invés de revelar, de certo modo oculta o verdadeiro trabalho, quase subterrâneo, da Comunidade Solidária, na articulação entre diferentes níveis de governo para a melhoria da gestão dos programas selecionados e na focalização das ações visando a potencialização do seu impacto. Em segundo lugar, porque a apresentação de números favoráveis tem sempre um sabor de discurso oficial, “chapa-branca” – e por isso mesmo inconfiável ou desconfiável diante da prática manipuladora de nossos governos em passado distante ou recente. Números, ademais, sempre podem ser questionados – embora neste caso não o estejam sendo concretamente, quer dizer, com a contestação de números alternativos, inclusive pela falta de instrumentos de verificação independentes, o que não deixa de indicar o amadorismo e o despreparo das oposições sociais e políticas que existem no país. Podese, em terceiro lugar, não gostar dos números apresentados, seja porque são “ruins” ou “pequenos”, isto é, por demais insuficientes diante da magnitude das carências, seja porque são “bons” ou “grandes”, atestando o acerto das ações e com isso fortalecendo politicamente o governo sob cuja responsabilidade tais ações foram empreendidas. Neste último caso, a “lógica” perversa, mas ainda vigente, da relação política oposição-situação recomenda questionar os números – não tanto os “maus”, mas sobretudo os “bons”. Esta “lógica” diz que não se pode reconhecer como boa nenhuma iniciativa que parta do inimigo político, para não fortalecê-lo, porque, se forem atestados os bons resultados do inimigo, perderá contundência o discurso eleitoral futuro, invariavelmente baseado na exposição dos maus resultados do governo findante. 74 COMUNIDADE SOLIDÁRIA: UM PROJETO QUE TEM TUDO PARA NÃO ‘DAR CERTO’ Por todos esses motivos, torna-se quase inóquo apresentar números. No entanto, eles estão aí. E a menos que sejamos todos uns farsantes e falsificadores, devem ser levados em conta numa avaliação desse inexplicável desempenho da Comunidade Solidária. Todos os programas selecionados pela Comunidade Solidária aumentaram a sua cobertura. O combate à desnutrição materno-infantil saltou de 250 municípios atendidos, beneficiando 500 mil pessoas em 1994, para 802 municípios, atingindo 1 milhão e 200 mil mães e crianças em 1996, o que contribuiu para reduzir 45% da internação hospitalar por desnutrição de crianças menores de cinco anos. O número de agentes comunitários de saúde, que em 1994 era de 29 mil profissionais atendendo 17 milhões de pessoas, passou para 34,5 mil em 1995, atendendo 20,5 milhões de pessoas, e para mais de 44 mil em 1996, atendendo a 26 milhões de pessoas. Em 1996, cerca de 550 mil famílias foram beneficiadas pelos programas de abastecimento de água potável e de esgotos sanitários (não existem dados comparativos porque o programa foi criado em 1996, o mesmo ocorrendo com outros dados fornecidos a seguir). A merenda escolar foi assegurada, no biênio 1995-96, para 33 milhões de alunos das escolas públicas e filantrópicas de ensino fundamental durante cerca de 160 dias letivos – 60% a mais do que em 1994. Em 1995, foram distribuídos 3 milhões de cestas de alimentos em 525 municípios, enquanto em 1996 este número atingiu 7,5 milhões, atendendo 1 milhão e 500 mil famílias em 1.094 municípios, comunidades indígenas e acampamentos de sem-terra. Em 1995, o transporte escolar foi levado a 316 municípios, sendo que, em 1996, mais de 624 municípios receberam esse serviço. Em 1996, 1 milhão e 400 mil crianças dos municípios mais pobres receberam cestas de saú- de do escolar (contendo creme dental, escovas, óculos, etc.). Cestas de material escolar (kit aluno/professor/escola) foram distribuídas para 265 municípios, em 1995, e para 827 municípios, em 1996, nas capitais foi implantado um programa de ação preventiva para diagnosticar, tratar e acompanhar alunos com problemas de saúde, atendendo a cerca de 100 mil escolares da 1a série do 1o grau. Em 1996, foi implantado um programa de fortalecimento da agricultura familiar, com a concessão de 650 milhões de reais de créditos a pequenos agricultores. Na área urbana, um programa de geração de emprego e renda concedeu, em 1995, 173 milhões de reais em créditos a pequenos e médios empreendedores, enquanto em 1996 foram concedidos 440 milhões de reais. Na área rural, foram aplicados, em 1996, 883 milhões de reais, permitindo a criação e a manutenção de 175 mil empregos. Além disso, 1 milhão e 200 mil trabalhadores foram qualificados e requalificados profissionalmente em todo o país. Tudo isso é muito pouco se comparado aos carecimentos sociais básicos da população brasileira. Porém, só por milagre se conseguirá fazer com que, em mais 18 meses de trabalho que restam da atual gestão federal, os índices atinjam os níveis requeridos pelas efetivas demandas da sociedade. Portanto, deste ponto de vista – poupando-nos da náusea de ter que ouvir, daqui a alguns meses, mais esta obviedade retumbando como se fosse uma grande denúncia –, já se deve concluir, por antecipação, que a Comunidade Solidária não “dará certo”. E também porque, talvez, esta não seja a discussão mais relevante daqui para frente e sim uma outra: a de saber se ela está ou não está “no caminho certo”. Uma resposta positiva a esta questão deveria obrigar política e eticamente os próximos governos a assegurarem a sua continuidade. 75