HELENA CECILIA DINIZ TEIXEIRA CALADO TONELLI A BOA

Propaganda
HELENA CECILIA DINIZ TEIXEIRA CALADO TONELLI
A BOA GOVERNANÇA
A Responsabilidade Política do Chefe do Poder Executivo:
a questão da omissão do governante eleito na divulgação e
implementação do plano de governo
SÃO PAULO
2009
1
HELENA CECILIA DINIZ TEIXEIRA CALADO TONELLI
A BOA GOVERNANÇA
A Responsabilidade Política do Chefe do Poder Executivo:
a questão da omissão do governante eleito na divulgação e
implementação do plano de governo
Dissertação apresentada à banca examinadora
da Universidade Presbiteriana Mackenzie como
exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Direito Político e Econômico, sob
orientação do Professor Doutor Gianpaolo
Poggio Smanio.
SÃO PAULO
2009
T664b Tonelli, Helena Cecília Diniz Teixeira Calado.
A boa governança. A responsabilidade política do chefe do
poder executivo: a questão da omissão do governante eleito na
divulgação e implementação do plano de governo / Helena Cecília
Diniz Teixeira Calado Tonelli – 2010.
214 f. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) –
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2010.
Orientador: Gianpaolo Poggio Smanio
Bibliografia: f. 205-214.
1. Responsabilidade política. 2. Boa governança.
3. Democracia. 4. Cidadania. I. Título.
CDD 341.234
2
HELENA CECILIA DINIZ TEIXEIRA CALADO TONELLI
A BOA GOVERNANÇA
A Responsabilidade Política do Chefe do Poder Executivo:
a questão da omissão do governante eleito na divulgação e
implementação do plano de governo
Dissertação apresentada à banca examinadora
da Universidade Presbiteriana Mackenzie como
exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Direito Político e Econômico, sob
orientação do Professor Doutor Gianpaolo
Poggio Smanio.
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________
Professor Gianpaolo Poggio Smanio
Universidade Presbiteriana Mackenzie
________________________________________________________
Professora Monica Herman Salem Caggiano
Universidade Presbiteriana Mackenzie
________________________________________________________
Professor Eduardo Martines Junior
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
3
À minha família,
meu esteio,
meus valores,
meus amores!
4
O nascimento do pensamento
é igual ao nascimento de uma criança:
tudo começa com um ato de amor.
Uma semente há de ser depositada no ventre vazio.
E a semente do pensamento é o sonho.
Por isso os educadores, antes de serem especialistas em ferramentas
do saber, deveriam ser especialistas em amor:
intérpretes de sonhos.
Rubem Alves 5
RESUMO
Este estudo tem por objetivo traçar uma discussão sobre a responsabilidade do
chefe do Poder Executivo no governo representativo democrático. O trabalho
compreende uma abordagem sobre a estrutura do Estado Constitucional
Democrático, em que a cidadania é alçada a direito fundamental e a boa governança
se revela exigência para concretização do ideal democrático e como direito ao bom
governo. Nessa perspectiva, foi dado enfoque aos atributos de boa governança e
aos deveres consectários da representação política baseada na confiança mútua
entre governantes e governados em um governo republicano e democrático. A boa
governança emerge como dever político do governante que pode ser reclamado pelo
cidadão, titular do direito a um bom governo.
Palavras-Chave: responsabilidade política, boa governança, democracia, cidadania,
accountability, responsividade, governo representativo, república, direito ao bom
governo.
6
ABSTRACT
This study aims to catch a debate on the responsibility of the Chief Executive in
representative democratic government. The work includes a discussion of the
structure of the Democratic Constitutional State, where citizenship is raised as a
fundamental right and good governance reveals the requirement to achieve the ideal
of democracy and law and good governance. From this perspective, we focused the
attributes of good governance and the duties and obligations, resulting in political
representation based on mutual trust between rulers and ruled in a republican and
democratic government. Good governance emerges as a political duty of the
governor and can be claimed by the citizen, the person entitled to good government.
Keywords: political accountability, good governance, democracy, citizenship,
accountability, responsiveness, representative government, republic, right to good
government.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................... 10
Capítulo 1
PODER POLÍTICO
1.1
O Homem e a Sociedade........................................................................
1.2
Sociedade Política e a Organização do Poder..................................... . 23
1.3
Institucionalização do Poder Político: o Estado...................................
1.4
A Estrutura do Estado Constitucional Democrático e o Exercício do
1.5
20
26
Poder Político..........................................................................................
28
O Estado Democrático Brasileiro...........................................................
32
Capítulo 2
GOVERNO
2
Governo...................................................................................................... 36
2.1
Formas de Governo.................................................................................. 39
2.2
Tipologia das Formas de Governo........................................................... 41
2.2.1
A Classificação Formulada por Montesquieu......................................... 45
2.3
República................................................................................................... 47
2.4
Regimes de Governo................................................................................. 54
2.5
Regimes de Governo: Governos Democráticos e Não Democráticos....
2.5.1
Governos Não Democráticos.................................................................... 56
2.5.2
Governo Democrático: Princípios Estruturais do Regime Democrático..... 57
2.5.3
Governo Democrático: Exigência de Governo Responsável................. 72
2.5.4
Governo Democrático: a Legitimidade das Decisões Políticas............. 79
2.6
Governante..............................................................................................
2.7
Sistemas de Governo................................................................................ . 85
2.7.1
Sistema Presidencial...............................................................................
2.7.2
Sistema Parlamentarista........................................................................... 92
2.7.3
Sistema Semipresidencial......................................................................
55
84
86
97
8
Capítulo 3
GOVERNANÇA
3.1
Governança: Origem do Termo................................................................ 99
3.2
Governança Pública: a Adoção do Termo Governance na Gestão
Estatal......................................................................................................... 101
3.3
Governo e Governança: Distinções......................................................... 109
3.4
A Boa Governança: Dimensão Jurídica.................................................. 110
3.5
Dimensão Constitucional da Boa Governança no Direito Brasileiro:
o Direito ao Bom Governo........................................................................ 121
3.6
Governança e Accountability.................................................................... 123
3.7
Accountability e Responsividade do Governo........................................ 128
3.8
Governabilidade......................................................................................... 129
Capítulo 4
PLANO E PLANEJAMENTO DE GOVERNO
4.1
Plano de Governo: Conceito.................................................................... 131
4.1.1
Plano Econômico, Plano Político e Plano Monetário............................ 138
4.2
Planejamento............................................................................................ 139
4.2.1
Evolução Histórica do Conceito de Planejamento.................................. 141
4.2.2
O Planejamento no Socialismo e no Capitalismo: Breves
Apontamentos............................................................................................ 143
4.2.3
Planejamento Político e Econômico no Estado Brasileiro.................... 144
4.3
Noção Jurídica de Planejamento............................................................ 146
4.4
Importância Jurídica do Plano de Governo............................................. 146
Capítulo 5
RESPONSABILIDADE POLÍTICA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO
NO SISTEMA PRESIDENCIAL
5.1
Poder Executivo........................................................................................ 150
5.1.1
O Poder Executivo e a Doutrina da Separação de Poderes................. 154
9
5.1.2
A Distinção entre a Teoria da Separação de Poderes e os Mecanismos
de Check and Balances............................................................................ 155
5.2
Responsabilidade Política....................................................................... 156
5.2.1
A Doutrina da Irresponsabilidade Política do Soberano........................ 157
5.2.2
A Doutrina da Razão de Estado: Origem Histórica................................ 159
5.3
Responsabilidade Política do Chefe de Governo: Sistema
Parlamentarista e Sistema Presidencial.................................................. 163
5.4
Responsabilidade Política do Chefe do Executivo e Representação
Política........................................................................................................ 174
5.4.1
Representação Política: Origens.................................................................174
5.4.2
Representação Política e Democracia Representativa............................... 181
5.4.3
A Crise de Representação Política e a Democracia Delegativa em
Guillermo O’Donnell.................................................................................... 182
5.4.4
A Importância do Palno de Governo e a Boa Governança: a Crise da
Representação Política............................................................................... 185
5.5
A Dimensão Jurídica do Exercício do Poder Político e a Responsabilidade
pelo Poder: o Dever Político do Chefe do Executivo de Julgar e
Implementar o Plano de Governo..................................................... 189
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 203
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 205
10
INTRODUÇÃO
O tema deste trabalho propõe uma reflexão acerca do exercício da
governança pública pelo chefe do Poder Executivo e dos critérios que permitem
identificar a boa governança.
O objetivo é perquirir a extensão da expressão boa governança, revelar seus
contornos no plano constitucional e destacar sua importância jurídica, situando-a
como dever do governante e correlato direito do governado.
Em seguida, uma vez compreendida a dimensão jurídica do termo, impõe-se
o confronto entre a noção de boa governança e a ideia de deveres políticos exigíveis
do governante e estabelecidos na Constituição Federal. Para tanto, serão analisadas
a tarefas políticas incumbidas ao chefe do Poder Executivo à luz do princípio da boa
governança, especificamente o dever político de divulgação e implementação do
plano de governo e a possibilidade de responsabilização política do governante por
um bom governo.
No sistema brasileiro, o dever de exercício da boa governança revela-se
função do chefe do Executivo e deve ser delineado em conformidade com o sistema
presidencial.
Para
tanto,
proceder-se-á
a
uma
análise
comparativa
da
responsabilidade política do chefe do Executivo em ambos os sistemas: presidencial
e parlamentarista.
O presente trabalho parte da premissa de que a boa governança está
presente no texto da Constituição Federal brasileira em vários dispositivos,
principalmente em seu artigo 37.
O texto em comento estampa um catálogo de princípios norteadores da
governança pública, os quais serão aqui analisados em conjunto com a noção de
bom governo e os deveres nele implícitos, como o de prestar contas continuamente,
o de responsividade do governo democrático e o de ampla publicidade dos atos do
governo.
O bom governo é fruto do comprometimento político do governante com os
governados e impõe tarefas políticas exigíveis do chefe do Executivo, entre as quais
se destacam o comprometimento do presidente da República quanto à publicação e
implementação de seu plano de governo e a responsabilidade política decorrente de
sua omissão.
11
A boa governança é elevada a ditame constitucional na medida em que o
texto positivado estampa os princípios norteadores da governança pública
(legalidade, publicidade, eficiência, impessoalidade, moralidade) e as tarefas
políticas exigíveis do chefe do Executivo, incluindo o dever de apresentação ao
Congresso Nacional (legítimo representante do povo) de seu plano de governo com
as diretivas políticas a serem adotadas pelo governo.
Este estudo invocará a análise de tais deveres políticos, exigíveis do chefe
do Poder Executivo previstos na Constituição Federal, especificamente aqueles
estampados nos incisos XI, XIII e XIV do artigo 84, visando gizar a dimensão dessas
tarefas políticas e a responsabilidade decorrente da sua inobservância.
A jornada demanda uma parada obrigatória no terreno da responsabilidade
política do governante para que se possa refletir sobre as seguintes indagações:
- Qual a responsabilidade política do chefe do Poder Executivo no território
da democracia e face às tarefas políticas que lhe foram consagradas na Constituição
Federal?
- Que se deve entender por governança pública?
- Quais os critérios informadores da boa governança?
- De que modo a apresentação do plano de governo pode contribuir para o
exercício da boa governança? Qual a relação entre a boa governança e a
transparência da agenda?
- Quais os deveres políticos incumbidos ao presidente da República que
influem no exercício da boa governança?
- É possível reclamar a responsabilidade do chefe do Executivo quanto à sua
omissão na apresentação e implementação do plano de governo e na publicidade da
agenda política?
- Os deveres políticos estampados no artigo 84, incisos XI, XIII e XIV, da
Constituição Federal, implicam a possibilidade de maior e melhor participação
popular na tomada de decisões políticas e a formulação e implementação de
políticas públicas necessárias à concretização e exercício de direitos fundamentais?
- Em que medida a observância ao dever de comprometimento do governo
quanto à apresentação e implementação de um plano de gestão pode auxiliar na
redução das desigualdades regionais?
Uma vez delineados os critérios identificadores da boa governança pública
no sistema presidencial e destacada a responsabilidade política do chefe do Poder,
12
a discussão se voltará aos mecanismos de controle desses deveres e à
possibilidade de o cidadão reclamá-los enquanto titular do direito ao bom governo.
Assente à exigência de que o exercício do poder político se desenvolva sob
os princípios da “boa governança” (good governance), deflui o dever de prestar
contas do exercício de governança, e é indispensável perquirir quais os mecanismos
de fiscalização dessas tarefas.
Porém, a meta do estudo não se resume a analisar e exaurir os inúmeros
mecanismos de controle em face do Poder Executivo. A questão se situa no campo
da responsabilidade política e na contrariedade à ideia assente de que o chefe do
Poder Executivo, no sistema presidencial, não tem responsabilidade política e
tampouco deve prestar contas de seu mandato, porque goza de liberdade plena de
atuação, conferida pelo sufrágio.
O presente estudo invoca uma resposta para a questão da possibilidade de
controle político do Poder Executivo no sistema presidencial e a responsabilidade
política do representante durante o exercício do mandato.
Nesse passo, surge a indagação quanto à possibilidade de cobrança do
dever de formulação e apresentação de plano de governo no início do exercício do
mandato, por ocasião da abertura dos trabalhos do Poder Legislativo, como corolário
do dever de publicidade das decisões tomadas pelos Poderes do Estado. Explicitase, então, o dever observância do princípio da transparência na publicação da
agenda a ser cumprida, bem como o dever contínuo de prestação de contas durante
o governo.
Os deveres políticos constitucionais do presidente da República foram
destacados e colocados como cerne do presente estudo porque se revelam
parâmetros constitucionais para aferição, no regime democrático, do grau de
comprometimento do governante com a “boa governança” e com os eleitores.
Ao traçar a diretiva política de seu governo, o chefe do Poder Executivo
informa a seus eleitores quais as metas pretendidas e sela seu compromisso público
com o exercício da governança pública.
Uma vez entendido que o exercício da boa governança pública é um dever
constitucional e deve se orientar pelos parâmetros constitucionais insculpidos nos
artigos 1º, 2º, 3º, 4º e 37, caput, é possível afirmar que, em decorrência dessa tarefa
política, deverá o governante prestar contas aos governados.
13
A publicidade da agenda permite aferir a transparência do governo e o plano
de governo é o documento político que estampa quais são os compromissos
políticos assumidos pelo governo frente aos governados.
O controle político é da essência do regime democrático. A democracia
invoca a responsabilidade do detentor do poder político como decorrência do caráter
representativo de seu mandato. E, em se tratando de controle político como
instrumento de afirmação da democracia, é imprescindível a participação popular.
As tarefas políticas exigíveis do chefe do Poder Executivo implicam a
fiscalização pelo Poder Legislativo, que é exercida pelo exercício parlamentar e
também mediante auxílio do Tribunal de Contas. Contudo, a atuação do Legislativo
não exclui o crivo popular.
A participação popular será possível se forem bem delineados os contornos
desses deveres enquanto compromissos políticos perante os eleitores.
A hipótese de judicialização do controle é reconhecida, porém não é o foco
central deste estudo.
O principal instrumento de controle do Executivo a ser explorado será a
apresentação do plano de governo, documento político capaz de indicar a orientação
política pretendida e permitir a identificação das prioridades do futuro governante,
tomando-se em conta que o exercício do poder político numa sociedade de
contornos democráticos é institucionalizado e segue os ditames constitucionais.
Consequentemente, o reconhecimento da responsabilidade do Poder
Executivo pela apresentação prévia do plano de governo e de seu cronograma
levará à indicação dos instrumentos de controle da ação, assim como da omissão do
governante, bem como o obrigará a revelar qual o conteúdo de sua agenda.
O enfoque na transparência da agenda tende a revelar novos contornos para
a relação existente entre governantes e governados, na medida em que a escolha
dos primeiros pelos segundos poderá se pautar no plano de metas e preservar a
impessoalidade do poder.
Além disso, a partir do controle da agenda, será garantida ao cidadão a
participação política contínua na tomada das decisões políticas, porquanto as
decisões serão baseadas naquelas metas já referendadas pelo crivo popular.
A publicidade do plano de metas importa a possibilidade de o eleitor
conhecer previamente as intenções do governante e verificar se os compromissos
eleitorais foram incorporados em sua gestão.
14
E a escolha de candidatos a partir de seu projeto de gestão evidencia a
evolução do exercício da cidadania e a participação do eleitor na formulação e na
fiscalização da implementação das políticas públicas a serem desenvolvidas durante
o mandato eletivo.
Logo, o dever de transparência da agenda pode se revelar um instrumento
eficiente de accountability, que permitirá ao cidadão intervir na governança pela
exigência de implementação de políticas públicas incluídas no planejamento
governamental para o período do mandato. Aqui, a indagação volta-se à
possibilidade do controle da agenda do governante e aos limites desse controle:
- Será possível controlar o conteúdo da agenda?
- Qual deve ser o conteúdo da agenda? Ele pode ser definido
exclusivamente pela vontade ou discricionariedade do governante? Quais são os
critérios para sua formulação?
- O dever de publicidade dos atos da Administração invoca o dever de
publicar a agenda?
Parte-se da premissa de que a agenda deve ser formulada em consonância
com as propostas eleitorais.
Na medida em que as preferências dos eleitores forem respeitadas durante
o exercício do mandato e o resultado das eleições refletirem as escolhas
determinadas
a
partir
das
promessas
de
campanha,
será
possível
o
aperfeiçoamento do processo eleitoral e da governança.
A submissão do projeto político de governo ao crivo popular na fase
precedente ao processo eleitoral enseja o aprimoramento da democracia. E o voto
ofertado ao candidato que oferece a melhor proposta política, que é aquela que se
coaduna com os anseios populares, estampa a possibilidade de o cidadão intervir no
processo da tomada das decisões políticas do Estado e opinar pela adoção da
diretiva política que traduz sua preferência. A conjugação desses fatores permitirá o
aprimoramento da democracia.
O voto confiado ao candidato em razão do plano de governo que pretende
implementar revela uma opção política consciente e aperfeiçoa o exercício da
cidadania, exaltando a soberania popular.
O progresso da cidadania implica a passagem da democracia formal, que se
exaure com o reconhecimento da cidadania como status social político ou na mera
capacidade de votar e ser votado, para a democracia efetiva, que se consolida com
15
a participação popular na tomada das decisões políticas e na escolha da orientação
a ser adotada pelo governo.
A cidadania, enquanto direito fundamental e difuso, reclama a necessidade
de participação do indivíduo na sociedade, o que implica sua integração social,
política e econômica.
Assim, surge uma nova compreensão da cidadania, que pressupõe a
participação política ativa dos cidadãos na vida da comunidade e se desenvolve
para o alcance de fins determinados pelo seio social.
Com a passagem da democracia formal para a participativa, tem-se a
superação da concepção meramente individualista do cidadão consolidada na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. O referido documento, em que
pese sua relevante conquista política histórica, denota uma separação e
diferenciação entre o homem e o cidadão. A distinção não é adequada porque
compreende o homem enquanto indivíduo titular de direitos, mas despojado de
deveres para com a sociedade; enquanto a cidadania é concebida como uma forma
simplista de participação política que se esgota com a prática do ato de
comparecimento voluntário e periódico ao sufrágio.
A dicotomia entre o homem e o cidadão sugere a ausência de
comprometimento político entre a sociedade política e seus membros e também a
existência de direitos sem a correspondência devida dos deveres inerentes.
Logo, a noção individualista de cidadania dever ser abandonada, pois não se
concebe o reconhecimento de direitos que não possam ser garantidos e sem os
correlatos deveres.
A cidadania enquanto direito fundamental difuso impõe a existência de
mecanismos hábeis a garantir ao cidadão a possibilidade de reclamar a boa
governança, o cumprimento dos compromissos contraídos perante o eleitorado e o
respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.
Implica, ainda, o reconhecimento do direito de agir concretamente frente a
conflitos gerados nas relações entre indivíduo e Estado, especificamente quando o
cidadão sofre lesões decorrentes de violação ou negação de direitos fundamentais,
praticadas pelo próprio Estado, que desvirtua sua finalidade de promoção do
interesse público.
Desse arcabouço de ideias emerge a questão da responsabilidade do
governante perante os governados.
16
O estudo não pretende abranger todas as hipóteses de conflitos que
envolvem o cidadão e o Estado, mas sim identificar mecanismos de controle político
do Poder Executivo que possibilitem ao cidadão exigir o cumprimento de prestações
positivas do Estado na forma de políticas públicas, considerando que estas devem
estar contidas no plano político ao qual o governante se comprometeu.
Outra questão inerente ao problema é a reflexão sobre as esferas de poder
no regime federativo brasileiro, visto que a Constituição Federal revela as regras de
competência para discernir a ação governamental em cada um dos níveis do
Executivo. O regime federativo também oferta o contorno do modo de exercício do
poder e, portanto, reclama análise, pois o critério constitucional para a ação
governamental é o atendimento das demandas regionais, sendo que a inclusão
social segue idêntica diretriz.
Logo, o plano de governo deve atentar para as desigualdades regionais e
locais e ter por finalidade a inclusão de um maior número de pessoas nos programas
e projetos de governo, ampliando o alcance dos benefícios proporcionados pelo
Estado.
A consideração do exercício do Poder em três níveis implica o
reconhecimento da responsabilidade do Executivo nas três esferas, bem como a
participação do cidadão nos governos, em todos os graus.
Retoma-se, assim, a preocupação central de aquilatar a possibilidade de
responsabilização do chefe do Executivo por sua agenda política enquanto
instrumento de exercício da cidadania ativa. O controle da agenda importa no
exercício da cidadania enquanto direito à “boa governança” e pode ser entendido
como direito difuso conferido ao indivíduo destinatário das ações e políticas públicas
que visam construir uma sociedade solidária e justa. É uma consequência da
exigência de que o Estado desenvolva as suas políticas em consonância com os
princípios constitucionais delineadores do Estado. É a exigibilidade do direito à “boa
governança”.
Ao investigar a possibilidade de mecanismos de accountability vertical e
horizontal, adota-se um rumo que tem por percurso obrigatório o terreno da
representação política, mas cujo enfoque não se volta à discussão sobre a eventual
existência de crise da representação política, porque o que se aborda é a
responsabilidade política do governante face aos deveres políticos estabelecidos na
Constituição Federal. A representação política é reconhecida como instrumento de
17
exercício da soberania popular. A responsabilidade aqui tratada é corolário do
princípio democrático, que somente se coaduna com governos responsáveis.
Contudo, a representação política será aqui tomada como instrumento do exercício
da soberania popular, e a preocupação se volta ao mecanismo de accountability
democrática.
A responsabilidade do governante tem fulcro no princípio democrático, que
estatui valores democráticos imperativos, entre os quais está o princípio da
confiança (mutual trust), o qual exige o comprometimento do eleito perante os
eleitores nos termos do plano político divulgado e sob o manto da legalidade, da
moralidade, da eficiência e da publicidade dos atos.
Quando se invoca o princípio da confiança como alicerce do exercício do
poder político com vistas à boa governança em terreno democrático, resta
insofismável o dever de cumprimento das promessas eleitorais, o que permitirá
sejam legitimadas as ações do governo na soberania popular; do contrário, estará
caracterizado o desrespeito ao princípio da confiança.
Por meio do controle político da agenda, revela-se a possibilidade de
exigência da implementação das políticas públicas prometidas e formuladas no
plano de governo e torna-se possível o acompanhamento de seu cronograma, com
inclusão sistemática das despesas e da previsão de gastos no orçamento.
Esse sistema de estabelecimento de responsabilidade política e controle do
exercício do poder político (accountability) que se amolda ao princípio democrático e
se conforma ao sistema de freios e contrapesos garante que a eventual omissão do
Poder
Executivo
na
efetivação
de
políticas
públicas
seja
passível
de
responsabilização.
Outro reflexo do controle político é a possibilidade de garantia da
impessoalidade do Executivo pelo controle da transparência da agenda. A exigência
de um plano de governo que conforme as ações do Estado garante que este se
apresente como aparelho organizador das relações sociais para satisfação das
necessidades públicas1 e é imprescindível para a formação da cultura da cidadania
participativa e consciente.
De acordo com o sistema de freios e contrapesos consagrado pela
Constituição Federal, incumbe ao Poder Legislativo o dever de fiscalizar o conteúdo
1
MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo:
Saraiva, 2006. p. 66.
18
do plano e a prestação de contas anuais, bem como o de vigiar o cumprimento do
cronograma sugerido e a aplicação dos recursos necessários para sua
concretização.
Mas a fiscalização pelo Legislativo não encerra os mecanismos de controle,
nem tampouco desautoriza a participação popular.
Essa rede de compromissos formada pelos cidadãos em conjunto com os
Poderes Executivo e Legislativo tem como consequência salutar a evolução do
exercício da cidadania participativa e a conscientização da exigibilidade das
promessas e deveres formulados no período eleitoral, dando maior seriedade e
credibilidade às promessas de campanha e permitindo que o voto seja ofertado em
razão da melhor proposta de governança.
E, nesse largo passo, o presente trabalho também se dirige à formulação e
propagação de uma cultura de educação para uma cidadania consciente, que irá
repercutir na capacidade e organização política para a prática da boa governança.
A boa governança convida o cidadão a se deslocar para a arena das
negociações políticas e se envolver nos temas relevantes de sua comunidade e, a
partir de seu comprometimento com a comunidade, exercer sua cidadania de
maneira participativa, consciente e responsável.
Por seu conteúdo, o tema se harmoniza com a linha de pesquisa A
Cidadania Modelando o Estado, na medida em que sugere a releitura dos conceitos
de cidadania e de valorização da participação popular, bem como o reconhecimento
da existência de compromissos entre governante e governados, bem como entre
instituições democráticas e cidadãos.
Além da proposição eminentemente jurídica, o tema cultua a colaboração no
processo de formação de uma cultura política democrática de criação e transmissão
do conhecimento com a finalidade de educar o indivíduo para o exercício da
cidadania e para a defesa de seus interesses, notadamente aqueles que refletem
suas relações com o Estado.
Esse processo educativo, que envolve a participação em todas as fases de
elaboração e implementação da agenda política e ganha relevo quando enfoca a
publicidade da agenda e seu acompanhamento pelo cidadão, servirá, ainda, como
forma de cooperação no processo de inclusão, uma vez que educação é mecanismo
de inclusão e integração social e todo planejamento de governo democrático deve
abranger projetos inclusivos atentos às desigualdades sociais e regionais.
19
A inclusão social também se estabelece a partir da formulação de políticas
públicas que se adéquem às realidades regionais, o que importa no fortalecimento
do federalismo e na valorização da participação popular na tomada das decisões
políticas.
O pacto federativo tende a ser remodelado, adquirindo contornos políticos
mais precisos, na medida em que a decisão e implementação das políticas públicas
seguem a hierarquia das esferas de competência. Logo, o compromisso do
governante com os governados obedecerá aos três graus de governo e exigirá que o
chefe do Executivo tenha prévia noção dos problemas e das necessidades
específicas da região em que pretende angariar votos.
20
1
PODER POLÍTICO
1.1 O Homem e a Sociedade. 1.2 Sociedade Política e a
Organização do Poder. 1.3 Institucionalização do Poder Político:
o Estado. 1.4 A Estrutura do Estado Constitucional Democrático
e o Exercício do Poder Político. 1.5. O Estado Democrático
Brasileiro.
1.1 O HOMEM E A SOCIEDADE
É traço essencial da natureza humana o estabelecimento e a manutenção
do convívio social.
Sobre essa característica determinante do comportamento humano, o
insigne jurista Celso Ribeiro Bastos2 pontuou que, se se observar a realidade
circundante, poder-se-á constatar que todos os fenômenos se atrelam a uma das
seguintes categorias: ou se trata de um fenômeno natural, regido por leis fixas,
imutáveis e externas ao homem; ou se trata de um fenômeno resultante da interação
do homem com a sociedade, ou seja, produto de sua contribuição cultural,
subordinado a leis criadas e passíveis de alterações pelo próprio homem.
De modo que é de se concluir que a vida em sociedade obedece a uma
ordem e persegue determinados fins.
Aristóteles, no século VI a.C., concluiu que o “homem é naturalmente um
animal político”3, que se diferencia dos irracionais por ser o único a possuir a razão e
a capacidade de discernir o bem do mal e de decidir pelo justo ou pelo injusto. Ou
seja, o homem é, por natureza, um ser social dotado de razão e capaz de dirigir sua
vontade para satisfação de seus objetivos.
Influenciado por Aristóteles, no século I a.C., Cícero afirmou que o ser
humano não nasceu para viver isolado, pois possui um sentido de sociabilidade
inato que o leva a buscar a associação, mesmo diante da abundância de bens
materiais.
A vida em sociedade revela uma necessidade humana de buscar a
satisfação da felicidade e de interesses comuns por meio do convívio entre
2
3
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 1-2.
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Pedro Constantin Tolens. São Paulo: Martin Claret, 2007. p. 9.
21
indivíduos, e o alcance das finalidades associativas demanda a organização política
do grupo para que seja possível a fruição desses benefícios por todos os membros
do grupo.
Dalmo de Abreu Dallari pontua que o impulso associativo independe da
necessidade de satisfação de carências de ordem material e não elimina a
participação da vontade humana. Segundo o autor,
a sociedade é um fato natural, determinado pela necessidade que o
homem tem da cooperação de seus semelhantes para a consecução
dos fins de sua existência. Essa necessidade não é apenas de
ordem material, uma vez que, mesmo provido de todos os bens
materiais suficientes à sua sobrevivência, o ser humano continua a
necessitar do convívio com os semelhantes. Além disso, é importante
considerar que a existência desse impulso associativo natural não
elimina a vontade humana. Consciente de que necessita da vida
social, o homem a deseja e procura favorecê-la, o que não ocorre
com os irracionais, que se agrupam por mero instinto e, em
conseqüência, de maneira sempre uniforme, não havendo
aperfeiçoamento.
Em conclusão: a sociedade é o produto da conjugação de um
simples impulso associativo natural e da cooperação da vontade
humana4.
Ao nascer, o indivíduo é inserido em um grupo com o qual estabelecerá
laços de convivência e relações de cooperação recíproca: a família.
Ao longo de sua existência, participará de diversos outros grupos sociais e
estabelecerá inúmeras relações de convivência, solidificando várias formas de
relações sociais.
“A vida do homem decorre em convivência: os indivíduos mantêm entre si,
do berço ao túmulo, mútuas e constantes relações de colaboração e de
dependência. A vida em sociedade é o modo natural da existência da espécie
humana”5.
Os vínculos sociais podem ser estabelecidos pela convivência direta, tal
como o parentesco, que é o vínculo capaz de constituir a primeira forma de
sociedade: a família.
4
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva,
2005. p. 11-12.
5
CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e de Direito Constitucional. Tomo I. Coimbra:
Almedina, 1998. p. 1.
22
Entretanto, diferentes formas de convivência levam ao estabelecimento de
outras formações sociais, dos quais são exemplos a cidade, a sociedade religiosa, a
sociedade profissional, a sociedade política, etc.
Em 1877, o sociólogo alemão Tönnies, na obra Gemeinschaft und
Gesellschaft, classificou as formas de sociedades em duas categorias: a
comunidade e a associação. Para o referido autor, a comunidade (Gemeinschaft)
corresponde à vida real e orgânica, que se estrutura naturalmente como produto da
vida social; enquanto a associação (Gesellschaft) revela uma forma ideal e
mecânica, porque resulta da vontade dos indivíduos dirigida ao alcance de finalidade
específica, a qual determina a reunião do grupo e a colaboração recíproca.
Marcelo Caetano diferencia comunidade e associação considerando a
vontade determinante para formação e manutenção do grupo:
Desta maneira, encontramo-nos nas comunidades, mas entramos
nas associações. Na comunidade os membros estão unidos apesar
de tudo quanto os separa: na associação permanecem separados
apesar de tudo quanto fazem para se unir. (...) as diversas formas de
sociedade são comunidades quando, existindo independentemente
da vontade dos seus membros, os indivíduos nelas se encontram
integrados por mero facto do nascimento ou por acto que não tem
por fim directo aderir a elas; são associações quando, criadas pela
vontade dos indivíduos, resultam da união daqueles que a elas
resolvam aderir, e que delas podem sair quando queiram6.
Toda e qualquer sociedade tem uma razão de ser que impõe aos seus
membros deveres de colaboração com vistas ao alcance de suas finalidades, bem
como a abstenção de comportamentos nocivos que possam afetar interesses gerais
e a própria existência do grupo. Para garantir sua sobrevivência, a sociedade
precisa atingir um mínimo de organização mediante a imposição de normas e regras
de conduta, as quais deverão ser necessariamente observadas pelos membros do
grupo, que se sujeitam a uma autoridade constituída para representar o interesse
coletivo e garantir que sejam concretizados os objetivos por todos almejados.
Ao alcançar esse mínimo de organização e disciplina, a sociedade se
constitui juridicamente e suas normas jurídicas passam a regular a vida social e o
comportamento de todo o grupo.
Na medida em que o grupo é constituído por um número expressivo de
indivíduos e as relações sociais se tornam complexas diante das diferenças,
6
CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e de Direito Constitucional, t. I, p. 2.
23
hostilidades e conflitos presentes na formação social, surge a necessidade de
organização e disciplina capazes de impor a colaboração recíproca aos indivíduos
mediante a subordinação obrigatória de todos às regras comuns, o reconhecimento
de direitos recíprocos e o acatamento de regras gerais de conduta7.
Nos dizeres de Dalmo de Abreu Dallari:
Numa visão genérica do desenrolar da vida do homem sobre a Terra,
desde os tempos mais remotos até nossos dias, verificamos que, à medida
que se desenvolveram os meios de controle e aproveitamento da natureza,
com a descoberta, a invenção e o aperfeiçoamento de instrumentos de
trabalho e de defesa, a sociedade simples foi se tornando cada vez mais
complexa. Grupos foram se constituindo dentro da sociedade para
executar tarefas específicas, chegando-se a um pluralismo social
extremamente complexo. (...) Como os objetivos dos indivíduos e das
sociedades muitas vezes são conflitantes, e, como seria impossível obterse a harmonização espontânea dos interesses em choque, surge a
necessidade de um poder social superior, que não sufoque os grupos
sociais, mas, pelo contrário, promova sua conciliação em função de um fim
geral comum8.
Nasce a sociedade política, organizada por regras jurídicas e mantida pelo
exercício de um poder capaz de coagir e se impor a todos os indivíduos: o poder
político.
As sociedades políticas são aquelas dotadas de autoridade superior e
capazes de estabelecer regras de convivência para seus membros.
1.2 SOCIEDADE POLÍTICA E A ORGANIZAÇÃO DO PODER
O convívio em sociedade pressupõe ordem, organização e normas
imperativas, o que conduz implicitamente à noção de poder, que confere eficácia a
essas normas sociais.
Poder é usualmente entendido como a faculdade de um indivíduo de fazer
que outrem obedeça a seus comandos; ou seja, é a faculdade de impor sua vontade
sobre outrem, determinando-o a obedecer às suas ordens. Logo, é a aptidão de
conseguir submeter outrem à vontade própria, tendo por pressuposto a vontade do
outro de se submeter ao poder.
7
8
CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e de Direito Constitucional, t. I, p. 6-7.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 47.
24
O fato de o poder submeter a vontade alheia confere-lhe um componente
ético que não pode ser relegado. O poder implica a sujeição voluntária a um
comando.
A eticidade exige que a expressão do poder se revele em comandos
dirigidos ao alcance de finalidades também desejadas pelo grupo que se submete.
O poder é um fenômeno sociocultural, um fato da vida social.
Nos dizeres de José Afonso da Silva:
Pertencer a um grupo social é reconhecer que ele pode exigir certos
atos, uma conduta conforme com os fins perseguidos; é admitir que
pode nos impor certos esforços custosos, certos sacrifícios; que pode
fixar, aos nossos desejos, certos limites e prescrever, às nossas
atividades, certas formas. Tal é o poder inerente ao grupo, que se
pode definir como uma energia capaz de coordenar e impor decisões
visando à realização de determinados fins.
O Estado, como grupo social máximo e total, tem também o seu
poder, que é o poder político ou poder estatal9.
Aqui está o substrato do poder: ele se impõe à vontade daquele a quem é
imposto, convertendo a vontade deste em submissão a seus comandos.
Não se pode confundir o poder com o emprego da força física, nem se pode
olvidar da possibilidade do emprego da força física. Porém, não há confusão entre
poder e emprego absoluto de força física.
Na sociedade, diz-se que o poder é difuso. No Estado, ele é
institucionalizado.
Durante séculos, a organização política foi o objeto nuclear da reflexão sobre
a vida do homem em sociedade, partindo sempre da concepção do homem
enquanto animal social, como “politikon zoon, onde em politikon estava
compreendido sem diferenciação o hodierno dúplice sentido de ‘social’ e ‘político’”10.
A organização política sempre foi considerada imposição de um poder a um
grupo, razão pela qual as relações entre a sociedade e o detentor do poder sempre
foram consideradas relações entre aquele que impõe ou domina e o que é
dominado.
9
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2006. p. 107.
10
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política. Trad. Marco
Aurélio Nogueira. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007. p. 60 et seq.
25
“A função do poder político é a de subordinar os interesses particulares ao
interesse geral, segundo princípios racionais de justiça traduzidos por um Direito
Comum a todas as sociedades primárias englobadas na sociedade política”11.
A sociedade política é o conjunto dos indivíduos reunidos em comunidade
para a concretização de interesses comuns, sob a égide de um Direito próprio e sob
subordinação a um poder de imposição e de domínio capaz de alcançar a todos os
indivíduos a ela pertencentes12.
O poder social é uma conseqüência necessária da organização das
sociedades primárias. O poder surge porque essas sociedades
existem e carecem de organizar-se: a sociedade primária é a razão
de ser do poder social.
Ao contrário, a sociedade política não existe antes do poder político.
Forma-se e organiza-se essa sociedade porque é necessário que o
poder político se institua como único meio eficaz de definição do
Direito Comum essencial à convivência pacífica: o poder político é a
razão de ser da sociedade política.
A formação da sociedade política, porém, embora de índole racional
e voluntária não implica necessariamente a idéia de acordo das
vontades de todos os seus membros. O pacto de união ou contrato
social são hipóteses explicativas, são expressões figurativas, não
realidades históricas.
A função do poder político é a de subordinar os interesses
particulares ao interesse geral, segundo princípios racionais de
justiça traduzidos por um Direito Comum a todas as sociedades
primárias englobadas na sociedade política13.
A característica essencial do poder político é a existência de uma autoridade
instituída e subordinada a Direito próprio, competente para governar ou instituir
órgãos governativos14.
Para Marcello Caetano, o poder político pode ser conceituado como
a faculdade exercida por um povo de, por autoridade própria (não
recebida de outro poder), instituir órgãos que exerçam o senhorio de
11
CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, t. I, p. 9.
Poder político e soberania não são a mesma coisa. Como bem distingue Marcello Caetano, “a
soberania (majestas, summum imperium) significa, portanto, um poder político supremo e
independente, entendendo-se por poder supremo aquele que não está limitado por nenhum um outro
na ordem interna e por poder independente aquele que na sociedade internacional não tem de acatar
regras que não sejam voluntariamente aceitas e está em pé de igualdade com os poderes supremos
dos outros povos. (...) a soberania é um forma do poder político, correspondendo à sua plenitude: é
um poder político supremo e independente”. Ibidem, p. 132.
13
Ibidem, p. 7-8.
14
Órgãos governativos são os órgãos supremos do Estado que exercem atribuições confiadas pela
Constituição, possuem capacidade de tomar decisões independentemente de subordinação a outros
órgãos e que exercem função a política mediante a transformação de orientações políticas em atos
jurídicos. São exemplos de órgãos governativos o monarca na monarquia absoluta, o chefe de
Estado, os ministros, a Assembleia, o chanceler. Cf. Ibidem, p. 208.
12
26
um território e nele criem e imponham normas jurídicas, dispondo
dos necessários meios de coacção15.
Logo, o que marca definitivamente a passagem para a sociedade política é a
presença de um poder e de uma ordem jurídica.
A organização pressupõe a existência de um poder e não há organização
sem a presença de uma ordem jurídica.
A observação de qualquer sociedade humana revela sempre, mesmo
nas formas mais rudimentares, a presença de uma ordem jurídica e
de um poder. Organizar-se, portanto, é constituir-se com um poder,
diz Reale, assinalando que, assim como não há organização sem
presença do direito, não há poder que não seja jurídico, ou seja, não
há poder insuscetível de qualificação jurídica. Isso não quer dizer que
o poder esteja totalmente situado no âmbito do direito, pois na
verdade o poder nunca deixa de ser substancialmente político. Em
que sentido, então, deve ser entendida a afirmação de que todo
poder, embora político, é também jurídico? A resposta que permite
conciliar essa aparente contradição tem como ponto de partida a
aceitação dos graus de juridicidade. (...) Assim, quando se diz que o
poder é jurídico isso está relacionado a uma graduação de
juridicidade, que vai de um mínimo, representado pela força
ordenadamente exercida como um meio para atingir certos fins, até a
um máximo, que é a força empregada exclusivamente como um meio
de realização do direito e segundo normas jurídicas16.
A evolução da sociedade política, com sua consequente transformação em
sociedade humana cada vez mais complexa, heterogênea, plural e organizada
politicamente, permitiu o surgimento do Estado.
1.3 INSTITUCIONALIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO: O ESTADO
A noção de Estado implica a ideia de sociedade política organizada sob uma
autoridade legitimamente investida.
O Estado é a resultante de uma sociedade política complexa17.
Deste modo, o Estado pode ser encarado sob duas perspectivas que não se
confundem e tampouco cindem a sua unidade jurídica característica: a de Estado-
15
CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, t. I, p. 130.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p. 114-115.
17
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo I – O Estado e os sistemas
constitucionais. 5. ed. rev. e atual. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 46 et seq.
16
27
comunidade e a de Estado-poder. Enquanto sociedade política, sintetiza e integra a
pluralidade de grupos, interesses e indivíduos estabelecidos em determinado
território e perante os quais exerce o poder político para a realização de fins
comuns. Enquanto poder, o Estado é a instituição que monopoliza e centraliza o
poder político, cria e institui o próprio Direito e é competente para instituir órgãos,
serviços e relações de autoridade frente aos governados.
Segundo Georges Burdeau:
Uma vez que o Estado é criado pelo espírito, ele o é, com todas as
coisas criadas pelo talento humano, em conformidade com um certo
ideal. Quando os indivíduos pensam o Estado, é mesmo vendo nele
uma instituição destinada a funcionar segundo certas normas e
visando a uma finalidade que aceitam. O Estado reflete-lhes o
pensamento.
E é por isso que, se o Estado é um artifício, nem por isso é
concebido de uma vez por todas. É, ao contrário, uma criação
contínua que exige por parte dos indivíduos um esforço de
pensamento pelo qual seus mecanismos e suas atividades adquirem
seu verdadeiro sentido18.
O advento do Estado Moderno deita suas raízes no princípio da soberania19.
A noção de Estado sempre permaneceu atrelada à ideia de legitimidade e exercício
do poder.
Na Antiguidade, as organizações políticas sociais guardavam dimensões
geográficas urbanas, podendo-se afirmar que o centro de irradiação e concentração
do poder eram as cidades. O poder era personificado na figura do rei, faraó ou
imperador.
Até o final da Idade Média, não se podia reconhecer a presença do Estado
com todos atributos de sua modelagem moderna20.
18
BURDEAU, Georges. O Estado. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p. 37.
19
“Esta palavra foi posta em voga com o sentido actual por um escritor francês do Século XVI, Jean
Bodin, cujo tratado intitulado Les six livres de la République e publicado em 1580 ficou clássico. Na
altura que Bodin escreveu (1576) a Europa mal tinha saído da Idade Média que assentara o poder
político no pacto feudal: os vassalos prometiam fidelidade e obediência a um suserano em troca da
proteção que estes lhes dispensava e o suserano por sua vez podia ser vassalo de outro. As relações
de autoridade nasciam, pois, de pactos de fidelidade pessoal. Os reis eram vassalos do Imperador do
Sacro Império e dependiam também, nas matérias que pudessem se relacionar com os fins
espirituais dos homens, do Sumo Pontífice, chefe da Cristandade, isto é, chefe dos povos cristãos.
Por outro lado nos países feudais os reis eram apenas suseranos, entre outros, e nem sempre os
mais importantes do reino. Ora, é para afastar de vez essas concepções políticas que Bodin expõe a
doutrina da soberania. Cada povo erigido em Estado (a República no sentido romano) tem um
Príncipe soberano. A soberania quer dizer: em relação a todos quantos constituem o Estado, um
poder supremo que dita a lei e nenhuma lei positiva limita (princips a legibus solutus); e em relação a
todos os outros poderes humanos, um poder independente”. CAETANO, Marcello. Manual de Ciência
Política e Direito Constitucional, t. I, p. 131-132.
28
A noção medieval de Estado encerrava a existência de um ente
personalizado que concentrava todo o poder e se confundia com a pessoa do
governante, a quem era atribuída soberania absoluta. A concepção de Estado
enquanto instituição monopolizadora da coerção e da centralização do poder
personificava-se na pessoa do príncipe.
O Estado Absoluto vigorou enquanto prevaleceu a concepção de que a
soberania do príncipe ou do rei era plena e inquestionável, atribuída divinamente, o
que legitimava a concentração de todas as competências e do poder absoluto nas
mãos do soberano.
A personificação e confusão desse Estado originário com a pessoa do
soberano levava à crença de que a morte deste implicava a extinção daquele. O
Estado como instituição despersonalizada ainda não havia sido concebido21.
O Estado, em sentido estrito, surge no momento em que a Monarquia se
afirma detentora do poder soberano e absoluto, recusando-se a se sujeitar a
qualquer outro poder, fosse o Papado, fosse o Império22.
A doutrina do constitucionalismo formatou e consolidou a estrutura do
Estado Moderno.
1.4 A ESTRUTURA DO ESTADO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICO E O
EXERCÍCIO DO PODER POLÍTICO
O Estado Constitucional nasceu das lutas contra o Absolutismo. O objeto do
Constitucionalismo era a limitação jurídica do poder político estatal por um
documento escrito chamado constituição.
20
A conceituação apresentada por Dalmo de Abreu Dallari congraça todos os elementos essenciais à
noção de Estado em termos precisos e sintéticos: “Estado é a ordem jurídica soberana que tem por
fim o bem comum de um povo situado em determinado território”. DALLARI, Dalmo de Abreu.
Elementos de teoria geral do Estado, p. 102.
21
A formulação jurídica do conceito de soberania, a partir da contribuição de Jean Bodin através dos
Seis Livros da República inaugura a ideia de Estado como instituição permanente, organizada e
duradoura. Porém, Bodin reconhecia a soberania como um poder absoluto e ilimitado. CAETANO,
Marcello. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, t. I, p. 131-132.
22
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 34. ed. rev. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2008. p. 51.
29
A concepção de Estado Constitucional moderno reclama a existência de um
Estado sedimentado em uma Constituição reguladora de toda organização e da
relação com os cidadãos que estruture o exercício do poder político23.
Somente se pode reconhecer a presença do Estado quando se fazem
presentes algumas características específicas na conformação da sociedade, quais
sejam: a submissão ao Direito, a observância do princípio da separação de poderes
enquanto fórmula de limitação do poder estatal, o reconhecimento e respeito a
direitos fundamentais, a preservação da igualdade e da liberdade, a laicidade.
Assim, a Constituição – enquanto documento legal informado pelos
princípios materiais do constitucionalismo24, que são: vinculação do Estado ao
Direito, reconhecimento e garantia de direitos fundamentais, separação de poderes
e obediência ao princípio democrático – é “a estrutura conformadora do Estado
Contemporâneo”25.
A relação entre o direito e a política pertence aos grandes temas da
ciência jurídica. A política é “luta”, vive nas opiniões e valorações da
comunidade humana. A vontade política é-lhe subjacente. Essa
vontade é canalizada, organizada, formada e determinada pelo
direito constitucional. Este é política “coagulada”, desempenhando a
função de quadro para a ação política. O direito constitucional é
preferentemente direito “político”, ou melhor, “direito para o político”.
Esta afirmação é hoje lugar comum. Se no positivismo “clássico”
essa função pode considerar-se como perdida, isto deveu-se,
fundamentalmente, ao facto de se ter colocado o acento tônico na
vontade do Estado em detrimento do poder das normas jurídicas26.
23
“Eis aqui o que é, em essência, a Constituição de um país: os somatórios dos fatores reais de
poder que vigoram nesse país”. LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Trad. Hiltomar
Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2008. p. 48.
24
“Loewenstein faz uma enumeração dos requisitos mínimos de uma Constituição autêntica,
indicando, em síntese, os seguintes: a) a diferenciação das diversas tarefas estatais e sua atribuição
a diferentes órgãos ou detentores do poder, para evitar a concentração do poder nas mãos de um só
indivíduo; b) um mecanismo planejado, que estabeleça a cooperação dos diversos detentores do
poder, significando, ao mesmo tempo, uma limitação e uma distribuição do exercício do poder; c) um
mecanismo, planejado também com antecipação, para evitar bloqueios respectivos entre os
diferentes detentores de parcelas autônomas do poder, a fim de evitar que qualquer deles, numa
hipótese de conflito, resolva o embaraço sobrepondo-se aos demais; d) um mecanismo, também
previamente planejado, para adaptação pacífica da ordem fundamental às mutáveis condições
sociais e políticas, ou seja, um método racional de reforma constitucional para evitar o recurso à
ilegalidade, à força ou à revolução; e) além disso tudo, a Constituição deve conter o reconhecimento
expresso de certas esferas de autodeterminação individual, isto é, dos direitos individuais e das
liberdades fundamentais, prevendo sua proteção contra a interferência de um ou de todos os
detentores do poder”. LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución apud DALLARI, Dalmo de
Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, p. 170.
25
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed.
Coimbra: Almedina, 2003. p. 87.
26
QUEIROZ, C. M. Os actos políticos no Estado de Direito: o problema do controle jurídico do poder.
Coimbra: Almedina, 1990. p. 28.
30
A presença dessas características informadoras no cerne do Estado
evidencia que o constitucionalismo moderno pressupõe um Estado Democrático de
Direito.
Conforme ensina Canotilho, “o Estado constitucional é uma tecnologia
política de equilíbrio político-social através da qual se combatem dois arbítrios
ligados a modelos anteriores, a saber: a autocracia absolutista do poder e os
privilégios orgânico-corporativos medievais”.27
Há uma inevitável conexão interna entre democracia e Estado de Direito
Constitucional.
O direito constitucional deve “normatizar o processo político” para que,
conforme Friedrich Müller, haja legitimação na “estrutura textual da democracia e do
Estado de Direito”28.
Segundo a doutrina tradicional do Estado de Direito29, este apenas teria por
pressuposto o respeito à legalidade, ou seja, a obediência estrita ao primado da lei
enquanto fórmula limitadora do poder.
Em que pese o relevante alcance dos mecanismos constitucionais do Estado
de Direito – que originariamente visavam a defesa do indivíduo contra os abusos do
poder – o fato é que a estrita submissão à legalidade não conforma o Estado ao
princípio democrático.
Diante da constatação de que a estrutura constitucional e a conformação ao
Direito não imprimem caráter democrático ao Estado, reconheceu-se a importância
da instituição do princípio democrático no cerne do Estado.
A soberania popular, por seu turno, é o fundamento do ideal democrático.
O Estado Moderno se assenta na ideia da legitimação do poder político. E
sua atual evolução somente entende como legítimo o poder sedimentado na
soberania popular.
27
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 90.
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria metódica estruturante. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 160.
29
“A locução Estado de Direito foi cunhada na Alemanha: é o Rechtsstaat. Segundo Hayek, ela
aparece num livro de Welcker, publicado em 1813, no qual se distinguem três tipos de governo:
despotismo, teocracia e Rechtsstaat. Luc Heuschiling, todavia, ensina que o termo foi criado na
Alemanha, em 1798, por Johann Wilhelm Placidus (1758-1815). Igualmente, foi na Alemanha que se
desenvolveu, no plano filosófico e teórico, a doutrina do Estado de Direito. Nas pegadas de Kant, Von
Mohl e mais tarde Stahl lhe deram a feição definitiva”. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado
de Direito e Constituição. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 5.
28
31
Como já afirmado, a submissão ao Direito por si só não satisfaz o ideal
democrático. Os clássicos mecanismos constitucionais do Estado de Direito visavam
à defesa do indivíduo contra os abusos do poder, mas não se confundiam com o
ideal democrático.
A evolução do constitucionalismo levou à íntima e indissolúvel conexão entre
o Estado Constitucional e o Estado Democrático, fundindo-se as noções, o que
importou na atual noção de Estado Constitucional Democrático30.
Conforme magistério do insigne Professor Gianpaolo Poggio Smanio:
Na atual concepção de Estado Democrático de Direito, também visto
como Estado Constitucional, os direitos fundamentais constituem o
conceito que engloba tanto os direitos humanos universais quanto os
direitos dos cidadãos nacionais.
A doutrina do contrato social deve ser entendida hoje como um
contrato constitucional e deve estender-se da sociedade particular de
cada Estado para uma “sociedade mundial”, de forma que cada ser
humano tenha um “status” mundial que lhe garanta os direitos
fundamentais. Todos os seres humanos devem ser vistos como
contratantes de forma que sejam garantidos mutuamente os direitos
humanos de cada um31.
E a soberania popular enquanto fundamento do Estado Democrático
reclama a presença do cidadão. A cidadania é o tecido que constitui a trama do
Estado Democrático.
Nesse sentido, o lapidar magistério de Smanio:
Cidadania, direitos fundamentais e Estado Democrático de Direito
são realidades que estão interligadas e se condicionam mutuamente.
O Estado de Direito é a forma política em que os poderes atuam
autônoma e independentemente e são submetidos ao império de
uma legalidade que garante os direitos fundamentais dos cidadãos.
Os direitos fundamentais, por sua vez, legitimam o Estado de Direito
e o conteúdo da cidadania. A cidadania é a base de participação
política no Estado de Direito, através do exercício dos direitos
fundamentais. (...) Os direitos humanos e os direitos da cidadania
são desta forma duas manifestações dos direitos fundamentais que
devem ser assegurados pelo Estado Constitucional, assim como pela
comunidade internacional.
30
Jorge Miranda explica a origem de cada um dos termos constitutivos da expressão Estado
Constitucional de Direito: “A expressão Estado Constitucional parece ser de origem francesa, a
expressão governo representativo de origem anglo-saxônica e a expressão Estado de Direito de
origem alemã. A variedade de qualificativos inculca, de per si, a diversidade de contribuições, bem
como de acentos tônicos”. MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Coimbra: Coimbra
Editora, 2002. p. 69.
31
SMANIO, Gianpaolo Poggio. As dimensões da cidadania. Revista Jurídica. Novos Direitos e
Proteção da Cidadania, São Paulo: Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, ano 2, p. 1323, jan./jun. 2009.
32
A cidadania pressupõe a liberdade para o exercício dos direitos
fundamentais. A cidadania é uma condição da pessoa que vive em
uma sociedade livre. Onde há tirania não existem cidadãos. A
cidadania pressupõe a igualdade entre todos os membros da
sociedade, para que inexistam privilégios de classes ou grupos
sociais no exercício de direitos.
Para o exercício das liberdades fundamentais da cidadania, então, é
preciso estabelecer uma ordem política democrática que a garanta32.
O Estado Democrático contempla a autodeterminação coletiva e estabelece
inúmeras formas de controle do governo, de modo que, na vivência democrática, a
esfera de liberdade do indivíduo reflete seu significado enquanto parte de um todo e
não isoladamente considerado.
A soberania popular reclama a presença de deliberações coletivas em que
são necessários mecanismos que permitam a participação de cada indivíduo
pertencente ao todo social na deliberação heterogênea, a qual será fruto das
aspirações da maioria.
Nesse compasso, a democracia se estampa como o governo da maioria e o
Estado se transforma em mecanismo de satisfação dos interesses dessa maioria,
vista como o resultado das vontades de cada um isoladamente e refletida nos
processos democráticos, tais como os de escolha dos representantes para o
exercício das funções de governo, as consultas populares, etc.
O conceito hodierno de Estado Democrático de Direito requer a
comunicação entre os atores sociais e entre os tomadores das decisões políticas e
os destinatários destas, traduzindo uma nova perspectiva de cidadania.
“A política é o método pelo qual as sociedades ‘livres’ são governadas. A
política é uma actividade humana, vontade e acção. A política é a arte de unificar e
organizar as acções humanas e dirigi-las para um fim comum”33.
1.5 O ESTADO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO
O
Estado
Democrático
contemporâneo
consagra
uma
organização
constitucional cristalizada na doutrina da separação de poderes e na soberania
32
SMANIO, Gianpaolo Poggio. As dimensões da cidadania, p. 13-23.
QUEIROZ, C. M. Os actos políticos no Estado de Direito: o problema do controle jurídico do poder,
p. 23.
33
33
popular, tendo por finalidade precípua a garantia dos direitos fundamentais, ou seja,
o respeito à dignidade da pessoa humana com consequente efetivação do princípio
da isonomia e satisfação das demandas sociais.
O Estado brasileiro congrega essa estrutura e as instituições necessárias
para o estabelecimento do Estado Constitucional Democrático.
A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro
superou uma página obscura de sua história, rompendo com o jugo da ditadura e
iniciando uma passagem pacífica, porém lenta, para o Estado Democrático, erigindo
a nova ordem jurídica sob a égide do Estado Democrático de Direito.
Com efeito, a nova ordem constitucional estatuída, em que pese ter rompido
com a ordem jurídica precedente, resultou de um processo lento de transição
democrática que não se esgotou com a simples promulgação do texto constitucional.
O Estado brasileiro adquiriu novo desenho, porém ainda segue em
pinceladas delicadas, perseguindo a perfeição da arte final.
A Constituição Federal reza, em seu artigo 1º, que a “República Federativa
do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”.
Logo, a forma de governo eleita pelo Constituinte é a República Federativa.
A adoção do pacto federativo ostenta uma peculiaridade, pois consagra uma
Federação em três níveis: federal, estadual e municipal. O Município foi erigido a
ente federativo, autônomo e indissolúvel, tendo o texto constitucional prescrito seu
âmbito de competência e os limites de sua autonomia.
A estruturação constitucional do Estado também observa a fórmula da
separação de funções, que foi concebida no modelo rígido, por conjugar a forma
republicana e o sistema presidencial.
Contudo, o modelo da separação de poderes é mecanismo de organização
constitucional dos poderes constituídos, que os erige em independentes e
autônomos, porém limitados e coordenados, o que lhes possibilita a “harmonia
indispensável ao sistema”34.
O texto constitucional também apresenta, no artigo 37, caput, a receita que
congrega todos os atributos da boa governança, estatuindo os princípios
34
FONSECA, Aníbal Freire. O Poder Executivo na República Brasileira. Brasília: Universidade de
Brasília, 1981. p. 21.
34
norteadores do bom governo, agora alçado à categoria de dever constitucional
atribuído aos governantes, que corresponde a correlato direito dos governados.
Logo, o Estado Democrático brasileiro ganhou não apenas uma nova
conformação jurídica, mas também um novo desenho institucional que traduz a
possibilidade do estabelecimento de novas relações entre o cidadão e o Estado.
Esse novo traçado também reconhece a presença de novas relações entre
governança, accountability e responsividade, que são pressupostos estruturais da
arquitetura democrática.
Nesse novo cenário, emergem novos atores que trarão novos e relevantes
temas para discussão nessa arena capaz de albergar uma nova dimensão para a
cidadania , que se desenvolve a partir do debate político capaz de influir na tomada
das decisões políticas, bem como da participação popular, da educação para a
cidadania e para o exercício de direitos fundamentais e, sobretudo, para a criação
de novos espaços públicos nos quais se cultivem o consenso e a igualdade.
No dizer de Wanderley Guilherme dos Santos, o horizonte do desejo do
povo brasileiro é a distância que separa os que estão na linha da miséria ou abaixo
dela dos demais cidadãos, a qual pode ser medida através da avaliação do grau de
possibilidade de as políticas públicas do Estado alcançarem esses “cidadãos
privados de cidadania”35, possibilitando-os de participar dessa nova arena política
formada pelo novo traçado democrático.
O nível de democracia de um Estado depende de sua capacidade de
governança e de instituição do bom governo, o que reclama um projeto político
eficiente e transparente, apto a implementar políticas públicas eficazes e
abrangentes.
Nesse sentido, afirma Fátima Anastasia:
Em suma, a maior ou menor capacidade de governança depende,
por um lado, da possibilidade de criação de canais
institucionalizados, legítimos e eficientes; de mobilização e
envolvimento da comunidade na elaboração e implementação de
políticas e, por outro, da capacidade operacional da burocracia
governamental, seja nas atividades de atuação direta, seja naquelas
relacionadas à regulação das políticas públicas.
35
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Horizonte do Desejo: instabilidade, fracasso coletivo e inércia
social. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 53 e 119.
35
As formas e os grau de accountability e de responsiveness da ordem
política afetam, por sua vez, os padrões de governabilidade vigentes
nas diferentes sociedades.
Sustentamos que a governabilidade democrática é uma variável
dependente da capacidade dos governos de serem responsáveis e
36
responsivos perante os governados .
36
ANASTASIA, Fátima; AZEVEDO, Sérgio de. Governança, “Accountability” e Responsividade.
Revista de Economia Política, v. 22, n. 1, jan./mar. 2002. p. 85.
36
2
GOVERNO
2.1 Formas de Governo. 2.2 Tipologia das Formas de Governo.
2.2.1 A Classificação Formulada por Montesquieu. 2.3 República.
2.4 Regimes de Governo. 2.5 Regimes de Governo: Governos
Democráticos e Não Democráticos. 2.5.1 Governos Não
Democráticos.
2.5.2
Governo
Democrático:
Princípios
Estruturais do Regime Democrático. 2.5.3 Governo Democrático:
Exigência de Governo Responsável. 2.5.4 Governo Democrático:
a Legitimidade das Decisões Políticas. 2.6 Governante. 2.7
Sistemas de Governo. 2.7.1 Sistema Presidencial. 2.7.2 Sistema
Parlamentarista. 2.7.3 Sistema Semipresidencial.
O Estado, enquanto estrutura política e social, não possui vontade própria,
razão pela qual se vale de órgãos para executar seus comandos. No entanto, os
órgãos governamentais expressam a vontade daqueles que os compõem.
O poder político do Estado é exercido pelo conjunto de órgãos criados e
estruturados pela Constituição e que compõem o governo. Têm natureza
constitucional, pois refletem o modo de organização e limitação do poder político do
Estado.
De acordo com José Afonso da Silva,“o governo é, então, o conjunto de
órgãos mediante os quais a vontade do Estado é formulada, expressada e realizada,
ou o conjunto de órgãos supremos a quem incumbe o exercício das funções do
poder político”37.
Entretanto, apesar de ser composto por diversos órgãos, o poder político
permanece uno, indivisível e, via de regra, indelegável, uma vez que a existência
dos vários órgãos se explica com o reconhecimento das numerosas tarefas a serem
desempenhadas pelos órgãos do governo.
As funções do poder político são fundamentalmente três: executiva,
legislativa e jurisdicional.
Consoante o magistério de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, governo é “o
complexo de estruturas e funções centrais e superiores, em que se exerce no
Estado o máximo poder político, atribuído conforme as normas da Constituição”38.
37
38
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 108.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 73.
37
O termo “governo” pode ser empregado em sentido lato e em sentido estrito.
Em sentido amplo, governo designa a organização ou controle do poder, ou seja, é
expressão que define como o poder político foi organizado e é desempenhado em
determinado Estado. Em sentido estrito, o termo é usado como sinônimo de Poder
Executivo.
Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o Poder Executivo compreende o
governo39. O Poder Executivo é constituído do órgão ou conjunto de órgãos com
competência para representação do todo e para a tomada das decisões políticas
fundamentais. O governo, por seu turno, seria formado pelo conjunto de órgãos
incumbidos da execução das leis e das decisões em geral e compreenderia a
Administração e a direção das Forças Armadas.
Canotilho ensina que “o governo é constituído e garantido como órgão
constitucional de soberania ao qual é confiada, a título principal, a função de
governar”40, o que implica a função de conduzir a política geral do país e dirigir a
administração pública. Para o autor, a expressão governo é “plurissignificativa”, pois
abrange as seguintes noções:
1 – É o complexo ou conjunto de órgãos ao qual é reconhecida competência
de direção política (forma de governo);
2 – É conjunto de todos os órgãos que desempenham tarefas e funções não
afetas ao Poder Legislativo e ao Poder Jurisdicional (Poder Executivo);
3 – É órgão constitucional de soberania com competência para a condução
da política geral do país e gestão da administração pública.
Assim, governo é termo empregado para definir como o poder está
organizado ou é desempenhado em um determinado Estado.
O governo reflete o grau de organização da sociedade política e o
relacionamento entre detentor do poder político e governados.
Segundo a doutrina do Poder Constituinte de Sieyès, a supremacia da
Constituição garante a limitação dos Poderes que constituem o Estado. Para Sieyès,
a Constituição emana do povo, que se organiza em sociedade aderindo ao pacto
social e mediante a institucionalização do poder político. Todavia, os Poderes e o
governo têm sua origem na Constituição, sendo que ao povo é sempre garantida a
39
40
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 224-225.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 573.
38
faculdade de alterá-la; entretanto, isso não acontece com o governo, o qual deve
obrigatoriamente conformar-se à Constituição, sob pena de invalidade de seus atos.
Logo, a ação governamental pode e deve ser sempre contrastada com a
Constituição, devendo ser reconhecida válida apenas se for compatível com o texto
constitucional.
John Stuart Mill, ao tratar dos graus de desenvolvimento político e social do
Estado, ponderou que
uma comunidade qualquer somente se pode desenvolver saindo de
um destes estádios para outro mais elevado por meio de um
concurso de influências, entre as quais uma das principais é o
governo a que está submetida. Em todos os estádios de
aperfeiçoamento humano até agora atingidos, a natureza e o grau de
autoridade exercido sobre os indivíduos, a distribuição do poder e as
condições do mando e de obediência constituem as influências mais
poderosas, se excetuarmos a crença religiosa, que os faz o que são
e permite se tornem o que podem ser. (...) E o mérito único
indispensável de um governo, a favor do qual pode esquecer-se
quase qualquer soma de outros deméritos compatíveis com o
progresso, consiste em que a sua atuação sobre o povo seja ou não
favorável ao passo seguinte, que lhe impõe dar com fito de elevar-se
a nível mais alto41.
O governo revela sempre duas figuras que, combinadas ou fundidas, o
estruturam, quais sejam: o chefe de Estado e o chefe de Governo.
A chefia de Estado compreende as representações interna e externa do
Estado, sendo que seu titular emblema o Estado, a unidade nacional, e é a força
política capaz de identificar o país internamente e no estrangeiro.
A chefia de Governo expressa o comando da política nacional pela
condução da política do Estado mediante orientação e deliberações, bem como da
direção da máquina administrativa.
É o chefe do governo o guia da nação em busca de um alto destino,
como cabeça de sua estrutura política. É a mola de sua marcha para
a conquista dos objetivos de cada dia, sem o quais não se vive. A ele
compete a primeira palavra na determinação e na condução da
política nacional42.
41
MILL, John Stuart. O governo representativo. Trad. Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo: IBRASA,
1983. p. 28.
42
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 225.
39
2.1 FORMAS DE GOVERNO
A forma de atribuição do poder político em um determinado Estado é
questão que suscita inúmeras controvérsias terminológicas, pois o que alguns
autores chamam de formas de Estado, outros entendem como formas de Governo e,
ainda, há divergências quanto ao emprego dos termo “formas” e “regimes” e da
expressão “sistemas de governos”.
Não há consenso, na doutrina, seja a pátria ou a estrangeira, com relação ao
uso das expressões “formas de governo” e “sistemas de governo”.
A imprecisão terminológica alcança, inclusive, a expressão “formas de
Estado”; o que os alemães denominam de “formas de Estado” (Staatsformen), é
reconhecido pelos franceses como “formas de Governo” e se refere às classificações
antigas e tradicionais que distinguem monarquia, aristocracia e democracia43.
“Formas de Estado” e “formas de Governo” expressam, entretanto,
realidades distintas.
Forma de Estado concerne ao número de aparelhos governamentais, mais
precisamente, ao modo como o Estado organiza e manifesta o seu poder em face
dos demais poderes de igual natureza e em relação ao povo e ao território (que
ficam sujeitos a um ou mais de um poder político). É expressão que revela a unidade
ou pluralidade dos ordenamentos estatais e de centros de decisões políticas,
distinguindo-se entre Estado unitário ou simples e Estado composto ou complexo44.
Forma de governo, por sua vez, diz respeito ao modo de exercício do poder
político; é a forma de organização e funcionamento do poder estatal e a relação
entre governantes e governados.
Nos dizeres de José Afonso da Silva, forma de governo é “o modo como se
institui o poder na sociedade e se estabelece a relação entre governante e
governados”, ou seja, é expressão que pretende resolver a questão sobre “quem
deve exercer o poder e como este se exerce”45.
Os critérios mais utilizados são três:
1. O do número de titulares do poder soberano;
2. O da separação de poderes;
43
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 207 et seq.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, p. 271 et seq.
45
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 108.
44
40
3. O dos princípios básicos que regem o exercício do poder político.
“Sistema de governo” é locução utilizada para indicar o sistema de órgãos de
função política que estruturam a organização interna do governo.
Dalmo de Abreu Dallari entende que o termo “forma” reflete três graus
diferentes da realidade política, implicando três espécies distintas: o regime político,
que refere a estrutura global da realidade política, o seu complexo institucional e
ideológico; a forma de Estado, que diz respeito à estrutura da organização política; e
o sistema de governo, que implica as relações entre as instituições políticas46.
No presente trabalho, para fins metodológicos, será adotada a conceituação
e a distinção entre forma de governo, sistema de governo e regime de governo
elaborada pelo professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho.
Forma de Governo é entendida como a definição abstrata de um modo de
atribuição do poder, correspondendo a uma categoria pura. Em consideração ao
grau de abstração e ao critério quantitativo sobre os detentores do poder soberano
(número de pessoas a quem é atribuído), foi formulada a teoria clássica das três
formas de governo: monarquia, aristocracia e democracia.
Sistema de governo traduz as formas de governo em normas que a
institucionalizam. O critério usualmente utilizado para identificar os sistemas de
governo leva em conta o modo de ingresso no poder e a temporariedade e, assim,
pode-se falar em monarquia e república.
Regime de governo ou formas políticas47 é o modo efetivo de exercício do
poder político num determinado Estado, em determinado momento histórico. Diz
respeito à estrutura do Poder no Estado, revelando os fins do poder e as
modalidades de exercício.
Jorge Miranda leciona que a Forma de Estado e o regime político são
concepções autônomas, mas que guardam conexão, pois a primeira pode indicar a
segunda. Assim, por exemplo, um poder autocrático é um poder fortemente
centralizado, que melhor se coaduna com um Estado unitário ou com um
“federalismo a mera fachada”48.
46
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p. 224.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. II, p. 273.
48
Ibidem, t. III, p. 294.
47
41
2.2 TIPOLOGIA DAS FORMAS DE GOVERNO
As tipologias clássicas remontam a Platão e Aristóteles e serviram de
referência aos que os sucederam.
A primeira grande classificação doutrinária das formas de governo é
atribuída a Platão, o qual reconhecia apenas duas formas ideais de governo: a
monarquia e a aristocracia, acreditando que tais formas não podiam ser alcançadas
em razão de existir corrupção. Platão caracterizou-as a partir da análise das virtudes
e dos vícios das classes dirigentes e da atuação dos governantes. Todavia, a
corrupção levaria à degeneração das formas ideais, o que importaria o
reconhecimento das quatro formas de governo existentes: a timocracia, a oligarquia,
a democracia e a tirania.
Aristóteles (em Política) formulou a mais célebre das tipologias da formas de
governo, partindo do conceito anterior atribuído a Heródoto. Sua definição agrega
dois critérios: um quantitativo e outro qualitativo. Ao critério quantitativo, ou seja, à
determinação do número de pessoas que governam (“quem ou quantos governam”)
ele acresce um juízo valorativo, questionando “como se governa”, quer dizer, quais
os interesses preservados pelo governo e quais as expectativas da população frente
ao governo49.
A tipologia aristotélica distinguia entre as formas legítimas e ilegítimas de
governo. Os governos legítimos seriam aqueles que buscavam o interesse geral;
enquanto os ilegítimos seriam os que visavam aos interesses de alguns, sobretudo
dos governantes50.
Assim, Aristóteles distinguiu entre as formas puras (monarquia, aristocracia
e politeia) e as formas degeneradas (tirania, oligarquia e democracia). A seu ver, a
melhor forma de governo adviria da combinação de governos diversos51.
Pelo pensamento aristotélico, os governos puros são aqueles em que os
titulares do poder soberano, seja apenas um, alguns ou muitos, exercem o poder
político tendo em vista o interesse comum; os governos impuros, por sua vez, seriam
49
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. III, p. 327.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 78-79.
51
MIRANDA, Jorge. Op. cit., t. III, p. 327.
50
42
aqueles em que, ao invés do bem comum, prevalece o interesse pessoal, particular
dos governantes, em detrimento do interesse geral da coletividade52.
Quando os interesses pessoais se sobrepõem aos interesses comuns, as
formas puras se degeneram em governos impuros.
Cícero não acatou integralmente a teoria de Aristóteles e acrescentou à
divisão aristotélica outro tipo: a forma mista de governo.
Segundo ele, a forma mista existiu no Estado romano e se mostrou a melhor
de todas. O governo misto ensejava a limitação dos poderes da monarquia, da
aristocracia e da democracia por meio da introdução de instituições políticas, tais
como um Senado aristocrático ou uma Câmara democrática.
Tácito contrariou severamente a opinião de Cícero, argumentando que
jamais existiu um governo misto e, se acaso viesse a ser criado, teria duração
efêmera porquanto seria duvidoso seu valor53.
Políbio, no século II a.C., em seu aprofundado estudo sobre as formas de
governo, concluiu que há seis formas fundamentais, sendo três boas e três más,
além de um terceiro tipo, híbrido, que seria a síntese das três boas. Para ele, as
formas boas de governo fundamentam-se no consenso e são o reino, a aristocracia
e a democracia. As formas más revelam a predominância do uso da força e são a
tirania, a oligarquia e a oclocracia (governo da multidão). Em seu raciocínio, as
formas boas e más se sucedem ciclicamente (teoria dos ciclos).
A grande contribuição de Políbio foi a elaboração da tese dos governos
mistos e da teoria dos ciclos54.
A teoria clássica se fundamenta no número dos que governam: um único,
todos ou alguns e, por essa perspectiva, distingue as três formas puras. Foi
formulada na Antiguidade e chegou ao século XVIII sem abandonar sua moldura
original.
Monarquia é a forma de governo exercida por uma só pessoa. Aristocracia é
a forma na qual o governo é atribuído a uma minoria. Democracia é o governo
atribuído à maioria.
Entretanto, a teoria clássica não nega um caráter qualitativo a essa tipologia,
na medida em que reconhece a presença de um atributo ou virtude que legitima o
52
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política, p. 209.
Ibidem, p. 210.
54
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. III, p. 328.
53
43
detentor do poder político ao seu exercício. Assim, não seria possível chamar de
monarquia todo governo no qual um apenas governa, mas apenas aquele no qual o
governo pertence a um homem designado pela hereditariedade ou investido na
qualidade de monarca; oligarquia seria o governo dos nobres ou aquele dos
“melhores” (aristocracia); e democracia o governo do povo55.
A divisão tripartida também considerava as vantagens específicas das
formas de governo e ofertava críticas aos inconvenientes de cada modalidade.
Assim, a vantagem da monarquia estava na rapidez da tomada de decisões
e sua execução, uma vez que se o poder pertence a um único indivíduo, as decisões
tomadas tendem a ser mais rápidas e efetivas. No entanto, nada poderia impedir o
monarca de agir apenas em benefício próprio, o que configuraria uma desvantagem
desse sistema.
De outro lado, na aristocracia o poder seria sempre bem exercido, posto que
desempenhado pelos melhores ou mais capacitados. Porém, na prática, nada
impedia o desvirtuamento da teoria e a utilização do poder para satisfação dos
interesses de uma minoria ou elite.
A democracia também não estaria livre de distorções, tais como a ineficácia
de suas decisões ante a morosidade das discussões e a possibilidade de decisões
distantes do ideal de igualdade.
A possibilidade de distorções desses sistemas puros levou vários autores –
de Políbio a Montesquieu – à construção teórica de uma forma mista, alcançada
com a reunião das formas puras em que se agregam apenas as vantagens dos
sistemas atados, permitindo a partilha do poder56.
Séculos mais tarde, já no Estado Moderno, Maquiavel inova com uma
formulação diferente e enuncia uma divisão bipartida, segundo a qual as duas
formas de governo possíveis são a república e a monarquia. As duas categorias se
contrapõem, sendo que a primeira estabelece um governo singular e a última, um
poder plural.
55
BURDEAU, Georges; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Direito Constitucional. 27. ed. Trad.
Carlos Souza. Barueri: Manole, 2005. p. 82.
56
Ibidem, p. 82.
44
Entendia ele ser a república o governo de vários (aristocracia ou
democracia), fundado na vontade coletiva; enquanto a monarquia seria o governo de
um só, sedimentado na vontade de um só: o príncipe ou monarca57.
Maquiavel também levou em conta a temporariedade do exercício do poder:
na república o exercício do poder era temporário; na monarquia o poder seria
atribuído com caráter vitalício.
Jean Bodin, na obra Six Livres de la République, formulou sua classificação
em consideração à distinção por ele elaborada entre titularidade e exercício da
soberania. Assim, o poder poderia ter por titular um só indivíduo, vários ou todos
(monarquia, aristocracia e democracia, respectivamente), porém ele acrescentou ao
critério quantitativo a necessidade de observar quem era o detentor da soberania, ou
seja, a quais pessoas ou instituições era confiada a soberania (à coroa, à
Assembleia aristocrática, à Assembleia popular).
Deste modo, seria possível combinar as formas de governo de acordo com a
titularidade e o exercício da soberania. Logo, poderia haver, por exemplo,
titularidade monárquica combinada com exercício democrático.
Em um segundo momento, Bodin reformulou sua teoria, decidindo pela
catalogação a partir da consideração do modo como o poder é exercido, os
resultados e o valor desse exercício. A partir dessa análise, formulou uma divisão
tripartida dos governos em legítimos, despóticos e tirânicos.
Charles Louis de Secondat – o Barão de Montesquieu – elaborou a teoria
que mais influenciou a doutrina do governo. Sua classificação das formas de
governo é original e inovadora, e será destacada adiante.
Em suma, Montesquieu, ao dispor sobre as formas de governo, distingue a
natureza e o princípio desse governo. A natureza informaria sua essência, ou seja, o
que ele exprime e o que ele é. O princípio do governo seria aquilo que o faz atuar,
ou seja, o que motiva o exercício do poder, tal como, por exemplo, as paixões
humanas58.
Sua formulação tripartida não segue o modelo aristotélico, mas revela uma
combinação deste com as formas boas e más. Apresenta as três formas de governo
– monarquia, república e despotismo – e parte para uma segunda qualificação, a
qual obedece a um critério valorativo e não exclui a classificação tripartida. A
57
58
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. III, p. 329.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política, p. 210.
45
monarquia e a república seriam governos moderados contra os quais se oporia o
governo despótico. Assim, segundo uma classificação descritiva, pode haver
república, monarquia e despotismo; e, segundo uma classificação prescritiva, seriam
os governos divididos em moderado e despótico59.
A república compreenderia a democracia e a aristocracia. Segundo o autor,
a natureza de todo governo democrático consiste no fato de a soberania residir nas
mãos do povo. Quanto ao princípio democrático, este se fundamenta na virtude, que
se traduz no amor à pátria e na igualdade.
Com relação à aristocracia, sua natureza está no fato de a soberania
pertencer a alguns – os mais capacitados –; seu princípio é a moderação dos
governantes.
Sobre a monarquia, Montesquieu diz se tratar do governo que é, por
natureza, de um só. Seu princípio se fundamenta na honra e no culto às distinções.
A monarquia teria por traço fundamental a presença de poderes ou instituições
intermediárias na sociedade, as quais constituiriam organizações privilegiadas e
hereditárias, tais como o clero, a justiça e a nobreza. Porém, Montesquieu vislumbra
a necessidade de o soberano governar mediante leis fixas e estabelecidas60.
Por fim, o despotismo seria o governo característico da transgressão da lei.
O monarca reinaria fora da ordem jurídica, sob o império da vontade individual e dos
caprichos pessoais, mediante a negação da liberdade e sob o jugo da desconfiança,
da incerteza e do medo. A natureza do despotismo seria a ausência de legitimidade
e o seu princípio seria o medo.
2.2.1 A Classificação Formulada por Montesquieu
Charles Louis de Secondat – o Barão de Montesquieu – dedicou quase vinte
anos de sua vida à sua terceira obra, que o tornou célebre junto aos seus
contemporâneos e o legou à posteridade, intitulada L’Esprit des Lois (O Espírito das
Leis), e publicada em 1748.
59
60
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. III, p. 331.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política, p. 211.
46
Sua obra compreende uma doutrina sobre o governo que revela um dos
aspectos da separação de poderes.
Pode-se afirmar que todas as reformas políticas observadas durante o
século XIX foram influenciadas por essa obra e trazem as marcas das ideias
enunciadas pelo autor61.
Até seus escritos, reinava incontestável a doutrina das formas de governo
exposta por Aristóteles, que consagrava a divisão tripartida em monarquia,
aristocracia e democracia.
Montesquieu formulou uma nova classificação em substituição à clássica.
Adotou também uma divisão tripartida, mas acrescentou critérios prescritivos e
valorativos que revelaram uma análise sob um prisma diverso, ou seja, sob o
enfoque da limitação do poder, tendo sido precursor da doutrina da separação de
poderes.
O autor catalogou os governos em despóticos, monárquicos e republicanos
e trouxe uma subdivisão para as repúblicas, que para ele poderiam ser aristocráticas
e democráticas.
Deve-se salientar que o termo “república” é empregado pelo autor em seu
sentido moderno, qual seja, um governo temporário e contrário à transmissão
hereditária do poder soberano.
Montesquieu fez distinção entre monarquia e despotismo. Na monarquia, o
traço fundamental seria o governo a partir de leis criadas pelo próprio soberano; no
despotismo estaria consagrada a arbitrariedade ilimitada do soberano.
Para o autor, a explicação para a prevalência de determinada forma de
governo seria valorativa. Assim, ele associava a monarquia à virtude da honra, do
respeito às tradições e à consciência de deveres em relação ao Estado. O
despotismo, por sua vez, estaria sedimentado no medo, no terror.
De sua aguçada percepção, pode-se absorver da doutrina de Bodin a ideia
da existência de relação entre a forma de governo e o clima. A república seria
apreciada por países frios, onde as paixões poderiam ser refreadas; enquanto a
monarquia contaria com a preferência de países com clima temperado62.
61
MOSCA, Gaetano; BOUTHOUL, Gaston. História das doutrinas políticas desde a antiguidade. Trad.
Marco Aurélio de Moura Matos. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. p. 200.
62
Ibidem, p. 202.
47
2.3 REPÚBLICA
É a forma de governo que historicamente se opõe à monarquia.
Na Antiguidade, o termo “república” já era utilizado, mas servia para
designar o próprio Estado e não uma forma de governo63.
Foi Machiavelli que o retomou e o empregou para designar a forma de
governo que se opõe ao absolutismo monárquico.
A ideia republicana desenvolveu-se como oposição à Monarquia Absolutista,
pregando a liberdade, a necessidade de limitação do poder, o direito à participação
do povo no governo, a responsabilidade do governante e o estabelecimento da
temporariedade do governo.
Apesar da luta republicana, a Monarquia ainda resistiu até o século XIX, em
diversos
países.
Mas
o
ideal
republicano
influenciou
as
transformações
experimentadas pela própria Monarquia, que aceitou concessões para não ser
extinta, adotando limitações constitucionais, permitindo a participação do povo em
assuntos do governo e acatando alguns dos postulados republicanos, porém
conservando a forma monárquica de governo e associando-a aos sistemas
parlamentarista e presidencial.
A república ou o princípio republicano traduz uma forma política de governo.
República significa:
uma comunidade política, uma unidade colectiva de indivíduos que
se autodeterminam politicamente através da criação e manutenção
de instituições políticas próprias assentes na decisão e participação
dos cidadãos no governo dos mesmos (self government)64.
A república pressupõe autodeterminação e autogoverno.
República não se confunde com democracia; porém, atualmente, a teoria
política já refere a existência de uma “democracia republicana”65.
63
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, p. 228-230.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 224.
65
“A nova democracia que está emergindo é participativa ou republicana porque a tradição
republicana se baseia na participação dos cidadãos no processo político. Na primeira parte do século
XX, quando os sindicatos e outras organizações corporativas ganharam influência política, a idéia de
democracia participativa alcançou uma audiência mais ampla, mas não assumiu o status de uma
nova forma de democracia na teoria política anglo-americana. No entanto, quando um filósofo político
importante como Habermas escreveu sobre ação comunicativa e Joshua Cohen traduziu essa noção
para o conceito de democracia deliberativa, a idéia imediatamente se expandiu. Tal como a
64
48
A república é a forma essencial de um governo representativo cujo objetivo é
o alcance do bem comum, com respeito à liberdade e à opinião pública e no qual as
decisões políticas são fruto de discussões e deliberações coletivas; enquanto que a
democracia é a fórmula política que se coaduna com um governo dotado de técnicas
e instrumentos jurídico-políticos que permitem que o povo exerça o poder (direta ou
indiretamente)66.
Apesar de não se confundir com a democracia, a república traduz valores,
ideais e fins que somente se aperfeiçoam se aderidos ao regime democrático.
A junção dos valores democráticos aos ideais republicanos deflagrou essa
nova espécie denominada “democracia republicana”67 que se apresenta como uma
nova modalidade da democracia representativa.
Bresser Pereira a define como:
O Estado republicano e a correspondente democracia republicana
foram emergindo gradualmente (...) o modelo de democracia que
emerge nas sociedades mais avançadas é menos exigente: é uma
democracia participativa ou republicana. E menos exigente porque
claramente não exige igual poder substantivo entre os participantes
do debate público nem presume que o consenso será atingido.
Satisfaz-se com as condições de que o debate envolva uma
participação substancial das organizações da sociedade civil e siga
regras mínimas de ação comunicativa, em especial a do respeito
mútuo pelos argumentos que justificam cada posição. As decisões
serão tomadas, em última estância, pelos parlamentares eleitos no
contexto de um sistema representativo, mas cada decisão importante
será precedida de um vivo e amplo debate público. Tal debate
influenciará a agenda e o enquadramento das principais alternativas
para cada decisão. Em alguns casos os argumentos apresentados
serão suficientemente fortes para convencer a outra parte. Em outros
uma nova alternativa surgida do debate poderá satisfazer os grupos
conflitantes, superando-se assim o conflito. Na maior parte dos
casos, porém, o compromisso continuará sendo necessário, e o voto
da maioria acabará decidindo o assunto68.
E no dizer preciso de Canotilho:
A forma republicana de governo está associada à idéia de
democracia deliberativa.
democracia participativa, também a democracia deliberativa é um conceito republicano moderno”.
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Democracia Republicana e Participativa. Novos Estudos Cebrap,
n. 71, p. 77-91, mar. 2005.
66
GOOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? A genealogia filosófica de uma grande aventura
humana. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 107-109.
67
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Op. cit., p. 77-91.
68
Ibidem.
49
A República é ainda uma ordem de domínio – de pessoas sobre
pessoas – mas trata-se de um domínio sujeito à deliberação política
de cidadãos livres e iguais. Precisamente por isso, a forma
republicana de governo está associada à ideia de democracia
deliberativa69.
A república ou a forma republicana de governo congrega uma série de
atributos que impõem uma “estrutura política organizatória”70, que garanta as
liberdades cívicas e políticas e prescreva um catálogo de liberdades a serem
usufruídas de maneira isonômica pelos cidadãos, articulando a liberdade dos antigos
(ampla participação política do cidadão) com a liberdade dos modernos (direito de
opor direitos em face do Estado e sofrer uma mínima intervenção deste em suas
liberdades, além de verem preservados seus direitos fundamentais).
A estrutura política organizacional republicana aponta para um arranjo
institucional que consagra a divisão de funções do Estado, estabelecendo-se
competências juridicamente atribuídas a cargos e funções. Tal divisão pode ser
controlada por mecanismos de freios e contrapesos (check and balances), pois o
ideal republicano impõe o controle do poder para impedir abusos e o desvirtuamento
do bem comum.
O governo republicano se fundamenta no autogoverno, o que reclama a
observância de três regras:
1)
Representação territorial;
2)
Procedimento eleitoral para escolha dos representantes;
3)
“Deliberação
maioritária
dos
representantes
limitada
pelo
reconhecimento prévio de direitos e liberdades dos cidadãos”71.
Geraldo Ataliba concebe a república como a forma política de governo em
que as funções políticas (legislativas e executivas) são exercidas por representantes
do povo, os quais governam em nome deste, com responsabilidade, e são eleitos
mediante mandatos periódicos e renováveis72.
De fato, a república é regime de governo que reclama o princípio
democrático, pois seu caráter representativo e sua incessante preocupação com a
concretização do interesse público evocam o exercício da cidadania; suas
qualidades se conjugam com a democracia.
69
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 224.
Ibidem, p. 229.
71
Ibidem, p. 224.
72
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 13.
70
50
O ideal republicano reclama a presença da democracia enquanto princípio
legitimador do exercício do poder político. E a autodeterminação e o autogoverno,
que são os componentes republicanos por excelência, perfazem-se por meio do
exercício da cidadania.
Assim, entre as diversas características da república, as mais importantes
são: a autodeterminação, o autogoverno, o caráter representativo do governo, a
eletividade, a periodicidade e a responsabilidade pelo exercício do poder.
A eletividade é o instrumento de consolidação da representação popular e o
mandato periódico é a garantia da fidelidade dos mandatários e da renovação pela
alternância no poder.
“Os mandatos conferidos obrigam politicamente os eleitos a agir em
benefício das teses, fórmulas e diretrizes que pregaram, razão de terem merecido a
escolha (eleição) popular”73.
A concepção de um Estado Republicano assentado em um regime
democrático pressupõe a existência de uma comunidade ética e institucionalizada
na forma de Estado Democrático de Direito.
Por autogoverno entende-se a existência de territórios ou âmbitos territoriais
(ou regionais) autônomos, nos quais se exercita uma administração regional ou
territorial e autônoma. De modo que o modelo republicano se adapta tanto ao
esquema territorial federalista (como é o caso dos Estados Unidos) quanto ao da
autonomia regional (como ocorre na Itália). É o traço que exprime a
interconectividade entre a forma republicana e o federalismo.
A autodeterminação invoca a expressão de relevante juridicidade do modelo,
que implica autodeterminação e participação do povo por meio das leis e de
sistemas normativos, razão pela qual a república é por alguns apontada como
“governo de leis e não de homens”.
Os valores republicanos relevam a legitimação do poder político no povo, do
sistema representativo; mas o exercício do poder deve desenvolver-se sob o manto
da legalidade e da juridicidade, de maneira institucionalizada e sendo preservada a
impessoalidade do governo.
Logo, o modelo republicano persegue ideais elevados.
73
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição, p. 13.
51
A república é uma organização política pensada para servir o homem e que
o reconhece como pessoa humana titular de direitos fundamentais; o valor supremo
a ser preservado é a dignidade da pessoa humana: “o indivíduo é o limite e
fundamento do domínio político da República”74.
A república postula a existência do cidadão.
Nesse sentido, é a precisa lição de Jürgen Habermas:
Na visão republicana, a formação política da opinião e da vontade
das pessoas privadas constitui o medium, através do qual a
sociedade se constitui como um todo estruturado politicamente. A
sociedade é por si mesma sociedade política – ‘societas civilis’; pois,
na prática, de autodeterminação política dos sujeitos privados, a
comunidade como que toma consciência de si mesma, produzindo
efeitos sobre si mesma, através da vontade coletiva dos sujeitos
privados. Isso faz com que a democracia seja sinônimo de autoorganização política da sociedade. Disso resulta uma compreensão
de política dirigida polemicamente contra o aparelho do Estado.
Podemos observar a linha dessa argumentação republicana em
Hannah Arendt: a esfera pública política deve ser revitalizada contra
o privatismo de uma população despolitizada e contra a legitimação
através de partidos estatizados, para que uma cidadania regenerada
possa (re)apropriar-se do poder burocrático do Estado, imprimindolhe forma de uma auto-administração descentralizada. Isso pode
transformar a sociedade numa totalidade política75.
A cidadania tem como fundamento a igualdade. Mas, é necessária a
consagração da igualdade material, para que o ideal democrático seja alcançado e
vivenciado na forma republicana. A concretização da igualdade material entre os
indivíduos dispostos em sociedade é o que revela o espírito republicano, dando-lhe
vida.
A igualdade material deve aqui ser entendida como a possibilidade efetiva
de fruir direitos e a presença de garantias para fazer valer tais direitos, tornando-os
oponíveis a qualquer pessoa e ao próprio Estado.
O espírito republicano é essencialmente comunitário e reflete a reunião dos
indivíduos em sociedade para a construção de uma comunidade sempre mais justa,
livre e solidária.
Assim, é inconciliável com o princípio republicano negar eficácia imediata às
normas que consagram direitos fundamentais.
74
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 224.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre factividade e validade. v. II. 2. ed. Trad. Flavio
Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 273.
75
52
De outro lado, também conflita irremediavelmente com tal espírito a violação
do bem comum ou da coisa pública cometida pelo próprio Estado.
O princípio republicano concebe que toda função pública, bem como cargos
públicos e bens públicos, tem existência estritamente vinculada à realização do
interesse público e satisfação do bem comum (res publica).
Segundo Canotilho, o princípio republicano erige e acentua a ideia do
“antiprivilégio”, ou seja, o exercício do poder, bem como toda função pública e
qualquer cargo público, deve ter como fim exclusivo o atendimento ao bem comum.
Ademais, o acesso aos cargos e funções públicas deve ser obtido mediante
oportunidade equitativa conferida a todo cidadão76.
Inegavelmente, o que distingue a república é o reconhecimento da
supremacia inabalável do bem comum do povo, ou seja, aquele interesse que todos
os integrantes do corpo social compartilham e a existência de um sistema de freios
que impeça o arbítrio e garanta o respeito aos direitos fundamentais.
Resulta, então, a necessidade de prover o cidadão de garantias para que
este possa opor seu direito frente a possíveis desmandos do Estado e em face de
injustiças.
Aqui, ressurge a antiga questão acerca do reconhecimento dos direitos
fundamentais enquanto garantia contra os abusos do Estado ou do poder
econômico.
Na república, a clássica dicotomia entre o público e o privado ganha novo
contorno
quando
aliada
à
concepção
dessa
cidadania
republicana
que
hodiernamente se professa e que propaga o respeito, a preservação e a fiscalização
no trato da coisa pública.
A dicotomia público/privado ganha nova dimensão porque o interesse
público desponta como interesse de toda a coletividade e a coisa pública é
reconhecida patrimônio a ser preservado por todos, para que a ideia originária de
república alcance seu verdadeiro sentido.
Desse modo, a cidadania, enquanto direito fundamental e de contornos
republicanos apenas capaz de ser exercitado plenamente no seio de uma sociedade
organizada e democrática, revela a necessidade de conferir ao cidadão garantias
76
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 229.
53
eficazes e suficientes para fazer valer o cumprimento das obrigações do Estado,
considerando a estrutura republicana deste.
Bresser Pereira entende que a vivência republicana fez nascer uma quarta
geração de direitos fundamentais difusos, que por ele foram designados de “direitos
republicanos” e definidos:
Os direitos republicanos sãos os direitos, que todo cidadão possui,
que o patrimônio público não seja capturado por interesses privados.
Se pensarmos os direitos dos cidadãos em termos abstratos, este
tipo de direito é tão velho quanto a cidadania. Mas se neles
pensarmos em termos históricos, como estamos fazendo nesta
conferência, os direitos republicanos foram os últimos a surgir, a
merecer uma atenção especial por parte da sociedade. Conforme
demonstrou Marshall, os primeiros direitos a surgir foram os direitos
civis; em um segundo momento, no século XIX, foram conquistados
os direitos políticos; e, na primeira parte do século XX, foram
afirmados os direitos sociais. O surgimento dos direitos republicanos
nas democracias modernas só se tornou um fato histórico no último
quarto do século XX, quando a proteção do patrimônio público – do
meio ambiente e das grandes receitas orçamentárias – tornou-se
uma questão política de grande importância. A preocupação com a
corrupção e o nepotismo eram inquietações antigas, mas agora se
dá atenção a formas mais sofisticadas de captura privada de
recursos públicos. O rent-seeking ou a ‘privatização do estado’
começaram a ser denunciados, na medida em que se tornou claro
que não bastava proteger os cidadãos contra o poder abusivo do
estado: também era vital proteger o estado contra pessoas
poderosas e cobiçosas.
Os direitos civis e o liberalismo elevaram suas vozes na proteção do
indivíduo contra o estado; os direitos republicanos e o novo
republicanismo reivindicam a proteção do patrimônio público contra
quaisquer pessoas capazes de tais infrações77.
A relevância axiológica da dicotomia entre público e privado também se
revela em outra dimensão, que se situa na compreensão de que as relações
estabelecidas entre os membros da coletividade divergem daquelas estabelecidas
entre os membros da coletividade e o próprio Estado, porquanto estas últimas são
relações que se desenvolvem entre desiguais.
A solidificação do ideal republicano revela a organização de um grupo social
que já reconheceu a diferenciação entre aquilo que pertence ao grupo e o que
pertence aos membros individualmente considerados; e, ainda, a diferença entre as
relações que se estabelecem apenas entre a sociedade global e entre grupos
menores e aquelas relações estabelecidas entre um poder político superior e central
77
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Uma Nova Gestão para um Novo Estado: Liberal, Social e
Republicano. Revista do Serviço Público, n. 52, v. 1, p. 5-24, jan. 2001.
54
(Estado) e os poderes periféricos inferiores e, por derradeiro, os cidadãos
individualmente considerados.
A república se realiza quando o ideal republicano é realçado no seio do
povo, sem o que não passará de letra constitucional morta78.
2.4 REGIMES DE GOVERNO
Conforme preleção de Marcello Caetano, a forma política do Estado é a
síntese de todos os elementos que constituem a estrutura organizacional e do poder
político. A forma política é, portanto, o modo como, em cada sociedade política, se
estrutura e se exerce o poder político.
Segundo o autor, “o Poder Político é a faculdade possuída por um povo de,
por autoridade própria (não recebida de outro poder), instituir órgãos que exerçam o
senhorio de um território e nele criem e imponham normas jurídicas, dispondo dos
necessários meios de coação”79.
A estruturação e o exercício do poder político são realizados de duas
maneiras:
1) Atendendo apenas à titularidade do exercício do poder: fórmula que
permite identificar quem é o titular do poder e quais são os órgãos estabelecidos
para o seu exercício;
78
Nesse sentido, cf. Carmen Lúcia Antunes Rocha: “A República brasileira é marcada por uma forte
vinculação militarista em seu nascedouro. E esse elemento é marcante em confronto que se faça
entre a história brasileira e, por exemplo, a norte-americana, que tanto influenciou a sua formação e
sua constitucionalização.
Os Estados Unidos da América, quando de sua formação, não tinham história. Como acentuado
pelos constitucionalistas franceses, ao fazerem remissão à história constitucional norte-americana
(“L’historie d’un peuple sans historie”), a Constituição criou a América.
No Brasil, não, a Constituição não criou sequer a República. Antes, foi sua criação. E não apenas a
República não foi criada pela Constituição, como essa também não foi criação do povo, após amplo
debate e pleno conhecimento de sua realidade jurídica e de suas conseqüências históricas. Nem a
Constituição Republicana fez a história do Brasil. Os militares que tentaram fazer as duas. E não
apenas em seu início, mas, acostumados, talvez, ou justificados talvez, em outros momentos
históricos, buscaram refazer as duas, conformá-las ao que lhes pareceu necessário e ideal. Sem
muitas perguntas. Sem muito povo, que democracia não tem disciplina, nem hierarquia, como se
habituavam eles a acreditar ser essencial. Principalmente, sem muito barulho. E o barulho é próprio
da democracia. Quem gosta de silêncio é a ditadura”. ROCHA, Carmen Lúcia Antunes Rocha.
República e “Res Pública” no Brasil – traços constitucionais da organização política brasileira. In:
MELLO, Celso Antonio Bandeira de (Org.). Estudos em Homenagem a Geraldo Ataliba. São Paulo:
Malheiros, p. 225.
79
CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, t. I, p. 350.
55
2) Considerando a relação estabelecida entre o titular do poder e os
indivíduos: revela a missão do exercício do poder político em termos de direção da
sociedade política e formação da ordem jurídica, bem como a ideologia por trás da
estruturação do poder “capaz de revelar o espírito que domina o funcionamento do
sistema”80.
A estruturação do poder político em consideração ao titular e sua relação
com os governados traduz o regime político.
Assim, os regimes políticos distinguem os governos democráticos dos não
democráticos.
2.5 REGIMES DE GOVERNO:
DEMOCRÁTICOS
GOVERNOS
DEMOCRÁTICOS
E
NÃO
A grande imprecisão terminológica presente na doutrina, tanto brasileira
como estrangeira, também afeta a expressão “regime de governo”.
Não há unidade de conteúdo entre “formas de governo”, “regime de
governo”, “sistemas de governo”, “sistemas políticos”.
Maurice Duverger distingue entre regime de governo e sistema político. Na
sua
análise,
o
regime
é
constituído
pelo
conjunto
de
instituições
que
coordenadamente exercem o poder político e constituem o governo, tais como o
Congresso, o presidente da República e o Conselho de Ministros; o sistema político,
em que está inserido o regime de governo, é bem mais amplo e abarca a ideologia,
os sistemas de valores sociais, as estruturas socioeconômicas, as instituições
políticas81.
Consentâneo com a catalogação de Duverger, Raul Machado Horta82
entende que a expressão “regime de governo” deva ser empregada para retratar a
organização dos poderes Executivo e Legislativo e as relações entre um e outro
poder, em desdobramento do regime de governo adotado. Assim, como técnica de
organização do poder, quando se trata do Poder Executivo o regime de governo se
80
CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, t. I, p. 351.
Cf. ROCHA, Raul Machado. Direito Constitucional. 3. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Del Rey,
2002. p. 671.
82
Ibidem, p. 672.
81
56
identifica com três modelos constitucionais típicos: o regime parlamentar, o regime
presidencial e o regime ditatorial ou colegiado. Para o autor, são estes regimes
puros e homogêneos.
Horta atenta, ainda, para a classificação terminológica adotada pelo
professor Ferreira Filho83, segundo a qual regime de governo é termo que indica o
modo efetivo por que se exerce o poder num determinado Estado e em determinado
momento histórico.
De acordo com o mencionado autor, é possível distinguir os regimes
políticos em democrático, autocrático e totalitário, sendo que as duas últimas
categorias são por ele entendidas como formas autocráticas e, portanto, haveria
apenas a subdivisão em regimes democráticos e autocráticos.
Robert Alan Dahl, por sua vez, cataloga os regimes em democráticos e não
democráticos.
2.5.1 Governos Não Democráticos
O traço fundamental que distingue os governos democráticos dos governos
não democráticos reside no modo como o poder político é atribuído ao governante e
como este o exerce.
Por regime autocrático devem ser entendidas todas as formas não
democráticas.
Se o governante (um ou vários) exerce o poder em nome próprio, ainda que
em virtude de um direito conferido na Constituição, porém sem a interferência do
povo na sua escolha e em seus atos, está-se diante de uma autocracia.
Na democracia, o governo é exercido em nome e a favor do povo, por meio
de representação política conferida pela escolha política realizada pela manifestação
da vontade popular e por tempo previamente estabelecido.
Nos dizeres de Jorge Miranda:
O ponto de clivagem fundamental de todas as formas de governo
está nisto. Ou os governantes (certo ou certos indivíduos) governam
em nome próprio, por virtude de um direito que a Constituição lhes
83
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 78-79.
57
reserva, sem nenhuma interferência dos restantes cidadãos na sua
escolha ou nos seus actos de governantes. Ou os governantes
governam em nome do povo, e o povo tem a possibilidade de
manifestar uma vontade jurídica e politicamente eficaz sobre eles e
sobre a atividade que conduzem.
No primeiro caso, estamos diante de autocracia (com diferentes
concretizações históricas, a que correspondem também diversas
formas de governo). No segundo caso, diante da democracia84.
Os regimes não democráticos são reconhecidos como autocracia,
despotismo e tirania. Outro termo de uso corriqueiro é ditadura.
Autocracia é o termo técnico correto para designar todos os tipos de
governos não democráticos.
A autocracia designa o governo de um só com poderes ilimitados e
absolutos.
Tirano é denominação dada ao que exerce um poder absoluto, ilegítimo,
ilimitado, de forma monocrática e sem temporaneidade.
Déspota é o que exerce poder monocrático, absoluto, porém legítimo e não
temporâneo, pois se trata de forma de governo de longa duração.
Ditador é aquele que exerce o poder monocrático com poderes
extraordinários e absolutos, mas limitados no tempo e legítimos.
A ditadura se distingue da tirania e do despotismo em razão da
temporariedade de sua duração.
2.5.2 Governo Democrático: Princípios Estruturais do Regime Democrático
Desde a Idade Clássica até os dias de hoje, o termo democracia tem sido
utilizado para determinar o regime de exercício do poder político.
A moderna noção de democracia em nada se aproxima daquela praticada na
Antiguidade pelos atenienses ou na Roma Antiga e em outros recônditos do mundo
ocidental.
O traço identificador da democracia grega reside no exercício do poder
político diretamente pelo povo, que se manifestava através de assembleias
deliberativas, nas quais as questões eram debatidas e decididas pelos cidadãos.
84
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. III, p. 61.
58
A polis constituía uma comunidade compacta, em que se reuniam cidadãos
identificados por um ethos religioso, moral e político. E como sua dimensão era
pequena, as deliberações podiam ser realizadas diretamente.
O verdadeiro sentido da democracia grega era a presença de um sistema de
governo em que as decisões políticas eram tomadas coletivamente, através da
participação direta do cidadão. Contudo, esse cidadão era completamente absorvido
pela comunidade, a qual não autorizava qualquer margem de independência ao
indivíduo nem oferecia qualquer tipo de proteção à liberdade individual.
O homem era reduzido à cidadania; somente enquanto membro de uma
coletividade e detentor do status de cidadão era considerado titular de liberdade.
Logo, a liberdade tinha conotação meramente política. A idéia de liberdade individual
foi concebida bem posteriormente.
Com efeito, o autogoverno exigia dos cidadãos dedicação quase exclusiva à
polis, ou seja, ao serviço público, abdicando da vida pessoal, da construção de
riquezas e de desenvolvimento econômico.
Ademais, a democracia direta impunha uma identidade ideológica que não
se coadunava com o pluralismo e importava no desprezo das demandas daqueles
que não eram reconhecidos como cidadãos.
A democracia antiga era exercida diretamente e se caracterizava pela
participação direta dos cidadãos na tomada das decisões políticas85.
85
“Da concepção da democracia direta da Grécia, na qual a liberdade política expirava para o homem
grego desde o momento em que ele, cidadão livre da sociedade, criava a lei, com a intervenção de
sua vontade, e à maneira quase de um escravo se sujeita à regra jurídica assim estabelecida,
passamos à concepção de democracia indireta, a dos tempos modernos, caracterizada pela presença
do sistema representativo. (...) Dizia Montesquieu, um dos primeiros teoristas da democracia
moderna, que o povo era excelente para escolher, mas péssimo para governar. Precisava o povo,
portanto, de representantes, que iriam decidir e querer em nome do povo. (...) O Estado moderno já
não é o Estado cidade de outros tempos, mas o Estado nação, de larga base territorial, sob a égide
de um princípio político severamente unificador, que risca sobre todas as instituições sociais o seu
traço de visível supremacia.
Não seria possível ao Estado moderno adotar técnica de conhecimento e captação da vontade dos
cidadãos semelhante àquela que se consagrava no Estado cidade da Grécia. Até mesmo a
imaginação se perturba em supor o tumulto que seria congregar em praça pública toda a massa do
eleitorado, todo o corpo de cidadãos, para fazer as leis, para administrar. Demais, o homem da
democracia direta, que foi a democracia grega, era integralmente político. O homem do Estado
moderno é homem apenas acessoriamente político, ainda nas democracias mais aprimoradas, onde
todo um sistema de garantias jurídicas e sociais faz efetiva e válida a sua condição de “sujeito” e não
apenas”objeto” da organização política. (...) Enfim a democracia direta foi, não resta dúvida, segundo
os publicistas do sistema representativo, a intransferível experiência de uma modalidade precisa de
organização estatal: o Estado cidade, impossível de oferecer à idade moderna e contemporânea –
conhecedora de formas políticas necessariamente distintas – o modelo já ultrapassado de suas
instituições”. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política, p. 293.
59
Foi no século XVIII que a democracia ressurgiu, após longo tempo deixada
às margens da política em razão da prevalência de governos absolutistas e não
democráticos.
Ante a inviabilidade da prática da democracia direta, emergiu a democracia
representativa como realidade insofismável dos tempos modernos86, segundo a qual
o povo governa por meio de representantes.
A representação política é o mecanismo conferido ao povo, titular do poder,
para agir e reagir diante dos atos dos governantes.
Democracia exprime o regime político segundo o qual o poder político é
conferido ao povo, que o exerce direta ou indiretamente. O poder é atribuído à
totalidade dos cidadãos e, portanto, deve ser exercido em harmonia com a vontade
expressa por eles e nos termos prescritos constitucionalmente.
Assevera Jorge Miranda que, na democracia, o poder político é exercido
pelo povo. E, desse modo, o princípio democrático não enuncia apenas formalmente
a titularidade do poder pelo povo, mas visa conferir legitimidade formal para, em
seguida, atribuir os poderes constituídos aos governantes. O autor assinala:
Democracia exige exercício do poder pelo povo, pelos cidadãos, em
conjunto com os governantes; e esse exercício deve ser atual, e não
potencial, deve traduzir a capacidade dos cidadãos de formarem uma
vontade política autônoma perante os governantes. Democracia
significa que a vontade do povo, quando manifestada nas formas
constitucionais, deve ser o critério de acção dos governantes87.
Com efeito, nas democracias atuais, os governos assumem a tônica
democrática mediante o sistema representativo.
Os povos modernos, ao afirmar a sua soberania, estatuíram, como
primeira manifestação desta, que jamais obedeceriam a leis, que não
emanassem da sua vontade, mediata ou imediatamente; e para
garantia efetiva desta cláusula, em todo governo constitucional foi
estabelecido, que o poder legislativo seria composto dos
representantes do povo ou da nação; e daí a própria denominação,
comumente dada àquele poder, de Representação Nacional88.
A democracia vem sendo adotada como fórmula de exercício do poder
político por todos os povos desenvolvidos e perseguida por aqueles menos
86
CAGGIANO, Monica Herman Salem. Sistemas Eleitorais X Representação Política. São Paulo,
1987. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. p. 15.
87
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. VII, p. 60.
88
CAVALCANTI, Amaro. Regime federativo e a república brasileira. Brasília: UnB, 1983. p. 198.
60
estruturados. Isso porque o ideal democrático se revela o “valor mais alto para a
constituição dos governos legítimos que têm o povo na nascente de todos os
poderes e na base de todos os comportamentos, mediante os quais se rege a
sociedade”89.
É forçoso concluir que, hodiernamente, os Estados têm sido classificados a
partir do regime de governo que adotam e, nesse passo, o modo de exercício do
poder político revela se há preocupação com a preservação da liberdade e a
garantia de direitos fundamentais, bem como se o princípio da isonomia encontra
efetividade.
A legitimidade do exercício do poder político decorre do modo de aquisição
do poder, bem como de seu exercício e controle.
A partir dos princípios estruturantes da teoria democrática, emergem os
elementos da democracia, que são perceptíveis em qualquer governo democrático.
Os povos modernos, ao afirmar a sua soberania, estatuíram, como
primeira manifestação desta, que jamais obedeceriam a leis que não
emanassem da sua vontade, mediata ou imediatamente; e para
garantia efetiva desta cláusula, em todo governo constitucional foi
estabelecido que o poder legislativo seria composto dos
representantes do povo ou da nação; e daí a própria denominação,
comumente dada àquele poder, de Representação Nacional90.
O povo se autogoverna através dos representantes que elege. Os
representantes devem observar um “quadro delimitado de poderes, internamente,
pela separação de poderes, e externamente, pelos direitos fundamentais do homem.
Disso resulta que o poder, mesmo legítimo, fica circunscrito a uma área não
reservada pelos indivíduos”91.
A representação política exige procedimento eleitoral, o que importa dizer
que não há representação política sem eleições.
Pode haver Estado de Direito sem democracia e democracia sem Estado de
Direito. Porém, a democracia representativa reclama Estado de Direito92 porque
implica complexa estrutura organizacional e procedimental através da exigência de
procedimento eleitoral mediante realização de eleições justas e livres, garantia de
89
BONAVIDES, Paulo. Democracia direta, a democracia do terceiro milênio. In: RIBEIRO, Lauro Luiz
Gomes; BERARDI, Luciana Andrea Acorsi. Estudos de Direito Constitucional em Homenagem a
profa. Maria Garcia. 2. ed. São Paulo: IOB, 2008. p. 434.
90
CAVALCANTI, Amaro. Regime federativo e a república brasileira, p. 198.
91
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo, São
Paulo: Saraiva, 2003. p. 30.
92
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. VII, p. 68.
61
direitos políticos como direito ao sufrágio, direito de participação política, direito a
informação, respeito a direitos fundamentais, observância ao princípio da
competência.
É válido citar, mais uma vez, o insigne Jorge Miranda:
Não basta proclamar o princípio democrático e procurar a
coincidência entre a vontade política manifestada pelos órgãos de
soberania e a vontade popular manifestada por eleições. É
necessário estabelecer um quadro institucional em que esta vontade
se forme em liberdade e em que cada pessoa tenha a segurança da
previsibilidade do futuro. É necessário que não sejam incompatíveis
o elemento objetivo e o elemento subjetivo da Constituição e que,
pelo contrário, eles se desenvolvam mutuamente.
Há uma interação de dois princípios substantivos – o da soberania do
povo e o dos direitos fundamentais – e a mediatização dos princípios
adjetivos da constitucionalidade e da legalidade. Numa postura
extrema de irrestrito domínio da maioria, o princípio democrático
poderia acarretar a violação do conteúdo essencial de direitos
fundamentais; assim como, levado aos últimos corolários, o princípio
da liberdade poderia recusar qualquer decisão política sobre a sua
modelação; o equilíbrio obtém-se através do esforço de conjugação,
constantemente renovado e atualizado, de princípios, valores e
interesses, bem como através de uma completa articulação de
órgãos políticos e jurisdicionais, com gradações conhecidas.
Nisso consiste o Estado de Direito Democrático93.
O governo representativo é conquista do Estado Democrático Moderno e
garante ao cidadão uma parcela de participação na decisão política. O sufrágio
universal, que consagra a democracia representativa, permite que o povo se
autogoverne indiretamente, ou seja, “por intermédio de representantes que elege”94,
sem com isso poder decidir sobre os problemas concretos do governo, mas com
capacidade de escolher qual a direção da governança que se pretende estabelecer.
Além disso, a democracia consagra a legitimação do poder político na
soberania
popular;
isso
explica
porque
repugna
ao
pensamento
político
contemporâneo a ilimitação do poder95. Ainda que legítimo, o poder deve ser
limitado e exercido de forma responsável.
É inarredável a assertiva de que o mandato se exerce em nome e benefício
do povo – trata-se de corolário do governo representativo, razão pela qual os atos do
Poder Executivo devem se legitimar na soberania popular e perquirir, como
finalidade, a “boa governança”.
93
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, t. VII, p. 68.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 86.
95
Ibidem, p. 134.
94
62
A representação política reclama a responsabilidade política. Logo, a
democracia representativa impõe a responsabilidade política, ou seja, a sujeição dos
governantes a um juízo de mérito sobre seus atos e atividades e a possibilidade de
sua responsabilização por atos ou atividades que se afastem do interesse público
que a eles foi confiado (responsiveness)96. Para tanto, os governantes devem
prestar contas do mandato ao eleitorado (accountability)97.
O cidadão, enquanto detentor soberano da vontade política, deve encontrar
na Constituição o fundamento para exercício do controle político dos atos do
governante no exercício do mandato, sob pena de sacrifício do ideal democrático,
viga de sustentação da contemporânea concepção de Estado Democrático de
Direito.
Nesse diapasão, vale salientar que a evolução da teoria democrática
consagra a valorização da participação popular, reconhecendo que o exercício da
cidadania não pode se exaurir no momento do depósito do voto, consistindo,
também, na possibilidade de o cidadão intervir na tomada das decisões políticas e
exigir
a
prestação
de
contas
do
representante98
(accountability)
e
sua
responsabilização na hipótese de omissão. Nesse sentido, “não deixa a democracia
de corresponder à exigência de sintonia entre a atuação governamental e a
preferência dos cidadãos”99.
A vivência democrática exige que o cidadão se poste ativamente diante do
Estado e disponha de mecanismos que lhe permitam o exercício efetivo de seus
direitos. Assim, a ação estatal deve possuir espectro amplo para alcançar a todos e
perseguir a redução das desigualdades, o que somente será possível quando
políticas públicas eficientes incluírem tanto os cidadãos que fazem parte de grupos
organizados, segmentos abastados ou grupos de pressão como também aqueles
que ainda não conseguiram reconhecimento no seio social e fazem parte de
96
Responsiveness tem aqui o sentido de responsabilidade pelos atos.
Accountability é o dever de prestação contínua de contas.
98
“Com efeito, desde que os princípios da soberania popular e do sufrágio universal entraram a influir
de modo palpável na organização do poder político da democracia do século XX; desde que as teses
legitimamente democráticas desencadearam com o Estado social reação em cadeia, de mudança e
reforma dos institutos clássicos do Estado Liberal; desde que os partidos políticos se constituíram em
arregimentações não somente lícitas senão essenciais para o exercício do poder democrático, o
mandato, no regime representativo, está cada vez mais sujeito à fiscalização da opinião, ao controle
do eleitorado, à observância atenta de seus interesses, ao escrupuloso atendimento da vontade do
eleitor, à fiel interpretação do sentimento popular, à presença já patente de uma certa
responsabilidade política do mandatário perante o eleitor e o partido”. BONAVIDES, Paulo. Ciência
Política, p. 283.
99
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 15.
97
63
minorias ainda inexpressivas e carentes de ações políticas que possam atender
suas demandas.
O processo democrático se estabelece exclusivamente mediante a
celebração de compromissos de interesses entre cidadão e Estado.
Um dos grandes feitos da democracia é seu poder transformador. A
democracia é o regime político capaz de congregar o ideal republicano e transformar
indivíduos em “cidadãos”, ou seja, em “agentes capazes de empregar seus próprios
recursos cognitivos e morais em formas deliberativas e inteligentes para solucionar
problemas políticos de acordo com uma lógica de aprendizado coletivo, e lutando,
como conseqüência, para servir ao ‘bem comum’”100.
O ideal democrático, portanto, se consolida no exercício da cidadania. É a
consagração de um vínculo entre povo e poder, segundo o qual o cidadão é
reconhecido como detentor não apenas de um status, mas como titular de direitos e
obrigações capaz de participar ativa e politicamente da vida em sociedade.
Assim, a participação política é fator importante para a identificação do grau
de democracia estabelecido em um determinado Estado.
Nesse sentido, é valiosa a preleção de Luiz Carlos Bresser Pereira:
A sociedade civil será tanto mais democrática quanto maior for o
capital social existente na sociedade, quanto maior for o número de
associações representativas da sociedade civil existentes nessa
sociedade, e quanto menos desigual for a distribuição de renda e
riqueza, assim como mais equilibrada for a distribuição de
conhecimento ou de nível educacional entre seus membros101.
O
processo
de
democratização
ocorre
gradualmente
através
da
organização, da estruturação e do fortalecimento da sociedade que, uma vez
alicerçada, passa a se impor ao Estado102, transformando-se em agente reformador
deste.
A sociedade pode obter a reforma do Estado quando é capaz de exigir a
satisfação de demandas relativas ao estabelecimento da ordem social; à execução
de leis eficientes para regulação do mercado com vistas a reduzir a pobreza,
100
OFFE, Claus. A Atual Transição da História e Algumas Opções Básicas Para As Instituições Da
Sociedade. In: BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos; WILHEIN, Jorge; SOLA, Lourdes (Org.). Sociedade
e Estado em Transformação. São Paulo: Editora Unesp; Brasília: ENAP, 1999. p. 122-123.
101
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Sociedade Civil: sua democratização para a reforma do Estado.
In: ______; WILHEIN, Jorge; SOLA, Lourdes (Org.). Sociedade e Estado em transformação. São
Paulo: Editora Unesp; Brasília: ENAP, 1999. p. 100.
102
Ibidem, p. 101.
64
estabilizar a economia e aumentar o bem-estar social; à garantia da liberdade e dos
direitos fundamentais; à garantia de amplo acesso a informação; à garantia do
direito de manifestar suas preferências políticas.
Essa sociedade capaz de preponderar sobre o Estado é reconhecida como
sociedade civil. Tal prerrogativa expressa a “dimensão política da sociedade”103 e
essa condição lhe possibilita tornar-se o agente reformador do Estado.
Porém, é necessário ter em mente que a sociedade jamais vai substituir o
Estado. O modelo estatal pode ser reformulado, mas isso não implica sua superação
pela sociedade civil, cuja noção está atrelada à de Estado.
Para se aquilatar o grau de democratização interna de um Estado é preciso
identificar uma sociedade civil forte o suficiente para resistir às pressões do Estado e
capaz de democraticamente a ele se impor104.
Quando se fala de sociedade civil está-se referindo principalmente ao
indivíduo e não apenas a uma instituição capaz de congregar grupos, empresas,
organizações do terceiro setor, facções, etc.
Na sociedade civil, o elemento de maior relevância é o indivíduo, pois ele
pessoalmente considerado é capaz do exercício da cidadania, sem a qual não se
pode falar em democracia. É o indivíduo que corporifica e reflete o elemento ético e
valorativo informador da sociedade e esta é a arena onde os valores, os interesses e
as ideologias são debatidos e fortalecidos ou abandonados.
Esse indivíduo, capaz de modelar o Estado para alcançar finalidades
republicanas e de atuação política através da participação na tomada das decisões
políticas, incorpora a cidadania e constitui o núcleo da democracia.
Cidadania, portanto, enseja a participação política ativa e direta do indivíduo
na vida em sociedade; portanto, não se esgota apenas no direito de eleger e ser
eleito. Isto implica afirmar que a essência da cidadania invoca a presença do
homem, em sociedade, no desempenho de seu papel fundamental de cidadão
enquanto protagonista da sua história política e da sociedade em que está inserido.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 ampliou a dimensão do conceito
de cidadania ao defini-la como fundamento do Estado Democrático de Direito,
consagrando sua natureza de direito fundamental por força do disposto no § 2º de
103
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Sociedade Civil: sua democratização para a reforma do Estado,
p. 103.
104
Ibidem, p. 105.
65
seu artigo 5º. Além disso, a qualificação de direito fundamental decorre do substrato
material presente na definição de direito fundamental, entendido como aqueles
direitos que refletem os valores essenciais da sociedade e estão presentes em seus
princípios informadores.
É preciso, portanto, redimensionar o direito de cidadania e realçar seu
verdadeiro alcance no contexto social atual, bem como suas implicações nas
relações sociais intersubjetivas e nas relações entre o indivíduo e o Estado para que
os fundamentos estabelecidos pelo Estado Democrático brasileiro possam ser
concretizados.
A cidadania contemporânea invoca a percepção de um novo comportamento
do cidadão em face do governante e deste em relação ao eleitor. O eleitor passa a
agir como titular de direitos e o governante, enquanto titular também de deveres
políticos, deve observar principalmente o dever de prestação de contas a quem o
investiu.
É o estabelecimento de uma nova cidadania, conforme preleção de Fabio
Konder Comparato:
A idéia mestra da nova cidadania consiste em fazer com que o povo
se torne parte principal do processo de seu desenvolvimento e
promoção social: é a idéia de participação.
Ela deve instaurar-se em cinco níveis:
a) na distribuição dos bens, materiais e imateriais, indispensáveis a
uma existência socialmente digna;
b) na proteção dos interesses difusos ou transindividuais;
c) no controle do poder político;
d) na administração da coisa pública;
e) na proteção dos interesses transnacionais105.
Democracia, assim entendida, é um processo de afirmação do povo, uma
vez que concretiza o princípio segundo o qual o poder repousa na soberania
popular. É um processo que reafirma os direitos fundamentais conquistados no
decorrer da História e enseja a conquista de novos direitos.
A democracia é uma jornada sem destino previamente determinado.
De fato, ela não é um conceito político pronto, estático, abstrato e absoluto,
que se instala imediatamente e para sempre perdura. Não traduz um simples valor,
mas sim um instrumento de realização de valores essenciais e fundamentais na
formação do Estado.
105
COMPARATO, Fabio Konder. Direito Público: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1996.
p. 10.
66
É por essa razão que a simples proclamação do princípio democrático não
tem o condão de solucionar os problemas políticos de um povo.
Em verdade, democracia pressupõe dinamismo. Requer uma batalha
incessante pela afirmação da soberania popular e pela concretização dos direitos
fundamentais da pessoa. Suas raízes estão no povo, porém seu desenvolvimento é
perene e se opera através de um processo dialético que evolui ao romper com os
contrários e, em cada etapa de sua evolução, incorpora novos conteúdos e valores,
transformando-se com as novas conquistas no campo dos direitos fundamentais.
Logo, é necessário constante diálogo entre cidadão e governantes para que
a tomada de decisões e as ações dela decorrentes possam expressar a soberania
popular de maneira efetiva.
É, por assim dizer, conceito que se renova no compasso das transformações
sociais.
Nesse sentido, é a precisa lição de José Afonso da Silva:
O regime político, antes de tudo pressupõe a existência de um
conjunto de instituições e princípios fundamentais que informam
determinada concepção política do Estado e da sociedade, mas é
também um conceito ativo, que implica uma atividade e um fim,
supondo dinamismo, sem redução a uma simples atividade de
governo106.
O ideal democrático, portanto, se consolida no exercício da cidadania. É a
consagração de um vínculo entre povo e poder, segundo o qual o cidadão é
reconhecido como detentor não apenas de um status, mas como titular de direitos e
obrigações, capaz de participar ativa e politicamente da vida em sociedade.
Assim, a democracia é um meio a serviço da liberdade e do exercício dos
direitos fundamentais da pessoa humana.
No dizer de Hugues Moutouh, “a democracia é então, de certo modo por
definição, apenas a serviçal da liberdade” e a realização de seus valores se
subsume no “alcance dos fins políticos propostos pela sociedade”107.
Daí resulta a consideração de que o objetivo de toda associação política é a
consagração e a garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana. Os
contornos da sociedade contemporânea refletem outra mutação na noção de
106
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo,p. 124
RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades Públicas. Trad. Maria Ermantina de Almeida
Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 104-105.
107
67
cidadania: o aprimoramento da noção de direitos fundamentais pelo reconhecimento
da existência de direitos que extrapolam a esfera individual e afetam toda a
comunidade, não podendo, portanto, ficar à margem da proteção jurídica.
Pode-se dizer que: “a pessoa exprime a impossibilidade de pensar o homem
fora dos grupos sociais aos quais está integrado, transcendendo-os por sua
finalidade própria, mas indissociável deles”108, ou seja, a nova cidadania importa não
apenas na consideração dos direitos individuais e de cunho individualista, mas
também no reconhecimento dos direitos do grupo ou de grupos, da existência de
pluralidades de agrupamentos e, ainda, da existência de direitos do indivíduo
enquanto membro de um grupo.
É o reconhecimento da importância das formações sociais, nas quais a
pessoa desenvolve sua personalidade e exerce seus direitos. Logo, a sociedade é o
contexto necessário para o desenvolvimento da pessoa.
O atual estágio do progresso social revela que o exercício das liberdades no
seio social implica o avanço do princípio da igualdade.
Governo democrático, por fim, que postula como outra de suas
características, de seus axiomas fundamentais, o princípio que
garante a existência das minorias, as quais, para existirem e para
terem os seus direitos convenientemente amparados, precisam
também, segundo a lição dos constitucionalistas democráticos, da
possibilidade de representação política109.
Na expressão de Bresser Pereira, “a sociedade não é algo que realiza os
nossos desejos, mas um campo de lutas onde nossos interesses, nossos valores
éticos e nossas utopias podem eventualmente se tornar dominantes”110.
Cristina M. M. Queiroz assevera que “todo jurídico aspira ao político e todo
político pressupõe e reclama de alguma forma o jurídico. Ambos confluem num
mesmo e único objecto de observação: o Estado, um sujeito simultaneamente
político e normativo”111. À brilhante preleção da autora acrescenta-se que a
confluência das dimensões política e jurídica tem por objetivo a realização dos fins
do Estado, que deve perseguir a garantia da liberdade dos indivíduos e promover a
preservação do interesse público para a conquista do bem comum.
108
RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades Públicas, p. 106.
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 6. ed. rev. e ampl. Malheiros: São Paulo, 2007. p. 231.
110
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Sociedade Civil: sua democratização para a reforma do Estado,
p. 104.
111
QUEIROZ, C. M. Os actos políticos no Estado de Direito: o problema do controle jurídico do poder,
p. 12.
109
68
O debate travado dentro da sociedade civil pode levar à edificação do
consenso acerca da definição de interesse público ou interesse comum. O interesse
público congrega os valores cívicos nucleares, hábeis a garantir a convivência
humana, a sobrevivência da sociedade, as formas de cooperação coletiva para
satisfação das demandas sociais e os valores éticos preservados pela sociedade.
Esses valores informadores do interesse público são denominados por Luiz
Carlos Bresser Pereira de “direitos republicanos” que revelam umas das facetas
compreendidas pela atual dimensão da cidadania. Segundo o autor,
é esse consenso sobre o interesse público que permite a
emergência, neste último quartel do século XX, de um novo direito de
cidadania, os ‘direitos republicanos’: o direito que cada cidadão tem
de que o patrimônio público seja de fato utilizado de forma pública.
Estes novos direitos, que merecem tanta proteção quanto
mereceram, no passado, e continuam a merecer hoje, os direitos
civis, os direitos políticos e os direitos sociais, apenas se afirmam na
medida em que a sociedade civil em cada país estabelece um
consenso civilizado sobre interesse público, de forma a poder
assumir a sua defesa: a defesa do patrimônio público,
particularmente do fluxo de recursos que o Estado arrecada na forma
de impostos. Enquanto os direitos civis se afirmam contra um Estado
todo poderoso, os direitos políticos dão voz aos cidadãos dentro
desse Estado, e os direitos sociais transformam o Estado em
defensor de determinados direitos coletivos básicos, os direitos
republicanos defendem o Estado ou mais amplamente a coisa
pública contra sua captura por poderosos grupos privados112.
A superação do caráter individualista dos direitos fundamentais obriga o
reconhecimento de que eles somente se legitimam quando prevalece a igualdade.
No contexto isonômico, é possível verificar o surgimento de uma gama de
direitos que extrapolam a esfera individual e transcendem para o coletivo e difuso,
traduzindo-se em direitos transindividuais, oponíveis ao Estado. Há, portanto,
necessidade de conciliar os direitos individuais e os transindividuais, de modo que
seja possível obter um equilíbrio entre os membros do grupo, entre grupos e entre
grupos e o próprio Estado, de modo a preservar a igualdade entre as pessoas e a
existência do Estado.
De fato, as relações que se estabelecem entre o Estado e os indivíduos
podem invocar direitos supraindividuais ou difusos, oponíveis ao Estado, cujo
exercício demandaria ônus exacerbado a ser exercitado pelo cidadão comum. Além
112
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Sociedade Civil: sua democratização para a reforma do Estado,
p. 110.
69
disso, impõe reconhecer que o Estado goza da prerrogativa da supremacia do
interesse público sobre o particular, o que permite afirmar que as relações entre
indivíduo e Estado se estabelecem entre desiguais. Disso decorre a necessidade de
fortalecimento das instituições democráticas para que se possam opor ao Estado,
com êxito, os direitos da pessoa humana em eventual hipótese de lesão.
A democracia pressupõe a existência de instituições políticas e sociais
(mecanismos de exercício de cidadania participativa e instituições hábeis a
influenciar a opinião pública) capazes de influir na tomada das decisões políticas.
O desenvolvimento da democracia guarda proporcionalidade com a efetiva
participação do cidadão na vida política.
A governança deve ser a expressão das vontades heterogêneas de todo o
seio social e não apenas dos segmentos que têm acesso ao poder decisório ou de
oposição. Para tanto, é necessário que o eleitor possa escolher entre as propostas
eleitorais a que melhor atenda aos interesses da comunidade em que está inserido.
Assim, a formulação de políticas e estratégias de governo são mecanismos para o
exercício da boa governança, uma vez que o bom plano de governo é aquele
elaborado por quem conhece as peculiaridades locais113.
A convivência social pautada pelo envolvimento político exercitado em um
ambiente democrático, no qual o cidadão pode expressar livremente suas
preferências, está sujeita ao conflito, à discussão e à rivalidade.
A democracia busca o consenso porque não exclui o dissenso.
O campo político é a arena onde os diversos atores políticos disputam,
negociam e debatem suas divergências, as quais podem ser estabelecidas entre
grupos diferentes e até mesmo entre grupos e o próprio Estado.
A tensão sempre possível entre valores e interesses que se faz presente em
todo tecido político do corpo social é o que permitirá a oposição entre cidadãos,
entre grupos e entre estes e o Estado.
O progresso da democracia é auferível a partir da análise da evolução dos
mecanismos postos à disposição do cidadão para externar suas preferências
políticas e influenciar a tomada de decisões políticas. A eficiência desses
113
“Tal é a força que tem proclamar abertamente a realidade das coisas. É a arma política mais
poderosa que existe. (...) Toda ação política importante consiste nisto: proclamar a realidade das
coisas – e começa sempre assim. Do mesmo modo que a política mesquinha e ruim consiste em
silenciar e disfarçar temerosamente a crua realidade”. LASSALE, Ferdinand. O que é uma
Constituição?, p. 107.
70
instrumentos de participação e de negociação evidencia o grau de desenvolvimento
político e social.
Em um primeiro momento, pode parecer paradoxal afirmar que o indivíduo,
ao opor direitos ao Estado, precisa assegurar-se que tem garantias mais amplas que
aquelas dirigidas exclusivamente ao corpo social.
O paradoxo se resolve quando se atenta para a condição do particular frente
ao Estado. Constata-se que tal relação se estabelece entre desiguais e, por isso,
gera tensões, que, na grande maioria das vezes, revelam interesses que extrapolam
a esfera individual e envolvem lesão a bens jurídicos difusos. São os denominados
interesses difusos ou transindividuais.
É inegável que a cidadania é exemplo de direito fundamental indisponível e
difuso, cuja proteção exige instrumentos hábeis e suficientes para garantir-lhe
eficácia, notadamente em razão de sua natureza e conflituosidade.
Acerca da intensa conflituosidade que reveste os interesses difusos, urge
registrar a valiosa preleção de Gianpaolo Poggio Smanio:
A intensa conflituosidade marca definitivamente os interesses
difusos, em que as controvérsias estão disseminadas
desagregadamente no seio social, sem vínculo jurídico definido,
contrapondo interesses de massa, ou de grupos sociais, que se
encontram em ambos os pólos da desavença.
Os litígios, então, passam a ter característica de escolhas políticas
dentro das posições sociais em que estão os envolvidos, como, por
exemplo, a construção de um parque aquático em área reservada de
mananciais, a instalação de indústria madeireira, de um aeroporto,
de uma estrada, colocam em conflito interesses antagônicos e por
vezes legítimos se tomados individualmente, ou seja, a criação de
empregos, a geração de impostos e o desenvolvimento econômico,
mas que podem conflitar com a manutenção de reservas florestais,
do meio ambiente sadio, ou da qualidade de vida das pessoas que
moram no local ou nas proximidades114.
Assim, tomando por base essa premissa, é necessário sopesar quais
garantias devem ser conferidas ao cidadão para que este possa exigir o
cumprimento de obrigações estatais ou demandar contra o Estado em razão da
ofensa a um interesse difuso concernente ao exercício da cidadania ou de lesão
decorrente da tomada de decisão política violadora da Constituição ou de direitos
fundamentais, ou, ainda, de omissão do Governo em relação a compromissos
politicamente assumidos.
114
SMANIO, Gianpaolo Poggio. Tutela penal dos interesses difusos. São Paulo: Atlas, 2000. p. 29.
71
Por se tratar de uma relação díspar, o indivíduo necessita usufruir de
garantias que restabeleçam a igualdade; deve-se reconhecer ao cidadão a
possibilidade de vislumbrar a direção que o governante pretende tomar para a
gestão da coisa pública e implementação das ações governamentais.
Não é só. O ideal democrático enseja, ainda, o alargamento do leque de
atenções do Estado para que o conceito de dignidade da pessoa humana extrapole
o texto legal e se transforme em realidade para aqueles que vivem às margens da
proteção estatal.
As democracias contemporâneas fundamentam-se no princípio da confiança
entre governantes e governados (mutual trust). A exigência de transparência da
agenda alça a patamar de garantia do regime democrático porque tem por finalidade
a boa gestão da coisa pública, revelando o respeito à cidadania e à confiança
depositada pelo povo nos governantes.
Nesse sentido, os objetivos a ser perseguidos pelos governos democráticos
são exatamente aqueles delineados no comando constitucional: garantia do
desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e marginalização, redução das
desigualdades sociais e regionais, promoção do bem estar social e construção da
sociedade assentada em princípios democráticos e de justiça social.
O fundamento de qualquer política pública reside “na necessidade de
concretização de direitos por meio de prestações positivas do Estado, sendo o
desenvolvimento nacional a principal política pública, conformando e harmonizando
todas as demais”115.
Conclui Paulo Bonavides:
Governo democrático, por fim, que postula como outra de suas
características, de seus axiomas fundamentais, o princípio que
garante a existência das minorias, as quais, para existirem e para
terem os seus direitos convenientemente amparados, precisam
também, segundo a lição dos constitucionalistas democráticos, da
possibilidade de representação política116.
115
BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo:
Editora Saraiva, 2006. p. 144.
116
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado, p. 231.
72
2.5.3 Governo Democrático: Exigência de Governo Responsável
Toda forma de governo está alicerçada em valores que lhe conferem
legitimidade e sentido. São esses valores que sustentam a confiança dos
governados e os motiva a se sujeitarem aos projetos do governo e a concordarem
com a direção dada ao Estado.
É o que afirma a precisa lição de Jorge Miranda:
Assim, por detrás da diversidade de concepções e formulações
teóricas, avultam valores políticos sem os quais a democracia
aparece desprovida de razão de ser. E eles são (importa frisar de
novo) a liberdade e a igualdade, tal como constam da Declaração de
Direitos da Virgínia, da Declaração de 1789 e da maior parte das
Constituições de Estado de Direito Democrático.
É porque todos os seres humanos são livres e iguais que devem ser
titulares de direitos políticos e, assim, interferir conjuntamente, uns
com os outros, na definição dos rumos do Estado e da sociedade em
que tem de viver. É porque todos são dotados de razão e de
consciência (como proclama, por seu lado, a Declaração Universal)
que eles são igualmente chamados à participação cívica, capazes de
resolver os seus problemas não pela força, mas pelo confronto de
idéias e pelo seu sufrágio pessoal e livre117.
A liberdade, a igualdade e a dignidade da pessoa humana são valores
essenciais à democracia porque consagram princípios jurídicos constitucionais sobre
os quais a própria concepção de democracia se estrutura.
O governo, orientado pelo ideal democrático, fundamenta sua legitimidade
na soberania popular e invoca o princípio da responsabilidade, que é sua viga
mestra.
Como já mencionado em outras passagens, o governo pode ser
compreendido como o conjunto dos cargos destinados às funções executivas do
Estado. Tais cargos são temporariamente ocupados por agentes públicos cuja
investidura se dá após a vitória no pleito e, portanto, por vontade dos governados,
visto que a legitimação para o exercício do poder político decorre da soberania
popular.
A democracia pode ser apontada como regime político que persegue o
estabelecimento do governo responsável porque se funda na ideia de limitação do
poder político pela atribuição da titularidade do poder aos cidadãos.
117
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. VII, p. 96-97.
73
O poder político é conferido ao cidadão para que o Estado não se imponha
aos indivíduos, nem tampouco possa atentar contra direitos fundamentais da pessoa
humana e extrapolar os limites de delegação outorgados pelo povo.
Nesse sentido, evidencia-se a preleção de Dalmo de Abreu Dallari:
Do mesmo modo, é insuficiente dar ao povo o direito de eleger seus
governantes para um mandato com tempo determinado se após a
eleição o povo não tiver meios para exercer constante influência
sobre o governo e para controlar efetivamente as ações
governamentais, impedindo ou anulando os atos inconstitucionais.
No controle da constitucionalidade é preciso considerar que – mais
do que a obediência a formalidades – o moderno constitucionalismo
impõe como normas jurídicas eficazes as disposições que afirmam
princípios éticos, políticos e jurídicos. Não haverá Estado de Direito –
e, portanto, não existirá democracia – se os governantes agirem
contrariamente aos princípios constitucionais, ainda que seus atos
obedeçam às formalidades previstas em lei118.
Enquanto fórmula de limitação do poder e de garantia de liberdade, a
democracia reclama a estruturação do Estado sob a égide da doutrina da separação
de poderes, impedindo a concentração de poderes e a possibilidade de arbítrio.
A organização constitucional do Estado em consonância com o princípio da
separação de poderes permitirá a consagração da responsabilidade do detentor do
poder político pelos atos praticados no exercício de suas funções e, ainda, o
estabelecimento de um sistema eleitoral edificado sobre o plano da legalidade e da
probidade, em que seja observado respeito absoluto à soberania da vontade
popular.
Assim, a ideia de controle do poder político é inseparável do cenário
democrático.
É forçoso concluir, como Nina Beatriz Stocco Ranieri, que:
o princípio democrático é princípio informador da ordem jurídica,
anterior ao da supremacia do direito (porque revela a opção política
que o ordenamento jurídico expressará em termos de controle e
exercício do poder) mas a aquele submetido, à vista de vedar as
rupturas e alterações constitucionais que ameacem a opção política,
bem como a dissolução dos direitos fundamentais.
Por isso, os conceitos de Estado de Direito e Democracia são
correlatos e complementares, este designando o “momento dinâmico
e conformador da vida da comunidade”, e aquele o de “permanência
e da defesa”; do que se evidencia serem ambos instrumentos contra
118
DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado de Direito e Direitos Fundamentais. In: FIGUEIREDO, Marcelo;
PONTES FILHO, Valmir (Org.). Estudos de Direito Público em Homenagem a Celso Antonio Bandeira
de Mello. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 229-230.
74
o abuso de poder, de conteúdo político e forma necessariamente
jurídica.
As relações entre controle e poder no regime democrático, portanto,
se perfazem na dimensão legal racional: não há poder sem controle,
não há controle sem previsão. Logo, se por um lado é necessário
que ao Executivo sejam garantidos poderes suficientes à dominação
dos conflitos sociais, de outro se impõe a ênfase nos controles
jurídicos como meio de realização da exigência democrática119.
A questão que surge ao se tratar da limitação do poder político sob a égide
da democracia diz respeito à possibilidade de limitação da ação do Estado ou do
governante quando da prática de função política, ou seja, na adoção ou
concretização dos denominados atos de governo.
A usual distinção das funções do Estado entre funções jurídicas e funções
políticas permite que se indague se, no exercício de funções políticas que não
possam ser traduzidas em processos jurídicos e nas quais o “Estado é
essencialmente poder”120, será possível a limitação desse poder político e quais
seriam seus critérios.
Os autores que abordam a questão divergem quanto aos limites da
responsabilização política dos governantes no território democrático.
Segundo Marcello Caetano, quando o Estado exerce funções precipuamente
políticas, nas quais age como expressão de poder na consecução dos fins do
Estado, na busca da consagração do interesse público e do interesse geral, não
será possível limitá-lo, pois os mecanismos existentes que consagram garantias
políticas – como a separação de poderes, a publicidade dos atos de governo para
orientação da opinião pública, a participação dos governados na escolha dos
representantes – serão falíveis para estabelecer um controle efetivo do poder e
impedir a adoção de opções políticas que possam destoar da delegação popular121.
A Ciência Política avançou e alcançou um patamar de evolução que não
aceita a concepção de um terreno político totalmente divorciado do jurídico.
Hoje, a noção que se tem é a que compreende que o político guarda sempre
um caráter normativo.
Conforme magistério de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o “governante não
é senhor do poder que exerce, mas apenas um delegado ou representante do povo,
119
RANIERI, Nina Beatriz Stocco. Governabilidade e Estado Democrático de Direito – o uso e o
controle das medidas provisórias. In: GARCIA, Maria (Coord.). Democracia, hoje: um modelo político
para o Brasil. São Paulo: Celso Bastos, 1997. p. 117-118.
120
CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, t. I, p. 335.
121
Ibidem, t. I, p. 335.
75
ou da comunidade, à qual tem contas a prestar”122. Isto porque está consagrado no
cerne da estrutura do Estado Constitucional Democrático que as autoridades
públicas desempenham funções não em direito e favor próprio, mas como agentes a
serviço do povo, visto que seus cargos derivam da confiança depositada pelo povo
através do voto, mediante um sistema eleitoral dotado de eficiência, lisura e
transparência.
Não é só. Do exercício desse mandato os representantes devem prestar
contas e ser responsabilizados por eventuais práticas danosas perpetradas contra a
confiança do povo.
Dessa forma, pode-se dizer que a ideia de responsabilidade é inseparável
do cenário democrático.
De acordo com Robert Dahl, a característica-chave da democracia é a
responsividade do governo:
Parto do pressuposto de que uma característica-chave da
democracia é a contínua responsividade do governo às preferências
de seus cidadãos, considerados como politicamente iguais.
Gostaria de reservar o termo “democracia” para um sistema político
que tenha, como uma de suas características, a qualidade de ser
inteiramente, ou quase inteiramente, responsivo a todos os seus
cidadãos123.
Logo, a responsabilidade e responsabilização do chefe do Poder Executivo
são corolários da democracia, sem o que esta estaria esvaziada.
O governo democrático se caracteriza por sua origem democrática e pela
temporariedade de sua existência. Apenas se concebe como democrático o governo
originário de um procedimento de escolha dos governados, ou seja, através de
eleições justas e livres, capazes de refletir a opção política de um povo.
No entanto, a prática democrática tem demonstrado que a realização de
eleições idôneas por si só não confere legitimidade democrática ao governo, na
medida em que, durante o exercício deste, as preferências políticas e as demandas
que foram objeto da escolha eleitoral podem ser relegadas e, com isso, o governo –
insulado, refratário aos anseios dos cidadãos – não revelará contornos
democráticos.
122
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 163.
DAHL, Robert A. Poliarquia: Participação e Oposição. Trad. Celso Mauro Pacionik. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2005. p. 25.
123
76
No regime democrático, o exercício do poder deve submeter o governo à
soberania popular, o que importa reconhecer a responsabilidade do governo.
O princípio democrático enseja a responsabilidade pelo exercício do poder
político.
Nesse sentido, pode-se citar o magistério de Paulo Brossard:
Assim, embora possa haver eleição sem que haja democracia,
parece certo que não há democracia sem eleição. Mas, a só eleição,
ainda que isenta, periódica, lisamente apurada, não esgota a
realidade democrática, pois, além da mediata ou imediatamente
resultante de sufrágio popular, as autoridades designadas para
exercitar o governo devem responder pelo uso que dele fizerem.
Governo irresponsável, embora originário de eleição popular, pode
ser tudo, menos governo democrático124.
A democracia invoca a responsabilidade do detentor do poder político,
considerando que a legitimação do exercício desse poder se assenta na soberania
popular, ou seja, na confiança depositada pelo povo em seus governantes.
Logo, aquele que detém um poder com fulcro na confiança depositada por
um povo, que lhe concedeu um mandato popular para agir em seu nome e em seu
favor, deve curvar-se ao princípio da confiança.
Aqui, vale mencionar que o princípio da confiança lança suas raízes no ideal
democrático e se apresenta como princípio estruturante de toda formação estatal
democrática.
Sobre a importância da confiança enquanto cimento do vínculo estabelecido
entre cidadão e representante político, ressalta Robert Dahl:
Um certo nível de confiança mútua é necessário para as pessoas se
reunirem livremente para promover seus objetivos. (...) as
organizações baseadas em influência recíproca são difíceis de
constituir e manter numa atmosfera de desconfiança.
Em nível de governo, a confiança é importante entre companheiros e
adversários partidários porque garante a todos que o grupo particular
que está no comando não tirará vantagem da falta de restrições
constitucionais aos poderes do governo. Fazer isto não seria uma
violação da lei e sim da confiança, e os líderes políticos valorizam
sua reputação e confiabilidade.
A confiança, como essas observações deixam claro, certamente está
relacionada com a capacidade de um povo de engajar-se livre e
facilmente em ações cooperativas125.
124
PINTO, Paulo Brossard de Souza. O Impeachment: aspectos da responsabilidade política do
Presidente da República. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 3.
125
DAHL, Robert A. Poliarquia: Participação e Oposição, p. 148-149.
77
Destarte, é a possibilidade de responsabilização do chefe do Executivo e a
delimitação de seus poderes que impede a concentração de poderes nas mãos da
minoria detentora do poder político. Isso garante a prevalência da democracia,
também concretizada pela presença de instituições políticas fortes, entre as quais
está o Poder Legislativo, ao qual se incumbe a representação popular por
excelência.
Com efeito, a democracia requer, para sua consolidação, o respeito aos
direitos fundamentais do indivíduo, a garantia da liberdade, a presença de
mecanismos de representação política, bem como de controle do poder político.
A partir de todos os elementos indicados, é possível concluir que a
democracia demanda a separação de poderes e o respeito ao pluralismo, o que
invoca a alternância no poder, pois o exercício do poder pela maioria reclama a
possibilidade da oposição. Portanto, através do mandato temporário e da alternância
no poder, será possível que a voz da maioria não seja massacrada pela minoria
estabelecida no poder.
O poder é expressão da vontade soberana de indivíduos que são
reconhecidos como iguais. A igualdade garante a todos oportunidades plenas de
figurar no cenário político.
E como consequência, emerge a responsividade daquele que exerce o
poder político fundamentado na confiança de um igual.
Mais uma vez, é oportuno consignar a contribuição de Robert Dahl:
Parto do pressuposto também de que, para um governo continuar
sendo responsivo durante certo tempo às preferências de seus
cidadãos, considerados politicamente iguais, todos os cidadãos
plenos devem ter oportunidades plenas:
1. De formular suas preferências.
2. De expressar suas preferências a seus concidadãos e ao governo
através da ação individual e coletiva.
3. De ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do
governo, ou seja, consideradas sem discriminação decorrente do
conteúdo ou da fonte da preferência126.
A alternância do poder é resultado da livre e espontânea expressão e da
formalização das preferências políticas de um povo, as quais, por sua vez, são o
resultado das aspirações políticas dessa sociedade e devem ser objeto das decisões
políticas tomadas em favor da coletividade.
126
DAHL, Robert A. Poliarquia: Participação e Oposição, p. 26.
78
“A liberdade é princípio estruturante de organização do regime democrático
e de suas instituições. É valor primordial e que possibilitará o livre desenvolvimento
do povo”127.
Como consectários do princípio da liberdade, podem-se citar o respeito pela
oposição e o respeito pelo indivíduo.
Em uma sociedade plural, a oposição é fator fundamental para a garantia do
gozo, por parte dos governados, das liberdades públicas (liberdade de opinião,
liberdade de imprensa, liberdade de reunião, liberdade de associação, etc.).
Ademais, a existência de oposição ajuda a promover o equilíbrio da democracia,
uma vez que possibilita a alternância no poder, garantindo a alternância de
orientações, opiniões, valores e ideais buscados pela sociedade, além de favorecer
a ascensão ou a inclusão das minorias na tomada das decisões políticas.
Nessa orientação, valioso é o magistério de Monica Herman Salem
Caggiano, quando assevera que
é evidente que a receita democrática envolve como fator primordial a
liberdade individual, quer no plano da ação governamental, quer no
concernente às inter-relações que se processam entre governantes e
governados. Implica, assim, a livre exteriorização das opiniões no
que toca à condução dos negócios públicos e, como consequência
natural, introduz o jogo da alternância no poder, a já assinalada
garantia do ticket au retour, porquanto as democracias, também na
observação de Raymond Aron, ‘são regimes que prevêem uma
organização constitucional de concorrência pacífica, visando o
exercício do poder’. E, nesse jogo, a maioria deve apresentar um
comportamento magnânimo. (...) Peculiares, portanto, ao clima
democrático, outros fatores inafastáveis do processo de parceria
compreensiva que ali se desenvolve entre o bloco governamental e a
oposição. Nessa esteira, avultam a tolerância, no exercício do poder,
a concorrência com vistas a sua aquisição e a alternância, como
valores intocáveis para a preservação do regime, o qual se mostra
hostil a sectarismos, ao dogmatismo ou ostracismo. “O respeito ao
adversário – grifam Hauriou, Gicquel e Gélard – configura o melhor
critério para acoplar a um sistema político a conotação de
democrático’128.
127
CAGGIANO, Monica Herman Salem. Aula proferida em curso de pós-graduação stricto sensu, no
Instituto Presbiteriano Mackenzie, em 07 out. 2008.
128
Idem. Oposição na Política: propostas para uma rearquitetura da democracia. São Paulo:
Angelotti, 1995. p. 39.
79
2.5.4 Governo Democrático: a Legitimidade das Decisões Políticas
A tônica do moderno pensamento democrático é a soberania popular, ou
seja, a legitimação do poder estatal a partir da vontade do povo.
A contribuição de Rousseau, em seu Contrato Social, foi a originalidade com
que concebeu a formação da sociedade civil, a qual ele considera arraigada na
vontade geral do povo.
Segundo o pensamento liberal, na concepção de Estado estaria sempre
presente o antagonismo entre o indivíduo e o próprio Estado. Rousseau tenta
superar esse conflito ao teorizar que a soberania do Estado se assenta na vontade
geral do povo.
Rousseau se debruçou sobre a natureza e os atributos da soberania e
sublinhou que ela é o “princípio” do Direito Político; pelo fato de a sociedade se
originar do contrato social que, enquanto “ato de associação”, reúne a “multidão” e a
transforma em “povo”, a soberania é, em toda República, “a soberania do povo”.
Logo, se “a autoridade soberana é o princípio da vida política”, a soberania nasce da
vontade popular. Assim, Rousseau elaborou a distinção entre a soberania que
institui a lei e o governo que a executa. Segundo ele, o povo expressa sua soberania
através da vontade geral, que origina a lei; os atos de execução, porém, competem
ao Governo.
A soberania popular preconizada por Rousseau é o resultado da soma de
todas as vontades individuais e não se opõe à liberdade individual de cada cidadão
isoladamente considerado. Rousseau afirma que o contrato social institui um
compromisso recíproco entre o povo e os governantes, sendo que, cada indivíduo,
ao contratar consigo mesmo, está se comprometendo em uma dupla relação: com o
Estado e com os demais.
Rousseau eleva a condição do indivíduo enquanto cidadão a um patamar
nuclear e que lhe garante a irradiação do poder político. O poder político somente se
legitima através da soberania popular.
80
No dizer de Merquior, “a eloqüência de seu Contrato Social redirecionou o
conceito de liberdade da esfera civil para a esfera cívica”129.
Entrementes, foi o próprio Rousseau que, discorrendo sobre a democracia,
concluiu que:
tomando-se o termo no rigor da acepção, jamais existiu, jamais
existirá uma democracia verdadeira. É contra a ordem natural
governar o grande número e ser o menor número governado. Não se
pode imaginar que permaneça o povo continuamente em assembléia
para ocupar-se dos negócios públicos e compreende-se facilmente
que não se poderia para isso estabelecer comissões sem mudar a
forma de administração130.
Rousseau vislumbrou a impossibilidade de estabelecimento da democracia
direta em Estados populosos ao asseverar que: “se existisse um povo de deuses,
governar-se-ia
democraticamente.
Governo
tão
perfeito
não
convém
aos
homens”131.
E assim emerge a representação política como instrumento capaz de
satisfazer o ideal democrático.
A partir da ideia de soberania popular vai se delineando o ideal democrático
e a concepção do direito dos governados de escolherem os seus governantes.
O governo democrático exerce o poder político legitimado na soberania
popular. Logo, a legitimidade política é obtida a partir de deliberações da maioria ou
mediante a execução de leis originadas pela vontade popular.
Em um primeiro momento, a ideia de que o governo legítimo se fundamenta
na soberania popular invoca como critério legitimador a expressão numérica, já que
a decisão da maioria numérica consagraria a expressão de legitimidade do governo.
Assim, a democracia estaria legitimada exclusivamente a partir de critério
numérico.
Essa conclusão tem um componente que não pode ser negado, que é o
reconhecimento do princípio da maioria como regra para as deliberações populares;
por outro lado, peca por desconsiderar a outra dimensão da democracia – a que a
reconhece como instrumento para o exercício da cidadania.
129
MERQUIOR, José G. Liberalismo – antigo e moderno. Trad. H. de A. Mesquita, Rio de Janeiro:
Nova fronteira, 1991. p. 28 apud CADERMATORI, Daniela Mesquita Leutchuk de. O diálogo
democrático. 2. reimp. Curitiba: Juruá, 2007. p. 61.
130
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político. Trad. L. S.
Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 84.
131
Ibidem, p. 85-6.
81
Assim, a democracia, alicerçada na soberania popular, se revela através de
deliberações populares que são fruto do exercício da cidadania e se originam do
exercício do direito de expressar livremente opiniões e preferências políticas, da
possibilidade de organização de amplos debates capazes de trazer para a arena
política as aspirações quanto a um bom governo, da busca do consenso entre
grupos, facções políticas e lideranças, das manifestações reveladoras dos ideais,
dos valores sociais cultuados e dos anseios populares.
Dessa forma, a democracia não se circunscreve a deliberações e tampouco
se exaure nos procedimentos eleitorais; pelo contrário, a tônica democrática se
revela na vivência da democracia enquanto instrumento de exercício pleno da
cidadania.
E somente a vivência democrática irá legitimar a deliberação democrática,
na medida em que as decisões políticas coincidam com as demandas do povo
porque refletidas na participação popular. Essa participação poderá ocorrer através
do processo eleitoral, em que a escolha dos candidatos esteja fundamentada nos
projetos políticos por eles apresentados e sirvam de mote para futuras decisões
políticas; como também poderá ocorrer de forma direta, através de mecanismos de
participação popular e de accountability democrático, como audiências públicas,
orçamentos participativos, debates públicos, debates eleitorais, iniciativa popular,
direito de petição.
O exercício da cidadania através da participação popular democrática em
diversos níveis e modalidades permite concluir que as deliberações tomadas após
amplo debate público ou alicerçadas em projetos políticos referendados pelo eleitor
no processo eleitoral não são pautadas exclusivamente pelo critério numérico, mas
também pela expressão numérica adquirida pelo anseio popular conscientemente
manifestado.
Os valores democráticos refletidos e debatidos na arena popular estão
originariamente projetados na Constituição Federal.
A deliberação democrática fundada na expectativa de serem efetivados os
valores estampados no texto constitucional através das ações do chefe do Poder
Executivo e dos parlamentares, denota o grau de aprimoramento da vivência
democrática.
Para Ferrajoli, a única garantia material efetiva é o que ele designa por
“garantia social” – sentimento que cada pessoa possui de seus próprios direitos, de
82
sua identidade, de sua dignidade enquanto pessoa e cidadão e que o habilita e
estimula cada um a lutar pela defesa e pela concretização de seus direitos
fundamentais individuais ou supraindividuais, próprios ou alheios, positivados ou
almejados132. Segundo o autor, apenas a garantia social garante efetividade ao
sistema constitucional e à ordem jurídica.
Por isso se diz que a Constituição enquanto norma fundamental estabelece
a ordem jurídica do Estado e, portanto, organiza, ordena e conforma todo o corpo
político, prescrevendo a diretiva jurídica conformadora do Estado e encarnando a
totalidade normativo real (living constitution), que lhe confere uma força superior e
irresistível133.
Ao se apresentar como documento capaz de traduzir a cultura jurídica e
política de um povo, a Constituição expressa uma função de integração que consiste
na previsão de recursos e processos formais e materiais de integração dos
detentores e destinatários do poder político em uma unidade fática e normativa que
expressa uma vontade política superior.O governo democrático exerce o poder
político legitimado na soberania popular. Logo, a legitimidade política é obtida a
partir de deliberações da maioria.
Em um primeiro momento, a ideia de que o governo legítimo se fundamenta
na soberania popular invoca como critério legitimador a expressão numérica, já que
a decisão da maioria numérica consagraria a expressão de legitimidade do governo.
Assim, a democracia estaria legitimada exclusivamente a partir de critério
numérico.
Essa conclusão tem um componente que não pode ser negado, que é o
reconhecimento do princípio da maioria como regra para as deliberações populares;
por outro lado, peca por desconsiderar a outra dimensão da democracia, qual seja, a
de instrumento para o exercício da cidadania.
Assim, a democracia, alicerçada na soberania popular, se revela através de
deliberações populares que são frutos do exercício da cidadania e se originam do
exercício do direito de expressar livremente opiniões e preferências políticas, da
possibilidade de organização de amplos debates capazes de trazer para a arena
política as aspirações quanto ao bom governo, da busca do consenso entre grupos,
132
FERRAJOLI, L. O Direito como Sistema de Garantias. In: OLIVEIRA JÚNIOR; José Alcebíades de.
O Novo Direito e Política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 942-944.
133
QUEIROZ, C. M. Os actos políticos no Estado de Direito: o problema do controle jurídico do poder,
p. 47.
83
facções políticas e lideranças, das manifestações reveladoras dos ideais, dos
valores sociais cultuados e dos anseios populares.
A democracia não se circunscreve, portanto, a deliberações e tampouco se
exaure nos procedimentos eleitorais; pelo contrário, a tônica democrática se revela
na vivência da democracia enquanto instrumento de exercício pleno da cidadania.
E somente a vivência democrática irá legitimar a deliberação democrática,
na medida em que as decisões políticas contarem com a participação popular. Essa
participação poderá ocorrer através do processo eleitoral a partir da escolha de
candidatos, fundamentada nos projetos políticos por eles apresentados como mote
para decisões políticas; como também poderá ocorrer de forma direta, através de
mecanismos de participação popular e de accountability democrático, como
audiências públicas, orçamentos participativos, debates públicos, debates eleitorais,
iniciativa popular, direito de petição.
O exercício da cidadania através da participação popular democrática em
diversos níveis e modalidades permite concluir que as deliberações tomadas após
amplo debate público ou alicerçadas em projetos políticos referendados pelo eleitor
no processo eleitoral não são pautadas exclusivamente pelo critério numérico, mas
também pela expressão numérica adquirida pelo anseio popular conscientemente
manifestado.
Os valores democráticos refletidos e debatidos na arena popular estão
originariamente projetados na Constituição Federal.
A deliberação democrática fundada na expectativa de serem efetivados os
valores estampados no texto constitucional através das ações do chefe do Poder
Executivo e dos parlamentares denota o grau de aprimoramento da vivência
democrática.
Para Ferrajoli, a única garantia material efetiva é o que ele designa por
“garantia social” – sentimento que cada pessoa possui de seus próprios direitos, de
sua identidade, de sua dignidade enquanto pessoa e cidadão e que habilita e
estimula cada um a lutar pela defesa e pela concretização de seus direitos
fundamentais individuais, ou supraindividuais, próprios ou alheios, positivados ou
almejados134. Segundo o autor, apenas a garantia social garante efetividade ao
sistema constitucional e à ordem jurídica.
134
FERRAJOLI, L. O Direito Como Sistema de Garantias, p. 942-944.
84
Por isso se diz que a Constituição, enquanto norma fundamental, estabelece
a ordem jurídica do Estado e, portanto, organiza, ordena e conforma todo o corpo
político, prescrevendo a diretiva jurídica conformadora do Estado e encarnando a
totalidade normativa real (living constitution), que lhe confere uma força superior e
irresistível135.
Ao se apresentar como documento capaz de traduzir a cultura jurídica e
política de um povo, a Constituição expressa uma função de integração que consiste
na previsão de recursos e processos formais e materiais de integração dos
detentores e destinatários do poder político em uma unidade fática e normativa que
expressa uma vontade política superior.
2.6 GOVERNANTE
Na democracia, o titular do exercício do Poder Político é o governante, que
detém o comando do aparelho institucional do Estado. Por se tratar de regime
político que consagra a igualdade entre todos os que vivem sob sua égide, não se
pode fazer distinção entre o cidadão e o governante enquanto indivíduos.
O governante é um cidadão igualmente sujeito ao comando das leis e que se
distingue dos governados por estar incumbido de funções voltadas ao alcance dos
fins do Estado, determinadas e elencadas em regras jurídicas.
Segundo Georges Burdeau,
é na pessoa dos governantes que se opera a mutação do político em
jurídico, já que é por eles que a vontade política do soberano se
transforma em expressão jurídica do poder de Estado. Assim, por
intermédio dos governantes, o Poder instituído no Estado não é um
poder fossilizado; enriquece-se constantemente das exigências das
forças políticas soberanas, de forma que, para identificar o lugar dos
governantes na estrutura do Poder estatal, pode-se dizer que eles
mantêm a ligação entre o Poder abstrato da instituição e a força
política concreta do soberano136.
135
QUEIROZ, C. M. Os actos políticos no Estado de Direito: o problema do controle jurídico do poder.
Coimbra: Almedina, 1990. p. 47.
136
BURDEAU, Georges. O Estado, p. 52.
85
A distinção entre governante e governados é adotada em todas as formas de
governo e não contraria o regime democrático porque visa exclusivamente revelar a
existência de uma relação necessária entre Estado e indivíduo, segundo a qual o
governante, enquanto investido no poder, não age pessoalmente, mas imbuído dos
poderes do Estado.
Por essa razão, costuma-se dizer que o governante tem uma condição jurídica
dupla. Enquanto governante, age de acordo com comandos e prerrogativas
estatuídos pela Constituição. Enquanto cidadão, está sujeito, como qualquer outro, à
Constituição e ao Direito comum.
Ensina Jorge Miranda que os governantes fazem parte do povo e devem estar
integrados na sociedade, assim como os governados, mas destes se distinguem
quando encarnam funções que revelam o Poder do Estado.
Os governantes fazem tanto parte do povo como os governados.
Têm de ser cidadãos do país, tem de vir do povo – seja qual for a
sua condição social e sejam quais forem as formas de designação.
Se se pode dizer que encarnam o Estado Poder, já não pode
pretender-se que só os governados formem o Estado comunidade.
Cidadãos como eles, recrutados entre eles, os governantes não
podem deixar de viver e conviver com os governados e de se integrar
também no Estado comunidade137.
2.7 SISTEMAS DE GOVERNO
A expressão “sistema de governo” (ou “regime de governo”) compreende o
modo como o poder é partilhado no Estado e como se estrutura a divisão de
poderes no texto da Constitucional, considerando-se eventual supremacia conferida
a um dos poderes constituídos do Estado.
Nesse sentido, conforme distinção apresentada por Georges Burdeau138 os
sistemas se dividem em: 1. sistemas em que há proeminência de um órgão; 2.
sistemas que consagram a harmonia entre os poderes ou funções.
Nos sistemas em que há preeminência de um órgão, a Constituição confere
supremacia a um órgão, o qual deve exercer as funções de governo. Essa
137
138
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. III, p. 60.
BURDEAU, Georges; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Direito Constitucional, p. 97.
86
preeminência pode se operar em relação a um órgão unipessoal ou em relação a
uma assembleia.
Na maioria das vezes, o regime de proeminência de um órgão se opera por
intermédio de uma assembleia ou um colegiado eleito. Não se trata de confusão de
poderes, mas de supremacia de um poder.
A confusão de poderes se estabelece no despotismo, que não se identifica
com o denominado governo convencional ou de regime de assembleia.
A expressão “confusão de poderes” associa essa modalidade de sistema à
teoria da separação de poderes de Montesquieu, o que é um equívoco. A confusão
de poderes ocorre em qualquer governo em que não há divisão de funções, mas sim
concentração de poderes nas mãos de uma pessoa. Logo, a terminologia “confusão
de poderes” não se coaduna com a concepção de Montesquieu, pois no governo
convencional há separação de funções, mas há proeminência da assembleia ou de
um órgão unipessoal (rei, presidente) sobre os demais órgãos.
A outra modalidade de sistema de governo é aquela formatada pelos
constitucionalistas franceses, segundo os quais a Constituição Política estabelece
harmonia ou separação rígida entre as funções do Estado. É o que ocorre nos
sistemas parlamentarista e presidencial.
2.7.1 Sistema Presidencial
A fonte do sistema presidencial de governo reside no artigo 2º da
Constituição dos Estados Unidos da América, de 17 de setembro de 1787. O
dispositivo retrata um sistema de estrutura simples, composto de um órgão
unipessoal. O texto constitucional americano, ao dispor sobre a estruturação do
Poder Executivo, é bastante sintético e se preocupa com o procedimento de escolha
do presidente, ou seja, com o processo eleitoral e com a indicação dos poderes
atribuídos ao presidente, bem como com a possibilidade de impeachment.
A estruturação do sistema político estadunidense, consolidado sob o
princípio da separação rígida dos poderes do Estado, levou à formatação do sistema
presidencial.
87
O grande debate durante a elaboração da Constituição dos Estados Unidos
da América se concentrou na divergência quanto à adoção da monarquia, o que não
era o desejado pelos Federalistas.
Os Federalistas pregavam a adoção do princípio da separação de poderes.
Influenciados pelo sistema parlamentarista constitucional inglês, mas desejosos da
criação de um arranjo que excluísse a monarquia, debateram amplamente a
formatação de um novo modelo.
Assim, decidiram-se inicialmente pela atribuição da condução administrativa
do Estado ao Poder Legislativo, dando a este enorme supremacia, com o que
pretendiam implementar um sistema parecido com o sistema parlamentar britânico,
excluída a monarquia139.
Mas a necessidade de centralização e unificação do poder estatal para a
garantia da governabilidade e da própria eficácia do sistema, especificamente para a
preservação da independência e autonomia dos poderes, levou à configuração do
sistema presidencial com a concentração de amplos poderes nas mãos do Poder
Executivo, ao qual foi confiada a condução política dos negócios do Estado.
Paolo Biscaretti Di Ruffia, ao tratar da estrutura constitucional do Estado
Moderno, ponderou ter sido a doutrina da separação de poderes o traço distintivo
que possibilitou a formatação do sistema presidencial norte-americano.
Por se tratar de mecanismo aplicável tanto ao sistema parlamentarista
quanto ao presidencialista, sua fórmula comporta maior ou menor rigidez na
separação, limitação e independência dos poderes. E a fórmula presidencial
despontou da formulação e aplicação rígida dessa doutrina.
De acordo com Biscaretti Di Ruffia, “una aplicación particularmente rígida del
mencionado principio de la división de poderes, que a partir de 1787 llevó a la
configuración de una de las formas de gobierno que en la actualidad se consideran
propias del mundo occidental: es decir la forma de gobierno presidencial”140.
O sistema presidencial se consolidou sobre a matriz democrática moderna,
porquanto pressupõe a separação de poderes, um sistema eleitoral eficiente,
139
MORAES, Alexandre de. Presidente da República: a força motriz do presidencialismo. São Paulo:
Saraiva, 2002. p. 1-33.
140
BISCARETTI DI RUFFIA, Paolo. Introducción al derecho constitucional comparado y 1988-1990:
un Trienio de Profundas Transformaciones Constitucionales em Occidente em la URSS y en los
Estados Socialistas del Este Europeo. Trad. de Hector Fix Zamudio. México: Fondo de Cultura
Económica, 2006. p. 119.
88
mandatos temporários, a alternância no poder e a impossibilidade de destituição do
mandato antes de seu termo final por interferência de outro poder.
É o sistema que pressupõe o equilíbrio, porém através de rígida separação
de poderes. No sistema presidencial, cada órgão possui seu âmbito de
competências previamente delimitado e há independência e autonomia entre os
poderes constituídos.
O poder executivo é constituído por órgão unipessoal, ocupado pelo
presidente, o qual, uma vez investido no cargo, escolhe seus auxiliares: os ministros.
O grande elogio que se faz ao sistema presidencial é a capacidade de
imprimir celeridade às decisões – as quais são determinadas por órgão monocrático
– e a rapidez na tomada de decisões revela necessidade de vigor político para o
exercício do poder.
O vigor político do sistema presidencial já se faz notável por ocasião da
escolha do presidente, que demanda eleições concorridas, projeto político capaz de
aguçar os interesses do eleitor, além de se tratar de cargo submisso à regra da
alternância no poder.
No
dizer
de
Ruy
Barbosa,
“a
um
Executivo
polycephalo
devia,
necessariamente, faltar o vigor e a decisão em agir, que é muitas vezes uma
condição de segurança pública”141.
Os ministros são escolhidos livremente pelo presidente, que pode exonerálos de igual modo.
Esse corpo de colaboradores apenas serve ao presidente, auxiliando-o na
concretização das suas determinações. Assim, a responsabilidade pela execução
pode ser atribuída administrativamente aos ministros; porém, a responsabilidade
política será sempre do presidente. Conforme ponderou Ruy Barbosa, a
responsabilidade do presidente pode ser aferida em amplos aspectos (jurídico,
político e civil), pois “a responsabilidade da administração em todos os ramos cabe
ao Presidente”142.
No sistema presidencial, o chefe do Poder Executivo após ser eleito e
diplomado, adquire estabilidade no poder e não pode ser destituído do cargo pelo
Legislativo diferentemente do que ocorre na Inglaterra,
141
BARBOSA, Ruy. Commentarios à Constituição Federal Brasileira. v. III. São Paulo: Saraiva, 1993.
p. 9.
142
Ibidem, p. 9.
89
No sistema presidencial, o presidente concentra em si todas as decisões
políticas, as quais não podem ser atribuídas aos ministros, uma vez que a chefia de
Governo é atribuição exclusiva do presidente da República.
Eleito pela mesma vontade soberana, que elege o legislativo, tem o
representante do poder executivo, o Presidente da República
Brasileira, independência igual à daquele, no gozo e exercício das
suas atribuições constitucionais. O pessoal de seu ministério, pelo
qual ele age imediatamente sobre os vários misteres da
administração pública, é de sua eleição exclusiva, e o mesmo nada
também depende do poder legislativo, para a sua existência e devido
funcionamento.
É esta independência completa do executivo, diante do legislativo,
que caracteriza o governo presidencial, em contraposição ao governo
parlamentar143.
O presidente ocupa as funções executivas; não é eleito nem nomeado pelo
Congresso, pelo que não depende dele para se manter no poder; por outro lado, não
tem o poder de dissolvê-lo. Seu mandato origina-se tão somente do voto popular.O
presidente, na verdade, incorpora o Poder Executivo, pois concentra a tomada das
decisões políticas, a diretiva do país em suas relações nacionais e internacionais, a
representação soberana e a condução política do Estado, uma vez que exerce tanto
o cargo de chefe de Estado como de chefe de Governo.
Importa não esquecer que quando se atenta para um país, como
organização política, é o Chefe da Nação, que se vê primeiro; é o
Chefe do Estado (rei, imperador, presidente) a quem todos,
acostumados pela tradição dos tempos, contemplam e consideram a
personificação real da coletividade política, o representante mais
ostensivo da autoridade pública, o defensor constante da ordem
jurídica e da soberania nacional.
Bem sabe-se que a lei precede à sua execução; mas é também
certo, que é o executor, quem dá vida, força e préstimo, se assim
podemos dizer, aos dispositivos da lei. É a mão do executor, que
vivifica a letra morta da lei; é o braço potente da sua autoridade, que
move e adapta ao meio, aos indivíduos, aos casos e às
circunstâncias, as diversas peças forjadas nas oficinas do trabalho
legislativo; sem o que, todas elas, por mais perfeitas que sejam,
permaneceriam paradas, incapazes da menor utilidade prática.
A lei deve ser, portanto, cumprida e executada fielmente, sobretudo,
no regime da República, o qual, como se sabe, consiste
essencialmente em substituir o império do homem pelo império da
lei144.
143
144
CAVALCANTI, Amaro. Regime federativo e a república brasileira, p. 190.
Ibidem, p. 312.
90
Por outro lado, o Congresso exerce as funções legislativas e não pode ser
destituído pelo presidente.
Em razão da concentração de inúmeras funções e da detenção de grande
poder em mãos de uma única pessoa – o presidente – é que o sistema presidencial
recebe críticas.
Vozes
autorizadas
têm
repetido
que
o
presidente
consagra
a
unipessoalidade como tônica do sistema e essa concentração de poderes pode
acarretar a personificação do poder na sua pessoa, que, por consequência, terá sua
responsabilidade
diminuída,
podendo
tomar
decisões
políticas
sem
a
correspondente consulta e prestação de contas ao povo e ao Poder Legislativo.
Porém, esse argumento não fica incólume às objeções dos que são
favoráveis ao sistema.
Ruy Barbosa, com peculiar autoridade, defendia a unipessoalidade do
sistema para garantir a celeridade na tomada das decisões política e revelar a
responsabilidade pessoal do tomador das decisões, o que se mostra inviável em um
sistema que congrega diversas lideranças dotadas de poderes idênticos.
Ponderava Ruy que, mesmo ante a possibilidade de responsabilidade
pessoal, a presidência já havia sido ocupada por homens que não honraram seus
compromissos republicanos, o que poderia ser agravado na hipótese de ser
impossível a atribuição de responsabilidade pela concorrência de vários órgãos na
tomada das decisões.
Na expressão de Ruy Barbosa,
A direção executiva deve ser sempre uma. Quando alguma coisa é
mal feita, devemos poder ir às mãos de quem a fez. O sentimento da
responsabilidade obriga à cautela, e este sentimento não é jamais
tão perfeito como quando, após reflexão, deve o funccionario
resolver por si. Em todas as recentes reformas da organização das
cidades, se accentuou este princípio, dando-se ao Prefeito (Mayor) o
poder de nomear as commissões (boards) e os funccionarios
municipaes, e fazendo-o assim responsável pelo Governo urbano.
Dois ou três Presidentes com poderes iguais, teria certamente sido
tão desastroso como tres generaes de igual categoria e autoridade
em um único exercito. Não duvido que este sentimento de
responsabilidade singular e pessoal perante o povo tenha fortemente
mantido os nossos Presidentes em uma boa consciência e no nobre
145
desempenho de seus deveres .
145
BARBOSA, Ruy. Commentarios à Constituição Federal Brasileira, v. III, p. 8.
91
Outra crítica que se faz ao sistema presidencial é a possibilidade de difusão
da responsabilidade administrativa entre os ministros, uma vez que, diante das
inúmeras funções e responsabilidades do presidente, as tarefas são divididas entre
os ministros, os quais, além de cumprirem as determinações do chefe do Executivo,
ainda acabam tomando decisões para operacionalizar o que fora originariamente
determinado.
De fato, considerando que o presidente sempre irá se valer da nomeação de
um corpo de assessores para consecução das incontáveis tarefas que lhe são
confiadas, pode-se concluir que a tomada de decisões políticas, mesmo que
incumbida apenas ao chefe do Governo, acaba se difundindo nesse gabinete de
colaboradores, ocasionando a extensão do poder de decidir e conduzir a coisa
pública a outras pessoas que não exercem as funções de presidente e que não
foram investidas democraticamente no cargo de chefe do Poder, o que seria uma
anomalia do sistema.
Amaro Cavalcante é um dos que partilham dessa crítica:
De fato, desde a sua edição, sob o impacto da Carta política norteamericana, o sistema presidencialista apresenta como peça central
da sua engrenagem, a garantia de equilíbrio entre os poderes
Legislativo e Executivo, repousando esse na independência
recíproca entre tais órgãos, na certeza quanto à duração dos
respectivos mandatos e na impossibilidade de expiração antes do
termo final146.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho alerta que a “tentação do abuso”147 é outro
mal desse sistema, pois ao se atribuir tanto poder a um único homem, a própria
natureza humana e as facilidades do cargo podem seduzi-lo a abusar de seu
exercício.
A ânsia dos candidatos pela conquista de poder tão extraordinário e sedutor
deflagra uma disputa exacerbada, uma corrida eleitoral despida de ética e carente
de debates políticos eficientes para informar a opinião pública, o que pode conduzir
à crise institucional e a um processo eleitoral falho, porque incapaz de revelar as
propostas políticas dos concorrentes, o que revela mais um traço negativo do
sistema.
A inflexibilidade do sistema é outra característica que motiva críticas.
146
147
CAVALCANTI, Amaro. Regime federativo e a república brasileira, p. 60.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Parlamentarismo. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 15.
92
No
sistema
presidencial,
ainda
são
tímidos
os
instrumentos
de
accountability, o que impede que maus governantes sejam submetidos ao crivo
popular e à prestação de contas continuada durante o mandato.
No dizer de Manoel Gonçalves Ferreira Filho,
A isso acresce o fato de, sendo tanto esse poder, a ânsia de
conquistá-lo impulsiona os candidatos a uma luta exagerada, da qual
é fácil resvalar para a crise institucional. Ademais, a eleição direta
tende a provocar a multiplicação de promessas contraditórias e
impossíveis de satisfazer, degenerando o pleito num ‘plebiscito entre
demagogos’. Para não se falar nos males que são o reverso do
parlamentarismo (...)148.
Outra crítica que se faz ao sistema presidencial é o fato de possibilitar a
desarmonia e até mesmo a contenda entre o Legislativo e o Executivo, o que pode
ocasionar a paralisação da atividade governamental e a ingovernabilidade.
2.7.2 Sistema Parlamentarista
O regime parlamentar de governo ou sistema parlamentar, como também é
denominado, surgiu na Inglaterra, no século XVIII. Costuma-se afirmar que sua
origem não foi intencional, porque sua formação não foi produto de elaboração
intelectual. O regime parlamentar foi se sedimentando, adquirindo seus contornos e
se desenvolvendo através da prática política.
Em 1688, após uma revolução que foi denominada pelos ingleses Revolução
Gloriosa, o rei Jaime II foi deposto. O movimento foi arquitetado por uma elite
aristocrática e tinha dois objetivos principais: um de caráter religioso e outro de
caráter político.
O mote religioso deflagrou a revolta, a qual pretendia impedir a restauração
do catolicismo. Temerosos que o rei se convertesse ao catolicismo e o adotasse
oficialmente, os ingleses se insurgiram. Jaime II havia se casado, em segundas
núpcias, com uma mulher católica, com a qual tivera um herdeiro, sendo que a mãe
pretendia que o filho fosse doutrinado no catolicismo.
148
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Parlamentarismo, p. 15.
93
A razão política era o interesse de preservar as instituições tradicionais
como o parlamento (garantia da representatividade política na Câmara dos Comuns)
e os direitos do povo inglês (direito ao habeas corpus).
O movimento não tinha por escopo extinguir a monarquia e implantar a
república, nem tampouco repudiar a família real inteira. A crise se cingia a Jaime II e
à possibilidade de seu herdeiro mais jovem instaurar o catolicismo como religião
oficial.
A solução foi a deposição e o exílio de Jaime II na França, o que permitiu a
assunção do trono por Maria – filha mais velha do rei e casada com Guilherme de
Orange, conhecido como William III –, que foi coroada como Maria II.
Assim, foi preservada a monarquia e a sucessão de Jaime II foi garantida
através da herdeira legítima Maria II, a qual poderia ascender legitimamente ao trono
na ausência do jovem herdeiro.
Mas o acerto político ensejou o estabelecimento de compromissos políticos
entre a Coroa e o povo inglês na forma de um pacto que ficou conhecido como Bill of
Rights. O pacto, além de reafirmar os direitos dos ingleses e os poderes do
Parlamento, introduzia princípios, normas e orientações que propunham uma divisão
do Poder, a qual acabou se confirmando e se transformando em objeto de estudos
de vários teóricos, entre os quais está John Locke, que escreveu o Segundo Tratado
Sobre o Governo Civil149.
Em 1691, já foi possível observar a divisão institucional do Poder entre a
monarquia e o Parlamento. O rei manteve a sucessão hereditária, incumbindo-se da
Administração Pública e da Defesa do Estado (Forças Armadas, segurança pública
e relações internacionais).
O Parlamento encarregou-se do poder de legislar, apesar da necessidade de
submissão da lei ao assentimento do rei, o qual tinha poder de veto. Além disso, ao
Parlamento coube as funções de se manifestar sobre as propostas de instituição de
novos tributos (aprovando-as ou não), controlar receitas e processar e julgar
autoridades através do impeachment150.
O Parlamento era composto por duas casas: a Câmara dos Lordes, que
representava a nobreza e o alto clero, e a Câmara dos Comuns, representativa do
povo inglês e eleita pelo voto majoritário colhido em eleições distritais.
149
150
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Parlamentarismo, p. 15.
Ibidem, p. 3-12.
94
A Câmara dos Comuns congregava o elemento democrático do governo,
mas podia ser dissolvida pelo rei e, em sua composição, obedecia a critério
censitário de participação. A grande conquista da Revolução Gloriosa foi instituir a
obrigatoriedade de convocação imediata de nova eleição para constituição da
Câmara dos Comuns na hipótese de sua dissolução.
A formação do Parlamento com a divisão bicameral foi a gênese do sistema
parlamentar, o qual foi se desenvolvendo com o estabelecimento de princípios e
mediante aperfeiçoamento institucional.
Em 1782, consolidou-se o princípio da responsabilidade política do
Gabinete, que é o instituto nuclear do sistema, segundo o qual o Primeiro-Ministro e
todo o Ministério dependem da confiança da maioria parlamentar e, na quebra da
confiança, devem ser demitidos, o que ficou conhecido como a “queda do gabinete
por moção de desconfiança”.
No século XVIII, o sistema inglês já podia ser reconhecido como sistema
parlamentar instituidor de uma monarquia limitada, uma vez que consagrava a
divisão institucional do poder, o que foi teorizado e transmitido aos demais povos
como Teoria da Separação de Poderes.
A partir dessa matriz inglesa, foi se desenvolvendo o sistema parlamentar,
também chamado de sistema parlamentarista. Ele mantém a forma bicameral, que é
a que garante maior harmonia e estabilidade ao sistema.
O parlamentarismo admite tanto a forma republicana de governo como a
monarquia constitucional, que é sua base original.
O modelo parlamentar apresenta traços essenciais:
1. Ele é denominado dualista porque prevê a estruturação do Poder
Executivo em duas figuras: o chefe de Governo distinto do chefe de Estado.
O chefe de Estado é o representante do Estado e não possui funções
políticas de condução dos negócios. A ele cabe a indicação ao Parlamento do
Primeiro-Ministro, que será nomeado desde que usufrua da confiança da maioria
parlamentar.
O chefe de Governo é o Primeiro-Ministro, a quem cabe a condução da
máquina governamental, auxiliado e aconselhado pelos ministros que compõem o
Conselho.
Como já dito, o Primeiro-Ministro e o Conselho dependem da confiança da
maioria parlamentar para assumir o poder. No término da legislatura, ele e seu
95
Gabinete necessariamente deixam suas funções, que são declaradas extintas em
relação ao Gabinete formado; porém, nada impede a recondução do PrimeiroMinistro desde que com o apoio da maioria parlamentar e para nova investidura.
2. O sistema parlamentar se estrutura na divisão funcional clássica do poder
político, segundo a qual se verifica a presença dos poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário.
O Legislativo e o Executivo são poderes divididos em órgãos e
competências, mas que se interpenetram, pois o Gabinete (que efetivamente exerce
as funções executivas) depende, tanto em sua constituição como para sua
manutenção no poder, do apoio do Poder Legislativo, através do apoio da maioria
parlamentar.
O Gabinete somente pode ser investido no poder e assumir suas funções se
contar com o apoio da maioria parlamentar, o que significa, no mínimo, o apoio da
maioria da Câmara Baixa.
O Poder Judiciário é independente dos demais.
3. O Gabinete pode ser dissolvido através da moção de desconfiança, que
traduz a quebra da confiança do Parlamento, o qual pode aprovar uma moção e
determinar a extinção do poder pela Câmara. E também pode ocorrer a oposição da
recusa a uma questão de confiança, que implica a recusa a um projeto legislativo ou
medida apresentada pelo próprio Gabinete e que determina a renúncia do Ministério.
Esses dois expedientes podem ser utilizados pela oposição e constituem
poderosos instrumentos de exercício de oposição política, pois consagram a
responsabilidade política ministerial, que pode abranger o Primeiro-Ministro e todo
seu Gabinete, mas que também pode se referir a um único ministro especificamente.
Por outro lado, a responsabilidade política também alcança o Poder
Legislativo, mais especificamente a Câmara Baixa, que pode ser dissolvida pelo
chefe de Estado, de ofício ou a pedido do Primeiro-Ministro. Contudo, na hipótese de
dissolução, deverá ser determinada imediatamente a realização de novas eleições
para formação de nova Câmara.
As duas grandes contribuições políticas do Sistema Parlamentar foram a
consagração da divisão institucional do Poder Político e a possibilidade de
responsabilização política do chefe do Governo, a quem incumbe a condução e
fiscalização diuturna dos negócios públicos. A responsabilização política do chefe de
Governo deveu-se à consagração do princípio de que “le roi ne peut mal faire” (“o rei
96
não pode fazer mal algum”), que transferia ao chefe do Governo a responsabilidade
pela condução da coisa pública.
A responsabilização do chefe do Governo, em sua gênese, poderia ser
concretizada através da utilização de alguns instrumentos jurídico-políticos como o
impeachment e o bill of attainder, que se perpetuaram em razão da sedimentação do
sistema, apesar do seu desuso como armas políticas.
Outro ponto fundamental do sistema parlamentar é que o modelo puro, que
é o mais eficiente, reclama um sistema bipartidário.
O Brasil também já viveu a experiência da adoção do sistema parlamentar,
apesar de sua pouca duração. O sistema foi aqui implantado por ocasião do
Segundo Império e se repetiu na República, no período entre setembro de 1961 e
janeiro de 1963151.
O sistema parlamentarista não está imune a críticas e oposições.
A crítica usual a esse sistema diz respeito à instabilidade do Gabinete, uma
vez que o consenso e o apoio do Poder Legislativo nem sempre se mantêm em
tempos de crise. A queda do Gabinete ocasiona o adiamento de decisões políticas
importantes, o que pode se estender a vários e sucessivos Gabinetes152.
Além disso, a flexibilidade do sistema pode ocasionar instabilidade. Se os
partidos que deveriam se harmonizar para formação do Gabinete não obtêm o
consenso e partem para o jogo da utilização das moções de desconfiança, gerando
a queda frequente de sucessivos Gabinetes, está deflagrada a instabilidade
governamental, que é um traço negativo desse sistema.
A possibilidade da dissolução do Gabinete reflete o traço mais sensível do
sistema parlamentarista, que é a fragilidade do governo diante da opinião pública.
De fato, é o sistema que reclama o apoio da opinião pública para
estabilidade governamental.
Nesse sentido, salienta Biscaretti Di Ruffia:
En otras palabras, tanto en las formas monárquicas como en las
republicanas se mantiene inalterada la característica esencial del
gobierno parlamentario: la existencia de un jefe del Estado
inamovible, ya se de por vida, si es un rey, o por un período de
tiempo determinado, pero siempre bastante largo, si es presidente, el
cual asegura un elemento firme de continuidad en el vértice de la
organización estatal; y un ejecutivo – concentrado en el Gabinete –
151
152
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Parlamentarismo, p. 7.
Ibidem, p. 16.
97
extremadamente sensible a las fluctuaciones de la opinión pública,
tal como es interpretada, día por día, por las cámaras legislativas153.
O sistema partidário é o que garante o sucesso do sistema parlamentarista.
Apesar de o sistema parlamentarista se adaptar a dois modelos – o
bipartidarismo e o multipartidarismo –, o fato é que seu êxito está frequentemente
associado ao sistema bipartidário, que garante a estabilidade do Gabinete.
Se o sistema é bipartidário, dois serão os partidos a disputar o poder.
Deverão ser partidos com chefias e programa político definidos e organizados de
forma disciplinada internamente. A vitória de um dos partidos permitirá que ele
possa compor o Gabinete. Então, o vencedor poderá sozinho compor o Gabinete e
implementar o programa político de seu partido, já que conta com o apoio da maioria
parlamentar.
Na hipótese de serem vários os partidos, a vitória dependerá da capacidade
de coalizão dos mesmos, inclusive para composição do Gabinete, que não gozará
de muita estabilidade face à sua formação heterogênea.
Assim, o Parlamentarismo multipartidário revela a existência de um regime
oligárquico, pois, na verdade, a vitória por meio de coalizões partidárias revela a
formação de um Gabinete dominado pela “classe política”, o que propõe que o
governo seja definido não pelos eleitores, mas sim pelos eleitos, independentemente
de programa político.
2.7.3 Sistema Semipresidencial
Pode-se dizer que, historicamente, o regime parlamentar é o produto de
afirmação do Parlamento enquanto órgão de representação popular, na fase de
declínio da monarquia. Com o declínio do poder monárquico, os governos
republicanos se destacaram e se instalou certa tensão entre os Poderes Legislativo
e Executivo.
153
BISCARETTI DI RUFFIA, Paolo. Introducción al derecho constitucional comparado y 1988-1990:
un Trienio de Profundas Transformaciones Constitucionales em Occidente em la URSS y en los
Estados Socialistas del Este Europeo, p. 158.
98
Não obstante as transformações históricas, sociais e culturais, e apesar das
diversas nuances acopladas ao sistema parlamentarista (que passou a compreender
os
seguintes
modelos:
parlamentarismo
parlamentarismo
orleanista,
dualista,
parlamentarismo
de
parlamentarismo monista,
equilíbrio,
parlamentarismo
presidencializado), o fato é que o sistema parlamentar sempre preservou suas
características permanentes e individualizadoras, capazes de comprometer sua
essência, quais sejam:
1. Irresponsabilidade política do chefe de Estado;
2. Responsabilidade política do Conselho de Ministros ou Gabinete e do
Presidente do Conselho ou Primeiro-Ministro, chefe do Governo;
3. Colaboração entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo;
4. Existência de meios de ação recíproca de cada um dos Poderes sobre o
outro: moção de censura, questão de confiança, interpelações orais e escritas,
direito de dissolução.
Entretanto, Constituições contemporâneas adeptas do regime parlamentar e
de sua estrutura formal introduziram novidades ao sistema, tendo rompido alguns
princípios e noções tradicionais e incorporado alguns institutos, o que acarretou o
sacrifício da pureza original do parlamentarismo e implicou a criação de um sistema
misto. Assim, a introdução de institutos e mecanismos do sistema presidencial, como
a eleição popular direta para o cargo de chefe de Estado com poderes de presidente
da República, culminou com a formulação de uma nova terminologia, inaugurando
uma categoria diversa denominada sistema semipresidencial154. É este o sistema
adotado nos seguintes Estados: França, Áustria, Irlanda, Portugal e Peru.
154
HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional, p. 676-677.
99
3
GOVERNANÇA
3.1 Governança: origem do termo. 3.2 Governança Pública: a
Adoção do Termo Governance na Gestão Estatal. 3.3.Governo e
Governança: Distinções. 3.4 A Boa Governança: Dimensão
Jurídica. 3.5 Dimensão Constitucional da Boa Governança no
Direito Brasileiro: o Direito ao Bom Governo. 3.6 Governança e
Accountability. 3.7 Accountability e Responsividade do
Governo. 3.8 Governabilidade.
3.1 GOVERNANÇA: ORIGEM DO TERMO
Em 1937, Ronald Coase publicou um artigo intitulado The Nature of the Firm,
no qual identificou mecanismos para otimizar o desenvolvimento da firma,
questionando a estrutura interna de hierarquização das organizações. No artigo, o
autor apresentou as ideias que deram origem à chamada Nova Economia das
Instituições (NEI) e que posteriormente foram consolidadas com os trabalhos de
Williamson.
Coase definiu a firma como algo que vai além de uma função de produção.
Ele relatou sua insatisfação quanto aos gastos decorrentes dos processos de
produção. Partindo da análise dos custos transacionais decorrentes da necessidade
de adquirir insumos, concluiu pela necessidade de consideração e redução dos
gastos da firma, o que poderia ser obtido por meio da produção dos seus insumos
ou da redução dos custos nas negociações de compra no mercado.
Coase concluiu que a firma fazia muito mais que transformar insumos em
produtos, uma vez que coordenava as ações dos agentes econômicos. Logo, tanto a
firma quanto o mercado concorriam entre si na função de coordenar a atividade
econômica. O exercício dessa função implicava um custo proveniente da coleta de
informações e do processo de elaboração, redação, negociação e estabelecimento
de um contrato que representasse as transações.
A contribuição de Coase foi reconhecer que o ato de produzir se desdobra
em compras e vendas que acarretam ônus, o que obriga a consideração da
existência dos custos de transação que não podem ser negligenciados em prol dos
custos de produção. A firma ganha nova dimensão ao considerar outros custos que
100
não somente os associados à transformação e que também constituem elemento
importante nas decisões dos agentes econômicos, orientando a forma pela qual são
alocados os recursos na economia.
Nos anos de1970, Oliver Williamson redescobriu e retomou as análises de
Coase e a elas associou sua própria contribuição. Williamson identificou dispositivos
possíveis de serem operacionalizados pela firma para conduzir coordenações
eficazes a fim de expandir seu desenvolvimento em redes ou organizações globais.
Dessa forma, a estrutura hierarquizada verticalmente cederia espaço para
organizações globais e em rede.
Nos trabalhos de Oliver Williamson, as questões lançadas por Coase
ganham mais força. Williamson insere principalmente a questão dos contratos como
um dos pontos a ser considerado na elaboração dos mecanismos necessários à
superação dos custos de transação.
O custo de transação foi introduzido por Oliver Williamson a partir do
desenvolvimento das ideias de Ronald Coase e de John Commons. Sua concepção
se baseia no modelo do autointeresse do comportamento humano. Segundo o autor,
custos transacionais surgem na medida em que surgem problemas relacionados à
coordenação das ações dos agentes. São, portanto, os custos de se utilizar o
mercado ou a coordenação através do sistema de preços.
À medida que as empresas aprofundam as relações de dependência mútua,
fazem-se necessários análise e monitoramento contínuos do contrato, como forma
de identificar as transformações contratuais ocorridas ao longo do tempo e, assim,
desenvolver mecanismos para que as partes envolvidas em uma negociação não
sejam lesadas. Surge a noção de hierarquia vertical e horizontal nas organizações e
de controle das atividades da firma em diversos graus de comando, a partir de
diversas leis internas que devem reger a organização.
A partir desses estudos surge a noção de governança e, posteriormente,
governança corporativa.
O universo empresarial identificou governança como um conjunto de regras
(instituições) – tais como contratos entre particulares ou normas internas às
organizações – que governam ou dirigem uma determinada atividade negocial.
A evolução da ideia de governança empresarial está associada ao conceito
de corporative governance. Essa expressão pretende abranger os assuntos relativos
ao poder de controle e direção de uma empresa, bem como as diferentes formas e
101
esferas de seu exercício e os diversos interesses que, de alguma forma, estão
ligados à vida das empresas.
Entre os instrumentos de fiscalização e controle de gestão das companhias
são identificados: um conjunto de deveres legais atribuídos aos administradores e
acionistas controladores; a atuação independente do conselho de administração e
um sistema de informação eficiente.
A noção de governança corporativa também implica o reconhecimento de
que a organização não apenas se destina à produção de bens, mas persegue um
negócio de qualidade, lucrativo e bem administrado. De modo que a aplicação dos
princípios de governança corporativa em uma organização tem por objetivo a boa
governança, ou seja, um melhor desempenho em benefício de todos os acionistas e
das demais partes interessadas (consumidores, funcionários, clientes), os quais são
denominados stakeholders155.
3.2 GOVERNANÇA PÚBLICA: A ADOÇÃO DO TERMO GOVERNANCE NA
GESTÃO ESTATAL
A década de 1980 foi marcada pelas consequências da crise mundial do
petróleo (1973/1979-80), que desencadeou desajustes fiscais e o endividamento
internacional.
Em meados dos anos de 1980 era perceptível o esgotamento da arquitetura
do Estado156.
155
Stakeholders é termo inglês que designa uma gama de pessoas, organizações ou entidades
(acionistas, funcionários, clientes, a própria bolsa de valores) interessadas na tomada de decisões ou
na condução dos negócios por aquele que detém a gestão de uma empresa ou, no setor público,
todos os interessados na tomada das decisões políticas.
156
As duas últimas décadas do século XX foram decisivas na produção de mudanças que levaram à
ruptura com o antigo modelo do nacional-desenvolvimentismo. (...) as sucessivas crises
internacionais, a partir de meados dos anos de 1980, a pressão das agências multilaterais, como o
FMI e o Banco Mundial, os avanços do processo de globalização, o colapso do socialismo e o fim da
Guerra Fria foram os mais importantes. Tais fatores determinaram uma drástica redefinição da
agenda pública, especialmente no que se refere às características políticas e econômicas da ordem
anterior. Reformas políticas para a construção de regimes democráticos, programas de estabilização
econômica, reformas orientadas para o mercado, notadamente a privatização e a abertura externa da
economia, integração na ordem mundial globalizada converteram-se nas novas prioridades,
traduzindo-se numa reorientação das políticas públicas que foram postas em prática pelos
governantes de turno. Esta mudança de enfoque teve como resultado o abandono das estratégias
desenvolvimentistas do passado e sua substituição por políticas monetarista ortodoxas, após o
fracasso de alguns experimentos heterodoxos executados nos anos de 1980. As metas sociais foram
102
O cenário contribuiu para a crise da dívida externa provocada pelas altas
taxas de juros internacionais praticadas pelos países industrializados importadores
de petróleo.
O Estado brasileiro não ficou imune a esses fatores e amargou uma crise
econômica fomentada pelo endividamento, desajuste das contas públicas e inflação
galopante.
Na década de 1990, de uma maneira geral, os Estados experimentaram uma
onda de reformas administrativas que pretendiam a modernização dos governos e
do aparelho estatal. Para atender a essa nova demanda, diversos Estados
resolveram aplicar o novo conceito de administração pública gerencial157 (new public
management), que propunha uma reforma interna por meio do emprego de métodos
gerenciais adotados em empresas privadas, que objetivavam adequar o Estado ao
mercado.
A proposta não foi bem sucedida na maioria dos Estados, o que ocorreu por
diversas razões, entre as quais a mais importante foi o reconhecimento de que a
administração pública gerencial conflitava com os fins do Estado, os quais são
inconciliáveis com os fins da empresa privada.
De fato, o Estado é uma sociedade política que tem por objetivo a satisfação
do interesse público, ou seja, o alcance do bem comum, entendido este como
alcance dos fins propostos por sua Constituição política. De outro lado, a finalidade
precípua da empresa privada é a obtenção de lucro, por meio da otimização de
recursos, da livre concorrência no mercado, do gerenciamento autônomo
independente de critérios estritamente normativos ou jurídicos.
O insucesso da administração pública gerencial implicou a procura por um
novo modelo que agregasse métodos de gestão administrativa eficientes aos valores
perseguidos pelo Estado.
progressivamente deslocadas da agenda. Esta se tornou cada vez mais restritiva, adquirindo extrema
rigidez em torno das metas de estabilização e ajuste fiscal. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos.
Sociedade civil: sua democratização para a reforma do Estado, p. 74-79.
157
A administração pública gerencial ou nova gestão pública (new public management) é um modelo
normativo pós-burocrático para a estruturação e a gestão da administração pública baseado em
valores de eficiência, eficácia e competitividade.
103
Atualmente, a governança tornou-se um conceito-chave na modernização do
aparato estatal. Nesse contexto, vale ressaltar que seu significado original sugeriu
um debate político-desenvolvimentista158.
No final dos anos de 1980, o vocábulo governance foi resgatado pelo Banco
Mundial e atrelado à ideia de governo e de reforma do Estado, sendo reconhecido
como instrumento para intervenção no campo político. A ideia era restrita ao campo
político-econômico.
Como se percebe, o termo já teve emprego mais restrito, referindo-se,
outrora, a políticas de desenvolvimento que se orientavam por determinados
pressupostos sobre elementos estruturais — gestão, atribuição de responsabilidade,
transparência e legalidade do setor público — considerados necessários ao
desenvolvimento de todas as sociedades (pelo menos de acordo com os modelos
idealizados por organizações internacionais como a Organização das Nações
Unidas (ONU) ou a Organization for European Cooperation and Development (ECD).
Hoje, a noção de governança sugere uma nova geração de reformas
administrativas e remodelagem do Estado, que têm como objeto uma ação conjunta,
levada a efeito de forma eficaz, transparente e compartilhada, pelo Estado e pelos
demais atores políticos (empresas, partidos políticos, organizações, ONGs,
sociedade civil), visando a uma solução inovadora para os problemas sociais e
criando possibilidades e chances de um desenvolvimento futuro sustentável para
todos os participantes159.
Sob a inspiração dos imperativos éticos da UNESCO, o debate mundial
acerca do conceito substancial de governança está ganhando esse novo contorno.
A noção outrora dominante, que entendia governança enquanto termo
equiparado a boa gestão no processo de tomada de decisões aliada à gestão eficaz
de políticas (“boa governança”), estava baseada exclusivamente nos princípios de
eficácia econômica (rentabilidadde, transparência, accountability).
Essa concepção original está perdendo espaço para um novo modelo, que
não apenas traduz mecanismos, mas que agrega valores democráticos. E o atual
158
KISSLER, Leo; HEIDEMANN, Francisco G. Governança pública: novo modelo regulatório
para as relações entre Estado, mercado e sociedade. Revista de Administração Pública,
Rio
de
Janeiro,
v.
40,
n.
3,
maio/jun.
2006.
Disponível
em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003476122006000300008&lng=en&nrm=iso>. Acesso
em: 07 jun. 2009.
159
Ibidem.
104
desenho de governança implica a ampliação de sua dimensão, que agrega valores a
mecanismos técnicos.
O conceito de governança, que estava circunscrito ao planejamento e à
gestão do desenvolvimento econômico, extrapolou o âmbito econômico e passou a
integrar o campo do desenvolvimento social e da participação democrática,
vinculando todos os envolvidos nas decisões e internalizando os princípios
democráticos em outras arenas de negociações, de distribuição do poder e de
gestão centralizada ou descentralizada da coisa pública.
A esse novo modelo de governança pública são acoplados novos
mecanismos como a negociação, a comunicação (ampla e com vistas à participação
de todos os atores envolvidos) e a confiança (princípio da confiança recíproca –
mutual trust).
Essa nova proposta de administrar a coisa pública de acordo com fins
estabelecidos e com vistas ao desenvolvimento em todos os âmbitos, se revela uma
alternativa para a gestão baseada na hierarquia, a qual tende a gerar um
distanciamento cada vez maior entre os governantes e os destinatários das políticas
públicas, assim como entre os governantes e o corpo administrativo do Estado.
Na gestão hierarquizada da Administração Pública, os envolvidos nas
decisões e implementações das políticas tendem a se comportar como meros
prestadores de serviços e se preocupar apenas com o cumprimento de encargos
administrativos burocráticos. Foi por isso que a Administração se tornou uma
máquina extremamente complexa, compartimentada, falha na comunicação entre
seus setores, o que contribui para sua pouca eficiência, impede seu aprimoramento
e justifica sua falta de credibilidade e a fama de morosidade.
Porém, a simples adoção de mecanismos gerenciais também se mostrou
ineficaz para o desenvolvimento do aparato estatal, em razão da ausência de
valores.
Está em debate a vinculação dos ideais democráticos na nova dimensão de
governança. Isso significar dizer que atualmente os mecanismos de gestão eficiente
do Estado reclamam a inclusão de valores democráticos tais como: transparência,
accountability, responsividade aos interesses dos governados, respeito à pessoa
humana, respeito aos direitos fundamentais, direito de participação no processo de
negociações, democratização dos processos de tomada de decisões, busca do
consenso, erradicação da pobreza e das desigualdades sociais e econômicas.
105
Em 1992, em documento denominado Governance and Development, o
Banco Mundial160 empregou o termo governance com uma nova conotação política,
atrelada ao modo de conduzir o governo. O vocábulo ganhou, então, dimensão
superior e adjetivos, passando a identificar a “boa” ou “má” governança.
Segundo o Banco Mundial, a definição geral de governança refere-se à
“maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos sociais e
econômicos de um país visando ao desenvolvimento” e, ainda, “a capacidade dos
governos de planejar, formular e implementar políticas públicas e cumprir funções
(governativas)”161.
A boa governança passou a ser a expressão utilizada para indicar processos
de reforma do Estado para corresponder às exigências de eficácia e rentabilidade
econômica valendo-se de programas nacionais de desenvolvimento.
Mas, essa conotação também foi superada; a ideia de governança evoluiu e
encontrou larga aplicação no âmbito da gestão estatal, alcançando relevância
política e normatização jurídica e contribuindo para evolução do processo
democrático.
A nova acepção de governança pública abarca o surgimento de um “novo
formato político-institucional”162 para os processos políticos decisórios.
A necessidade de conciliar a exigência de reforma do aparato estatal
mediante sua modernização e adoção de novos mecanismos de governança com os
fins do Estado originou o conceito de governança pública.
A expressão governance foi elaborada a partir da expressão corporate
governance163 (governança corporativa) e identifica o processo de aplicar os
160
O Banco Mundial definiu governance como mecanismo de ação de governo, ou seja, o exercício
da autoridade política, o controle, a gestão, o poder de governar de modo a alcançar o
desenvolvimento sustentável, social, econômico e equitativo. Diz o relatório de 1992: “governance is
the exercise of authority, control, management, power of government; is the manner in which power is
exercised in the management of a country’s economic and social resources for development". O
relatório indica, ainda, o critério de boa governança: “Good governance is central to creating and
sustaining an environment which fosters strong equitable development, and it is an essential
complement to sound economic policies". ISHAM, Jonathan; KAUFMANN, Daniel; PRITCHETT, Lant.
Civil Liberties, Democracy, and the Performance of Government Projects. The International Bank for
Reconstruction and Development. The World Bank. The World Bank Economic Review, v. 11. n. 2, p.
219-242, 1992.
161
Ibidem.
162
SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade, Governança e Democracia: Criação de
Capacidade Governativa e Relações Executivo-Legislativo no Brasil Pós-Constituinte. DADOS –
Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 40, n. 3, 1997. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000300003&lng=en&nrm=iso>. Acesso
em: 04 nov. 2009.
106
princípios de governança corporativa a uma organização, conjugando valores
democráticos, princípios e as finalidades da administração pública.
A ideia central do conceito de governança é a tomada de decisões que
impactam uma gama de pessoas ou instituições ou que influem nos interesses de
inúmeras pessoas, organizações, instituições (stakeholders).
A partir desse conceito emergiu o padrão de governança pública que permite
a adjetivação do termo e a identificação da “boa governança“.
Com efeito, em sua acepção original, o termo “governança” traduz um
processo de tomada de decisões para solução de problemas que afetam uma gama
de indivíduos, organizações e entidades e, portanto, esse mecanismo implica a
adoção de uma decisão ou de decisões efetivas, ou seja, opção por decisões que
sejam efetivamente implementadas e capacidade de solucionar a questão. Esse
processo envolve relações entre os tomadores de decisões e os destinatários das
mesmas.
No processo de governança, há participação ou influência de diversos
interessados na tomada das decisões, razão pela qual é mecanismo que considera
a divisão de poderes e competências entre os diversos níveis de autoridade política
e que visa à adoção da decisão apta a satisfazer a demanda dos interessados ou,
então, revelar políticas públicas que abranjam o maior leque possível de
interessados, de maneira efetiva e eficiente.
A governança pública constitui um processo de tomada de decisões políticas
que envolve padrões de articulação e cooperação – novos arranjos político
institucionais – entre os tomadores de decisões e os demais atores sociais
(indivíduos, instituições, o próprio Poder Legislativo, partidos políticos, grupos de
pressão, redes sociais informais, associações, ONGs), traduzindo um “novo formato
político-institucional dos processos políticos decisórios”164.
Mas, quando se fala em processo que envolve articulação e arranjos, tendo
em vista a governança para a tomada de decisões políticas dirigidas à consecução
do interesse público, emerge o questionamento: Quem é que irá tomar as decisões?
163
A governança corporativa implica no exercício de direção e accountability através da adoção de
mecanismos ou princípios que governam o processo decisório dentro de uma determinada
organização (mecanismos institucionais para tomada de decisões).
164
SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade, Governança e Democracia: Criação de
Capacidade Governativa e Relações Executivo-Legislativo no Brasil Pós-Constituinte. DADOS –
Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 40, n. 3, 1997. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000300003&lng=en&nrm=iso>. Acesso
em: 04 nov. 2009.
107
Aqui, a discussão envolve a distinção entre governança pública multilevel e
governança global.
Hoje, tem-se entendido que a governança pode ser estabelecida para a
solução de problemas internos de um Estado ou para a solução de aflições globais.
Nesse ponto, Robert O’Brien faz precisa distinção, esclarecendo que a
governança multilevel se concentra nas relações verticais entre autoridades estatais
políticas e governados e tem por tema a discussão sobre políticas públicas (opção e
implementação) e fortalecimento da democracia165. Por outro lado, governança
global revela um enfoque sobre as relações horizontais desenvolvidas entre
Estados, corporações e atores civis em bases globais e seu objetivo é a integração.
A governança global e a governança multilevel possuem modelos diferentes,
inclusive no âmbito normativo.
Dessa forma, para responder à questão sobre quem decide de forma
definitiva no processo de governança, deve-se analisar qual é o modelo de
governança: global ou multilevel (interna).
No presente trabalho, o conceito de governança e os padrões para o
estabelecimento da boa governança serão considerados tomando em consideração
o processo de governança pública interna no Estado brasileiro.
O processo de governança pública não suprime o gestor ou aquele que
detém o poder decisório; pelo contrário, o processo de governança implica no
reconhecimento de que o detentor do poder de decidir irá tomar as decisões mais
adequadas e irá conduzir o processo de implementação dessas decisões. Além
disso, o traço característico desse processo é que os stakeholders (participantes do
processo decisório ou gama dos impactados pelas decisões) poderão influir na
tomada das decisões e poderão cobrar a rendição de contas da execução das
decisões.
Nessa relação, os tomadores de decisão assumem diante dos stakeholders
a responsabilidade em relação às decisões que tomam (transparência das decisões)
e o modo como serão implantadas (eficiência e rendição de contas). No setor
público, essa responsabilidade se estende à gestão dos recursos e ao modo de
realização dos gastos públicos.
165
O’BRIEN, Robert. The Nuances of Multilevel and Global Governance: Multilevel Governance and
Democracy. Framing the Debate, Queen’s University Kingston, 2002. Disponível em
<http://www.pinkcandyproductions.com/portfolio/conference/globalization/pdf/obrien>. Acesso em: 07
dez. 2009.
108
Governança traduz processo de tomada de decisões políticas e, portanto,
refere-se à atividade de Governo166.
O termo governance pode ser utilizado tanto no setor público como no setor
privado, mas quando se refere à governança pública e good governance a partir da
tomada de decisões políticas, o seu emprego deve ser entendido como sendo
restrito aos atos de governo.
A ideia de governança pública evoluiu a partir do reconhecimento de que a
capacidade governativa não poderia ser avaliada apenas pelos resultados das
políticas governamentais consolidadas ao término da gestão política, mas também
pela efetiva capacidade do governo de exercer o poder político e concretizar seus
projetos políticos, equacionando os problemas sociais e implementando políticas de
amplo alcance público.
Governança pública refere-se, portanto, ao modo de exercício do poder
político pelo Executivo e identifica a capacidade de desempenho da autoridade
política, inclusive na elaboração da arquitetura institucional sob a qual o poder é
desempenhado, revelando as relações entre o Governo e o Poder Legislativo, a
capacidade da autoridade política de implementar políticas públicas e projetos
políticos, a capacidade de mobilizar meios, recursos e soluções para as demandas
públicas.
Logo, é possível chegar à mesma conclusão de Maria Helena de Castro
Santos e dizer que a noção de good governance está intrinsecamente associada à
capacidade governativa167 .
A introdução da noção de governança no âmbito da gestão pública se deve
às crescentes demandas dos Estados Democráticos modernos pela democratização
da gestão estatal. A democracia reclama a aplicação dos princípios conformadores
ao governo e não apenas ao procedimento eleitoral.
Os regimes democráticos têm ressentido a ausência de mecanismos de
controle político, visto que hoje está superada a ideia de que uma boa democracia é
simplesmente o fruto de um excelente processo eleitoral.
166
Termo aqui entendido estritamente como Poder Executivo.
SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade, Governança e Democracia: Criação de
Capacidade Governativa e Relações Executivo-Legislativo no Brasil Pós-Constituinte. DADOS –
Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 40, n. 3, 1997. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000300003&lng=en&nrm=iso>. Acesso
em: 04 nov. 2009.
167
109
Ainda que originário de processo eleitoral legítimo e idôneio, não se pode
afirmar que o governo atenderá os reclamos da vontade pública simplesmente
porque as eleições ocorreram de forma satisfatória. Aferir o grau de democracia
apenas em razão do processo eleitoral é reduzir a democracia a mero procedimento
e admitir que ela se exaure, para o cidadão, no ato do depósito do voto.
Eleições justas e livres são insuficientes para garantir um governo
democrático e atento à soberania popular.
O processo eleitoral é certamente o apogeu da democracia representativa
porque revela os representantes da soberania popular. É procedimento que indica
quem está legitimado a agir em nome da totalidade do corpo social. Entretanto, o
processo eleitoral não garante o exercício do poder político em termos de qualidade
democrática e eficiência política e de gestão.
Democracia e governo responsável são noções interdependentes e que se
completam, razão pela qual a qualidade de democracia pode ser auferida pelo grau
de controle do exercício do poder político.
3.3 GOVERNO E GOVERNANÇA: DISTINÇÕES
Governo é um substantivo masculino que refere à ação de governar.
No contexto jurídico, governo, em sentido lato, “é o conjunto de órgãos
mediante os quais a vontade do Estado é formulada, expressada e realizada; ou,
conjunto de órgãos supremos a quem incumbe o exercício do poder político”168. Em
sentido estrito, governo corresponde ao Poder Executivo.
Governar é termo que possui vários significados: 1. ação, processo ou efeito
de governar(-se); ato de governação, ato de governança; 2. capacidade ou
possibilidade de exercer controle; 3. exercer o poder executivo; o presidente junto
com seu ministério169.
Governança, por sua vez, traduz o próprio “ato de governar”170.
168
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 109.
HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss. De acordo com a Nova Revisão Ortográfica.Rio de
Janeiro: Objetiva, 2009.
170
Ibidem.
169
110
Assim, governo enquanto instituição ou órgão do Estado não se confunde
com governança, que traduz o ato pessoal de governar.
Governança é ação de governar. De maneira sintética, constitui instrumento
de administração e de gestão eficaz para implementação de políticas por meio de
processos
de
tomadas
de
decisões
políticas,
atos
de
gestão
mediante
descentralização de competências e preservação da autoridade política e que impõe
a observância de uma série de critérios político-jurídicos.
3.4 A BOA GOVERNANÇA: DIMENSÃO JURÍDICA
A boa governança é o qualificativo para atos e decisões características da
condução política do Estado – e, portanto, de chefia de governo – capazes de
traduzir a aptidão da autoridade política para converter o potencial político de
instituições e as práticas políticas em atos de governo capazes de definir,
implementar e sustentar projetos políticos e consequentes políticas públicas.
Deve ser entendida como capacidade política de condução do sistema
político para implementação de políticas públicas de acesso universal e patamares
equitativos, aptas a atender as demandas da sociedade.
A governança pública é a expressão da força da autoridade política
instrumentalizada em decisões e implementação de políticas, razão pela qual o
conceito de good governance passa a ser requisito indispensável para um
desenvolvimento em larga escala, que incorpora ao crescimento econômico o
desenvolvimento sociocultural, e a afirmação dos direitos fundamentais da pessoa
humana.
O vocábulo não é novo, mas recentemente é empregado com a conotação
política e com os traços de juridicidade que lhe foram conferidos em diversos
documentos internacionais, os quais influenciaram o ordenamento jurídico de
diversos Estados, inclusive o Brasil.
Noticia-se que o termo governance, em sua conotação política (good
governance), foi empregado pela primeira vez em documento jurídico no ano de
111
1964 pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas para o
Desenvolvimento171.
Os critérios desenvolvidos por essa comissão foram formalizados pela
Resolução n. 200/64172, a qual se revelou a primeira normatização para o conceito
de governança. Segundo o documento, os “atributos para a boa governança” são:
1. transparência;
2. responsabilidade;
3. dever de rendição de contas (accountability);
4. participação política e atenção às demandas das minorias;
5. responsividade do governo.
Apesar da sua original preocupação com a alocação de recursos públicos, o
instituto evoluiu e alcançou nova dimensão política e jurídica.
A
Comissão
de
Direitos
Humanos
das
Nações
Unidas
para
o
Desenvolvimento concluiu ser a boa governança o atributo capaz de deflagrar o
desenvolvimento econômico, social e político nos países em desenvolvimento e nos
pouco desenvolvidos e traçou os critérios capazes de identificar o exercício da boa
governança.
Atualmente, a noção de governança alcançou relevante projeção no cenário
político por se tornar critério para aferição do bom governo.
Governança é ato de governo e a boa governança é qualificativo para o
modo de exercício de governo segundo os atributos da governança.
171
Esse documento foi elaborado após realização da 6ª Conferência da ONU, ocasião em que se
debateu a questão dos países pouco desenvolvidos, como Índia (Ásia) e países da África, decidindo
que a alocação de recursos a Países pouco desenvolvidos demandavam a aplicação democrática
desses recursos e uma boa gestão, o que iria permitir que esses recursos fossem eficientemente
empregados e aproveitados pelas pessoas que se situam em condições abaixo da linha da pobreza e
que não são alcançadas pelas políticas governamentais ou internacionais de apoio. O documento
aborda fatores como a guerra civil, a corrupção interna, a discriminação social, a questão fenotípica
(cor de pele) e a má gestão como interferências que impedem esses países de contar com maior
amparo da comunidade internacional e que também interferem no desenvolvimento desse continente.
O documento apresenta os critérios para alcance do bom governo ou para boa gestão (governance)
capaz de garantir o avanço no desenvolvimento social e econômico do continente africano e os
países situados no sul-asiático.
172
Resolution 2000/64 - Comission on Human Rights. Oficial Site: Office of the Union Nations High
Comissioner for Human Rights, The concept of good governance has been clarified by the work of the
former Commission on Human Rights. In its resolution 2000/64, the Commission identified the key
attributes of good governance: transparency, responsibility, accountability, participation,
responsiveness to the needs of the people. Cf. texto da Resolução n. 2000/64, disponível em:
<http://www2.ohchr.org>. Acesso em: 07 dez. 2009.
112
Esses critérios são reconhecidos por outras instituições como a UNESCO e
o Banco Mundial e já foram incorporados pelas nações que experimentam a vivência
democrática com estruturas e instituições consolidadas e atuantes.
A UNESCO e o Banco Mundial acrescentaram outros dois critérios
imprescindíveis à concepção de boa governança: o consenso (busca do consenso) e
a eficiência.
O ponto fundamental da governança é que se trata de mecanismo de
governo atrelado ao alcance de metas econômicas e também valorativas, o que
envolve processos de tomada de decisões políticas conformes com o regime
democrático.
Governança pressupõe deliberação acerca de projetos ou programas
políticos para o desenvolvimento de uma comunidade, nação ou comunidade
internacional.
Nas democracias contemporâneas o Estado é o principal instrumento de
ação da sociedade para alcance de seus objetivos políticos. Apesar das
desigualdades sociais e econômicas e da distância entre as elites e o povo menos
afortunado, o fato é que na arena democrática todos têm voz, ainda que a
entonação não seja idêntica.
A sociedade, portanto, dá seu tom para a democracia e quanto mais
desenvolvido for um país ou Estado-nação, mais capaz será a nação de usar o
Estado como um instrumento para alcançar seus objetivos políticos (ordem social,
liberdade, bem-estar, justiça e proteção do meio ambiente) em uma economia de
mercado globalizada competitiva.
Em última instância, o papel do Estado é decidido pelos eleitores e pelos
políticos que eles elegem. Eles decidirão se o Estado deve garantir os direitos
sociais em termos de educação, assistência à saúde, cultura e previdência social, e
como o governo dará suporte ao desenvolvimento econômico nacional.
Quando se trata de governança pública faz-se referência ao processo de
tomada das decisões políticas e também ao processo de implementação, execução
e gestão, ou não, das políticas determinadas.
Assim, a governança incorpora, ao menos, três aspectos sob os quais pode
ser analisada:
113
1. Concentrando a atenção nos atores formais e informais envolvidos no
processo de tomada de decisão e considerando o próprio processo de tomada de
decisões (formato político institucional e procedimental);
2. Enfocando o mote que ensejou a tomada das decisões e o
comprometimento do governante em sua implementação (responsabilidade política:
responsividade do governo e transparência);
3. Atentando para a execução das decisões tomadas e para as estruturas
formais e informais que colaboraram para a execução da decisão (mecanismos de
accountability e responsabilidade democrática).
A boa governança é mecanismo de governo e envolve processos de tomada
de decisões políticas que somente se coadunam com o regime democrático.
A “boa governança” é o produto do exercício do governo democrático; é
noção que reclama mecanismos de controle político ou o que se denomina
atualmente de accountability (termo empregado como sinônimo de dever de
rendição de contas pelos que são responsáveis pelo governo ou dever de rendição
de contas decorrente da responsabilidade pela gestão).
No entanto, é provável e mais acertado que os atores sociais não se
envolvam diretamente na discussão mais técnica sobre como o Estado deve ser
organizado.
Os governados devem ter participação na eleição das políticas que querem
ver implementadas. Entretanto, o tempo, o modo e outras opções políticas para
implementação dessas políticas e a gestão de recursos para sua execução são
sempre um encargo do governante
Tendo decidido politicamente sobre o papel do Estado, os cidadãos
precisarão confiar ao governante o exercício efetivo da governança. Para tanto,
deverá o Estado contar com uma estrutura eficiente, compatível com esse papel.
O critério de boa governança é utilizado para classificar o grau de
desenvolvimento sustentado e o alcance de metas a partir da implementação de
políticas públicas, segundo valores democráticos.
Tem-se então que boa governança possui qualificativos173 que aferem o
grau de eficiência do governo: 1) desenvolvimento associado ao respeito à
173
Conceito ofertado pelo professor Alcindo Gonçalves, doutor em Ciência Política pela USP e
professor titular do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Santos.
GONÇALVES, Alcindo. O Conceito de Governança. Anais do XV Congresso Nacional do CONPEDI –
114
dignidade da pessoa humana; 2) formato político institucional, segundo o qual as
negociações políticas passam pelo crivo dos governados, por meio da participação
popular na adoção das políticas a serem adotadas e com controle político sobre
essas decisões.
Assim, a “boa governança”:
1. expressa-se como requisito fundamental para o desenvolvimento
sustentado, que incorpora ao crescimento econômico a equidade social e também a
valorização dos direitos fundamentais da pessoa humana (desenvolvimento
associado ao respeito à dignidade humana);
2. impõe a adoção de procedimentos e práticas governamentais para
consecução de suas metas mediante criação de novo formato institucional do
processo decisório, o qual passa a ser articulado por meio de negociações entre
governo e governados (ou representantes políticos), com a participação democrática
na formulação de políticas, abertura maior ou menor para a participação dos setores
interessados e participação de várias ou de distintas esferas de poder, com
estabelecimento de critérios de controle político dessas decisões174.
São três os pilares de sustentação do novo paradigma de governança
pública: promoção dos direitos humanos, democracia eletiva com pluripartidarismo e
exercício de boa governança.
Logo, a meta da boa governança deixa de ser apenas o desenvolvimento
econômico
e
passa
a
ser
o
desenvolvimento
econômico
atrelado
ao
desenvolvimento social e ao desenvolvimento da democracia, especialmente com a
construção de novos espaços públicos, nos quais uma diversidade de atores
coletivos passam a figurar nas negociações para tomada das decisões políticas.
A boa governança pública se manifesta em exigência de transparência,
democratização da gestão estatal, adequada aplicação de recursos públicos pelos
dirigentes e efetivação de políticas públicas para atender às exigências sociais. Além
disso, a boa governança depende da existência de eficientes mecanismos de
controle político para reclamar a responsabilidade política dos detentores do poder
(accountability).
Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Direito, Manaus, nov. 2006. Disponível em:
<http://conpedi.org/manaus/arquivos/Anais>. Acesso em: 07 dez. 2009.
174
Cf. Relatório de Desenvolvimento do Banco Mundial, 1992. ISHAM, Jonathan; KAUFMANN,
Daniel; PRITCHETT, Lant. Civil Liberties, Democracy, and the Performance of Government Projects.
The International Bank for Reconstruction and Development. The World Bank. The World Bank
Economic Review, v. 11. n. 2, p. 219 -242. 1992.
115
O Governo é o principal ator no processo de governança porque dele
emanam as decisões políticas e suas implementações.
O Estado Democrático brasileiro se assenta sobre a base republicana e o
ideal democrático, estabelecendo o governo representativo, conforme os artigos 1º,
3º e 4º da Constituição Federal.
A República Brasileira tem objetivos certos e definidos constitucionalmente,
sedimentados em princípios (artigo 1º e 3º, CF/88).
E para alcançar seus fins, a Constituição Brasileira estabelece, em seu
artigo 37, quais são os critérios para o exercício da boa governança.
Reza o artigo 37 da Constituição Federal: “A administração pública, direta e
indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência”.
Logo, a Constituição brasileira incorporou os critérios que qualificam a boa
governança como parâmetros identificadores do bom governo.
As políticas públicas também seguem diretrizes constitucionais na medida
em que devem ser implementadas para alcançar os fins sociais e políticos do
Estado.
Nesse contexto, é possível concluir que a boa governança somente será
possível diante da existência de um projeto político democrático e democraticamente
escolhido, capaz de traduzir a essência republicana e apto a satisfazer as demandas
dos governados.
A governança pública faz, assim, da orientação para o bem comum o
diferencial entre a simples governança e a boa governança175.
A governança tem bases sólidas – não é uma aventura ou uma
improvisação.
Metas de desenvolvimento não se alcançam mediante improvisação. A
gestão da coisa pública não admite descuido e, para tanto, deve ser gerida mediante
projeto político.
175
KISSLER, Leo; HEIDEMANN, Francisco G. Governança pública: novo modelo regulatório
para as relações entre Estado, mercado e sociedade. Revista de Administração Pública,
Rio
de
Janeiro,
v.
40,
n.
3,
maio/jun.
2006.
Disponível
em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003476122006000300008&lng=en&nrm=iso>. Acesso
em: 07 jun. 2009.
116
Esse projeto político deve ser submetido ao crivo do cidadão para que seja
consagrado como democrático.
Considerando projeto político a ser definido por via eleitoral, deve-se
salientar que as propostas políticas submetidas ao crivo popular são diversas e
servem de parâmetro para a escolha do representante apto a desenvolver o melhor
plano político para o país.
Através dos procedimentos democráticos, os cidadãos são concitados a
manifestar suas preferências e escolher o projeto político que melhor atende aos
interesses republicanos.
A escolha eleitoral a partir de um projeto político permite a influência do
eleitor em todo o processo de governança que se estabelece após a nomeação dos
respresentantes.
Uma vez eleito, o governante deve cumprir seu projeto político, sempre
atento à opinião pública – pilastra de sustentação do governo republicano – e de
modo responsivo.
O conceito de boa governança (good governance) e seus critérios
identificadores revelam a interconectividade entre boa governança e democracia.
O exercício da boa governança demonstra que o conceito de governança
traduz uma nova forma de governar, a qual prima pela responsividade perante os
eleitores e denota que a eficácia e a legitimidade da atuação do governo
fundamentam-se na qualidade da interação entre os distintos níveis de governos e,
em especial, entre o governo e os demais atores sociais, estabelecendo
compromissos recíprocos e uma nova dimensão de cidadania democrática.
Ao submeter um projeto político ao crivo popular, o candidato está se
comprometendo politicamente com sua proposta. Sua atitude política determina o
comportamento do eleitor, que opta por lhe conceder o voto em razão da confiança
depositada na proposta apresentada.
A boa governança, ao exigir a responsividade, impõe o dever de respeitar a
confiança depositada pelo eleitor, revelando sua sensibilidade aos anseios políticos
do povo.
Ao se comprometer publicamente com os eleitores a por em prática seu
plano de governo, o governante está assumindo a responsabilidade por sua
promessa, sem a qual não seria eleito. Uma vez eleito para exercício de governo
117
representativo, é responsável pelo cumprimento da palavra empenhada, sob pena
de subversão ao princípio democrático.
Karl Larenz, ao tratar dos fundamentos éticos do direito justo, assevera que
a segurança jurídica e a estabilidade das relações jurídicas ou intersubjetivas
somente é possível se vigorar a confiança, reconhecida como “condición
fundamental para una pacifica vida coletiva y una conducta de cooperación entre lós
hombres y, por tanto, de la paz juridica”.176
E Karl Larenz faz a correlação entre a aplicação do princípio da confiança
em termos penais e enquanto princípio geral conformado ao sistema jurídico:
Dicho principio consagra que una confianza despertada de un modo
imputable debe ser mantenida cuando efectivamente se ha creído en
ella. La suscitación de la confianza es imputable cuando el que la
suscita sabía o tenía que saber que el otro iba a confiar. En esta
medida es idéntico al principio da la confianza. Sin embargo, lo
sobrepasa y va más allá. Demanda también un respeto reciproco
ante todo en aquellas relaciones jurídicas que requieren una larga y
continuada colaboración, respeto al otro también en el ejercicio de
los derechos y en general el comportamiento que se puede esperar
entre los sujetos que intervienen honestamente en el tráfico (…)
Según la opinión actual, se aplica en las relaciones jurídicas de
Derecho Público177.
As alterações por ventura necessárias ao projeto político original devem ser
legitimadas pelos governados mediante outros procedimentos de governança, tais
como audiências públicas, respostas aos questionamentos do Congresso, prestação
de contas anual, resposta ao exercício do direito de petição, medidas jurisdicionais.
Analisando os critérios para o exercício da boa governança, tem-se a
exigência de participação política, ou seja, a possibilidade de os indivíduos
participarem da tomada das decisões políticas mediante participação em eleições,
debates, de forma direta ou por intermédio de instituições legítimas ou de
representantes.
Participação invoca direito a informação e liberdade de associação e
expressão.
O modelo good governance denota pluralismo, uma vez que diferentes
atores têm (ou deveriam ter) direito de influenciar a construção das políticas
176
LARENZ, Karl. Derecho Justo. Fundamentos de Etica Jurídica. Trad. Luis Diez Picazo. Madrid:
Civitas, 1993. p. 90.
177
Ibidem, p. 96.
118
públicas. É um mecanismo que implica um modelo relacional, mas nessa relação há
comprometimento de todos os envolvidos no processo.
Os governados confiam o voto nas políticas que visam à satisfação do
interesse público e se submetem à condução política do governante, acreditando
que as promessas empenhadas em campanha serão satisfeitas.
O governante, por seu turno, se compromete responsivamente com o
atendimento
das
necessidades
e
demandas
dos
governados.
Esse
comprometimento se materializa quando o governante cumpre o programa político
com o qual empenhou seu nome e sua imagem pública.
A eficiência também está presente no instituto da governança pública.
No cenário brasileiro, é importante fazer um parênteses para a apresentação
desse critério constitucional porque ele não foi originariamente concebido na época
da Constituinte.
O princípio da eficiência foi introduzido na Constituição Federal pela Emenda
n. 19 de 1998, que tratou da Reforma do Estado178.
A introdução desse princípio se conformou à nova proposta de
administração gerencial, que também enfoca a responsabilidade de todos os
envolvidos nos processos e a preocupação com os resultados obtidos durante a
gestão. A administração gerencial também reclama a responsividade, que é
consectária da eficiência.
A eficiência é critério que exige a transparência da administração enquanto
único mecanismo para aferir a eficiência da gestão e dos resultados.
O princípio da eficiência é legado das Ciências Econômicas, amplamente
aplicado em Ciências da Administração, pois refere-se à gestão por meio da
178
“Esta importância dada pela Reforma Gerencial de 1995 ao núcleo estratégico do Estado e às
carreiras de Estado são indicações de que a reforma não visava eliminar os conceitos clássicos da
administração burocrática mas corrigi-los e ampliá-los. Isto se revelou no caput do art. 37 no qual não
se eliminaram os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, mas se
acrescentou o da eficiência e se buscou, na sua interpretação, entender a publicidade também como
transparência. O mesmo raciocínio se aplica à administração por resultados que é central na reforma
gerencial. Na Reforma de 1995 deu-se grande ênfase à administração por resultados, mas não se
pretendeu que ela substituísse a administração por processo – apenas que se diminuísse a ênfase
em processos legais detalhados. Não há incompatibilidade entre as duas formas de controle. A
conduta do gestor público deve ser legal e de resultados ao mesmo tempo. Durante o debate da
emenda constitucional e das leis que a complementaram procuramos deixar isso claro. A Reforma
Gerencial de 1995 pode ser vista sob dois ângulos: o estrutural e o da gestão”. BRESSER PEREIRA,
Luiz Carlos. Os Primeiros Passos da Reforma Gerencial do Estado de 1995. Disponível em:
<www.bresserpereira.org.br>. Acesso em: 07 dez. 2009.
119
otimização de recursos (financeiros, humanos, engenharia de informações, etc.) com
vistas ao alcance do melhor coeficiente de satisfação de metas possível.
A eficiência é critério que possibilita a atribuição de responsabilidade pela
gestão e pela prestação de contas quanto aos recursos utilizados e a gestão
realizada.
Mas, a noção de governança não limita a eficiência a uma conotação
meramente econômica. A eficiência em termos de governança agrega valores, como
o dever de responsividade, a eficiência quanto aos fins e, sobretudo, a eficiência em
consonância com os demais princípios estampados no artigo 37 da Constituição
Federal que possuem idêntica importância.
A eficiência179 também se revela exigência do próprio Banco Mundial para
alocação de recursos a programas de países em desenvolvimento e, ainda, como
critério para aferir o grau de desenvolvimento de um Estado.
Como foi referido anteriormente, em 1992, o Banco Mundial já acenava para
esse padrão e definia governance como “a maneira como o poder é exercido na
gestão dos recursos econômicos e sociais de um país em desenvolvimento”.
Governança é conceito que abrange a capacidade gerencial e financeira e
revela a “função da saúde financeira do Estado, da competência de seus políticos e
burocratas em tomar decisões estratégicas, e da existência de instituições que
viabilizem uma administração gerencial, efetiva e eficiente do próprio Estado”180.
O estabelecimento da governança a partir da opção pelo plano político
apresentado
pelo
candidato
é
garantia
de
efetividade
ao
princípio
da
impessoalidade, pois a escolha passa a ser dirigida ao projeto político e a
implementação dele passa a contar com a participação popular. Logo, segundo esse
modelo de escolha, todos são coautores dessas novas políticas e a pessoalidade,
enquanto preponderância da imagem pessoal do governante esmorece, deixando de
ser valorizada.
Democracia, como já referido em diversas passagens, implica representação
política para consagração de governos representativos da vontade popular.
179
No plano do Direito comparado, como se sabe, fala-se em exigência de boa administração (ou
bom andamento da administração), em princípio da eficácia, em princípio da racionalização
administrativa, em princípio da não burocratização e em economicidade. Cf. MODESTO, Paulo. Notas
para um debate sobre o princípio da eficiência. Revista do Serviço Público, ano 51, n. 2, p. 105-119,
abr./jun. 2000.
180
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Sociedade Civil: sua democratização para a reforma do Estado,
p. 78.
120
No dizer de Bernard Manin:
A alegação que conecta a democracia e a representação é que na
democracia os governos são representativos porque são eleitos: se
as eleições são concorridas livremente, se a participação é ampla, e
se os cidadãos desfrutam das liberdades políticas, então os governos
agirão em favor do interesse da população. Em um primeiro ponto de
vista – do mandato –, as eleições servem para selecionar boas
políticas ou políticos que sustentam determinadas políticas. Os partidos ou os candidatos fazem propostas políticas durante a
campanha e explicam como essas propostas poderiam afetar o bemestar dos cidadãos, os quais elegem as propostas que querem que
sejam implementadas e os políticos que se encarregarão de praticálas; os governos, efetivamente, realizam-nas181.
Como salienta o autor, a representação política somente se concretiza ou
atinge sua finalidade quando “a vontade dos políticos e dos eleitores coincidem, ou
quando os políticos se preocupam em vencer as eleições e para vencer eles
precisam prometer e implementar as propostas políticas que são melhores para o
público”182.
Governança estabelece um mecanismo relacional entre governo e demais
atores civis em busca de soluções para conflitos e demandas sociais por meio da
busca do consenso.
O consenso aqui referido é corolário da transparência. A transparência da
governança possibilita o consenso porque estabelece a mútua confiança entre os
envolvidos, os quais recorrem ao debate buscando solução para as demandas
políticas, possibilidade de expressão de suas preferências, reconhecimento do
pluralismo e do direito de expressar diferentes opiniões. Com isso, estabelecem-se
processos decisórios legitimados pela opinião pública, a partir do que serão tomadas
as decisões políticas. Logo, a boa governança consagra o pluralismo e a
participação política, o que não é possível sem transparência.
Essa participação política de que trata a governança pública não é a
exigência de referendo popular ou consulta popular a todos os atos de governo – a
governança pública se estabelece no regime de governo representativo.
Logo, o que se questiona é: como os cidadãos podem participar da
governança pública e influir no processo de tomada das decisões políticas?
181
MANIN, Bernard; PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Suzan C. Eleições e Representação. Lua
Nova, São Paulo, v. 67, p. 105-138, 2006.
182
Ibidem, p. 105-138.
121
Nesse ponto, é necessário retomar a estrutura democrática do governo
representativo.
Boa Governança exige transparência. A transparência envolve um dever de
tomar decisões mediante observância a regras e regulamentos e, ainda, por meio da
disponibilização das informações necessárias para todos aqueles que serão
afetados por essas decisões e por sua execução.
A transparência é corolário do direito à informação, que traduz o direito a
obter ou ter à disposição informações suficientes acerca das decisões que podem
causar impacto em direitos fundamentais ou na possibilidade de exercício pleno da
cidadania pelos membros de uma comunidade.
De outro modo, a publicidade determina o dever de o representante prestar
contas de seu governo quando isso for solicitado, além de revelar transparência em
seus atos de forma contínua.
Todos esses atributos que perfazem o conceito de boa governança revelam
que se trata de instituto que alcançou juridicidade e relevância constitucional, tendo
sido consagrado pelo artigo 37 da Constituição Federal de 1988.
De todo modo, a governança não se estabelece em processos de
improvisação ou de gestão sem metas, razão pela qual o plano de governo também
ganha essa relevância, tendo sido constitucionalizado e alçado a dever político do
Presidente da República.
E a todo dever deve corresponder a devida responsabilização.
3.5 DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DA BOA GOVERNANÇA NO DIREITO
BRASILEIRO: O DIREITO AO BOM GOVERNO
A governança democrática pressupõe que a tomada de decisões seja o
ponto culminante de um processo no qual previamente foram colocados sob o crivo
do cidadão os projetos políticos objetos dessas deliberações.
Governança pressupõe deliberação acerca de projetos ou programas
políticos para o desenvolvimento de uma comunidade, nação ou comunidade
internacional.
A complexidade da organização do Estado e das esferas de competências
dos órgãos administrativos importa na cisão entre a esfera administrativa e a esfera
122
decisória, o que é um produto do modelo burocrático já superado e embute a ideia
de que a esfera política está dissociada da dimensão administrativa do Estado.
Associada a essa noção de separação absoluta entre Governo e
Administração emergem os conceitos de atos de governo ou atos políticos
dissociados dos atos administrativos, tratando-os como realidades totalmente
independentes e sujeitas a regimes jurídicos diferenciados, o que traduz maior
confusão.
Não bastasse a cisão completa entre o administrativo e o político, outra
noção usual é a cisão entre o político e o jurídico.
Apesar do reconhecimento geral quanto o fato de que toda manifestação de
poder somente se legitima juridicamente, a realidade é que há certa tendência a se
separar completamente o âmbito político do âmbito jurídico.
É bem verdade que o corpo administrativo do Estado, ao executar decisões
políticas ou praticar atos administrativos típicos, não expressa o poder político do
Estado e, nesse ponto, seus atos não possuem conteúdo político e não traduzem
atos de governo.
Porém, de outro lado, ao praticar atos de governança, tomar decisões
políticas e agir em conformidade com a orientação política previamente estipulada, o
detentor do poder político poderá praticar atos administrativos de conteúdo decisório
e, portanto, atos políticos ou atos de governo que trazem em si caráter
administrativo.
Os atos de governo não estão dissociados do caráter administrativo da
governança pública. Tanto é assim que a execução de todo ato decisório enseja a
prática de uma série de atos administrativos.
A questão fundamental reside na identificação daquele que tem poder,
competência ou aptidão para a tomada da decisão política que irá mobilizar o
aparato administrativo. Assim, a classificação dos atos praticados em nome do
Estdo depende do grau de responsabilidade envolvido em cada um..
De modo que sempre se poderá referir a uma responsabilidade pelos atos
do Estado.
Tal responsabilidade pode ser verificada em várias modalidades, conforme
será visto adiante.
123
É por essa razão que a Constituição traça princípios gerais a serem
observados por toda a Administração Pública, seja em razão da prática de atos de
governo ou atos administrativos próprios.
Ao definir um perfil a ser seguido pela Administração Pública, o texto
constitucional revela sua perfeita adequação ao conceito de boa governança,
estampando todos os princípios estruturantes da governança pública que revelam os
valores protegidos Estado Constitucional Democrático brasileiro.
3.6 GOVERNANÇA E ACCOUNTABILITY
Accountability é termo estrangeiro que não tem correspondente em língua
portuguesa.
A ONU define accountability, para línguas não-inglesas, como o dever de
agir com responsabilidade e, ao mesmo tempo, de forma responsiva183.
O tema da accountabilitty tem ocupado, nos últimos anos, espaço central no
debate acerca da qualidade das democracias e de seu desempenho. Por meio
desse mecanismo se procura aferir, ainda, o grau de legitimidade e de eficiência da
ação governamental.
A produção científica recente acerca do tema revela um quase consenso
acerca do mecanismo central de accountability em sociedades democráticas – o
voto do eleitor.
E há verdadeiro consenso entre os autores quanto à insuficiência do sufrágio
como mecanismo de controle das democracias, ainda que universal e secreto.
O voto é mecanismo insuficiente para controle político porque, por seu
intermédio, o eleitor não tem condições de expressar uma preferência prospectiva
em relação às diretrizes e orientações políticas futuras, tampouco expressar sua
avaliação quanto às preferências futuras e em relação a um conjunto extremamente
amplo de questões.
É necessária a implementação de mecanismos de controle político, cuja
atuação se verifique durante o mandato e a governança.
183
A definição de accountability proposta pela ONU está presente nos documentos disponibilizados
em seu website: <http://www.unpan.org/>. Acesso em: 07 dez. 2009.
124
A insuficiência de controle político da gestão governamental exclusivamente
por intermédio do voto e a noção de que a democracia somente se estabelece a
partir da responsividade do governante permitiu o reconhecimento da necessidade
de ampliação dos mecanismos de accountability.
Nesse sentido, o termo accountability é utilizado não simplesmente para
fazer referência ao ato de prestação de contas por parte das autoridades públicas,
mas também como mecanismo de exercício da cidadania empregável de modo a
exigir que o governante preste, de forma clara, todas as informações necessárias
acerca de sua gestão.
Conforme Guillermo O’Donnell:
Por definición, en esos países existe la dimensión electoral de la
rendición de cuentas vertical. Utilizando el recurso de elecciones
razonablemente limpias y libres los ciudadanos pueden castigar o
recompensar a los representantes votando a favor o en contra de
ellos, o de los candidatos que ellos apoyan, en la próxima elección.
Igualmente por definición, la libertad de opinión y de asociación, así
como el acceso a fuentes de información razonablemente variadas,
permite articular demandas a las autoridades públicas y
eventualmente denunciar sus actos ilícitos, a lo cual colabora la
existencia de una prensa razonablemente libre, incluida también en
la definición de poliarquía. Las elecciones, las demandas sociales
que usualmente pueden articularse sin sufrir coerción estatal, y la
cobertura periodística regular de, por lo menos, las demandas más
visibles y los actos flagrantemente ilícitos de las autoridades
públicas, son dimensiones de lo que llamo “rendición de cuentas
vertical”.
La existencia de la rendición de cuentas vertical implica que esas
poliarquías son democráticas, es decir, que los ciudadanos pueden
ejercer su derecho de elegir quién va a gobernarlos durante cierto
tiempo, y pueden organizarse para plantear libremente sus opiniones
y demandas. Pero la debilidad de la rendición de cuentas vertical
acarrea que los componentes liberales y republicanos de muchas
poliarquías nuevas sean endebles. Esta afirmación proviene de mi
convencimiento de que las poliarquías son la síntesis compleja de
tres corrientes o tradiciones históricas: la democracia, el liberalismo y
el republicanismo.
La rendición de cuentas horizontal es la existência de organismos
estatales que están legalmente habilitados y autorizados, y de hecho
dispuestos y capacitados, para emprender acciones que abarcan
desde la fiscalización rutinaria hasta sanciones penales o destitución,
en relación con actos y omisiones de otras instituciones del Estado
que puedan calificarse, en principio o presuntamente, como ilícitos184.
184
O’DONNELL, Guillermo. Rendición de cuentas horizontal e nuevas poliarquias. Revista Nueva
Sociedad, n. 152, p. 143-167, nov./dez. 1997.
125
Accountability possui, dessa forma, duas manifestações: accountability
horizontal – controle que cada um dos poderes estabelecidos exerce sobre os outros
– e accountability vertical – exigência de que os que os representantes prestem
contas e se submetam ao veredicto da população (processo eleitoral).
Accountability se relaciona não só com responsabilização, mas também
refere a responsividade e, portanto, o termo encontra emprego no âmbito político
para acomodar institutos democráticos.
A noção de accountability recebe tratamento específico ou diferenciado
pelos diversos autores que a empregam.
Assim, inúmeros autores, ao discorrerem sobre os movimentos de reforma
da gestão pública, identificam dois tipos de accountability: política e gerencial. A
expressão accountability política é empregada como prestação de contas aos
cidadãos pelos responsáveis pela coordenação, implementação e execução de
políticas públicas. É a prestação de contas pelo gestor. Para os que a defendem
como forma de controle, se trata de dever de accountability, de caráter políticoadministrativo, definido sob o paradigma tradicional da administração pública.
Accountability gerencial, por sua vez, é expressão elaborada a partir dos
paradigmas da nova concepção de administração pública, que entende a
administração como expressão da governança. Nesse sentido, accountability
gerencial se refere à prestação de contas dos gestores em relação à consecução
dos objetivos e metas definidos e/ou acordados nas políticas públicas, em especial
quanto à alocação de recursos e satisfação da vontade coletiva. Neste tipo de
accountability, a responsabilidade recai principalmente sobre a eficiência e a
efetividade no uso dos recursos alocados para a realização dos programas e sobre a
eficiência dos programas em si.
As definições acima são classificações a partir de um critério para
determinar a realização da accountability. Assim, são realizadas a partir da
consideração de um dado específico eleito para o estabelecimento do controle por
meio de accountability.
No presente trabalho, o conceito de accountability adotado será o construído
sob inspiração da teoria de Robert Alan Dahl, que se valeu da expressão
126
accountability democrática e cuja conceituação é seguida pela maioria dos cientistas
políticos185.
A accountability democrática pode ser definida como elaboração e emprego
de mecanismos institucionais por meio dos quais os governantes são obrigados a
responder, ininterruptamente, por seus atos ou omissões perante os governados.
O conceito de accountability democrática é inspirado em Robert Alan Dahl,
que definiu os requisitos básicos para uma democracia efetiva. Na formulação de
Dahl, a condição chave para a democracia é a contínua “responsividade” do governo
às preferências dos seus cidadãos, considerados politicamente iguais. Segundo ele,
a democracia somente pode ser entendida como um sistema político inteiramente ou
quase inteiramente responsivo aos cidadãos: estes devem ter a oportunidade de
formular suas preferências, expressá-las por meio da ação individual e coletiva e têlas consideradas nas tomadas de decisões governamentais.
Assim, sob a inspiração de Dahl, emerge o conceito de accountability
democrática como sendo a exigência de prestação de contas contínua, pelos
governos, à sociedade e aos outros atores do sistema político (Legislativo,
Judiciário) por meio de mecanismos institucionais.
A accoutability democrática se realiza através dos mecanismos institucionais
que devem garantir o controle público das ações dos governantes, para que os
cidadãos não sejam apenas informados sobre elas, mas possam também influir na
tomada das decisões políticas, por meio das eleições e ao longo dos mandatos dos
seus representantes, garantindo a responsabilização ininterrupta dos governos.
A accountability democrática está presente em diversas etapas:
1. o procedimento eleitoral em si (accountability vertical democrática);
2. a prestação de contas dos governantes, em especial quanto à
disponibilização de informação correta e transparente aos cidadãos;
3. a responsabilização em sentido estrito, isto é, envolvendo a aplicação de
recompensas aos governantes (como, por exemplo, a sua reeleição) ou de punições
quando os seus atos forem desaprovados ou rejeitados (como, por exemplo,
gerando derrotas eleitorais, impeachment ou restrições à sua autonomia e limitação
dos seus poderes).
185
Cf. DAHL, Robert A. Who Governs? Democracy and Power in an American City. New Haven: Yale
University, 1962. Cf., também: Idem. Polyarchy – participation and opposition. New Haven: Yale
University, 1971.
127
Em suma, a accountability refere-se não só à prestação de contas pelos
governantes, mas também às sanções que possam ser aplicadas pelos cidadãos
(controle político).
A accountability se vale de mecanismos institucionais que a favorecem ou a
reforçam. Em que pese seu mecanismo básico consistir no processo eleitoral, ela
não se reduz a esse procedimento.
Hoje, é possível afirmar que os desenhos institucionais das democracias
contemporâneas permitem e demandam a existência de outros instrumentos de
controle, com vistas a realizar contínua fiscalização e responsabilização ininterrupta
dos governos186.
Dessa forma, pode-se dizer que a noção de accountability não se exaure no
processo eleitoral.
A prática da accountability importa na incorporação de três dimensões de
responsabilidade política dos governantes:
1. responsabilidade de cumprir os compromissos políticos com observância
do dever de lealdade em relação às preferências do eleitor;
2. responsabilidade de prover informações confiáveis e transparentes;
3. responsabilidade por suas ações e decisões187.
Assim, mais que um problema estritamente teórico ou acadêmico, a busca
de mecanismos que ampliem o grau de accountability dos governos e do Estado em
geral tem sido também a tônica do debate político e objeto de intensa inovação
institucional nas democracias contemporâneas.
A inclusão de novos atores – da sociedade civil e do setor privado – na
formulação, implementação e controle das políticas sociais – tende a operar uma
importante transformação na relação entre governo e governados e alterar o padrão
de ação do Estado no âmbito do desenvolvimento social.
No Brasil, ainda que timidamente e em localidades isoladas, é possível
perceber a vivência dessa transformação na relação entre cidadão e Estado, por
186
PRADO, Otávio. Governo Eletrônico, Reforma do Estado e Transparência: O Programa de
Governo Eletrônico do Brasil. São Paulo, 2002. Tese (Doutorado em Administração Pública e
Governo) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.
187
FARAH, Marta Ferreira Santos. Parcerias, novos arranjos institucionais e políticas públicas no nível
local de governo. RAP – Revista de Administração Pública, v. 35, n. 1, p. 119-145, jan./fev. 2001.
Marta Ferreira Santos Farah é Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professora da
EAESP da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, participou do processo de implantação do
Programa Gestão Pública e Cidadania e é vice-coordenadora do Programa desde 1995.
128
meio das iniciativas de alguns Municípios brasileiros que adotaram o orçamento
participativo e as audiências públicas para adoção de políticas públicas.
De acordo com a análise feita por Marta Ferreira Santos Farah:
De um lado, está havendo uma ruptura com o padrão não
democrático de articulação entre Estado e sociedade, caracterizado
pelo clientelismo, pelo corporativismo e pelo insulamento burocrático.
Caminha-se, ainda que de forma embrionária, para a ampliação do
domínio público, o que inclui a publicização do próprio Estado, com a
incorporação do universalismo de procedimentos à lógica das
agências estatais. Tal processo abre caminho para que a sociedade
passe a cobrar os resultados da ação estatal, reduzindo – ao menos
potencialmente – o déficit de accountability que tem caracterizado as
políticas públicas no Brasil. Os governos locais assumem assim um
papel de coordenação e de liderança, mobilizando atores
governamentais e não-governamentais e procurando estabelecer um
processo de “concertação” de diversos interesses e de diferentes
recursos em torno de objetivos comuns. Através dos novos arranjos
institucionais assim constituídos tende a crescer a perspectiva de
sustentabilidade de políticas públicas que, de outra forma, poderiam
sofrer solução de continuidade a cada mudança de governo. O
enraizamento das políticas em um espaço público que transcende a
esfera estatal reforça a possibilidade de políticas de longo prazo,
com repercussões sobre a eficiência e a efetividade das políticas
implantadas188.
3.7 ACCOUNTABILITY E RESPONSIVIDADE DO GOVERNO
Responsividade significa a capacidade de resposta dos governos às
necessidades e preferências dos cidadãos; é a capacidade de atendimento das
demandas dos eleitores, pelos representantes políticos.
“Responsividade” corresponde mais de perto ao inglês
responsiveness, um conceito que está muito próximo, mas pode ser
distinguido do de accountability. A accountability diz respeito à
capacidade que os constituintes têm de impor sanções aos
governantes, notadamente reconduzindo ao cargo aqueles que se
desincumbem bem de sua missão e destituindo os que possuem
desempenho insatisfatório. Inclui a prestação de contas dos
detentores de mandato e o veredicto popular sobre essa prestação
de contas. É algo que depende de mecanismos institucionais,
sobretudo da existência de eleições competitivas periódicas, e que é
exercido pelo povo. Já a responsividade refere-se à sensibilidade dos
188
FARAH, Marta Ferreira Santos. Parcerias, novos arranjos institucionais e políticas públicas no nível
local de governo, p. 119-145.
129
representantes à vontade dos representados; ou, dito de outra forma,
à disposição dos governos de adotarem as políticas preferidas por
seus governados189.
3.8 GOVERNABILIDADE
De acordo com Manoel Gonçalves Ferreira Filho190, o termo governabilidade
é um neologismo construído a partir do verbo governar e expressa a “possibilidade
de ação governativa eficaz”; “traduz a aptidão de um Estado determinado realizar os
objetivos a que se propõe – a sua missão – não em abstrato, mas em face de um
quadro concreto”.
Governabilidade é a capacidade de concretizar a política definida pelo
Governo191; é a expressão do poder de governar, estabelecendo uma direção
política para o Estado.
Governabilidade significa aptidão de conduzir, administrando ou gerindo os
negócios públicos para consecução dos objetivos almejados pelo Governo.
Compreende o alcance dos objetivos políticos determinados pelo Governo.
A função do Governo é, sob o aspecto político e jurídico, no dizer dos
italianos, formular um indirizzo politico para o Estado, o que pressupõe uma
formulação imperativa, sob a égide do Direito, que deve ser obedecida tanto pelos
órgãos estatais quanto pela sociedade.
O Governo comanda a partir de uma legitimação jurídica, que é a expressão
de seu poder, de modo que, para governar, é mister a presença de regras jurídicas
dotadas de eficácia e efetividade.
Se o conceito de governabilidade remete às condições sistêmicas sob as
quais se dá o exercício do poder, ou seja, aos condicionantes do exercício da
autoridade política, a governança qualifica o modo de uso dessa autoridade.
Envolve, portanto, além das questões político-institucionais de tomada de decisões,
as formas de interlocução do Estado com os grupos organizados da sociedade, no
189
MIGUEL, Luís Felipe. Impasses da Accountability. Revista de Sociologia e Política, n. 25, p. 25-38,
nov. 2005.
190
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Constituição e Governabilidade: ensaio sobre a
(in)governabilidade brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 3 et seq.
191
Ibidem, p. 10.
130
que se refere ao processo de definição, acompanhamento e implementação de
políticas públicas.
O poder do Estado é um poder legítimo porque se fundamenta no
assentimento dos governados. Logo, quanto mais legítimo se consagrar esse poder,
maior será a eficácia ou efetividade dos atos do Governo.
A legitimidade do exercício do poder político exige a organização do poder, o
que é garantido pela Constituição. De fato, a Constituição é o instrumento político de
maior relevância para o Estado, na medida em que constitui o instrumento políticojurídico de organização do poder.
A Constituição institui, organiza e limita o poder, estruturando-o em função
dos objetivos traçados pelo Estado, impondo ao Governo uma “equação de
governabilidade”192.
O Governo tem por função definir os meios a serem utilizados para realizar
esses objetivos.
A governabilidade está, portanto, condicionada às peculiaridades da
sociedade governada, compreendendo diversos fatores, tais como: o nível de
desenvolvimento social, econômico e cultural do povo, os objetivos eleitos pela
sociedade governada e o agenciamento do próprio governo.
O agenciamento do próprio governo é o principal fator de governabilidade,
porquanto implica a determinação do Governo como centro diretivo, ordenador e
controlador do Estado e com aptidão política para articular a máquina governamental
com vistas a atingir os objetivos anelados, respeitando a capacidade do governante
(aqui entendido como aquele que dirige a máquina), os recursos disponíveis e as
demandas dos governados.
Logo, a governabilidade depende da presença de condições políticas,
econômicas e sociais que possibilitem o alcance dos fins objetivados.
Isso explica por que Ferreira Filho a concebe como “uma equação de
múltiplas variáveis”, de contornos relativos e jamais absoluta193.
A governabilidade democrática é uma variável dependente da capacidade
dos governos de alcançar e garantir graus adequados de responsabilidade política e
de responsividade perante os governados194.
192
Expressão formulada por Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Cf. FERREIRA FILHO, Manuel
Gonçalves. Constituição e Governabilidade: ensaio sobre a (in)governabilidade brasileira.
193
Ibidem, p. 4.
131
4
PLANO E PLANEJAMENTO DE GOVERNO
4.1 Plano de Governo: Conceito. 4.1.1 Plano Econômico, Plano
Político e Plano Monetário. 4.2 Planejamento. 4.2.1 Evolução
Histórica do Conceito de Planejamento. 4.2.2 O Planejamento no
Socialismo e no Capitalismo: Breves Apontamentos. 4.2.3
Planejamento Político e Econômico no Estado Brasileiro. 4.3
Noção Jurídica de Planejamento. 4.4 Importância Jurídica do
Plano de Governo.
4.1 PLANO DE GOVERNO: CONCEITO
Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o substantivo masculino
“plano” apresenta diversas significações, entre as quais estão: 1. projeto; 2. projeto
ou empreendimento, com fim determinado; 3. documento que encerra um conjunto
de ações governamentais a serem adotadas, visando a determinado objetivo195.
A terceira definição é a que se mostra adequada ao raciocínio que se
pretende desenvolver. Entretanto, a noção de plano político não se limita ao alcance
de um objetivo exclusivo ou apenas à apresentação de cronograma de ações. Sua
dimensão é mais abrangente e sua importância é política.
Assim, antes de apresentar o conceito de plano político é necessário
investigar a sua importância e as razões pelas quais se deve perseguir sua acepção
no âmbito jurídico.
Inicialmente, faz-se necessário refletir sobre a noção de plano enquanto
produto da atividade de planejar.
Planejar é um ato racional de cálculo de possibilidades que precede e
preside a ação para criar o futuro, mas não para predizê-lo196.
194
DINIZ, Eli. Reforma del Estado y Gobernanza Democrática: hacia la democracia sostenible?
Trabalho apresentado na Conferência Internacional sobre “Democracia, Gobernanza y Bienestar en
las Sociedades Globales” (Instituto Internacional de Gobernabilidad), realizada em Barcelona, entre
27 e 29 de novembro de 2003.
195
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio. Versão 5.1. 3.
ed. Curitiba: Positivo.
196
HUERTAS, Franco. O método PES: entrevista com Matus. Trad. Giselda Barroso Sauveur. São
Paulo: FUNDAP, 1996. p.14 et seq.
132
A ação de planejar implica influir nos resultados futuros, mesmo que não
haja controle total sobre o resultado de todas as ações. E por não haver controle
total sobre resultados é que se planeja.
O planejamento tem por finalidade a preparação para a criação ou a
transformação do futuro, a partir da previsão das possibilidades e da formulação de
respostas racionais e hipóteses alternativas que permitam o mesmo resultado. Não
se coaduna com técnicas de predição do futuro, mas é instrumento de
transformação e mecanismo para adequação de métodos ou atividades para
obtenção de um resultado específico.
Sempre que uma atividade humana importar em riscos e estiver sujeita a
variáveis que possam alterar seu resultado final, haverá a necessidade de que sua
execução seja planejada. Ou seja, será necessário identificar qual o melhor meio,
método, instrumento ou caminho a percorrer para alcançar o resultado pretendido.
Tomando por exemplo a ideia de plano de navegação é possível ilustrar o
raciocínio. Pretendendo deslocar-se de um ponto a outro, o ser humano verificou a
necessidade de identificar sinais, elementos ou marcos presentes na trajetória que
lhe permitissem calcular o percurso e os obstáculos a serem enfrentados. Foi a partir
dessa premissa que se elaboraram os mapas, e posteriormente, os mapas de
navegação até que se chegou, atualmente, aos planos de navegação aérea,
marítima e espacial.
Nos primórdios, o homem se utilizava dos próprios recursos naturais
observados no percurso para estabelecer o mapa ou até mesmo o plano de
navegação. Então, o percurso era traçado de acordo com os rios, montes, acidentes
naturais presentes na área a ser percorrida.
Com o aperfeiçoamento da tecnologia e a descoberta de instrumentos
capazes de cálculos precisos, a navegação se desenvolveu e novos instrumentos
foram adotados para elaboração dos planos. Foram introduzidos meios eletrônicos e
eletromagnéticos, tais como radares, satélites e instrumentos (GPS, DGPS,
GLONASS, BEIDOU).
O plano de navegação é, na realidade, o planejamento da viagem com o
cálculo de todas as variantes possíveis de serem opostas ao percurso, o que
permite a escolha da trajetória que melhor atenda às exigências do comandante. A
trajetória pode admitir diversos percursos, ainda que o destino seja mantido. Através
do planejamento da navegação é possível maior flexibilidade na adoção do
133
percurso. O plano de navegação acabou recebendo normatividade em todas as
formas de deslocamento (aéreo, espacial, marítimo e terrestre) e, atualmente, não
se concebe a realização de uma viagem sem rota previamente planejada ou plano
de navegação calculado.
Mas, qual é a relação entre plano de navegação e plano de governo?
O desenvolvimento do exemplo apenas serve para demonstrar que não se
concebe uma rota, um objetivo, bem como o alcance de uma meta, sem a adoção
de um método, um procedimento coerente com sua execução.
Quanto maior a complexidade da tarefa a ser desenvolvida, a distância a ser
percorrida e os obstáculos a serem superados, maior será a preocupação com o
método a ser posto em prática para alcançar os resultados pretendidos.
Assim, da eficácia do programa e de sua execução dependerá o resultado
perseguido.
A atividade política tem por finalidade conduzir o Estado ao crescimento
nacional e ao alcance de suas metas de desenvolvimento político, econômico e
social.
Nessa orientação, importa ponderar se é possível a atividade de governar
sem a adoção de uma política ou programa de governo.
A governança pode ser exercida prescindindo de um projeto político
previamente desenvolvido? É possível governar sem plano de governo?
E, por fim, o que é plano de governo?
As
respostas
a
essas
questões
implicam
ponderação
quanto
à
dispensabilidade ou à inutilidade da observância de um programa de governo pelo
detentor do poder.
Imperioso é afirmar inicialmente que não se trata de planificação de governo
ou da economia.
A expressão “plano de governo” tem conotação política e não econômica, tal
como possa parecer à primeira vista. O argumento que reforça a afirmação é sua
localização no texto constitucional, visto que está inserida no artigo 84, inciso XI, que
trata das atribuições do Presidente da República e não é mencionada no Título VII,
que regula a Ordem Econômica e Financeira.
A Constituição Federal somente se reporta à expressão “plano de governo”
quando se refere às tarefas políticas do Presidente da República, reservando as
134
expressões “plano de desenvolvimento”, “planejamento” e “programas” para as
atividades em que o Estado atua sobre a ordem econômica.
Assim, quando o texto constitucional se referiu a “plano de governo” deu-lhe
conotação política e mais abrangente.
No dizer de Fernando Henrique Cardoso:
A decisão de planejar é política, no sentido de que por intermédio da
definição dos planos se alocam ‘valores’ e ‘objetivos’ junto com os
‘recursos’ e se redefinem as formas pelas quais são propostos e
distribuídos. Assim, passa-se de um modo ‘tradicional’ de definição
de prioridades e distribuição de recursos, baseado, por exemplo, nas
esferas de influência (entre os estados, os partidos e a
administração) e na continuidade do sistema político através do
sistema eleitoral, para um modo ‘racional’ de proceder, graças ao
qual se diagnosticam as carências, se escolhem os objetivos e se
definem os meios a serem empregados, segundo regras e
procedimentos aceitos como razoáveis por um conjunto de técnicos
(embora sirvam, obviamente, para reorganização do sistema do
poder em benefício de uns partidos, grupos e líderes contra outros).
Por outro lado, a implementação do plano implica ‘política’, isto é, a
escolha de alguns recursos que o sistema político fornece em
detrimento de outros com o fim de, uma vez alcançados os
resultados ‘econômicos’ do plano reforçar politicamente o grupo que
o apoiou (presidente, seus ministros, técnicos e os partidos). E, por
fim, a própria ‘decisão administrativa’, neste caso longe de opor-se à
decisão política como um pólo antinômico, ‘abre-se’ ou dirige-se para
a decisão política: quando a persistência das normas organizacionais
é incapaz de resolver os problemas ou de atender a ‘demandas
políticas’ de uma dada situação, dá lugar a um novo critério, induzido
de fora da administração, capaz de solucionar o impasse criado197.
De fato, a expressão “plano de governo” não pode ser confundida ou tida
como sinônimo de planejamento econômico porque este está adstrito ao modo de
intervenção (aqui entendida como atuação) estatal na economia, enquanto “plano de
governo” é expressão que indica o conteúdo do programa político a ser desenvolvido
por determinado governo; trata-se do modo de condução política do Estado, pelo
chefe de Governo.
No sistema presidencial republicano, as duas funções – chefia de governo e
chefia de Estado – se concentram no presidente da república, o que implica a
centralização do poder político também em suas mãos.
É de se observar que ao se referir à expressão “plano” como atribuição do
presidente da República, a Constituição Federal associou o termo à expressão
197
CARDOSO, Fernando Henrique. A construção da democracia: estudos sobre a política brasileira.
São Paulo: Siciliano, 1993. p. 143-144.
135
“governo”, que tem conotação exclusivamente política. “Governar” exprime o
exercício do poder político, ou seja, a condução política de um Estado.
Ao se referir à economia, a Constituição Federal se reportou a planejamento
do desenvolvimento ou planos de desenvolvimento e não ao plano de governo.
As expressões “plano de governo” e “planejamento”, inseridas em contextos
diferentes e referentes a atividades diversas, evidenciam que a Constituição Federal
imprimiu aos termos conotações variadas.
“Plano de governo” não se atém meramente à dimensão econômica da
política estatal, pois, se assim o fosse, a expressão teria sido substituída por
planejamento econômico ou, ainda, por plano de desenvolvimento econômico e
seria repetida no Título VII (Da Ordem Econômica e Financeira) com idêntico
sentido.
Logo, o que se pretende demonstrar é que as expressões “plano de
governo”, “planejamento” e “planos” foram utilizadas largamente pela Constituição
Federal, mas não como sinônimas ou circunscritas à uma dimensão exclusivamente
econômica.
A expressão “plano de governo” será aqui entendida em sua conotação
política.
Plano de governo é o documento político previsto no artigo 84, inciso XI, da
Constituição Federal, que encerra a expressão política geral do governo198 mediante
um conjunto de medidas governamentais a serem adotadas.
As decisões nele inscritas encerram opções políticas do chefe do Poder
Executivo, adotadas em razão da conjuntura nacional quando de sua elaboração.
Essa é a diretriz do artigo 84, inciso XI, da Constituição brasileira, que determina que
o chefe do Executivo, “por ocasião da abertura da sessão legislativa, expondo a
situação do País e solicitando providências que julgar necessárias” deverá
apresentar o plano de governo ao Congresso Nacional.
A expressão “planejamento”, tal como foi adotada pela Constituição Federal,
não se reporta à visão tradicional de planejamento, conforme se pretende também
demonstrar.
O planejamento, tal como atualmente concebido por economias de mercado,
é instrumento de projeção de desenvolvimento e pode ser empregado em diversas
198
GRAU, Eros Roberto. Planejamento econômico e regra jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1978. p. 90.
136
áreas (social, econômica, cultural), tanto que a própria Constituição Federal utilizou
a expressão “planejamento” em diversos momentos. No artigo 226, § 7º, a
Constituição Federal se refere ao planejamento familiar como um direito atribuído ao
casal e garantido pelo Estado através de programas e recursos que possibilitem seu
exercício, o que importa em desenvolvimento social. Outro exemplo significativo está
no artigo 215, que trata do Plano Nacional de Cultura e, neste caso, a expressão
“plano” indica a importância da adoção de estratégias, ações e programas visando
ao desenvolvimento cultural do País.
Plano é a forma de instrumentalização do processo de planejamento político,
e não meramente econômico.
Gilberto Bercovici ressalta ser o plano um documento comprometido com
objetivos políticos e ideológicos que tem por finalidade a adoção de medidas
propensas a transformar estruturas econômicas e sociais:
um ato de direção política, pois determina a vontade estatal por meio
de um conjunto de medidas coordenadas, não podendo limitar-se à
mera enumeração de reivindicações. E por ser expressão dessa
vontade estatal, o plano deve estar de acordo com a ideologia
constitucional adotada. O planejamento está, assim, sempre
comprometido axiologicamente, tanto pela ideologia constitucional
como pela busca da transformação do status quo econômico e
social199.
O plano é um programa de gestão que define objetivos, meios de ação e
estabelece diretrizes e prioridades a serem atendidas no período de sua vigência.
Não pode ser estabelecido como uma predeterminação rígida, porque sua diretriz é
prospectiva e seu conteúdo reflete o produto de atividades de planejamento200. A
flexibilidade nele ínsita tem por fundamento as mobilidades econômica e social
contínuas que, muitas vezes, obrigam a adoção de processos de adaptação de seus
objetivos e estratégias à realidade situacional.
A visão prospectiva e diretiva do plano, que implica a previsão do que deve
acontecer futuramente, é o componente que fundamenta a concepção que o
entende como instrumento consagrador de mero conteúdo programático, destituído
de qualquer conotação jurídica ou impositiva.
Porém, não é essa a posição adotada no presente trabalho.
199
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da
Constituição de 1988. São Paulo, Malheiros, 2005. p. 71.
200
GRAU, Eros Roberto. Planejamento econômico e regra jurídica, p. 176-177.
137
Considerando a inovação constitucional, não se pode desconsiderar que a
formulação e apresentação do plano de governo são imposições constitucionais.
O plano comporta as diretrizes políticas para o desenvolvimento nacional
social, econômico e cultural e contém a materialização ou instrumentalização do
planejamento.
Assim, o plano de governo irá servir de diretriz para a confecção das leis
orçamentárias e das que instituírem políticas públicas, o que revela sua importância
jurídica.
O plano é prospectivo porque deve comportar as diretrizes a serem
adotadas pela Lei Orçamentária (que se fragmenta), e todo comando normativo
contém uma direção prospectiva (“dever ser”), mas isso não significa que ele não
tenha importância jurídica.
Gunnar Myrdal entende que o planejamento é uma ação governamental
auxiliada por outros órgãos coletivos que busca coordenar, racionalmente, as
políticas públicas com a finalidade de atingir as metas determinadas por um
processo (e um projeto) político em andamento201.
De acordo com José Afonso da Silva:
A idéia de planejamento traz alguns signos como parte de sua
linguagem, sendo evidente sua adoção como o caminho a ser
trilhado para promoção das mutações econômicas, sociais e culturais
e implementação dos fundamentos e objetivos da República
Federativa do Brasil.
O planejamento, ao lado da coordenação, da desconcentração, da
descentralização e do controle, compõe uma das funções estatais
disponíveis para o cumprimento de suas finalidades202.
O planejamento econômico deve estar contido no plano de governo, mas não
o exaure.
O planejamento econômico é um instrumento de racionalização da
intervenção do Estado no domínio econômico.
José Afonso da Silva observa que o planejamento “é o processo técnico que
se traduz juridicamente em planos”203.
Conforme a própria Constituição Federal estabelece, em seu artigo 174, o
planejamento é imperativo para o setor público, porém indicativo para o setor
201
MYRDAL, Gunnar apud GRAU, Eros Roberto. Planejamento econômico e regra jurídica, p. 62.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 809.
203
Ibidem, p. 809.
202
138
privado, o que revela que o Estado atuará como agente meramente normativo e
fiscalizador da atividade econômica e não como “Estado protagonizador da atividade
econômica”204.
4.1.1 Plano Econômico, Plano Político e Plano Monetário
Importante diferenciação é a que incide sobre os conceitos plano econômico,
plano político e plano monetário.
Plano econômico é o produto do planejamento econômico instrumentalizado
em planos; plano político é o documento que instrumentaliza as diretrizes políticas
para o desenvolvimento econômico, social e cultural de um Estado com vistas ao
interesse público, elaborado por um chefe de governo; e plano monetário, por sua
vez, é algo bem diferente e oposto à ideia de planejamento. Planos monetários são
medidas econômicas imperativas ao setor público e privado, determinadas
emergencialmente pelo governo para fins de estabilização da moeda nacional. São
exemplos de planos monetários o Plano Cruzado, Plano Verão, Plano Bresser, etc.
No dizer de Eros Grau:
Incompreensível, também, o equívoco, no qual tantos incorrem, de
tomar os recentes ‘planos’ de estabilização monetária praticados
entre nós – ‘Plano Cruzado’, ‘Plano Bresser’, ‘Plano Verão’ – como
experiências ou exemplos de planejamento. Pois eles são,
precisamente, expressões do não planejamento, ou seja, de atuação
estatal improvisada, ad hoc, sem prévia definição de objetivos. A
incoerência dos que cometem esse equívoco é, ademais, absoluta:
pois, se tais ‘planos’ são expressões de planejamento, não poderiam,
mercê do que dispõe o art. 174, obrigar (ser determinantes) para o
setor privado205.
A Constituição Federal de 1988, no artigo 84, inciso XI, refere-se a plano de
governo, termo que não se confunde com plano econômico ou plano monetário e é
bem mais abrangente que estes.
Plano de governo é expressão da diretriz política adotada por um governo e
abrange o programa governamental de desenvolvimento econômico, social e
204
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Econômico. São Paulo: Celso Bastos, 2004. p. 258.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1978. p. 283.
205
139
cultural, indicando como será exercido o poder político (metas, objetivos) com vistas
a atingir a boa governança.
O plano de governo é diretriz de governança e por essa razão pode-se
afirmar que a expressão é mais abrangente e não se refere apenas ao plano
econômico ou ao planejamento.
4.2 PLANEJAMENTO
A expressão planejamento carrega consigo um forte preconceito porque está
associada à ideia de planificação ou projeção rígida da economia.
Essa concepção tradicional de planejamento e que o associa a economia
centralizada causa profundo desconforto, razão pela qual a maioria dos autores
tende a associar a ideia de planejamento à ideologia socialista.
O planejamento moderno não concebe a noção de predição do futuro.
A tradicional abordagem do planejamento o concebe como uma simples
técnica de projeções econômicas com viés tecnocrático e que ignora todos os atores
do processo social, porque se restringe ao econômico, ainda que contenha
projeções (limitadas) para o social.
Planejar não é predizer, adivinhar ou supor o futuro, pois este é sempre
desconhecido e incontrolável. O planejamento é uma ferramenta para enfrentar as
incertezas extremas ou surpresas porque visa à capacitação para reação imediata
ante os resultados não desejados e à adoção de estratégias para corrigir a ação e
redesenhar o futuro. É um instrumento para transformação, e não acomodação do
futuro.
Envolve técnicas e métodos para gerir problemas206 atuais e potenciais, o
que permite duas vertentes: o planejamento reativo e o planejamento proativo.
206
A atual teoria do “intercâmbio de problemas” formatada por Carlos Matus propõe a impossibilidade
de solucionar problemas, os quais, na verdade, são enfrentados e intercambiados. Diz Matus: “Todas
as ações geram impactos positivos e negativos: enfrentamos a inflação e pagamos o custo da
recessão e do desemprego; cuidamos do meio ambiente e elevamos os custos de produção; fazemos
estradas e barragens e destruímos o equilíbrio ecológico. Nenhum enfrentamento é limpo no sentido
de que seja sem custos sobre outros problemas ou sobre outros atores. Por isso não solucionamos
problemas, apenas tentamos intercambiar problemas que têm alto valor para nós por problemas de
baixo valor. O processo pode ser muito conflitivo, porque o intercâmbio de problemas que é favorável
para mim pode implicar um intercâmbio desfavorável de problemas para outros. O progresso é um
140
A doutrina estrangeira não costuma fazer distinção ao empregar as
expressões plano e planejamento. Os portugueses Luis S. Cabral de Moncada e
Simões Patrício não diferenciam entre plano e planejamento. Os espanhóis Gaspar
Ariño Ortiz e Alfredo Gallego Anabitarte, Hernando e Gómez-Reino, Ramón Martín
Mateo, Francisco Sosa Wagner e Martín Bassols Coma não distinguem plano,
planejamento e planificação207.
Na doutrina brasileira, entretanto, a regra é a distinção entre os termos.
Eros Roberto Grau, José Afonso da Silva, Gilberto Bercovici, Floriano de
Azevedo Marques Neto e João Eduardo Lopes Queiroz distinguem entre
planejamento e planificação, sendo o último termo empregado para distinguir as
economias de direção central, que se dirigem por uma orientação ou ideologia
socialista.
No presente trabalho, será utilizada a expressão “planejamento” em sua
dimensão jurídica, admitindo-se a existência de divergência entre as expressões
“planejamento” e “planificação”, conforme orientação predominante na doutrina
pátria.
O planejamento deve ser entendido como instrumento para busca da
eficiência na Administração Pública.
A função do planejamento é orientar e conformar o mercado ao alcance de
objetivos que conciliem os interesses dos produtores e dos consumidores, bem
como os fins do Estado. O planejamento visa dotar o mercado de certa racionalidade
global,
harmonizando
interesses
antagônicos
e
atrelando
o
conceito
de
racionalidade ao de eficiência. A racionalidade do planejamento com vistas à
eficiência é a opção pela adoção de planejamento público articulado com o
planejamento empresarial, desde que aquele respeite o mercado, interaja com ele e
busque a compatibilização entre os setores.
Em seu aspecto jurídico, apresenta duplo vértice: é institucional, na medida
em que traduz o modo de organização do Estado para alcance de objetivos
predeterminados; e normativo, pois reclama a presença de normas jurídicas para
intercâmbio de problemas e, por isso mesmo, é conflitivo, pois baseia-se em um constante
intercâmbio de problemas. O plano não é mais do que uma proposta de intercâmbio de problemas e
por isto sempre alguma parte importante do plano é conflitiva”. HUERTAS, Franco. O método PES:
entrevista com Matus, p. 44.
207
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; LOPES QUEIROZ, João Eduardo. Planejamento. In:
MARTINS CARDOZO, José Eduardo; LOPES QUEIROZ, João Eduardo; BATISTA DOS SANTOS,
Márcia Walquíria (Org.). Curso de Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2006. p.
46.
141
implementar o plano estabelecido, bem como para estabelecer a origem e forma de
aplicação dos recursos necessários para sua implementação.
O planejamento se materializa em um bom plano e este é, na realidade, uma
aposta estratégica e jamais uma aposta sobre destino208.
Planejar significa pensar antes de agir, pensar sistematicamente,
com método; explicar cada uma das possibilidades e analisar suas
respectivas vantagens e desvantagens; propor-se objetivos. É
projetar-se para o futuro, porque as ações de hoje terão sido
eficazes, ou ineficazes, dependendo do que pode acontecer amanhã
e do que pode não acontecer. O planejamento é a ferramenta para
pensar e criar o futuro porque contribui com um modo de ver que
ultrapassa as curvas do caminho e chega à fronteira da terra virgem
ainda não palmilhada e conquistada pelo homem. Essa visão ampla
serve como suporte das decisões de cada dia: os pés no presente e
o olhar no futuro. É portanto uma ferramenta vital. Ou sabemos
planejar ou estamos condenados à improvisação209.
4.2.1 Evolução Histórica do Conceito de Planejamento
A noção de plano foi extraída da ciência urbanística no século XVIII e
traduzia a expressão gráfica de uma realidade física. Posteriormente, ampliou-se
para alojar a ideia de ordenação sistemática de todo o conjunto territorial, mas ainda
enquanto expressão gráfica.
A concepção de planejamento urbanístico resultou de uma decisão para que
técnicos desenvolvessem o traçado geométrico da cidade de Paris, sob a
administração do prefeito Haussmann, o que depois foi seguido em Viena. O termo
guardava ainda, porém, a acepção de ordenação sistemática de uma realidade
física.
Posteriormente, dois teóricos da moderna ciência da administração, Taylor e
Fayol, adaptaram o conceito de planejamento para a organização industrial após
observarem a necessidade de ordenar racionalmente os setores industriais. A partir
daí, sob influência dos avanços tecnológicos e da necessidade de ordenar espaços
e processos dentro da indústria, desenvolveram-se as técnicas de planejamento ou
planificação industrial, que tinham por finalidade reduzir a princípios as ações e
208
209
HUERTAS, Franco. O método PES: entrevista com Matus, p. 15.
Ibidem, p. 12.
142
processos de produção, compreendendo a previsão de ações necessárias no
desenvolvimento da cadeia de produção que permitissem a adoção de medidas para
evitar ocorrências não programadas originadas durante o processo.
Durante a Primeira Guerra Mundial, o emprego dos métodos de organização
racional à estratégia militar pelo Estado Maior Alemão tonificou a noção de
planejamento e alargou seu conteúdo, que passou a abranger a compreensão de
‘sistemática voltada a um fim determinado’, noção esta ainda hoje aceita.
Em 1921 é que se reconhece, na Rússia Soviética, a primeira experiência
em planejamento econômico, através do planejamento nacional sob a influência da
ideologia socialista, que vinculava a ideia a um sistema de coordenação do processo
econômico com medidas tendentes à centralização e planificação da economia210.
A Depressão da década de 30 levou o conceito para todo o Ocidente, porém
com conotação diversificada, traduzindo a necessidade de atuação do setor público
no processo econômico mediante técnicas do processo de planejamento, com
finalidade intervencionista e tendente a racionalizar execução de projetos e obras. O
planejamento passa a ser compreendido como método indispensável de toda
atuação política, econômica e social pelos países do Ocidente, sendo adotado pelos
países capitalistas.
Após a Segunda Grande Guerra, o planejamento ganhou aceitação como
pressuposto
indispensável
à
realização
dos
fins
do
desenvolvimento
socioeconômico e passou a prescindir de qualquer ideologia ou direção política211.
Ressaltado o seu conteúdo finalístico, surge a conceituação de plano como
“conjunto de disposições e meios previamente estabelecidos e combinados em
210
Entre as medidas planificadoras da economia, tem-se o tabelamento de preços, que é forma
drástica de intervenção no mercado e que conflita com os princípios conformadores de uma ordem
econômica sedimentada no princípio do livre mercado. Nesse sentido, a lição de Monica Herman
Salem Caggiano: “(...) O tabelamento, como figura técnica, consubstancia-se em mecanismo de
controle: um mecanismo de controle, porém, próprio de um determinado modelo econômico – o
dirigismo econômico, muito distante daquele desenhado por nossa Carta Política. Isto porque tabelar
espelha técnica da prefixação de preços decorrente de um plano global. Estabelece-se o plano e, a
partir desse e de seus elementos, são fixados os preços e os seus respectivos componentes, que
devem vigorar enquanto perdurar o plano original. Ora, somente o tipo de economia centralizada
convive com planos inflexíveis e sobre planos vem montada, buscando o atingimento das metas, as
que tais planos vem pré-orientados. Ignora, porém, os elementos do livre mercado – a livre iniciativa e
a livre concorrência são fatores que não lhe sensibilizam e não o informam, que se lhe afiguram
totalmente estranhos”. CAGGIANO, Monica Herman Salem. Controle do Mercado por via de
Tabelamento. Revista de Direito Público, v. 100, p. 43, 1991.
211
GRAU, Eros Roberto. Planejamento econômico e regra jurídica, p. 10 et seq.
143
função da execução de um projeto voltado à consecução de objetivos
predeterminados”212.
Quando desenvolvido pelo Estado como instrumento de intervenção no
poder econômico, o planejamento está intimamente relacionado com a ideia de
intervencionismo e dirigismo econômico.
Planejamento é medida instrumental de gestão e seu âmbito é bem mais
amplo que a intervenção estatal no domínio econômico.
O que se pretende é demonstrar que a tomada de decisões políticas e a
adoção de diretrizes políticas tendentes ao desenvolvimento do Estado não se
dissociam da ideia de planejar e de desenvolver planos para alcance de metas.
O planejamento, se voltado a fins sociais e econômicos predeterminados,
suscita a previsão de desenvolvimentos futuros e sua utilidade se voltará para a
tomada de decisões políticas.
A noção de planejamento com vistas ao desenvolvimento econômico e
social pressupõe a ação coordenada de vários órgãos e serviços públicos para o
alcance de objetivos predeterminados e afastamento de resultados negativos, sem
se limitar à concepção de definição de diretrizes, mas compreendendo a
identificação
dos
mecanismos
necessários
à
realização
dos
fins.
Essas
características o desvinculam do emprego socialista e permitem afirmar que
planejamento não é medida incompatível com capitalismo, porque não se trata de
utilizar métodos para fins de planificação da economia.
No capitalismo, o planejamento é um modo de ação racional voltado à
otimização da política de governo pela adoção de medidas técnicas com vistas a
administrar recursos a serem utilizados para fortalecer a economia de mercado e o
desenvolvimento social.
4.2.2 O Planejamento no Socialismo e no Capitalismo: Breves Apontamentos
O mercado é a instituição básica do capitalismo, assim como o direito de
propriedade dos bens de produção, a liberdade de contratar e a livre-concorrência e
livre–iniciativa, que são seus valores jurídicos fundamentais.
212
GRAU, Eros Roberto. Planejamento econômico e regra jurídica, p. 13.
144
É pela eficiência do mercado e sua dinamização que o capitalismo
prospera.
No sistema socialista, há uma antítese entre mercado e planejamento, pois
este substitui aquele. O planejamento dirige a economia através de um plano
imposto pelo Estado e, por isso, se diz que a economia é dirigida a partir do centro.
Não há liberdade de contratar e tampouco direito à propriedade, bem como direito à
propriedade dos bens de produção. A propriedade dos bens de produção é coletiva
e o planejamento tem em vista a divisão do trabalho e do produto social obtido entre
os diversos setores da economia.
O planejamento, no modelo socialista, importa no estabelecimento pelo
Estado de um plano econômico a ser obedecido pelas diversas esferas e setores da
economia (planejamento imperativo).
Planejamento não é incompatível com o capitalismo.
Planejamento econômico e planificação da economia não são expressões
sinônimas.
A planificação da economia está diretamente relacionada ao planejamento
socialista.
O planejamento é instrumento técnico e pode estar a serviço de qualquer
ideologia. As diretrizes que adota é produto dos valores fundamentais do Estado.
4.2.3 Planejamento Político e Econômico no Estado Brasileiro
O Estado, enquanto estrutura social, compreende a multiplicidade e
totalidade dos grupos presentes em seu território, e sobre eles detém o poder
político. O poder político do Estado objetiva coordenar, regular e limitar a sociedade
estatal ou civil, dirigindo-se a todo o corpo social, possibilitando que os fins estatais
sejam alcançados. Logo, o poder político é fenômeno superior a todos os demais
poderes sociais.
A vontade estatal, expressão de seu poder político, é manifestada através de
seus órgãos, cujo conjunto se denomina governo ou órgãos governamentais213.
213
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 107.
145
Na expressão de José Afonso da Silva, “o governo é, então, o conjunto de
órgãos mediante os quais a vontade do Estado é formulada, expressada e realizada,
ou o conjunto de órgãos supremos a quem incumbe o exercício do poder político”214.
No capitalismo, o planejamento é um modo de ação racional voltado à
otimização da política de governo pela adoção de medidas técnicas com vistas a
administrar recursos a serem utilizados para fortalecer a economia de mercado. A
noção de planejamento imperativo em nada se aproxima da ideia de plano de
governo adotada pelos artigos 84, inciso XI, e 49, inciso IX, da Constituição Federal,
e tampouco se aproxima do planejamento constante do artigo 174, caput, do mesmo
texto legal.
A Constituição adota o princípio do planejamento, mas este em nada se
reporta ao praticado em caráter socializante da economia. Na verdade, a
Constituição entende o planejamento como um poder-dever do governante e como
“técnica de ação racional corrente em administração”215.
Está,
portanto,
superada
a
antiga
polêmica
que
preconizava
a
impossibilidade de conciliação entre planejamento e regime democrático.
José Afonso da Silva, além de desfazer o equívoco, apresenta o fundamento
constitucional para a compatibilização entre a função de planejar e a observância ao
princípio do livre mercado:
Houve um tempo em que se discutiu muito sobre as relações entre
planejamento econômico e democracia. Os conservadores negavam
a possibilidade de um regime democrático realizar a ação
governamental planejada. Essa posição negativista fundava-se na
ideia de que só há democracia e liberdade onde se deixe ao alvedrio
da iniciativa privada toda atividade econômica. A questão está
inteiramente superada. O constituinte não teve qualquer dúvida sobre
a compatibilidade entre planejamento econômico e democracia, tanto
que estruturou um Estado Democrático de Direito com previsão de
sua intervenção na ordem econômica também por meio do
planejamento econômico. Aceitou aí a tese de que não haverá
democracia real onde não exista um mínimo de organização
econômica planejada pelo Poder Público, visando à realização dos
interesses populares. A questão se põe de outro modo, pois tanto
pode haver planejamento num regime democrático – então se terá
um planejamento democrático – como num regime ditatorial e então
se terá um planejamento autoritário. O problema está sempre na
dependência da participação do povo, pois sendo o plano (expressão
214
215
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 109.
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, p. 305.
146
do planejamento) ato eminentemente político, requer previamente
uma decisão política216.
4.3 NOÇÃO JURÍDICA DE PLANEJAMENTO
Planejamento é um conjunto de medidas racionais adotadas pelo governo de
um país, mediante processos políticos, geralmente com a participação de outros
órgãos de representação popular, tendente a coordenar as políticas públicas mais
racionalmente e com o fim de atingir mais completa e rapidamente os objetivos
capazes de garantir o desenvolvimento futuro.
O planejamento se expressa documentalmente em um plano.
O plano consiste no registro das medidas adotadas no planejamento e,
portanto, contém a definição de objetivos a serem atingidos, o processo de
previsões feitas e que justificaram a tomada de decisões, a definição das ações a
serem praticadas e medidas de adaptação do plano às mudanças da realidade.
Eros Grau o conceitua nos seguintes termos:
Conceituo planejamento econômico como a forma de ação estatal,
caracterizada pela previsão de comportamentos econômicos e
sociais futuros, pela formulação explícita de objetivos e pela definição
de meios de ação coordenadamente dispostos, mediante a qual se
procura ordenar, sob o ângulo macroeconômico, o processo
econômico, para melhor funcionamento da ordem social, em
condições de mercado217.
4.4 IMPORTÂNCIA JURÍDICA DO PLANO DE GOVERNO
A Constituição Brasileira de 1988 adotou o princípio do planejamento com
vistas ao desenvolvimento nacional.
Assim, é possível afirmar que a função de planejamento da economia é
diferente da tarefa política de formulação e apresentação de plano de governo, uma
vez que esta última é mais abrangente e contém o resultado do planejamento
216
217
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 810-811.
GRAU, Eros Roberto. Planejamento econômico e regra jurídica, p. 65.
147
econômico através de programas a serem adotados para garantir o desenvolvimento
econômico e social.
O planejamento da economia é assunto afeto à normatização da ordem
econômica.
O plano de governo é documento político que formaliza o comprometimento
político do governante para com os governados e que deve ser observado enquanto
diretriz da condução política do Estado. Sobre seu conteúdo, deverá o governante
prestar contas ao Congresso Nacional, pois se trata de dever político submetido à
accountability pelo Legislativo.
Toda a sistemática constitucional aponta para o estabelecimento de
diretrizes políticas mediante planejamento que não se esgota na noção econômica,
mas inclui a concepção de planejamento com vistas ao alcance de objetivos,
especificamente o desenvolvimento (social, educacional, econômico, regional). E a
demonstração dessa conclusão está na quantidade de dispositivos constitucionais
que preconizam dever de planejar, adotar planos, fiscalizar a execução dessas
atividades, aos entes políticos.
É o que dispõem os seguintes artigos da Constituição Federal de 1988:
- 20, incisos IX, XVIII e XX
- 21, inciso IX
- 23, inciso IX
- 25, § 3º
- 29, inciso XII
- 30, inciso VIII
- 43
- 48, inciso IV
- 49, inciso IX
- 58, caput e inciso VI
- 68, § 1º
- 74, incisos I e II
- 84, inciso XI
- 159, inciso I
- 165
- 174
- 182, § 1º
148
- 187, caput e § 2º
- 214
O princípio do planejamento também informa a sistemática do orçamento
público, que se desenvolve mediante orçamento-programa, em três fases.
O orçamento obedece ao princípio da legalidade e deve ser programado a
partir das diretrizes ofertadas no planejamento e presentes no plano de governo.
O artigo 84, inciso XI, da Constituição Federal, inovou ao determinar que é
dever do Presidente da República apresentar o plano de governo juntamente com a
mensagem presidencial de abertura dos trabalhos legislativos.
A Constituição de 1967 preconizava que:
Art 83. Compete privativamente ao Presidente:
(...)
XVII - enviar proposta de orçamento à Câmara dos Deputados;
XVIII - prestar anualmente ao Congresso Nacional, dentro de
sessenta dias após a abertura da sessão legislativa, as contas
relativas ao ano anterior;
XIX - remeter mensagem ao Congresso Nacional por ocasião da
abertura da sessão legislativa, expondo a situação do País e
solicitando as providências que julgar necessárias.
O plano de governo foi alçado à categoria de dever político constitucional
com a redação do artigo 84, inciso XI, da Constituição de 1988, que inovou ao
estabelecer o dever presidencial de “remeter mensagem e plano de governo ao
Congresso Nacional por ocasião da abertura da sessão legislativa, expondo a
situação do País e solicitando as providências que julgar necessárias”.
Ao prescrever essa regra, a Constituição Federal formalizou a exigência
democrática de comprometimento do chefe do Executivo com o destino político do
Estado.
A formulação constitucional do dever político de expressar quais serão as
diretrizes para gestão governamental importa na atribuição de uma responsabilidade
política ao presidente da República.
Mensagem do Executivo é o ato pelo qual o chefe do Poder Executivo
informa o Legislativo “sobre os interesses e assuntos, mais importantes do
momento, e porventura, dependentes de ação legislativa”218. A Mensagem constitui
oportunidade para estabelecer ou manter uma relação de harmonia entre os poderes
Executivo e Legislativo, na medida em que estabelece, entre eles, comunicação
218
CAVALCANTI, Amaro. Regime federativo e a república brasileira, p. 192.
149
eficiente e hábil a invocar a responsabilidade de cada qual dos poderes para o
exercício das tarefas que lhes são afetas.
Mensagem é expressão jurídica relacionada à comunicação entre poderes e
está presente na técnica legislativa. É uma exposição de motivos que se presta a
ofertar informações a outro poder ou a acompanhar a apresentação de projetos
legislativos.
A mensagem presidencial que inaugura a sessão legislativa constitui um
verdadeiro relatório da situação do país e indica quais serão as diretrizes políticas
estabelecidas pelo chefe do Executivo para a próxima gestão. A mensagem
presidencial deve acompanhar o plano. O plano de governo estabelece quais as
diretrizes políticas adotadas pelo governo, indicando quais serão as prioridades e
determinando as metas e objetivos a serem realizados, bem como a implementação
de políticas públicas. Servirá de diretriz para o orçamento e, portanto, se submete ao
princípio da legalidade.
150
5
RESPONSABILIDADE POLÍTICA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO
NO SISTEMA PRESIDENCIAL
5.1 Poder Executivo. 5.1.1 O Poder Executivo e a Doutrina da
Separação de Poderes. 5.1.1 A Distinção entre a Teoria da
Separação de Poderes e os Mecanismos de Check and
Balances. 5.2 Responsabilidade Política. 5.2.1 A Doutrina da
Irresponsabilidade Política do Soberano. 5.2.2 A Doutrina da
Razão de Estado: Origem Histórica. 5.3 Responsabilidade
Política do Chefe de Governo: Sistema Parlamentarista e
Sistema Presidencial. 5.4 Responsabilidade Política do Chefe do
Executivo e Representação Política. 5.4.1 Representação
Política: Origens. 5.4.2 Representação Política e Democracia
Representativa. 5.4.3 A Crise da Representação Política e a
Democracia Delegativa em Guillermo O’Donnell. 5.4.4 A
Importância do Plano de Governo e a Boa Governança: a Crise
de Representação Política. 5.5 A Dimensão Jurídica do Exercício
do Poder Político e a Responsabilidade pelo Poder: o Dever
Político do Chefe do Executivo de Julgar e Implementar o Plano
de Governo.
5.1 PODER EXECUTIVO
A expressão “Poder Executivo” é de uso corrente e está sedimentada na
doutrina do Direito Público. Porém, em que pese sua aceitação, seu uso recebe
críticas.
Faz parte do pensamento comum a ideia que pressupõe ser a função
precípua do Poder Executivo o cumprimento das leis.
A noção é equivocada, pois não se pode deixar de reconhecer que o
Executivo detém a função política de conduzir o Estado ao alcance de seus
objetivos.
Blunstchili, em Théorie générale de l’État, salientou que a expressão é infeliz
porque não é capaz de exprimir o caráter essencial do governo, tampouco de
esclarecer a relação entre esse Poder e os demais Poderes (Legislativo e
Judiciário)219. Assevera que a impropriedade está no termo “Executivo”, pois há
execução quando se concretiza uma decisão própria ou de terceiro e, em ambos os
219
BLUNSTCHILI, Théorie generale de l’Etat apud FONSECA, Aníbal Freire. O Poder Executivo na
República Brasileira, p. 28-29.
151
casos, a relevância da função está no caráter decisório do ato e não na execução
propriamente dita.
Assim, a execução das leis propriamente dita consistiria na obrigação de
cumprir exclusivamente o que determinam os textos legais emanados do Legislativo,
subtraindo do Executivo a capacidade de decisão política e de determinar a política
de Estado a ser observada por todos os cidadãos e respeitada pelos demais
Poderes, desde que em consonância com os ditames constitucionais.
Nesse sentido, sustentam alguns que a impropriedade do termo leva à
diminuição da importância do Poder Executivo e o coloca em condição de
subordinação em relação ao Legislativo, o que não se coaduna com o princípio da
igualdade entre os Poderes de Estado constituídos.
Em face dessas severas críticas, o Ministro Viveiros de Castro propôs fosse
o vocábulo substituído pela expressão “Poder Governamental”.220
Todavia, a proposta não solucionaria a imprecisão terminológica, pois o
termo “governo” também admite variadas acepções e dimensões, o que traria novos
embaraços.
As propostas de substituição da expressão “Poder Executivo” não vingaram
e é assente a afirmação de que o relevante é reconhecer as funções afetas a esse
Poder e a sua independência, autonomia e paridade em relação aos demais
Poderes.
O Poder Executivo incumbe-se das funções executivas do Estado, as quais
compreendem
“a
execução
material
e
a
direção
da
administração,
o
encaminhamento das relações internacionais, o poder regulamentar e a iniciativa
das leis”, sendo que, ainda, a essas competências que os governos extraem da
Constituição,
confere-se
um
papel
político,
designado
como
“função
governamental”221.
A organização do Executivo, pela sua própria natureza, é complexa e as
funções por ele desempenhadas atribuem-lhe uma primazia em relação aos demais
Poderes, porque a ele incumbe a condução administrativa e política do Estado222.
A condução política geral do Estado é a atribuição que qualifica o Executivo
e lhe confere relevância superlativa, pois se trata do Poder incumbido da função
220
FONSECA, Aníbal Freire. O Poder Executivo na República Brasileira, p. 29.
BURDEAU, Georges; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Direito Constitucional, p. 130.
222
FONSECA, Aníbal Freire. Op. cit., p. 30.
221
152
estatal que concentra a tomada das decisões políticas com vistas à adoção de
medidas eficientes ao alcance dos fins do Estado e à salvaguarda do interesse
público.
No dizer de Biscaretti di Ruffia:
Por dirección política general se quiere indicar la orientación
específica, que se imprime, en primer lugar, a la actividad ejecutiva y
de gobierno, y en segundo término, también a la legislativa, no sólo
en casos particulares, por conducto de la expedición de expresos
actos normativos del poder ejecutivo, sino también en vía ordinária,
mediante la iniciativa legislativa o, al menos, la facultad de dirigir
223.
mensajes al Parlamento
A natureza peculiar das funções atribuídas ao Executivo, no Estado
Constitucional moderno, especialmente a de traçar a diretriz política do Estado e
conduzi-lo aos fins propostos pela Constituição, revela a supremacia dos poderes
conferidos ao chefe do Executivo e a necessidade do estabelecimento de
mecanismos de controle desse Poder para evitar o arbítrio e garantir-lhe eficiência.
Acerca da força política exercida pelo Poder Executivo, diz Aníbal Freire da
Fonseca:
só diante da renovação crescente do papel do Estado no progresso
social e da evolução de novas formas de satisfação dos interesses
coletivos se apercebeu de que o executivo não é um poder apagado
e manco. Mesmo nos mais impregnados do liberalismo
representativo acentua-se a certeza de outros horizontes na
distribuição das competências dos poderes do Estado e a ciência do
direito público encontra nos Jellinecks e nos Duguit os cooperadores
224
de novas e radiosas idéias .
O órgão encarregado da função executiva é denominado “governo”, razão
pela qual suas funções também são designadas funções governamentais.
Georges Burdeau afirma que a função governamental compreende “o
exercício da totalidade do poder do Estado”225. Porém, o autor não pretendeu com
essa definição expressar que a função governamental concentra todo o poder
estatal nas mãos do Executivo. Burdeau, na realidade, entende que o termo governo
abrange um sentido lato, designando todas as formas de expressão do poder
político do Estado, inclusive a função.
223
BISCARETTI DI RUFFIA, Paolo. Introducción al derecho constitucional comparado y 1988-1990:
un Trienio de Profundas Transformaciones Constitucionales em Occidente em la URSS y en los
Estados Socialistas del Este Europeo, p. 155.
224
FONSECA, Aníbal Freire da. O Poder Executivo na República Brasileira, p. 23.
225
BURDEAU, Georges; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Direito Constitucional, p. 131.
153
A definição de Burdeau não caiu no gosto comum dos demais doutrinadores.
Assim, os termos “governo” e “função governamental" têm sido empregados
para se referir ao Poder Executivo.
O Executivo pode assumir a forma monista ou a forma dualista, também
designadas como modelo unipessoal e modelo colegiado, respectivamente.
No modelo monista, o executivo é desempenhado por um órgão único. No
modelo dualista, concebe-se a presença de um chefe de Estado e ministros.
Alguns autores preferem falar em forma unipessoal ou colegiada.
A tendência dos governos representativos, especificamente dos que adotam
o sistema presidencial, é a de manter a unidade do Poder Executivo. É o que se
observa nos Estados Unidos da América, no Brasil, na Argentina, Peru, Colômbia,
Bolívia, Uruguai, Chile, Honduras, República Dominicana, México, Equador, Costa
Rica, Nicarágua e El Salvador.
Na Europa, apenas a Suíça adota a forma colegiada ou sistema diretorial.
A forma colegiada encontra muitos adeptos (entre os quais Jimerez de
Arechaga); não tem sido, porém, adotada pela maioria dos Estados.
O favoritismo pela unidade do Executivo está no reconhecimento de que a
unidade produz e concentra a força, garantindo a energia contra a dispersão dos
esforços pela coesão do governo.
A dispersão de forças é fruto do inevitável desgaste ocasionado pelo
exercício do governo, sujeito ao confronto com ambições contrárias, a choques
ocasionados pelo tumulto das ideias predominantes no grupo da base do governo,
bem como às instabilidades decorrentes do processo deliberativo.
A unipessoalidade do Executivo tende a amenizar os efeitos desse desgaste
e seu efeito mais vantajoso é conferir maior rapidez na tomada e execução das
decisões políticas, já que estas não precisam ser submetidas ao crivo de um
colegiado.
Argumenta-se que a forma colegiada imprime mais democracia à tomada
das decisões políticas. Porém, essa afirmação permite contrariedade.
De fato, não se pode ignorar que a forma colegiada implica a tomada de
decisões coletivas; no entanto, a entrega das decisões a um grupo de líderes pode
significar a prevalência das deliberações adotadas pelos líderes mais fortes ou mais
astutos.
Esse “defeito” não é encontrado quando há unidade do poder.
154
Logo, não se pode afirmar que a forma colegiada assegura a completa
democracia nos processos deliberativos.
5.1.1 O Poder Executivo e a Doutrina da Separação de Poderes
A separação de poderes é fundamental para que se estabeleça a autonomia
entre as esferas de poder estatal e a responsabilidade dos detentores do poder
político.
A organização do executivo, pela sua própria natureza, sobreleva às
dos demais poderes.
O poder legislativo exerce as suas funções periodicamente, dentro
de prazos prefixados. O poder judiciário só é chamado a decidir em
casos concretos e sua ação circunscreve-se às regras imanentes do
estatuto constitucional. O executivo funciona permanentemente.
Destinado a impulsionar e dirigir a ação administrativa, não é
possível negar-lhe a plasticidade indispensável ao mecanismo
governamental.
Por isso mesmo, todas as organizações políticas modernas
timbraram em adotar, na formação deste poder, as regras, que o
tornem forte sem o fazer absorvente, um propulsor de energia sem
degenerar em instrumento de opressão. Nas democracias,
assoberbadas pelos conflitos de paixões populares e pela erupção
de instintos de revolta, avulta a necessidade de resguardar os
interesses supremos do Estado, pela constituição de um governo
capaz de resistir à pressão de elementos dissolventes.
A teoria, que a tantos apraz sustentar, de ser o executivo um mero
agente do legislativo, pois o seu papel se limita ao de executor das
leis formuladas por aquele, não encontra acolhimento diante dos
princípios do direito federal e assim só pode ser validamente
discutida nos países, em que constitucionalmente as legislaturas
detém maior soma de poderes e tornam o executivo delas
dependente.
As teorias modernas do direito público estabelecem que os poderes
do Estado têm funções por direito próprio sobre elas. Produtos da
mesma vontade, “os poderes que integram o governo”, diz Rehm na
Doutrina do Estado, se encontram colocados em um pé de perfeita
igualdade jurídica226.
A doutrina da separação de poderes recebe contornos diferenciados a partir
do sistema de governo adotado pelo Estado.
226
FONSECA, Aníbal Freire. O Poder Executivo na República Brasileira, p. 27-28.
155
No sistema presidencial, verifica-se que a separação de poderes tende a se
desenvolver como um recurso a um sistema de interdependência dos poderes por
coordenação; enquanto no sistema parlamentar a separação de poderes opera em
um cenário de colaboração e interdependência mútuas, com o mecanismo
reconhecido como sistema de interdependência por integração. Em ambos os
sistemas, fica clara a proposta de manter o poder dividido, estabelecendo-se um
sistema de cooperação mútua e recíproca entre os Poderes.
A separação de poderes é antes de tudo um princípio de técnica
constitucional destinada a evitar o despotismo e a garantir a
liberdade. Portanto, todos os autores hostis ao despotismo
preconizam sua aplicação, mas nem todos concebem da mesma
forma essa aplicação, e podemos distinguir duas interpretações bem
diferentes, a ponto de que devemos considerar que se trata, na
verdade, de dois princípios e até mesmo duas doutrinas radicalmente
diferentes (doutrina tradicional e doutrina do Século XVIII)227.
5.1.2 A Distinção entre a Teoria da Separação de Poderes e os Mecanismos de
Checks and Balances
No modelo puro de separação de poderes, o poder político do Estado é
atribuído a três órgãos diferentes, os quais devem exercer exclusivamente as
funções confiadas. Assim, só o Legislativo legisla e só o Judiciário julga.
Mas nesse sistema, os poderes não são iguais. O modelo foi construído a
partir da consideração de que o Legislativo deve ser compreendido como um poder
superior, não submetido a qualquer outro (unchecked power). O Parlamento foi
concebido como o reflexo da vontade popular, pois ele não apenas representaria a
vontade popular como também seria sua expressão, daí porque a expressão
“soberania parlamentar” se confunde com “soberania popular”. O sistema concebe a
vontade geral como a vontade parlamentar, posto que a vontade geral seria a
identificada e formulada pelo Parlamento, revelando a supremacia desse Poder em
relação ao Executivo e ao Judiciário228.
Hans Kelsen, atento a essa peculiaridade do modelo, pontuou que na
democracia representativa, em que se enaltece o Parlamento por reconhecê-lo
227
228
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. VII, p. 62.
Cf. Ibidem.
156
como órgão de representação popular por excelência, a vontade geral ou a
soberania popular acaba se convertendo na soberania parlamentar (volonté
étatique).
Assim, para limitar o Poder Legislativo foram instituídos os mecanismos de
checks and balances, pelos quais um Poder pode fiscalizar o outro e com isso se
estabelece o equilíbrio nas relações interpoderes, permitindo que exista a igualdade
entre eles.
Os mecanismos de checks and balances são, portanto, mecanismos de
controle e fiscalização interpoderes, com vistas a garantir a harmonia entre os
Poderes Legislativo, Executivo e o Judiciário, preservando a autonomia de todos e
mantendo a igualdade entre eles.
5.2 RESPONSABILIDADE POLÍTICA
O termo responsabilidade designa um substantivo feminino que possui
vários significados, entre os quais se destacam: 1) obrigação de responder pelas
ações próprias ou dos outros; 2) caráter ou estado do que é responsável.
Etimologicamente, é derivado do latim responsus, que é o particípio passado
de respondere e traduz afirmar, assegurar, responder.
Em inglês, o termo responsibility229 é o equivalente a responsabilidade. O
vocábulo inglês é substantivo que se reporta ao qualificativo responsible230, que
significa: 1) estado ou situação que torna alguém responsável, ou com o dever de
prestar contas, de responder pela confiança que lhe foi depositada ou por um dever
229
O vocábulo "responsabilidade" foi listado no John Russell Bartlett's Dictionary, em 1848, o qual se
cingia a um glossário de palavras e frases e é considerado peculiar nos Estados Unidos. Bartlett229
considerou, em suas anotações, que a palavra responsabilidade denota a sujeição a ser
responsabilizado ou punido pelas próprias ações: "This word, so much used by our divines, is not to
be found in any English Dictionary except the recent one of Mr. Knowles and means being held
responsible for one's own actions”.
230
Responsibility: ability to be responsible; Responsible : 1) having de job or duty of doing something
or take care something, so that you may be blamed if something goes wrong; 2) the state of being
responsible, accountable, or answerable, as for a trust, debt, or obligation; 3) Ability to answer in
payment; means of paying; 4) that for which anyone is responsible or accountable; as, the
responsibilities of power – to have to report to somebody/everybody with authority or in a higher
position and explain to everybody what you have done, or, being accountable that means responsible
for your decisions or actions and expected to explain them when you are asked. OXFORD. Advanced
Learner’s Dictionary of Current English, A.S. Hornby. 7. Ed. Oxford University, 2005.
157
ou obrigação confiados; 2) dever de responder diretamente ou ser o responsável
imediato por um pagamento ou prestação; 3) aquele que é responsável ou tem o
dever de prestar contas pelo exercício do poder.
O termo responsabilidade serve à pergunta: "quem deve reportar o quê a
quem e para quê?"
No âmbito jurídico, o termo responsabilidade, em sentido amplo, expressa
uma obrigação de arcar com as consequências de atos considerados injurídicos.
São
várias
as
modalidades
de
responsabilidade:
civil,
criminal,
política,
administrativa.
No presente estudo, o enfoque sobre a responsabilidade se cingirá ao
âmbito político, pois o que se pretende é enfocar qual a dimensão da
responsabilidade política no contexto jurídico.
Responsabilidade política implica a existência, ou não, do dever daqueles
que foram investidos em um mandato representativo de tomar decisões pelo
eleitorado e de responder pelo cumprimento do múnus público.
Na seara política e em seu viés administrativo, responsabilidade significa o
dever de responder por suas ações, o que importa em dever de prestação de contas
pelo exercício do mandato.
5.2.1 A Doutrina da Irresponsabilidade Política do Soberano
O termo responsabilidade política empregado pelo Direito Constitucional
moderno tem origem inglesa, sendo originalmente utilizado em referência à
Monarquia e às prerrogativas do monarca, que era considerado quase uma
divindade capaz de determinar punições aos demais; porém imune a qualquer
censura ou responsabilização.
O
emprego
primário
do
termo
responsabilidade
justificava
a
“irresponsabilidade do príncipe por direito divino”. Responsabilidade enquanto dever
de se reportar a alguém, de responder a alguém pelos próprios atos não era exigível
do soberano. E a lógica era bastante simples: o príncipe era absolutamente
soberano, investido por um poder divino e acima dele não havia alguém a quem
devesse responder ou se reportar.
158
Em sua expressão política, a responsabilidade implicava o reconhecimento
de que o príncipe não devia submeter-se a nenhum outro poder; assim, não tinha o
dever de responder pelos seus atos a ninguém, pois incorporava a soberania
absoluta e exercia o poder absoluto e atribuído pela vontade divina, que o eximia de
responsabilização perante os demais.
Com a queda dos governos absolutos e o surgimento do sistema
parlamentarista inglês, a noção da irresponsabilidade política do soberano foi
atenuada, mas manteve, de certa forma, a imunidade do monarca ou príncipe
enquanto chefe de Estado.
De fato. A tradicional noção de responsabilidade política mantém-se atrelada
à doutrina da irresponsabilidade política do príncipe.
Desde o surgimento do Parlamentarismo, a responsabilidade pelo exercício
do poder político foi transferida exclusivamente ao chefe de governo, conformandose com a antiga tradição de que o chefe de Estado é irresponsável politicamente.
Esse aspecto restrito da responsabilidade política será adiante desenvolvido
e, conforme se demonstrará, atualmente já não se coaduna com a teoria
democrática e com o ideal republicano, que exigem governo responsável.
A construção democrática não se coaduna com a modelagem original da
responsabilidade
política,
a
qual
foi
elaborada
e
vinculada
ao
sistema
parlamentarista, sendo que as funções de chefia de Estado e chefia de governo são
atribuídas a órgãos (ou pessoas) diferentes.
Ainda sobre a doutrina clássica da responsabilidade política, vale registrar
que ela foi estopim para elaboração da doutrina da questão de Estado, ofertando
supremacia e irresponsabilidade aos atos políticos em que fosse suscitada tal
questão.
As políticas de Estado ou questão de Estado seriam aquelas de interesse
político que envolvessem a tomada de decisões e estariam afetas apenas ao chefe
de Estado, não podendo ser objeto de discussão ou contrariadas por quem quer que
fosse.
As questões de Estado abrangeriam assuntos que deveriam permanecer
sob completa discricionariedade do governante, pois envolviam decisões de cunho
político, e em sigilo, sendo que não deveriam ser submetidas ao crivo de qualquer
outro órgão, mesmo porque poderiam exigir o uso da força ou a restrição a direitos
fundamentais.
159
O soberano poderia invocar a questão de Estado para justificar a adoção de
medidas políticas com vistas a solucionar problemas que pudessem interferir na
“estabilidade ou existência do Estado” e que, portanto, deveriam ficar adstritas ao
seu crivo. O fundamento estava no poder político a ele conferido, que seria
suficiente para conferir legitimidade a essas decisões.
A doutrina da razão de Estado foi aperfeiçoada no período medievo por
Nicolló Machiavelli e vastamente empregada para justificar as decisões ou atos
arbitrários do soberano que sequer estivessem cobertos pelo manto de mínima
legalidade.
Os governantes utilizavam-se da expressão “razão de Estado” para a
tomada de decisão política cuja motivação não fosse conveniente. A decisão política
fundamentada na “razão de Estado” não poderia ter seu mérito ou conteúdo
questionado por seu teor eminentemente político e afeto apenas ao governante,
subtraindo-se da apreciação alheia. Essa foi a gênese da noção de “políticas de
Estado ou atos de Estado” em contraposição aos “atos de governo ou políticas de
governo”.
Ao invocar a justificativa da “razão de Estado”, o soberano já estava
argumentando juridicamente em favor de sua decisão, ainda que revelasse arbítrio
ou restrição a direitos fundamentais.
A ideia transcendeu a era Absolutista e alcançou a Modernidade sob nova
roupagem (“políticas de Estado”), mas com o mesmo intuito de retirar a publicidade e
motivação de determinados atos políticos e consagrar a discricionariedade para atos
de governo que possuam caráter político, considerando que são supralegais e
apenas envolvem a decisão política do governante.
5.2.2 A Doutrina da Razão de Estado: Origem Histórica
A doutrina agostiniana da guerra justa desencadeou o debate sobre o que
posteriormente se reconheceu como doutrina da “razão de Estado”, segundo a qual
toda ação adotada ou tudo o que fosse requerido para fins de assegurar a
sobrevivência do Estado deveria ser determinado por indivíduos responsáveis231.
231
QUEIROZ, C. M. Os actos políticos no Estado de Direito: o problema do controle jurídico do poder,
p. 36.
160
Na Itália Medieval, Nicolló Machiavelli reformulou a ideia, despojando-a de
seu conteúdo religioso, e alçou o conceito de “raggione di stato” a instrumento
jurídico capaz de edificar um novo Estado técnico e jurídico, o que se identificava
com a proposta fundamental daquela época. Maquiavel concilia a noção de “razão
de Estado” com a ideia de que o poder se exerce pelo Direito e o Direito somente é
estabelecido e garantido pelo poder232.
A proposta de Maquiavel visava conferir legalidade e legitimidade ao uso da
força, ao emprego de recursos capazes de preservar os “interesses especiais” do
Estado que ele propunha serem mecanismos para assegurar a sobrevivência do
Estado, a manutenção da paz.
Durante o período medievo, em que o poder não estava institucionalizado de
modo impessoal, a “razão de Estado” identificava-o em sua dimensão política,
compreendendo a força, a sagacidade capaz de garantir a paz e a sua
sobrevivência.
Para Maquiavel, o Estado era personificado no monarca, a quem incumbia
determinar a condução política e envidar os recursos necessários a garantir a paz.
Considerando que o Estado incorporava a summa potestas (poder superior),
ele estava legitimado juridicamente a adotar medidas capazes de garantir o direito e
manter o poder, e a “razão de Estado” era doutrina legitimadora da tomada de
decisões políticas e determinação de ações capazes de viabilizar a manutenção da
paz.
A noção de “razão de Estado” teve enorme relevância no Século XVI, porque
o conceito de soberania ainda não havia sido formatado e a institucionalização do
poder ainda não havia se tornado o alicerce do Estado.
A contribuição de Jean Bodin foi a de atribuir fundamento jurídico à doutrina
da “razão de Estado”.
Bodin procurou conferir contornos exclusivamente jurídicos à noção
utilizando-se de sua teorização da soberania. Assim, partindo da premissa de que a
soberania confere ao Estado a unidade e concentração do poder político e jurídico,
atribuindo-lhe a summa potestas, concluiu Bodin que o Estado exercia um poder
superior fundamentado juridicamente na soberania estatal que autorizava o emprego
de recursos capazes de garantir sua estabilidade.
232
QUEIROZ, C. M. Os actos políticos no Estado de Direito: o problema do controle jurídico do poder,
p. 36.
161
Maquiavel e Bodin criaram um estilo peculiar de atuação política ao
considerarem que o Estado “é em si próprio um princípio de ordem política”233 e que
representava uma ordem de domínio ou a própria essência do poder.
A obra O Príncipe, de Maquiavel, revela exatamente essa conotação política
que o autor emprega ao Estado e que confere essa superioridade legitimadora do
emprego de recursos e meios capazes de alcançar o poder ou conservá-lo. Nela, o
autor constrói uma fundamentação jurídica para a “razão de Estado”, que ele
denominou “prudência política”.
Para ele, ainda, a “razão de Estado” confundia-se com a “razão do Príncipe”.
A institucionalização do poder trouxe outra nuance para a “razão de Estado”.
No momento em que o poder atinge a impessoalidade, a “razão de Estado” passa a
se identificar com o interesse público, porque alcança expressão supraindividual.
Entretanto, o Estado Moderno identificou-se com a doutrina da “prudência
política” de Maquiavel, que postulava a existência de “interesses especiais” do
Estado, os quais poderiam prevalecer sobre o Direito e a moral e autorizavam o
emprego de recursos eficazes à garantia da paz, ainda que não afinados a valores
éticos, porém legitimados no “princípio da supremacia dos interesses primários do
Estado”.
Atualmente, ainda se fala em questão de Estado, mas a doutrina reconhece
que, apesar de envolverem questões políticas que possam interferir na segurança
do Estado e na segurança jurídica, essas questões somente podem ser suscitas se
albergadas na Constituição e devem ensejar atos de governo motivados.
A motivação é imposição constitucional para todo e qualquer ato, seja este
considerado meramente administrativo ou seja político, pois a transparência e a
publicidade não se coadunam com atos sem motivação de interesse público.
De outro lado, sob o nome de atos políticos ou de exercício discricionário do
poder, não se concebe a prática de atos que se divorciem dos ditames
constitucionais.
Os atos políticos ou de governo nem sempre se servem de um modelo legal.
Porém, a ausência de modelo legal não pode lhes retirar o contorno de juridicidade.
A juridicidade está na conformação do ato político e do ato discricionário ao
sistema jurídico.
233
QUEIROZ, C. M. Os actos políticos no Estado de Direito: o problema do controle jurídico do poder,
p. 41.
162
No presente estudo, adotar-se-á como premissa o conceito de sistema
jurídico apresentado por Juarez Freitas, qual seja:
Sistema jurídico é uma rede axiológica e hierarquizada topicamente
de princípios fundamentais, de normas estritas (ou regras) e de
valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando
antinomias em sentido amplo, dar cumprimento aos objetivos
justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram
consubstanciados, expressa ou implicitamente, na Constituição234.
No caso brasileiro, especificamente, a Constituição Federal de 1988 trouxe
um catálogo de princípios informadores da estruturação política e administrativa
estatal e da atuação de seus agentes, que são os critérios norteadores da boa
governança. O texto constitucional retrata a estruturação de um Estado Democrático
Republicano, o que implica a presença de um governo representativo e com
objetivos bem delineados.
Os mecanismos para alcançar os fins do Estado devem se conformar com
as diretrizes constitucionais.
A liberdade de governar não está subtraída, mas se trata de liberdade
“constitucionalmente vinculada”, sob pena de ofensa a todo o sistema.
No Estado Constitucional Democrático, o Direito Público tem compleição
bifronte, pois oferece tanto a prevenção como a cura para a arbitrariedade.
Nesse contexto, os atos discricionários também devem manter-se
conformados com o sistema jurídico. A liberdade discricionária é uma liberdade
vinculada constitucionalmente e garantida para uma só finalidade: o interesse
público (valor máximo perseguido pelo princípio republicano).
Tanto na esfera pública como na privada, a liberdade não pode mais
ser aceita fora das exigências de respeito à Constituição. Seja nas
relações entre indivíduos, seja nas relações com o Poder Público,
somente existe, por assim dizer, liberdade constitucionalmente
vinculada. (...) Assim, na seara pública, dos atos administrativos,
ditos discricionários, devem ser vistos como tendo de guardar
vinculação com o sistema, já pela exigência de motivação, já pela
amplíssima sindicabilidade jurisdicional, uma vez que o Poder
Judiciário deve fazer as vezes do que se pode designar de
“administrador negativo”, controlando o demérito de todo e qualquer
ato, considerando-se inexistentes os atos exclusivamente políticos235.
234
235
FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 61.
Ibidem, p. 241.
163
A doutrina da questão de Estado, tal como elaborada por Maquiavel, não
tem guarida no sistema jurídico brasileiro.
Nesse sentido, também assevera Dalmo de Abreu Dallari:
É insuficiente dar ao povo o direito de eleger seus governantes para
um mandato com tempo determinado se após a eleição o povo não
tiver meios para exercer constante influência sobre o governo e para
controlar efetivamente as ações governamentais, impedindo ou
anulando
os
atos
inconstitucionais.
No
controle
da
constitucionalidade é preciso considerar que – mais do que a
obediência a formalidades – o moderno constitucionalismo impõe
como normas jurídicas eficazes as disposições que afirmam
princípios éticos, políticos e jurídicos. Não haverá Estado de Direito –
e, portanto, não existirá democracia – se os governantes agirem
contrariamente aos princípios constitucionais, ainda que obedeçam
às formalidades previstas em lei.
Como complemento de todas as exigências aqui referidas, é
necessário que o povo tenha poder de controle sobre todos os
órgãos públicos, inclusive sobre o Judiciário, para que o pretexto da
razão de Estado não seja utilizado como subterfúgio antidemocrático
para dar suporte à alegação de que existem “inconstitucionalidades
convenientes” (...) a razão de Estado, característica das Monarquias
absolutas, invocada por ditaduras modernas e por governantes que
não se conformam com as limitações inerentes ao Estado
Democrático de Direito autêntico e a efetiva garantia dos direitos
fundamentais são conquistas da mais alta relevância, devendo ser
respeitados, sempre, como instrumentos valiosos para assegurar a
236
prática da democracia e a proteção da dignidade humana .
5.3 RESPONSABILIDADE POLÍTICA DO CHEFE DE GOVERNO: SISTEMA
PARLAMENTARISTA E SISTEMA PRESIDENCIAL
A doutrina clássica da irresponsabilidade do chefe de Estado foi inspirada na
“teoria da absoluta irresponsabilidade de direito divino”, segundo a qual o soberano
incorporava a autoridade divina a ser exercitada na Terra e, portanto, não poderia
ser questionado ou responsabilizado por seus atos; após ser adaptada, passou a ser
denominada “teoria constitucional da irresponsabilidade do chefe de Estado” ou
“teoria clássica da responsabilidade política”.
A teoria clássica da responsabilidade política foi construída a partir da
premissa que o chefe de Estado não poderia ser politicamente responsável porque
fora investido no poder em caráter vitalício ou não temporâneo e dotado de
236
DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado de Direito e Direitos Fundamentais, p. 216-232.
164
supremacia face a outros órgãos do Estado, bem como de prerrogativas suficientes
a eximi-lo de qualquer responsabilização pelo exercício do poder.
E para que fosse possível a responsabilização pela má condução do
governo, foi criado o cargo de ministro, que seria o encarregado das funções de
governo e por elas responsável.
A doutrina da responsabilidade determina que a chefia de Governo será
exercida pelo Primeiro-Ministro ou pelo Ministro mais o gabinete, sem qualquer
estabilidade, pois a chefia de Governo somente pode ser atribuída ao órgão que
conta com o apoio da maioria parlamentar. Apenas o apoio ou confiança do
Parlamento suporta o Governo. Assim, por essa doutrina, a responsabilidade política
está limitada ao dever imposto ao Primeiro-Ministro e a todo o Gabinete de deixar as
funções em decorrência de pedido da maioria parlamentar.
Logo, para a doutrina tradicional, a responsabilidade política deve ser
compreendida como o dever de pedir demissão ou de deixar o governo a pedido de
uma maioria parlamentar237.
E como essa forma de responsabilização impõe a sanção de devolver o
poder governamental ao Parlamento, ela não pode ser aplicada ao chefe de Estado,
porque este não exerce funções de governo.
E tal como originalmente elaborada, essa modalidade de responsabilização
política importa exclusivamente na sanção da perda do mandato político por
deliberação do Parlamento.
Essa irresponsabilidade tem origem e justificativa histórica.
Nas primeiras Constituições, datadas dos séculos XVIII e XIX, o chefe do
Estado, monarca ou presidente exercia funções executivas restritas, porém não se
encarregava da política do Estado. Ele sequer podia sancionar ou vetar projetos ou
tomar assento nas discussões quanto a deliberações políticas, porque não lhe era
confiado esse poder.
Não se pode negar que o chefe de Estado poderia influenciar o Parlamento
para adoção de uma determinada decisão. Mas, uma vez atendido seu pedido, não
se tratava de uma ordenação do chefe de Estado, e sim de decisão daquele que
adotou a medida por influência do monarca ou presidente.
237
BURDEAU, Georges ; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Direito Constitucional, p. 135 et seq.
165
Logo,
como
não
podia
decidir,
era
óbvio
que
não
deveria
ser
responsabilizado pela diretriz política tomada pelo governo.
Nos sistemas parlamentaristas, essa doutrina encontra sua melhor
explicação. É que no parlamentarismo há um Gabinete distinto daquele do chefe de
Estado reservado àquele que exerce de fato o governo, responsabilizando-se pela
tomada das decisões políticas e pela condução do Estado. Então, nesse contexto,
fica clara a irresponsabilidade do chefe de Estado, já que ele não tem poder político.
No sistema presidencial, em que o presidente congrega todo o poder
executivo, a doutrina da irresponsabilidade política foi acolhida mediante
justificativas diversas.
A introdução da irresponsabilidade do chefe do Executivo, no sistema
presidencial, revelou-se uma necessidade para garantir a subsistência do regime. A
doutrina foi acoplada ao sistema presidencial para impedir que o presidente se
transformasse em uma figura fraca, amorfa, desprovida de poderes políticos e capaz
de sucumbir aos caprichos do Legislativo.
Além disso, no sistema presidencial a teoria da irresponsabilidade política
também reforçava a separação de poderes e introduzia a igualdade entre os
poderes instituídos do Estado, pois, diversamente do presidente, que erige do Poder
Executivo, o ministro é uma figura afeta ao Parlamento, na medida em que por ele é
indicado.
Considerando que o Poder Executivo não poderia ficar à mercê dos demais
Poderes e tampouco a eles se curvar, a irresponsabilidade política se ajustou ao
sistema presidencial como um instrumento de garantia da governabilidade e
estabilidade do governo e, principalmente, para impedir a prevalência do Parlamento
e a indireta condução da política do Estado por referido órgão238.
A outra justificativa adotada pelos adeptos da doutrina tradicional é que o
presidente, na verdade, é responsável, pois sua responsabilização política sempre
poderia ser alcançada pelo viés penal.
A doutrina clássica peca porque reduz a responsabilidade política do chefe
de governo ao dever exclusivo de pedir demissão do governo ou de entregar o poder
governamental sempre que não puder contar com o apoio do Parlamento ou quando
houver imputação de crime de responsabilidade.
238
BURDEAU, Georges ; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Direito Constitucional, p. 136-137.
166
Porém, a responsabilidade pelo poder não pode se resumir ao dever de se
retirar do governo em razão da oposição legislativa.
Muitos Estados já admitiram a fragilidade da doutrina da irresponsabilidade e
a necessidade de ampliação das formas de responsabilização política pelo exercício
do poder, reconhecendo que a doutrina clássica não se conforma com as
peculiaridades do sistema presidencial, no qual o chefe do Poder Executivo
congrega a chefia de governo e a chefia de Estado.
Com efeito, seria inaceitável a irresponsabilidade política absoluta do
presidente diante do fato de ele exercer as funções de governo e usufruir de total
autonomia face o Legislativo.
O sistema presidencial estrutura-se de acordo com a teoria da separação
das funções do Estado, resguardando a independência e isonomia entre os poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário, o que impede que o Executivo se demita diante
de eventual apelo do Legislativo.
Se as funções do Estado são divididas entre poderes autônomos,
independentes e harmônicos entre si, não se justifica a prevalência do Legislativo, o
qual está impedido de impor a qualquer outro poder que entregue ou devolva sua
parcela de poder estatal.
Essa forma de responsabilização política conflitaria com a própria estrutura e
sobrevivência do sistema presidencial.
Nele,
caso
seja
aceita
exclusivamente
a
doutrina
clássica
da
irresponsabilidade do chefe do Executivo, somente com o impeachment será
possível a responsabilização política do presidente da República.
Nos dizeres de René Capitant, “não é aceitável que um homem disponha de
poderes importantes e que ele não seja obrigado a prestar contas ao povo do uso
que faz desse poder”.
Sob a influência de René Capitant, a França concebe a existência de uma
responsabilidade difusa, mas não há diploma legal que determine ao chefe de
governo que se retire do cargo.
Apesar da ausência legislativa, a vivência democrática francesa assimilou a
noção da responsabilidade política daquele que detém o poder de condução da
política do Estado, sendo que, sob a influência da doutrina da responsabilidade
pregada por René Capitant, a responsabilidade do chefe de governo já vem sendo
reconhecida, em que pese a deficiência de instrumentos para sua concretização.
167
O reconhecimento dessa outra forma de responsabilidade política e
especificamente do dever de prestação de contas ao povo, pelo governo, foi
determinante para a interrupção precoce da gestão do general Charles de Gaulle, o
qual, alçado ao poder em 1959 mediante honrarias e aclamado herói de guerra,
acabou renunciando em 1969, antes mesmo do término de seu mandato.
Após sucessivas crises, em 1968 De Gaulle amargava o insucesso político
e, depois de decidir colocar em referendo uma série de emendas constitucionais,
amargou terrível derrota na consulta, pois ela revelou que os governados rejeitavam
seu projeto político de regionalização e de reforma do Senado. Ciente de sua
impopularidade e do descontentamento dos eleitores, De Gaulle renunciou em 28 de
abril de 1969.
A renúncia do general aquilatou seu grau de respeito ao penhor
democrático, pois sua decisão originou-se de sua consciência quanto à ausência de
legitimidade democrática de seu governo, uma vez que a vontade soberana dos
governados já não alicerçava a direção política pretendida pelo então presidente.
Na Itália, a doutrina da irresponsabilidade foi abandonada pela adoção da
doutrina da responsabilidade difusa do Executivo.
O tema da responsabilidade política do Executivo vem ganhando a atenção
da doutrina política e constitucional moderna.
O presidente da República reúne poderes que superam o do Gabinete ou do
ministro, daí porque a adoção do mesmo critério utilizado no sistema parlamentarista
pode levar à imunidade total do presidente face qualquer forma de responsabilidade.
Amaro Cavalcanti salientou ser a independência a tônica diferenciadora dos
sistemas parlamentarista e presidencial. São várias as diferenças que impedem seja
conferido tratamento igual aos seus chefes de Estado no que tange à
responsabilização pelo exercício do poder.
Eleito pela mesma vontade soberana, que elege o legislativo, tem o
representante do poder executivo, o Presidente da República
Brasileira, independência igual à daquele, no gozo e exercício das
suas atribuições constitucionais. O pessoal de seu ministério, pelo
qual ele age imediatamente sobre os vários misteres da
administração pública, é de sua eleição exclusiva, e o mesmo nada
também depende do poder legislativo, para a sua existência e devido
funcionamento.
168
É esta independência completa do executivo, diante do legislativo,
que caracteriza o governo presidencial, em contraposição ao governo
parlamentar239.
Por conta das peculiaridades do sistema presidencial, a aplicação da teoria
da irresponsabilidade política do chefe do Executivo já não vem sendo aceita de
forma pacífica, porque associada ao dever de renúncia ou demissão do chefe de
governo.
O assunto vem sendo repensado e, atualmente, se reconhece a
necessidade de atribuição de responsabilidade política por mecanismos diversos
daqueles utilizados no sistema Parlamentarista.
A
premissa
que
desencadeia
o
debate
sobre
os
aspectos
da
responsabilidade política do chefe do Executivo é aquela de que a responsabilização
do chefe do Executivo no sistema Presidencial não pode ser pensada em termos de
dever de renúncia.
A doutrina clássica da irresponsabilidade do chefe de Estado frente o
Parlamento se adéqua facilmente ao sistema monárquico parlamentar e ao sistema
parlamentar presidencial, em que o presidente da República exerce apenas a função
de chefe de Estado.
Mas, como já repisado, a responsabilização política no Parlamentarismo não
encontra asilo no sistema presidencial240.
Nos sistemas parlamentaristas, o Executivo depende do apoio majoritário do
Legislativo para permanecer no poder e obter a aprovação de suas propostas
políticas e dos projetos legislativos de sua iniciativa; no sistema presidencial, não há
essa interdependência, pois os presidentes são eleitos para um mandato fixo que
não depende da confiança do Legislativo para estabilidade e permanência no cargo
e tampouco para direção política do Estado.
Além do mais, a doutrina da irresponsabilidade do chefe do Executivo foi
recebida pelo sistema presidencial porque até o final do Século XVIII o Estado
possuía moldura bem diversa da atual. A figura do presidente foi engendrada para
que ele se comportasse como mero executor das leis elaboradas pelo Legislativo,
sem grande projeção social.
239
CAVALCANTI, Amaro. Regime federativo e a república brasileira, p. 190.
LIJPHART, Arend. Modelos de democracia: desempenho e padrões de governo em 36 países.
Trad. Roberto Franco. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 227.
240
169
No século XIX, sobrevieram mudanças reveladoras de novas exigências
sociais e desejosas de uma nova postura do presidente, que passou a ser
conclamado a decidir rapidamente sobre os mais variados assuntos, interferindo de
forma relevante na vida social.
Esse padrão de exercício da presidência foi se consolidando e o presidente
foi concentrando cada vez mais poderes e funções, sendo-lhe conferidos atributos
de verdadeiro chefe de Estado em acúmulo com as funções de Governo. Sua
relevância política atingiu o patamar que hoje o reconhece como a figura mais
poderosa do Estado, capaz de congregar amplos e relevantes poderes políticos.
No Século XX, já se reconhecia plenamente que o presidente da República
desempenhava precipuamente a função governativa e concentrava poderes que o
elevavam a patamar superior ao ocupado pelos reis do ancién régime241 .
A evolução do Estado lhe conferiu complexidade e uma nova feição, o que
se seguiu também com o sistema presidencial.
Aníbal da Fonseca percebeu a grandiosidade adquirida pela figura do
presidente da República, originalmente pensado como ente de poderes mais rasos.
(...) só diante da renovação crescente do papel do Estado no
progresso social e da evolução de novas formas de satisfação dos
interesses coletivos se apercebeu de que o executivo não é um
poder apagado e manco. Mesmo nos mais impregnados do
liberalismo representativo acentua-se a certeza de outros horizontes
na distribuição das competências dos poderes do Estado e a ciência
do direito público encontra nos Jellinecks e nos Duguit os
cooperadores de novas e radiosas idéias242.
As novas nuances do sistema presidencial no governo representativo
republicano e democrático não foram seguidas pela doutrina clássica da
irresponsabilidade do chefe de Estado, que se manteve inalterada e que não se
conforma com a democracia representativa.
Conforme Manin, Przeworski e Stokes:
As democracias não são todas iguais, e a diferença mais relevante
para os nossos objetivos é a que existe entre regimes
parlamentaristas e presidencialistas. Democracias parlamentaristas
são aquelas nas quais o legislativo pode mudar o executivo;
democracias presidencialistas são aquelas nas quais o executivo não
pode ser deposto pelo legislativo durante o mandato. Há ainda
241
242
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição, p. 54.
FONSECA, Aníbal Freire. O Poder Executivo na República Brasileira, p. 23.
170
sistemas mistos, onde o presidente é eleito, mas o executivo
243
depende da confiança do legislativo para sobreviver .
Geraldo Ataliba inicialmente distingue duas funções atribuídas ao Executivo:
função política e função administrativa.
Por função política ele identifica aquelas que não são passíveis de revisão
por outro órgão e que não podem gerar qualquer tipo de responsabilização política,
pois importariam na prática de atos não contestáveis juridicamente.
Porém, em seguida, o próprio autor se refere ao fato de serem atribuições
sujeitas ao controle da opinião pública. Diz ele:
Mas, por isso mesmo que políticas, são tais atribuições sujeitas ao
controle da opinião pública, à crítica dos meios de imprensa e à
fiscalização parlamentar. Sua avaliação e julgamento entram nas
considerações políticas gerais, de que se incumbem – dando vida ao
tecido complexo das relações políticas – a opinião pública, os
partidos, a imprensa, os sindicatos e outros instrumentos de
canalização de interesses e opiniões244.
Em seguida, Ataliba frisa a possibilidade do exercício de outras formas de
controle caso a prática de atos políticos interfera em direitos fundamentais ou invada
competências de outros poderes instituídos.
E, ao se referir aos atos administrativos, Ataliba argumenta que a maioria
das decisões políticas geram atos administrativos que são passíveis de controle e
responsabilização, sob pena de inviabilização do princípio republicano.
Segundo ele:
De maneira que o controle de todos os atos executivos é o mais
amplo, e assim deve ser entendido, contra toda pretensão de
interpretar-se as competências do presidente da república como
amplas ou irrestritas só pela consideração de seu caráter político.
Embora essa tendência venha prevalecendo, é preciso que contra
ela se pugne, porque, na verdade, essa tendência interpretativa é
uma expressão de rebeldia contra o princípio republicano; é nítida
manifestação de preconceitos favorecedores do Executivo,
absolutamente incompatíveis com os princípios constitucionais
fundamentais, claramente estampados nos nossos sucessivos textos
constitucionais.
(...)Regime republicano é regime de responsabilidade. Os agentes
públicos respondem pelos seus atos (...)É da essência do regime
republicano que quem quer que exerça uma parcela do poder público
tenha a responsabilidade desse exercício; ninguém desempenha
243
CHEIBUB, José Antonio; PRZEWORSKI, Adam. Democracia, Eleições e Responsabilidade
Política. Rev. Bras. Soc., São Paulo, vol. 12, n. 35, out. 1997.
244
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição, p. 58.
171
funções políticas por direito próprio; nele, não pode haver invioláveis
e irresponsáveis, entre os que exercitam poderes delegados pela
soberania nacional245.
As conclusões de Ataliba demonstram que a simples atribuição de caráter
político às funções do Executivo já não são suficientes para eximir o detentor do
poder político de responsabilidade política.
A responsabilidade política, conforme inicialmente engendrada, não se
revela suficiente para atender as demandas de uma nova forma de governar que se
nos acena.
No limiar do século XXI, o sistema republicano presidencial passou a sofrer
as interferências de sua nova roupagem democrática e a responsabilidade política
abandonou esse aspecto restrito de vinculação ao dever de demissão ou ao viés
exclusivamente penal que caracterizava o impeachment, instrumento raramente
utilizado na história.
Ressurge o debate sobre a responsabilidade e sua função original
representada pelo dever de responder perante terceiros em razão dos atos
praticados ou danos provocados.
A responsabilidade política passa a ser enfocada sob novos aspectos,
principalmente aqueles decorrentes da consagração do regime democrático
associado à forma republicana e ao governo representativo.
De modo que a responsabilidade política passa a ser compreendida
amplamente como dever de prestar contas pelo exercício do poder, visto ser este
expressão da soberania popular e não um bem incorporado ao patrimônio do
representante político.
A responsabilidade política deixa de ser enfocada sob o prisma do sistema
parlamentarista e passa a ser entendida como corolário do governo representativo,
que é seu locus originário.
A crítica ao sistema representativo de governo impõe a reformulação da
noção de responsabilização política e novas modalidades de responsabilidade têm
ganhado a atenção do Direito Político.
Em vez de se atentar para a natureza (política ou administrativa) das
atribuições do presidente, passa-se à preocupação com a natureza do mandato no
governo representativo de base republicana e das funções políticas decorrentes do
245
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição, p. 58.
172
exercício do poder no regime democrático, no qual o interesse público deve
preponderar sempre.
A conjugação do sistema presidencial à forma republicana requer um
sistema de responsabilidade política, sem o que o princípio republicano resta
esvaziado.
É válido invocar uma vez mais a preleção de Ataliba, segundo o qual:
A infidelidade aos compromissos assumidos ou excessos,
desmandos, abusos ou desvios que se cometam no exercício do
mandato, com violação das prescrições éticas cabíveis – mesmo
sem chegar aos extremos da inconstitucionalidade ou da violação de
deveres legais – resolvem-se pelos processos políticos normais, e o
sistema eleitoral aponta o caminho normal para a solução desse tipo
de problema. Nisso – que é, de modo geral, universal – envolve-se
um notável processo pedagógico, que revela o cunho nitidamente
otimista das democracias republicanas; as instituições assim
informadas são um ato de fé no povo e no aperfeiçoamento do
homem e dos grupos sociais. Plasmando instituições, a cidadania crê
em si mesma, na base da liberdade e da igualdade. Isso é da própria
essência da república.
(...) Principalmente onde a consciência cidadã da titularidade da res
publica seja acompanhada do sentido de responsabilidade que o
mandato encerra.
É pela livre circulação de notícias, pelo acesso às fontes, pela
publicidade irrestrita dos atos de governo, pela liberdade de
imprensa, pela liberdade de discussão, reunião e associação, que se
assegura a fiscalização sobre os governantes, e, consequentemente,
viabiliza-se sua responsabilização246.
O princípio democrático reclama a responsabilidade dos governantes face
aos governados em termos de prestação de contas e como decorrência do sistema
representativo de governo.
É por essa razão que a doutrina clássica já se revela insuficiente para
estabelecimento da responsabilidade política no governo republicano.
A simples menção da discricionariedade do ato de conteúdo político ou a
invocação da questão de Estado não satisfaz os anseios democráticos.
De outro modo, apesar da possibilidade de accountability retrospectiva
possibilitada pelo processo eleitoral, a responsabilidade também invoca uma
contínua responsividade do governo, o que demanda outros instrumentos de
accountability que não se esgotam com o procedimento eleitoral.
246
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição, p. 65.
173
Além disso, a responsabilização retrospectiva, por via de eleições, não é
possível se o eleitor não puder cotejar as realizações do governo com as promessas
que levaram à confiança do voto.
Um sistema de responsabilização claramente definido é essencial para o
sistema de democracia representativa em que os cidadãos escolhem os candidatos
que irão traduzir os anseios do povo em atos políticos transformados em políticas
públicas de atendimento às demandas sociais.
A nova concepção de responsabilidade política está fundada na ideia de
responsiveness, atributo da boa governança, que impõe sejam os governos
avaliados e sancionados ou premiados (com a reeleição), dependendo de sua
capacidade de atender as demandas do eleitorado.
Se os governos são responsivos e existem mecanismos de accountability
eficientes, então se está diante da possibilidade de responsabilização política, ainda
que na forma de reclamos em arenas públicas de debate constante, de petições
endereçadas aos governantes ou ao Congresso ou, ainda, através de mecanismos
institucionais ou judiciais.
Governos são responsáveis na medida em que os cidadãos podem
discernir se os governantes estão agindo de acordo com os seus
interesses e sancioná-los apropriadamente, de forma que os
governantes que satisfazem os cidadãos permanecem em seus
postos e aqueles que não os satisfazem perdem suas posições. A
responsabilidade política é um mecanismo retrospectivo, no sentido
de que as ações dos governantes são julgadas a posteriori, em
termos dos efeitos que causam. Os governantes são responsáveis
no sentido aqui empregado se a probabilidade de sua sobrevivência
no governo depender do desempenho do governo247.
Mas a responsividade é corolário da mútua confiança, ou seja, da
representação política. Os governos são responsivos na medida em que são leais à
confiança depositada pelos eleitores, honrando os compromissos eleitorais
expressos no projeto político apresentado como mote do voto ofertado.
O elo teórico entre democracia e responsabilidade política se produz
via eleições. Se os governantes são eleitos e se, ao enfrentar
eleições, eles antecipam as reações dos eleitores aos resultados que
suas políticas irão gerar, eles são, então, politicamente
responsáveis248.
247
CHEIBUB, José Antonio; PRZEWORSKI, Adam. Democracia, Eleições e Responsabilidade
Política. Rev. Bras. Soc., São Paulo, vol. 12, n. 35, out. 1997.
248
Ibidem.
174
5.4 RESPONSABILIDADE POLÍTICA
REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
DO
CHEFE
DO
EXECUTIVO
E
5.4.1 Representação Política: Origens
A utilização do vocábulo “representação” no contexto político não é atual,
tendo surgido pela primeira vez em 1651.
Para explicar como a expressão “representação” foi introduzida no cenário
político, Pitkin fez um aprofundado estudo da origem etimológica da expressão
inglesa “representation”, cotejando-a com a sua adoção no contexto político.
No presente estudo, diversos escritos de Pitkin, O’Donnell e Urbinati serão
utilizados para retomar o conceito de representação que originou a instituição da
representação política.
Inicialmente, é necessário precisar a origem etimológica da palavra
“representação”.
Para
tanto,
partir-se-á
da
palavra
inglesa
representation,
considerando que representação política é instituto originário da Inglaterra, que
remete às relações entre os cavaleiros e a Monarquia.
Aqui, vale transcrever a lição de Pitkin:
o mapa semântico das palavras inglesas da família “represent-” não
corresponde bem ao “mapa semântico” de termos cognatos até
mesmo em outros idiomas muito próximos ao inglês. Por exemplo, a
língua alemã tem três palavras – vertreten, darstellen e repräsentieren – que geralmente são traduzidas pela palavra inglesa
“represent”. Darstellen significa “retratar” ou “colocar algo no lugar
de”; vertreten significa “atuar como um agente para alguém”. O
significado de repräsentieren é próximo ao de vertreten, mas é mais
formal e possui conotações mais elevadas (teóricos alemães da
política, às vezes, argumentam que meros interesses privados
egoístas podem ser vertreten, mas o bem comum ou o bem do
Estado devem ser repräsentiert). Entretanto, o significado de
repräsentieren não é, de forma alguma, próximo àquele de
darstellen. Então, para quem fala em inglês o modo pelo qual uma
pintura, um pintor ou um ator de palco representam, e o modo pelo
qual um agente ou um legislador eleito representam, obviamente,
estão ligados ao mesmo conceito. O mesmo não acontece para
249
quem fala em alemão .
249
PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias. Lua Nova, São Paulo, v.
67, p. 15-47, 2006. p. 15.
175
Ao que consta, os gregos antigos já possuíam diversas instituições e
costumes aos quais poderia ser aplicado o termo “representação”. Mas, essa é uma
interpretação de épocas posteriores, pois os gregos não tinham em seu vocabulário
expressão semelhante a “representação” e este vocábulo não existia.
Na verdade, a palavra “representação” tem origem latina; porém seu
significado original em latim não guarda qualquer relação com a vida política
romana, com o governo, ou quaisquer instituições que pudessem ser associadas ao
conceito de representação. O termo latino repraesentare significa “tornar presente
ou manifesto; fazer presente o ausente (sentido de inanimado) ou apresentar
novamente”, entre outros significados, que não se referem à representação de
pessoas250.
Alguns autores contemporâneos referem-se ao uso da representação no
Direito Romano e se reportam aos glosadores. Segundo Pitkin, é preciso entender
que o que se faz é uma associação a um princípio romano que entendia que o
príncipe ou o imperador atuava pelo povo romano, ocupando seu lugar cuidando de
seu bem-estar, mas esse princípio não era associado ao termo “representação” com
conotação política ou no sentido de uma pessoa representando outra, pois essa
ideia não tinha vocábulo correspondente251.
Os glosadores se utilizaram do princípio do dever do soberano proteger e
atuar na defesa dos interesses de seus súditos para aplicá-lo no contexto social.
No século XIII, os canonistas adotaram a ideia e a aperfeiçoaram, com a
finalidade de utilizar o princípio na vida religiosa comunal.
Porém, nem os glosadores nem os canonistas usaram a palavra
“representação” ao desenvolver essas ideias presentes no Direito Romano.
Na Idade Média, a palavra “representação” aparece vastamente nos escritos
religiosos e como referência a um tipo de encarnação mística. Seu significado é
transmitido aos cristãos com o significado de incorporação do sagrado, do divino.
Esse sentido é perceptível no século XIII e no início do século XIV, quando
frequentemente traduzia a noção de que o papa e os cardeais representavam a
250
A expressão latina repraesentare pode significar também tornar presente uma abstração em um
objeto, ou por meio dele; pode ter a conotação mística de uma virtude que parece encarnada na
imagem de certo rosto. E pode significar a substituição de um objeto por outro – em vez do outro –,
ou a antecipação de um evento, trazendo-o para o presente. Pode significar “desempenhar
imediatamente” e mesmo “pagar em dinheiro”. Mas, originariamente, não tem a menor relação com
pessoas representando outras pessoas ou com o Estado romano.
251
PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias, p. 15-47.
176
pessoa de Cristo e dos apóstolos. Nessa conotação religiosa, o termo
“representação” não tem o sentido de delegação de poderes ou de apresentação de
pedidos diante do soberano ou da Igreja. Na realidade, tal termo era utilizado no
sentido religioso para significar que os líderes da Igreja deveriam ser vistos como a
encarnação e a imagem de Cristo e dos apóstolos, considerando que ocupavam, por
sucessão, seus lugares aqui na Terra.
Após essa construção religiosa para o termo, juristas medievais passaram a
adotar a palavra “representação" para expressar a personificação da vida coletiva.
Para entender como se deu a admissão do conceito de representação na
atividade política será necessário proceder à compreensão do desenvolvimento
histórico de instituições.
A conotação política do termo, que possibilitou seu desenvolvimento
enquanto instituição, ainda que possa ter sido influenciada pela religião, pela filosofia
e por ideologias diversas, originou-se na Inglaterra a partir das relações
desenvolvidas entre os cavaleiros e a Monarquia252.
A gênese está na convocação de cavaleiros e burgueses para reunirem-se
no Parlamento com o Rei e os lordes, estabelecendo relações políticas entre a
Monarquia, a burguesia, o próprio povo e o clero. A convocação dos cavaleiros, na
verdade, se mostrava uma questão de conveniência administrativa e política para o
Rei.
Os cavaleiros e os burgueses iam ao Parlamento para dar consentimento à
cobrança de tributos, para prestar informações, para trazer o registro dos tribunais
locais em casos de disputa judicial e para levar informações de volta às suas
comunidades (registros das sentenças ou soluções das atuações e demandas
existentes).
Inicialmente, eles iam ao Parlamento com autoridade para obrigar suas
comunidades a pagarem os tributos que seriam cobrados. Posteriormente, eles
passaram a servir às comunidades, levando queixas ao Rei, de modo que se
iniciaram negociações políticas em que os cavaleiros insistiam na prévia solução das
reclamações que portavam para que fosse dado o consentimento a impostos. A
partir daí, estabeleceu-se um reconhecimento gradual de que o speaker (como era
chamada a pessoa que desempenhava tal função) poderia promover o interesse de
252
PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias, p. 15-47.
177
sua comunidade, bem como comprometê-la ao pagamento dos tributos. Os cavaleiros e os burgueses que iam ao Parlamento passaram a ser reconhecidos como
servidores ou agentes de suas comunidades. Esses comparecimentos decorrentes
das convocações do Rei tornaram uma atividade para os cavaleiros e burgueses,
pela qual eles eram pagos pelas comunidades, que podiam solicitar a prestação de
contas do que haviam feito no Parlamento. E eles iam ao Parlamento com
autoridade para comprometer suas comunidades, mas não possuíam autonomia,
pois a essa autoridade eram impostos limites específicos ou então eram dadas
instruções de como deveriam proceder. Em alguns casos, há registros de que o
speaker deveria consultar previamente a comunidade antes de comunicar o
consentimento desta em relação à instituição de um novo tributo.
Do século XIV ao século XVII, houve um desenvolvimento gradual da ação
unificada de cavaleiros e burgueses no Parlamento. Eles perceberam que muitas
das reclamações de suas comunidades eram comuns e desenvolveram uma forma
de apresentar suas reclamações ou pedidos, ou seja, através de petições comuns,
em vez de apresentar apenas petições separadas. Foi a partir daí que eles
passaram a ser reconhecidos como “membros” do Parlamento e essa atuação
conjunta evoluiu gradualmente, com a consciência de que eles formavam um corpo
único. Com o tempo, desenvolveram a noção de reeleição, o que permitiu que
passassem a conhecer uns aos outros e a trabalharem juntos para obter mais
favores para suas comunidades, em ação cooperativa e atuando como uma
corporação. O ponto culminante dessa união era a oposição ao Rei.
O desenvolvimento da teoria política partiu das interpretações a respeito
dessa atuação originária do Parlamento inglês e da própria formação do Parlamento.
Mas, faz-se necessário esclarecer que inicialmente, os cavaleiros e os
burgueses eram vistos como servidores, delegados, ou procuradores de suas
comunidades. Eles não eram chamados de representantes porque a palavra ainda
não tinha esse significado.
As funções dos membros do Parlamento foram se desenvolvendo e essas
nuances ligaram-se a duas outras tradições de pensamento: a ideia de que todos os
homens estão presentes no Parlamento e a noção de que o governante simboliza ou
encarna o país como um todo253.
253
PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias, p. 26.
178
Posteriormente surgiu outra ideia que muito influenciou o Parlamento
enquanto instituição política: toda a nação está, de alguma forma, encarnada em seu
governante, assim como a Igreja está encarnada em Cristo ou no Papa.
Esta concepção medieval e mística possibilitou grande força ao Parlamento
para promover argumentações. Ela partia da premissa de que o Rei não é apenas a
cabeça da nação (o “corpo”), nem apenas o proprietário de todo o reino; ele é a
coroa, o reino, a nação. E, então, a palavra latina repraesentare foi sendo
gradualmente conectada a esse conjunto de proposições. E à medida que a
autoridade do Parlamento crescia e sua função legislativa se solidificava, tal
dimensão simbólica se transmutou também para o Parlamento e então passou-se a
entender que o Rei e o Parlamento juntos formam um corpo com a nação.
A primeira vez que o substantivo foi utilizado para aludir a um membro do
Parlamento foi em 1651, por Isaac Pennington, que se referiu aos membros do
Parlamento como os representantes do povo254.
Ainda em 1651, Hobbes publicou o Leviathan, o primeiro exame da ideia de
representação na teoria política. Nessa obra, Hobbes define a representação e
teoriza seu conceito formalista, segundo o qual a representação é uma autorização e
o representante é alguém que recebe autoridade para agir por outro, enquanto o
representado se compromete com a ação ou a deliberação do representante, uma
vez que deu a este a autorização para que decidisse em seu lugar.
A teoria formalista de Hobbes consagra ao representante novos direitos e
poderes, os quais ele recebe por autorização; por outro lado, o representado adquire
apenas novas obrigações.
Entretanto, a teorização da representação não encontrou em Hobbes sua
conclusão.
A representação continuou em franca evolução, na ampliação da
independência do representante, a quem se conferia cada vez mais liberdade de
atuação em favor de terceiro.
No século XIX, o mais famoso defensor da independência e autonomia do
representante foi Edmund Burke. Para ele, a relação de cada parlamentar é com a
nação como um todo; o representante não mantém uma relação especial com seu
eleitorado; ele representa a nação e não aqueles que o elegeram. Burke acreditava
254
PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias, p. 28.
179
que os representantes defendiam os interesses de suas comunidades, mas se
tratavam de interesses gerais ou até mesmo profissionais.
A teoria formal ou formalista da representação foi superada pela teoria da
representação pessoal.
Pela representação pessoal, o que se representa são pessoas e a noção de
interesses vai tomando variadas concepções.
Alexander Hamilton, John Jay e James Madison, nos Artigos Federalistas,
apresentam o governo representativo como a instituição apropriada para substituir a
democracia direta diante da inviabilidade prática desta. A representação seria um
instrumento substituto à reunião dos cidadãos; seria o espírito e o corpo do governo,
reconhecido como governo representativo.
No governo concebido pelos autores de O Federalista, a noção de interesse
é plural e deve representar não as vontades das pessoas, mas ter por escopo
valores do governo, daí o surgimento da noção de bem público em substituição à
noção de interesse.
Para os federalistas, a representação chega a ganhar conotação superior à
democracia direta porque visa a assegurar o bem público, afastando os vários
interesses particulares conflitantes.
John Stuart Mill e Jeremy Bentham contestaram os autores federalistas,
argumentando que o interesse público sempre seria sabotado em prestígio do
interesse da legislatura ou dos próprios representantes. Ambos ficaram, porém,
maravilhados com o grande êxito político e social na América e procuraram ofertar
um conceito para o interesse público.
Bentham mostrou-se particularmente contrário à prática das instruções aos
representantes. Para ele, o único mecanismo de influência dos eleitores sobre seus
representantes deveria ser o direito de não os reeleger255.
De todo modo, na Inglaterra, o cumprimento das promessas eleitorais nunca
foi imposto como obrigação jurídica e nunca foi materializado em nenhum
documento jurídico ou reconhecido pela common law.
Rousseau também não depositava crença na democracia direta, por
constatar sua inviabilidade e considerar que a vontade não pode ser representada.
255
MANIN, Bernard. As Metamorfoses do Governo Representativo. DADOS - Revista Brasileira de
Ciências Sociais, n. 29, out. 1995.
180
Manifestou-se, assim, contra a representação, conforme já mencionado em
passagens anteriores.
Rousseau via a existência de uma tensão ante a diferença entre o governo
representativo e a democracia. A democracia prega um regime de autonomia
coletiva em que o povo se submete às normas que ele próprio faz. No governo
representantivo, o povo se submete aos comandos dos representantes. Essa
diferença, percebida pelo autor no final do século XVIII, determinou a crítica à
representação por ele formulada.
Não é a presença de delegados que diferencia a representação do governo
do povo pelo povo. Ele aceitava a delegação de funções de governo a um
organismo político separado do povo, entendendo-o compatível com o princípio do
autogoverno. O que Rousseau contestava era que o representante fizesse de sua
vontade a vontade geral. Em Considerações sobre o governo da Polônia, Rousseau
propõe um sistema em que o povo delegaria a uma assembleia de deputados o
exercício do poder soberano e, como consequência lógica de sua concepção de
liberdade política como autogoverno, ele recomenda a prática de mandatos
imperativos. Para ele, a representação somente poderia ser reconhecida no governo
do povo se resultasse de mandatos imperativos256.
Conforme salientou Pitkin,
a “polêmica sobre o mandato e a independência” é um daqueles
debates teóricos infindáveis que nunca parecem se resolver, não
importa quantos pensadores tomem posição em um lado ou no outro.
Ele pode ser sintetizado nessa escolha dicotômica: um representante
deve fazer o que seus eleitores querem ou o que ele acha melhor? A
discussão nasce do paradoxo inerente ao próprio significado da
representação: tornar presente de alguma forma o que apesar disso
não está literalmente presente. Mas, na teoria política, o paradoxo é
recoberto por várias preocupações substantivas: a relação entre os
representantes na legislatura, o papel dos partidos políticos, na
medida em que os interesses locais e parciais se encaixam no bem
nacional, a forma pela qual a deliberação se relaciona com o voto e
ambas se relacionam com o exercício do governo257.
256
MANIN, Bernard. As Metamorfoses do Governo Representativo. DADOS - Revista Brasileira de
Ciências Sociais, n. 29, out. 1995.
257
PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias, p. 15-17.
181
5.4.2 Representação Política e Democracia Representativa
Atualmente, a expressão “representação política” está atrelada à ideia de
democracia indireta, que é a modalidade de democracia na qual o povo se
autogoverna por meio dos representantes que elege.
O modelo clássico de democracia indireta é chamado democracia
representativa258.
A democracia representativa é a base do governo representativo. Porém, o
governo representativo foi pensado para institucionalizar a forma aristocrática de
governo.
Essa concepção encontra grande força no pensamento de Montesquieu, que
proclamava que o povo não tem aptidão para governar, mas é bastante apto para
escolher os seus governantes, elegendo os mais capazes para tomar as decisões
em favor do povo.
Com o surgimento do sufrágio universal, a concepção aristocrática do
governo representativo foi abandonada.
A representação política, no entanto, foi pensada para servir ao governo
aristocrático.
Sob a influência de Sieyès, a representação deveria servir de instrumento
para compor o governo, permitindo aos escolhidos entre os melhores, mais capazes,
mais influentes, decidir como seria satisfeito o bem comum.
Siyès formulou célebre teoria, segundo a qual o poder supremo não cabia ao
povo, mas à nação, “entidade abstrata, personificação dos interesses permanentes e
profundos das gerações sucessivas”259. A nação é que seria representada e não o
povo. O eleitorado exerceria a função de escolher aqueles indivíduos capazes de
formular a vontade da nação soberana.
A partir de Siyès surge a teoria da soberania do parlamento, segundo a qual
este não mantém deveres em relação aos eleitores e é irresponsável perante eles.
A evolução da teoria democrática levou à evolução da teoria da
representação.
258
259
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 85-87.
Ibidem, p. 85-90.
182
A primeira teoria sobre a representação é conhecida como teoria do
mandato. Tal teoria preconiza que há uma relação entre representante e
representado semelhante à que se verifica no Direito Privado entre mandante e
mandatário, mas que é transmudada para o mandato representativo com
importantes diferenças. No mandato representativo não são estabelecidos deveres
ou instruções ao mandatário, que é livre para agir. O mandatário também não tem o
dever de prestar contas do mandato e não pode ser destituído ou substituído.
Essa teoria conflita com a natureza do mandato democrático.
A teoria da investidura, por sua vez, é a que estabelece que, em razão da
eleição, o representante não recebe um mandato, mas sim uma atribuição de
poderes, ou seja, é investido do “poder de querer pelo todo e realizar a vontade do
todo”260.
No século XX surgiu a teoria do mandato partidário, segundo a qual o
mandato pertence ao partido e não ao representante, razão pela qual ele deve tomar
decisões de acordo com a ideologia e a disciplina dos partidos a que estão
vinculados, sob pena de serem destituídos pela infidelidade partidária.
5.4.3 A Crise da Representação Política e a Democracia Delegativa em
Guillermo O’Donnell
Guillermo O’Donnell teoriza a democracia delegativa como a democracia
ainda não consolidada, considerada delegativa porque possui um déficit de
representatividade
que
a
impede
de
ser
reconhecida
como
democracia
representativa.
Segundo O’Donnell,
1) Existing theories and typologies of democracy refer to
representative democracy as practiced, with all its variations and
subtypes, by developed capitalist countries. 2) Some newly installed
democracies (Argentina, Brazil, Peru, Ecuador, and Bolivia, plus the
Philippines and Korea, some Central and Eastern European
countries, and – at best – many of the countries emerged of the
dissolution of the Soviet Union) are democracies, in the sense that
they meet Robert Dahl’s criteria for the definition of polyarchy. 3) But
these democracies are not – nor seem to be moving toward –
260
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, p. 87.
183
representative democracy; they present a set of characteristics which
tempts me to call them delegative democracies (DD). 4) DDs are
neither consolidated nor institutionalized democracies, but they may
be enduring; in many cases, no imminent threat of an open
authoritarian regression, nor advances toward institutionalized
representativeness, are in sight. 5) Finally, I argue that we see the
effect of an important interaction: the deep social and economic crisis
that most of these countries inherited from their authoritarian
predecessors powerfully multiplies the consequences of certain
conceptions and practices that lead in the direction of delegative, not
representative democracy261.
Guillermo O’Donnell denomina de democracias delegativas aquelas em que,
apesar de formalmente possuírem governos denominados representativos e
democráticos e ostentarem os atributos de uma poliarquia, tal como propôs Dahl,
não podem ser consideradas efetivamente democráticas porque não são
representativas e suas instituições revelam um déficit democrático quanto à
representatividade dos interesses dos governados.
A premissa básica para a instalação da democracia delegativa é a eleição
presidencial e todo o processo eleitoral afeto, pois o vitorioso geralmente não será
aquele que ostentará o melhor projeto político e que possui a postura que agrada o
eleitor. Na democracia delegativa, a figura política nuclear e mais importante, ou
seja, o presidente da república, é eleito em razão de sua pessoa e do que
representa e não em virtude da plataforma política que tem a oferecer.
Na verdade, nessas democracias, não há plataforma política nem uma
preocupação com o projeto político de condução dos interesses do Estado porque
os eleitores escolhem de acordo com a figura representativa do candidato, sem
conotação de representatividade política.
De outro lado, o déficit de representatividade é perceptível e os
representantes não revelam qualquer comprometimento com a satisfação das
demandas de seus eleitores. Seus governos não são responsivos.
Nessas
democracias,
não
existem
mecanismos
de
accountability
democrática que permita aos eleitores avaliar e sancionar as condutas dos
representantes que violam a confiança do eleitor.
Além disso, os mecanismos de accountability se revelam, para os
candidatos, uma ameaça ao exercício do mandato; a fiscalização constante pelo
povo e a rendição de contas continuada é considerada “uma ameaça à democracia”.
261
O’DONNELL, Guillermo. Delegative Democracy. Journal of Democracy, National Endowment for
Democracy and The Johns Hopkins University, v. 5, n. 1, p. 55-69, jan. 1994.
184
Nessas democracias, são desestimuladas, desacreditadas e desvalorizadas
todas as formas de accountability e por essa razão até mesmo a accountability
retrospectiva é ineficiente porque não há comprometimento algum com os eleitores.
Nas democracias delegativas as instituições são fracas e os votos dos
eleitores são ofertados em razão da pessoa ou da figura do candidato político e não
em razão de seu projeto político ou dos interesses que ele possa patrocinar
legitimamente. A participação popular se cinge à votação em um cidadão
carismático ou que tenha conseguido obter a admiração popular, o que revela o voto
pessoal e não o voto na condução política que este possa dar ao país.
Isso ocorre porque os mandatos não são representativos. Na verdade, são
uma delegação de poderes políticos aos representantes e estes não têm – ou não
cumprem – o dever de prestar contas ou de serem responsivos em relação ao
eleitorado.
A opinião pública não é considerada e, na realidade, é manipulada pela
mídia ou pelas pesquisas de opinião que não estão atentas às demandas sociais,
mas sim interessadas em qualificar o candidato mais carismático ou sedutor.
O princípio republicano não é respeitado e não se desenvolvem os direitos
republicanos porque a coisa pública não é pública, mas acaba incorporando o
patrimônio dos representantes políticos que formam uma sociedade à parte,
totalmente divorciada da comunidade.
No dizer de O’Donnell,
Delegative democracies are grounded on one basic premise: who
wins a presidential election is nabled to govern the country as he
sees fit, and to the extent that existing power relations allow, for the
term to which he has been elected. The President is the embodiment
of the nation and the main custodian of the national interest, which it
is incumbent upon him to define. What he does in government does
not need to bear any resemblance to what he said or promised during
the electoral campaign – he has been authorized to govern as he
sees fit. Since this paternal figure has to take care of the whole
nation, it is almost obvious that his support cannot come from a party;
his political basis has to be a movement, the supposedly vibrant
overcoming of the factionalism and conflicts that parties bring about.
Typically, and consistently, winning presidential candidates in DDs
present themselves as above all parties; i. e., both political parties
and organized interests. How could it be otherwise for somebody who
claims to embody the whole of the nation? In this view other
institutions – such as Congress and the Judiciary – are nuisances
that come attached to the domestic and international advantages of
being a democratically elected President. Accountability to those
185
institutions, or to other private or semi-private organizations, appears
as an unnecessary impediment to the full authority that the President
has been delegated to exercise. Delegative democracy is not alien to
the democratic tradition. Actually, it is more democratic, but less
liberal, than representative democracy262.
5.4.4 A Importância do Plano de Governo e a Boa Governança: a Crise da
Representação Política
O governo representativo moderno foi instalado sem a presença de partidos
organizados, seguindo os exemplos das revoluções inglesa, americana e francesa.
Os fundadores do governo representativo chegaram a pensar que a divisão
entre partidos ou o que eles chamaram de "facções" seria uma ameaça ao sistema
estabelecido.
Os programas políticos possuíam um papel de reduzida ou nenhuma
importância no modelo original de governo representativo. A ideia de plataforma
política era praticamente desconhecida no final do século XVIII e início do século
XIX.
No entanto, na segunda metade do século XIX, surgiram os partidos
políticos e a expressão da vontade do eleitorado organizada nessa instituição
democrática passou a ser vista como um componente essencial da democracia
representativa.
O surgimento dos partidos de massa teve como consequência um ganho
democrático, que foi a atribuição de relevância aos programas políticos, os quais se
tornaram um dos principais instrumentos da competição eleitoral.
Atualmente, os partidos perderam parte de sua importância política na
medida em que não traduzem valores ou ideologias a serem adotadas nas
plataformas políticas de seus correligionários. As escolhas são feitas a partir de
candidatos que ofertem uma figura carismática e capaz de aumentar o espaço ou
tempo na mídia. A política fica ao largo dessa atividade.
É a preleção de Manin,
No passado, os partidos propunham aos eleitores um programa
político que se comprometiam a cumprir, caso chegassem ao poder.
262
O’DONNELL, Guillermo. Delegative Democracy, p.58
186
Hoje, a estratégia eleitoral dos candidatos e dos partidos repousa,
em vez disso, na construção de imagens vagas que projetam a
personalidade dos líderes. As preferências dos cidadãos acerca de
questões políticas expressam-se cada vez mais freqüentemente por
intermédio das pesquisas de opinião e das organizações que visam
fomentar um objetivo particular, mas não têm a intenção de se tornar
governo. A eleição de representantes já não parece um meio pelo
qual os cidadãos indicam as políticas que desejam ver executadas.
Por último, a arena política vem sendo progressivamente dominada
por fatores técnicos que os cidadãos não dominam. Os políticos
chegam ao poder por causa de suas aptidões e de sua experiência
no uso dos meios de comunicação de massa, não porque estejam
próximos ou se assemelhem aos seus eleitores. O abismo entre o
governo e a sociedade, entre representantes e representados,
parece estar aumentando263.
A representação política passou por importantes transformações, mas um
fator histórico importante foi o surgimento dos partidos de massa e a fidelidade do
eleitorado a essas instituições.
O presente estudo não abordará as diversas implicações do surgimento dos
partidos políticos porque não é o objeto proposto. A questão da contribuição
histórica de seu aparecimento guarda relevância com o presente estudo na medida
em que surgem os planos políticos como diretivas para a condução política.
O surgimento dos partidos ocasionou importante transformação no campo
da representação política porque inseriu a plataforma política como mecanismo de
escolha eleitoral.
Nesse sentido, acentua Manin:
O aparecimento dos partidos de massa e de seus programas veio
transformar a própria relação de representação. A existência de
partidos organizados aproximava os representantes dos
representados. Os candidatos passaram a ser escolhidos pela
organização partidária, na qual militantes de base tinham a
oportunidade de se manifestar. A massa do povo podia, assim, ter
uma certa participação na seleção de candidatos e escolher pessoas
que compartilhassem de sua situação econômica e de suas
preocupações. Uma vez eleitos, os representantes permaneciam em
estreito contato com a organização pela qual se elegeram, ficando,
de fato, na dependência do partido. Isso permitia aos militantes, ou
seja, aos cidadãos comuns, manter um certo controle sobre seus
representantes fora dos períodos eleitorais. Apresentando-se diante
dos eleitores com um programa, os partidos pareciam dar aos
próprios cidadãos a possibilidade de determinar a política a ser
seguida264.
263
MANIN, Bernard. As Metamorfoses do Governo Representativo. DADOS – Revista Brasileira de
Ciências Sociais, n. 29, out. 1995.
264
Ibidem.
187
O desaparecimento dos partidos de massa e o medo, a desconfiança
provocada pelas ideologias que se acoplaram aos sistemas partidários, rebaixou a
importância das plataformas políticas.
Isso provocou um retrocesso democrático.
As eleições e as campanhas eleitorais adotaram o critério pessoal para
alavancar o candidato e os projetos políticos foram deixados de lado.
O déficit de accountability e responsividade, bem como a crise da
representação política têm sido os maiores empecilhos para o estabelecimento da
boa governança.
A escolha do representante a partir de sua plataforma política e a
possibilidade de responsabilizá-lo politicamente ou cobrar-lhe o cumprimento das
promessas de campanha seriam um grande e importante avanço para a democracia.
A escolha política mediante o critério pessoal e a ausência de mecanismos
que permitam o cidadão ser informado sobre a trajetória política que será observada
pelo representante denotam o déficit da representação política, cerne do governo
representativo e do espírito republicano. Nesse contexto, resta concluir que a
democracia representativa não está estabelecida e se verifica, na realidade, a
democracia delegativa, nos termos propostos por O’Donnell.
O estabelecimento da boa governança e o dever de apresentação e
implementação do plano de governo são instituições democráticas que podem
contornar esse déficit e estabelecer uma solução mais favorável para a democracia
brasileira.
No dizer de Manin, Przeworski e Stokes,
A alegação que conecta a democracia e a representação é que na
democracia os governos são representativos porque são eleitos: se
as eleições são concorridas livremente, se a participação é ampla, e
se os cidadãos desfrutam das liberdades políticas, então os governos
agirão em favor do interesse da população. Em um primeiro ponto de
vista – do mandato –, as eleições servem para selecionar boas
políticas ou políticos que sustentam determinadas políticas. Os partidos ou os candidatos fazem propostas políticas durante a
campanha e explicam como essas propostas poderiam afetar o bemestar dos cidadãos, os quais elegem as propostas que querem que
sejam implementadas e os políticos que se encarregarão de praticálas; os governos, efetivamente, realizam-nas. Conseqüentemente, as
eleições semelham uma assembléia direta e a plataforma vencedora
se torna o “mandato” que os governos perseguem. Em um segundo
188
ponto de vista – da prestação de contas –, as eleições servem para
manter o governo responsável pelos resultados de suas ações
passadas. Por anteciparem o julgamento dos eleitores, os
governantes são induzidos a escolher políticas, julgando que serão
bem avaliadas pelos cidadãos no momento da próxima eleição265.
A escolha de um candidato baseada em seus atributos pessoais, que não
levam em conta sua capacidade política, assim como a escolha de candidato que
não seja capaz de elaborar, propor e publicar uma plataforma política apta a seduzir
o eleitorado, revela que a condução do governo não terá diretrizes políticas
preestabelecidas e nem comprometimento algum com as demandas sociais,
revelando um governo não responsivo e que não permite o estabelecimento da boa
governança.
Para concluir, é válido trazer à colação a preleção de Lembo sobre o bom
governo e o conflito entre este e esse novo governo da mídia que tem se
apresentado no cenário brasileiro:
Parece ser bom governo, nos tempos que correm, aquele que melhor
se apresenta nos vídeos. As palavras pouco importam. Vale a
imagem. Ainda, assim, porém pode-se afirmar que a Constituição de
1988 apontou com exatidão o que se pode considerar um bom
governo e quais as regras que devem ser seguidas para se atingir
este objetivo maior.
O artigo 37 do Documento Constitucional é expresso em afirmar que
a boa administração deve obedecer os princípios da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
A cidadania que almeja por um bom governo deve estar atenta e
exigir que estes princípios se encontrem presentes nos atos dos
administradores e utilizar, sempre que isto não acontecer, as
garantias constitucionais colocadas à sua disposição: ação civil
pública, ação popular e o direito de petição.
A omissão, quanto ao agir à procura do bom governo, é ato que lesa
a individualidade e a comunidade, a um só tempo. Agir em defesa da
coisa pública é exercer a cidadania, suporte para um bom
266
governo .
265
MANIN, Bernard; PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Suzan C. Eleições e Representação. Lua
Nova, São Paulo, v. 67, p. 105-138, 2006.
266
LEMBO, Claudio. O Bom Governo, a Busca Incessante. In: CASELLA Paulo Borba et al. Direito
Internacional, humanismo e globalidade: Guido Fernando Silva Soares. São Paulo: Atlas, 2008. p.
291.
189
5.5 A DIMENSÃO JURÍDICA DO EXERCÍCIO DO PODER POLÍTICO E A
RESPONSABILIDADE PELO PODER : O DEVER POLÍTICO DO CHEFE DO
EXECUTIVO DE DIVULGAR E IMPLEMENTAR O PLANO DE GOVERNO
No Estado, o poder político é exercido na forma jurídica, por meio de normas
jurídicas criadas legitimamente e mediante a observação de procedimentos
regulares. Essa forma de organização do Poder – de acordo com uma Constituição
material e em consonância com regras jurídicas – é o substrato do Estado
Constitucional.
Contudo, deve-se considerar que os atos de governo também podem exigir
decisões que nem sempre encontram esteio na lei. A esfera de governo implica a
tomada de decisões que podem, inclusive, não estar previstas em qualquer texto
legal.
É por essa razão que se afirma usualmente que as funções de governo são
atividades independentes da lei.
Essa noção pode levar à conclusão de que os atos de governo não possuem
contornos de juridicidade e essa afirmação não é acertada.
A política e o Direito não se contrapõem. O Estado incorpora a unidade
política, pois o poder político é uno. Porém, o Estado enseja a previsão de ordem e
organização política estruturada, a fim de conferir legitimidade ao exercício de seu
poder; essa função é desempenhada pela Constituição.
Ao conformar-se à Constituição, o poder político alcança juridicidade máxima
e se estabelece como Estado Constitucional. Nesse momento, Estado e Direito
estabelecem uma correlação, que é a íntima conexão entre a política e o Direito.
Os atos de governo somente se legitimam na Constituição Federal.
Toda margem de discricionariedade para tomada de decisões exige a
conciliação desta com a Constituição, especificamente no que tange a seus
princípios basilares, que informam toda a ordem jurídica e conformam toda estrutura
do Estado.
A discricionariedade deve ser entendida como a liberdade de optar entre
várias soluções possíveis para uma questão. Mas a decisão discricionária não está
imune à observância dos princípios preconizados pelo artigo 37 da Constituição
Federal, excetuando-se a publicidade apenas relativamente às hipóteses em que o
sigilo for necessário para resguardo da segurança nacional (artigo 5º, inciso XXXIII,
190
da CF), lembrando sempre que os casos que importam risco para a segurança
nacional não podem ser subtraídos do conhecimento do Legislativo.
Os atos de governo não implicam arbítrio.
O Estado Constitucional Democrático não se coaduna com a invocação da
“razão de Estado” para justificar atos de governo eivados de arbítrio.
Léon Duguit foi o primeiro a negar a existência do ato de governo enquanto
categoria jurídica autônoma. Para ele, o ato de governo é ato político e jurídico que
deve ser entendido em sede própria, a qual se situa nos domínios do Direito
Constitucional267.
A teoria dos atos de governo reconhece que o chefe do Executivo, no
exercício da condução política do Estado, não está completamente adstrito à
aplicação ou à execução das leis. No exercício do poder político há manifestação da
potestade estatal, a qual pode reclamar decisões que não estão legisladas ou que
não podem ser legadas ao Legislativo, mas que se circunscrevem no âmbito do
Executivo, poder ao qual se consagra uma margem de flexibilidade, de liberdade
para optar pela melhor decisão (poder discricionário).
Porém, se é fato que o chefe do Executivo nem sempre pode conciliar suas
decisões com um texto legislativo, é mister reconhecer que seu poder somente pode
ser reconhecido legítimo se juridicamente plasmado.
A teoria dos atos de governo soluciona esse aparente conflito ao estabelecer
que os atos de governo devem encontrar sua legitimidade na Constituição.
Para Carré de Malberg268, os atos de governo são o resultado da aplicação
imediata dos preceitos constitucionais
la teoría del acto gubernamental supone esencialmente que, junto a
su potestad condicionada por la legislación y que sólo es una
potestad de ejecución de las leyes, tiene la autoridad administrativa
una potestad autónoma que proviene de una concesión superior a
los permisos legislativos, y que por consiguiente no puede
considerar-se como un poder ejecutivo de las leyes, sino que es
verdaderamente un poder de gobierno. La fuente superior de donde
proviene este poder es la Constitución misma y no puede ser otra
que ella. (...) Si el jefe del Ejecutivo tiene, por su sola iniciativa, el
poder de realizar cierto número de actos independientes de toda
267
DUGUIT, Leon. Manuel de Droit Constitutionnel. 3. ed. 1918. p. 110 et seq. Apud QUEIROZ, C. M.
Os actos políticos no Estado de Direito: o problema do controle jurídico do poder. Coimbra: Livraria
Almedina, 1990. p. 111.
268
MALBERG, R. Carré. Teoría General del Estado. Trad. José Lion Depetre. México: Fondo de
Cultura Económica, 2001. p. 482 et seq.
191
autorización legislativa previa, es porque ha recibido ese poder,
269
formalmente, de la Constitución .
Na expressão de Cristiana M. M. Queiroz, a relação entre Estado e Direito é
de correlação, pois “ambos se condicionam e se influenciam reciprocamente”270.
A pertença da política ao domínio constitucional resolve a questão de sua
natureza normativa. O Estado não se reduz ao político; mas não se pode destacar o
caráter político da natureza constitucional e normativa.
A actividade de direcção política não é um assunto prae ou extra
constitucional, mas uma actuação progressiva dos fins e tarefas
gerais do Estado. A todos os títulos, uma actividade de realização da
constituição, que se concretiza e atualiza, além do mais, no contexto
das normas directivas e programáticas como normas jurídicas
271
determinativas dos fins e tarefas gerais do Estado .
De outro lado, pode-se argumentar que muitos atos administrativos que são
o
produto
da
tomada
de
decisões
políticas
pertencem
ao
campo
da
discricionariedade e não podem sequer ser tangenciados no que refere ao seu
mérito.
Essa afirmação também demanda ponderação.
Para
que
se
possa
dar
a
correta
conotação
para
o
termo
“discricionariedade”, é necessário indagar o que se deve entender pelo mérito do ato
discricionário e, em seguida, ponderar que a discricionariedade não consagra
liberdade absoluta para qualquer tomada de decisões na esfera de governo.
Do contrário, não se trata de discricionariedade, mas de violação a princípios
e eventual desvio de finalidade.
A Constituição Federal de 1988, como já dito em outras passagens, inovou
ao estabelecer o dever político ao chefe de Governo de abrir os trabalhos
legislativos mediante divulgação de seu plano de governo.
Primeiramente, deve-se ressaltar, mais uma vez, que o texto constitucional
plasmou esse dever exatamente no preceito que trata das atribuições privativas do
chefe de Governo e é, realmente, atribuição privativa do governante conduzir
269
MALBERG, R. Carré. Teoría General del Estado, p. 483-484.
QUEIROZ, C. M. Os actos políticos no Estado de Direito: o problema do controle jurídico do poder,
p. 111.
271
Ibidem, p. 112-113.
270
192
politicamente o Estado. Ademais, ao traçar a diretriz política, o chefe de Governo
deve fazê-lo com transparência, o que implica a motivação de suas decisões.
A discricionariedade não exclui o dever de motivação, tampouco a
transparência de todo ato decisório político em relação aos governados.
O texto poderia ter omitido esse dever ou incumbir apenas os partidos
políticos da apresentação de plano de governo para os candidatos à Presidência da
República. Mas não o fez e o artigo 17 não faz referência ao projeto político como
condição para candidatura política.
No entanto, a Constituição Federal exigiu daquele que tem a pretensão de
governar
que
diga
antecipadamente,
de
forma
transparente,
responsiva,
comprometida, como se dará a governança pública.
Ao tratar dos crimes de responsabilidade, o próprio texto determina ser típico
o desrespeito à Constituição Federal, da qual o Presidente da República deve ser o
guardião.
O dever de apresentar a estratégia de sua governança é típico do governo
republicano, o qual está lastreado na opinião pública, na forma representativa e,
principalmente, na responsabilidade.
Na precisa lição de Eduardo Martines Junior,
Regime republicano é tipo de governo, fundado na igualdade formal
das pessoas, em que os detentores do poder político exercem-no em
caráter eletivo, representativo (de regra), transitório e com
responsabilidade. Diferentemente das monarquias, nas quais o poder
político é exercido em nome próprio e, via de regra, é detido por
alguém que o conquista com base na hereditariedade, ou as
ditaduras, nas quais o uso da força das armas permite a alguém, ou
um grupo, exercer o poder; na república o exercício é conferido a
alguém ou um grupo, que o faz em nome daquele que o elegeu,
tratando-se, pois, de mera representação político-jurídica. Esse é o
mandamento do parágrafo único do artigo 1º da CF.
Ainda a respeito dos elementos da definição de República, avulta a
responsabilidade do governante. É que eles respondem
pessoalmente pelas decisões que tomarem, que no campo político –
pelo instituto do impeachment – quer sob o ponto de vista civil. Aliás,
272
república é essencialmente ligada à responsabilidade (...) .
Pode-se dizer, então, que esse plano de governo referido pelo texto
constitucional, ou seja, seu conteúdo, tem caráter exclusivamente discricionário.
272
MARTINES JUNIOR, Eduardo. República e Isonomia – Licitação e sua inexigibilidade na
contratação de serviços advocatícios pelo Poder Público. Revista de Direito Constitucional e
Internacional, Revista dos Tribunais, n. 47. ano 12, abr./jun. 2004. p. 104.
193
Mas, se há de certo modo alguma discricionariedade em sua elaboração, a
pergunta é: em que consiste essa liberdade quanto à formulação do plano de
governo?
A resposta é ofertada pela própria Constituição Federal, a qual estabelece
que o chefe do Executivo, ao abrir os trabalhos, deverá fazer uma explanação da
situação do País e, então, anunciar seu plano de governo.
Logo, o conteúdo do plano de governo somente pode ser aquele que
estabeleça quais são as políticas públicas necessárias para solucionar as demandas
de cada uma das regiões alcançadas pelas políticas elencadas no plano. Essas
políticas deverão ser conciliadas com as diretrizes constitucionais e com os fins
republicanos, sendo observada a isonomia, para que em benefício do povo, titular da
soberania, possam ser satisfeitos os “direitos republicanos” e, em amplo espectro, o
bem comum, o que bem pode ser conciliado com todas as políticas públicas que o
texto constitucional traça como diretrizes para o desenvolvimento nacional – políticas
que consagrem efetividade aos direitos à saúde, à subsistência, à educação, à
família, à dignidade, à moradia, ao pleno emprego e que possibilitem a erradicação
da pobreza, da miséria, das diferenças regionais. Todas as orientações dadas pela
própria Constituição devem fazer parte desse plano.
E a discricionariedade está em como realizar essas políticas; em decidir qual
região deve ser primeiramente atendida, obedecido o princípio federativo e níveis de
competência; em estabelecer e motivar as políticas eficientes para atender as
regiões
mais
afetadas
pelas
desigualdades,
identificando-as.
É
uma
discricionariedade vinculada à Constituição e não a critérios meramente políticos,
como a região que mais atribuiu votos ao governante eleito.
É a discricionariedade vinculada à Constituição, ao princípio republicano, ao
princípio federativo, aos fins do Estado.
E é uma discricionariedade transparente porque invoca a motivação.
O plano não é um documento inflexível, mas não é documento que pode ser
estabelecido de acordo com o aceno político do governante.
É documento que irá esclarecer qual a diretriz da governança pública
adotada por aquele governo que o apresentou.
A discricionariedade que o envolve é aquela que não fere o pacto federativo.
O pacto federativo revela níveis de governo, com competências bem
estabelecidas, atuando de acordo com as peculiaridades regionais, o que denota a
194
preocupação do constituinte com o alargamento do espectro de alcance das
políticas do Estado e, noutro momento, com a observância ao princípio da
descentralização.
E, nessa hierarquia dos níveis de governo, não se pode substituir as
diretrizes constitucionais, o princípio republicano, o pacto federativo pela
extravagância política do governante ou por sua vontade própria que não atende ao
interesse público, ou o que na república se costuma chamar de bem comum.
A boa governança pública é uma opção política de exercício do poder que
determina um modo de governar em consonância com os valores constitucionais
consagrados, especificamente aqueles que estruturam o Estado, como o ideal
democrático, o princípio republicano e os consectários princípios de boa
governança.
A boa governança é critério normativo que realça os valores superiores
consagrados no texto legal e que perfazem a essência do regime democrático.
Afirma Bresser Pereira que
a política é a arte de alcançar a legitimidade e de governar o estado
através do uso da argumentação, da persuasão e do compromisso,
em vez da pura força. Enquanto nos mercados os produtores e
consumidores tentam maximizar seus interesses, na política, além
dos interesses, também é necessário levar em conta os valores273.
A esfera de governo é aquela que compreende a tomada das decisões
políticas; enquanto a esfera administrativa abarca o âmbito de execução das
decisões. Enquanto a primeira se caracteriza pela ampla margem de liberdade e
flexibilidade para adoção de seus critérios de decisão, a esfera administrativa se
distingue pela sua total submissão à execução das medidas e objetivos
determinados pelas instâncias políticas274.
Isso não significa que certa flexibilidade e liberdade de opção entre várias
possíveis resultem em arbítrio ou falta de razoabilidade.
O governo é locus de realização do interesse público e não de interesses
políticos ou facciosos.
273
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Uma Nova Gestão para um Novo Estado: Liberal, Social e
Republicano. Revista do Serviço Público, v. 1, n. 52, p. 5-24, jan. 2001. p. 18.
274
QUEIROZ, C. M. Os actos políticos no Estado de Direito: o problema do controle jurídico do poder.
73-75.
195
Para o bom governo, é preciso estabelecer metas, sendo que a própria
Constituição já o fez. Basta adotá-las com transparência e responsividade, tal como
requerem os princípios da boa governança.
Um sistema de responsabilização claramente definido é essencial para o
sistema de democracia representativa em que os cidadãos escolhem os candidatos
que se comprometem a realizar as políticas de interesse comum. Se os cidadãos
não entendem ou não podem facilmente obter informações sobre como os seus
representantes têm usado o poder que lhes foi dado, então, a legitimidade do
governo é profundamente afetada. Transparência e informações claras sobre “quem
é o responsável por quem e pelo quê” são fundamentais para a governabilidade
democrática.
Como ressalta Adam Przeworski em Democracia Sustentável:
Governos são responsáveis na medida em que os cidadãos podem
discernir se os governantes estão agindo de acordo com os seus
interesses e sancioná-los apropriadamente, de forma que os
governantes que satisfazem os cidadãos permanecem em seus
postos e aqueles que não os satisfazem perdem suas posições. A
responsabilidade política é um mecanismo retrospectivo, no sentido
de que as ações dos governantes são julgadas a posteriori, em
termos dos efeitos que causam275.
A boa governança não comporta a ingerência do cidadão no governo, mas
sim a possibilidade de o cidadão ser informado acerca da diretriz política adotada
pelo governante, o que é possível pela publicidade da agenda.
Esse dever de informação política decorre não somente da soberania
popular, mas da confiança, visto que o voto celebra a opção fundamentada no
projeto político apresentado ao cidadão. É corolário do governo representativo o
direito de confiar que o governante será leal ao voto que lhe foi cedido por sua
proposta política. O voto democrático, como já refletido, não é pessoal, mas deriva
da opção por projetos políticos capazes de atender demandas sociais.
Nesse diapasão, a publicidade dos atos e a transparência da agenda apenas
servirão de instrumentos de constatação de cumprimento dos compromissos
políticos, revelando a eficiência, a moralidade a que está adstrita a confiança (mutual
trust) e a boa-fé do governo.
A democracia somente germina no terreno da confiança.
275
PRZEWORSKI, Adam (Org.). Sustainable Democracy. Cambridge: Cambridge University, 1995. p
86. Tradução livre.
196
A essência da representação política está na confiança recíproca que se
estabelece entre governantes e governados.
Essa confiança deve permitir ao cidadão tomar conhecimento prévio das
políticas que serão implementadas pelo Estado.
É a preleção de Jorge Miranda:
Não basta proclamar o princípio democrático e procurar a
coincidência entre a vontade política manifestada pelos órgãos de
soberania e a vontade popular manifestada por eleições. É
necessário estabelecer um quadro institucional em que esta vontade
se forme em liberdade e em que cada pessoa tenha a segurança da
previsibilidade do futuro. É necessário que não sejam incompatíveis
o elemento objetivo e o elemento subjetivo da Constituição e que,
pelo contrário, eles se desenvolvam simultaneamente.
Há uma interação de dois princípios substantivos – o da soberania do
povo e o dos direitos fundamentais – e a mediatização dos princípios
276
adjectivos da constitucionalidade e da legalidade .
Assim, o eleitor não pode agir como quem está sempre em alerta,
fiscalizando passo a passo o governante e intervindo em todas as ações do governo.
A participação direta do cidadão em todas as decisões do governo só é
possível na democracia direta.
O instituto da democracia representativa não se coaduna com a
desconfiança e com a ingerência do cidadão277.
Porém, o princípio da representação política reclama a responsabilidade
política.
Responsabilidade política é o dever dos governantes de prestar contas. E
essa rendição de contas não implica simplesmente a apresentação de um inventário
ou relatório do que já foi realizado. A prestação de contas democrática envolve a
“sujeição do governante a um juízo de mérito sobre os seus actos e atividades por
parte dos governados e a possibilidade de sua substituição por acto destes”278.
Trata-se de uma responsabilidade difusa porque tanto os parlamentares
quanto os representantes do Executivo, nos três graus da Federação, devem prestar
contas a todo o povo e não apenas aos que os elegeram.
276
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. VII, p. 68.
“Se soberania ou supremacia do povo significa, porém, superintendência sobre os governantes e
contínua subordinação destes às injunções dos eleitores, então ela é desmentida pelas instituições e
pela prática da democracia representativa que, rejeitando o mandato imperativo e procurando
assegurar um mínimo de estabilidade governativa, impede os cidadãos de determinar (salvo em caso
de referendo) actos em concreto dos governantes”. Ibidem, p. 63.
278
Ibidem, p. 78.
277
197
A responsabilidade difusa decorrente do princípio da representação possui
duas dimensões:
1. O primeiro aspecto é a sujeição dos governantes às críticas dos cidadãos,
no exercício das liberdades fundamentais, como direito de expressão, direito à livre
manifestação do pensamento e opiniões, direito à informação, direito de petição, o
que implica o direito de serem “esclarecidos objetivamente sobre os actos do Estado
e demais entidades públicas e de serem informados pelo Governo e outras
autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos”279.
Assim, durante o mandato, o cidadão pode valer-se do direito de petição
para pedir esclarecimentos sobre as políticas públicas que ainda não foram
implementadas.
O Congresso pode pedir ao presidente ou a seus ministros que apresentem
informações sobre determinadas políticas e sobre o cumprimento do cronograma
orçamentário.
As instituições também podem se valer da opinião pública, fazendo uso da
informação continuada e zelosa, porém crítica, sobre o tratamento da coisa pública.
São todos mecanismos de accountability democrática que permitem que o
cidadão pergunte a quantas anda o trato do interesse público e obrigue o governante
a esclarecer como vem cuidando da República.
Em última instância, em sendo irremediável a omissão, abrem-se as portas
do Judiciário para que as omissões governamentais, naquilo que extrapolam o poder
discricionário, sejam objeto de apreciação judicial.
E o Ministério Público, defensor do regime democrático, também se revela
uma instituição capaz de promover a accountability democrática, tal como já o vem
fazendo. São exemplos os pedidos em ações civis públicas para construção de
creches, prestação de medicamentos, obtenção de vagas no ensino fundamental,
obtenção de vagas em hospitais.
Essas questões seriam objeto de apreciação menos interferente e mais clara
do Ministério Público se o próprio presidente, governador ou prefeito relatasse no
projeto político suas intenções de realizar todas essas políticas, cabendo ao povo
dar-lhe o prazo devido para implementá-las, de acordo com o orçamento, em sua
279
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. VII, p. 79.
198
esfera de competência. Ou, em caso de omissão, cobrá-lo pelas promessas políticas
não concretizadas.
O dever de apresentar o plano político, alçado a dever constitucional, não
pode ser considerado discricionário. Discricionária pode ser sua implementação,
mas desde que seja efetivada e que o orçamento seja elaborado de acordo com
esse projeto ou, pelo menos, seja motivada a omissão de determinadas políticas em
razão dos escassos recursos ou da vasta agenda já assumida.
Porém, a motivação não pode ser capturada pela discricionariedade.
2. A outra dimensão desse dever pode ser observada no momento da
reeleição, ao final dos mandatos, quando será revelado se a gestão foi ou não
satisfatória sob o crivo dos eleitores.
Segundo Rosenbaum
Não há nenhuma questão mais central para a boa governança que a
prestação de contas em geral, que implica a prestação de contas
dos que estão no governo para seus cidadãos e para as demais
Instituições (principalmente o Legislativo e o Judiciário).
Por
conseguinte, não há nenhuma questão mais central para qualquer
discussão sobre os desafios do governo e funcionários públicos que
a questão do compromisso político com um elevado grau de
responsabilidade.
Na verdade, as questões de responsabilidade perante os cidadãos
são simplesmente os elementos mais importantes da contemporânea
concepção de
governança e, como conseqüência, tem-se a
necessidade dessa questão figurar no centro de qualquer discussão
sobre o tema boa governança280.
A
responsabilidade
institucional,
diversa
política
daquela
também
derivada
da
invoca
uma
representação
responsabilidade
política.
É
a
responsabilidade política manifestada pelos poderes e direitos de oposição
democrática.
Na democracia, o direito à oposição democrática revela um poder dos
partidos políticos.
Oposição aqui deve ser entendida como a fiscalização pública dos atos dos
governantes pelos partidos políticos ou pelos cidadãos vinculados a partidos
280
ROSENBAUM, Allan. Boa Governação, a responsabilidade e o Servidor Público. Disponível em:
<www.un.org>. Acesso em: 07 dez. 2009. Allan Rosenbaum é Diretor Instituto de Gestão Pública e
Serviço Comunitário e professor de Administração Pública da Universidade Internacional da Flórida
(E.U.A.).
199
políticos e em favor destes. A oposição não é direito dos cidadãos individualmente
considerados281.
Essa conotação é importante porque o cidadão interessado na condução da
coisa pública age no exercício da cidadania e não em razão de ideologia partidária.
O interesse legítimo na cidadania é o interesse de participação política. Não é um
interesse neutro, mas o cidadão, enquanto pessoa, não é instituição.
Os partidos políticos podem exercer a oposição, que não se trata do direito
ao bom governo aqui defendido.
Oposição política é institucional; é mecanismo democrático, mas não se
confunde com os mecanismos de cidadania da democracia representativa
Assevera Celso Antonio Bandeira de Mello que “o Estado de Direito é
exatamente um modelo de organização social que absorve para o mundo das
normas, para o mundo jurídico, uma concepção política e a traduz em preceitos
concebidos expressamente para a montagem de um esquema de controle do
Poder”282.
A supremacia da lei resulta da formulação da vontade geral, através de seus
representantes, uma vez que a lei se obriga a ser geral e abstrata, apoiando-se no
princípio da igualdade e sendo corolário da democracia representativa. E se todo
poder emana do povo, o exercício do poder político deve se realizar em consonância
com essa vontade popular, amparada na legalidade.
E nessa diretriz democrática, o Estado de Direito pode ser contemplado
como “um gigantesco projeto político, juridicizado, de contenção do Poder e de
proclamação da igualdade de todos os homens”283.
Atualmente,
os
textos
legais
já
refletem
diversos
aspectos
da
responsabilidade política e várias possibilidades de sanções políticas que não
implicam a específica renúncia ao exercício do poder (traço fundamental da clássica
noção de responsabilidade política).
No Brasil, a Constituição da República é sensível ao reconhecimento de
novas modalidades de sanções políticas em razão de responsabilização política de
agentes públicos. O artigo 37 do texto constitucional, além de trazer toda a diretriz
de governança exigida como medida de bom governo, no seu parágrafo 4º indica a
281
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. VII, p. 81.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. rev. e atual. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 49.
283
Ibidem, p. 50.
282
200
possibilidade de responsabilização política de agentes pela prática de atos de
improbidade. A Lei n. 8429/92 inova no campo da responsabilidade política porque
traz em seu bojo sanções políticas que não se confundem com as de natureza penal
e, ainda, a possibilidade de afastamento do cargo do agente improbo, por decisão
jurisdicional. Além disso, o texto legal possibilita a aplicação efetiva de sanções de
natureza política, tais como inelegibilidade e perda do mandato.
A Lei n. 8429/92 é mecanismo de accountability e revela a nova tendência
do direito brasileiro acerca da responsabilidade política, revelando que este instituto
possui vários aspectos a serem ainda explorados.
A Lei de Improbidade Administrativa, na mesma orientação do dispositivo
que consagra o dever de apresentação do plano, descreve sanções de caráter
estritamente político. São verdadeiras e severas sanções políticas, demonstrando
que o agente político ou público pode ser responsabilizado politicamente de outras
formas que não apenas o impeachment ou o dever de renunciar ao cargo público.
Outro instrumento é a ação popular, que, após o processo de
redemocratização brasileira, passou a ser muito utilizada (artigo 5º, LXXIII, CF).
A Constituição Federal também traz mecanismos de accountability que
podem se revelar eficientes para garantir a responsividade do governo: é o caso do
direito de petição (artigo 5º, incisos XXXIII e XXXIV, alínea “a”) já referido.
A democracia clama por instituições democráticas que devem ser criadas,
aperfeiçoadas e, principalmente, utilizadas a serviço dos fins republicanos.
Existem outras boas experiências capazes de revelar as políticas públicas
que o povo quer ver implantadas. São exemplos disso as audiências públicas, o
orçamento participativo, as consultas populares mediante pesquisas de opinião.
Para que sejam mais eficazes, seus resultados deveriam ser concretizados nos
planos de governo, nos orçamentos seguintes, momento em que poderiam ser
cobradas as soluções obtidas por essa composição democrática
A nossa cura virá somente com as boas instituições. Mas quais?
Respondemos com duas palavras: instituições democráticas. São
aquelas instituições que chamam o maior número possível de
cidadãos à responsabilidade do poder sem amarrá-los; que,
ampliando o sufrágio, a participação, o controle, impedem alguns
poucos de transformar o Estado em uma fortaleza de privilégios e de
201
tirar do poder todas
responsabilidades284.
as
vantagens,
descartando
todas
as
No dizer de O’Donnell, o corolário dessas reflexões é que, quando
concebido como um aspecto da teoria democrática, o princípio da lei (rule of law), ou
o Estado de Direito, deve ser tomado não apenas como uma característica genérica
do sistema legal e do desempenho dos tribunais. Aqui, há que se atentar para o
cerne
constitucional
do
Estado.
Então,
primeiramente,
o
princípio
da
constitucionalidade do governo e, em seguida, o da legalidade deveriam ser os
ditames efetivos de um governo representativo. Isso implica reconhecer que existe
um sistema legal e democrático, que é propriamente democrático em três
sentidos285:
1) O sistema no seu todo é democrático porque preserva as liberdades e
garantias políticas da poliarquia.
2) Ao preservar o sistema como um todo, ele também irá preservar os
direitos civis de toda a população.
3) Ele é concebido como instrumento de rendição de contas e, para tanto,
estabelece redes de responsabilidade e accountability que impõem que todos os
agentes, privados e públicos, inclusive os funcionários dos escalões mais altos do
regime, estejam sujeitos a controles apropriados, legalmente estabelecidos, para
fiscalização da ilegalidade de seus atos e das suas finalidades, de modo que estas
não se afastem do interesse público e sejam responsivas.
Somente na medida em que o Estado consegue alcançar estas três
condições – com o exercício da boa governança, da cultura da cidadania e do
respeito aos direitos fundamentais como primado da dignidade da pessoa humana –
é que ele poderá se afirmar como não sendo apenas governado pela lei; mas sim
um legítimo Estado Democrático de Direito.
Para impedir a instalação de uma democracia delegativa, é preciso que a
democracia representativa utilize todo seu potencial, ganhe espaço na educação,
que lhe seja possibilitada a crítica para que se estabeleça também uma educação
política do povo para a soberania e, por fim, que a coisa pública volte à esfera
284
BOBBIO, Norberto. Entre duas Repúblicas: às origens da democracia italiana. Trad. Mabel
Malheiros Bellati. Brasília: Universitária de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial, 2001. p. 34.
285
O'DONNELL, Guillermo. Poliarquias e a (In)Efetividade da Lei na América Latina. Trad. Otacílio
Nunes. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, Editora Brasileira de Ciências, n. 51, p. 37-61, jul.
1998.
202
pública e não se circunscreva à esfera particular dos interesses facciosos não
legítimos.
O Estado Constitucional da Idade Moderna, à medida que ele se
constitui com Estado de Direito, exige e permite uma metódica, que
opera com a pretensão de controlabilidade e com isso de
racionalidade, i.e., de uma metódica científica no sentido definido. O
lado técnico dessa racionalidade e controlabilidade deve ser
assegurado por regras e garantias formais. (...) A instrumentalidade
da metódica jurídica evidencia-se no fato de que ela pode ser
colocada a serviço de conteúdos políticos distintos, dentro desse
quadro, consideradas as suas funções de decisão, de estabilização,
de diferenciação, de orientação e de legitimação. Os limites da sua
instrumentalidade evidenciam-se no fato de que a experiência
histórica disponível ensina que cada evolução a formas autoritárias
ou totalitárias de dominação está ligada a uma desracionalização, a
uma desmontagem das garantias formais e procedimentais, a uma
restrição dos deveres de publicidade, das possibilidades e das
286
instâncias de controle (...) .
286
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria metódica estruturante. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 218.
203
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo pretendeu debater a dimensão da responsabilidade
política do chefe do Poder Executivo quanto à divulgação e à implementação de seu
plano de governo enquanto instrumento de exercício da boa governança.
Partindo da premissa de que a Constituição Federal de 1988 inaugurou uma
nova ordem jurídica, consagrando o Estado Constitucional Democrático brasileiro,
erigido sob a forma republicana, concluiu-se que o exercício do poder político deve
inserir-se nesse novo contexto, com vistas a atingir os fins do Estado, que estão
estampados no próprio texto constitucional.
Concluiu-se que, com vistas a atingir esses fins republicanos e
democráticos, o governante deve pautar-se pelos princípios da boa governança,
consagrados no artigo 37 da Constituição Federal e, ainda, por outros que são: a
transparência na tomada das decisões políticas e no exercício da governança
pública (transparência da agenda); o dever de accountability democrática; o respeito
ao direito a ampla informação e à participação política, de que é titular o cidadão; a
responsividade do governo; a busca de metas de desenvolvimento econômico,
social e da democracia; a responsabilidade política; a confiança recíproca; a busca
do consenso.
A prática da boa governança reclama o exercício do poder político por meio
de projeto político previamente submetido ao crivo dos governados, o que sintetiza o
dever de apresentação do plano de governo e de sua implementação durante o
exercício do mandato.
Essa tarefa de apresentação do plano de governo, pelo governante eleito,
ganhou alcance constitucional e revela um novo dever político, que não está imune à
responsabilidade pela omissão quanto à rendição de contas.
Concluiu-se no presente trabalho que existem mecanismos de accountability
que podem permitir ao cidadão a exigência da prestação de contas pelo exercício da
governança pública, tal como o direito de petição.
Foram consideradas as diversas inovações trazidas pela Constituição que,
também em seu artigo 37, parágrafo 4º, trata da improbidade administrativa,
elevando o dever de probidade a matéria constitucional e permitindo a elaboração
204
da Lei federal n. 8.429/92 (Lei da Improbidade Administrativa), que estabeleceu
novas modalidades de sanções políticas ao agente público.
Pretendeu-se o debate quanto à dimensão da responsabilidade política do
chefe do Executivo no sistema presidencial e propôs-se a reflexão acerca da
inadequação da teoria da irresponsabilidade política do chefe de Estado em
sistemas diversos do parlamentarista, no qual há confusão entre as figuras de chefe
de Estado e chefe de governo.
As inovações no texto constitucional foram ponderadas em cotejo com a
nova proposta da governança pública com vistas ao bom governo e se concluiu pela
possibilidade de responsabilização política do governante não somente pela via do
impeachment, pois a responsabilidade política não poderia ser restrita ao dever de
renúncia ou à prática de crime de responsabilidade. Nesse diapasão, ponderou-se
que a própria Lei de Improbidade também estabelece perda do mandato político e
sanções de cunho político, divergindo da tese da irresponsabilidade política do chefe
de Estado.
Ao
refletir
sobre
o
governo
representativo,
foram
feitas
diversas
considerações acerca da representação política e sua crise quando há ausência de
comprometimento do governante com as promessas de campanha ou com o projeto
político que recebeu a confiança do voto do cidadão.
A democracia representativa foi ponto de enorme inquietação no decorrer do
trabalho, porque se trata de instituto que serve à forma republicana de governo, que
é forma de governo representativo por excelência, lastreado na opinião pública e na
confiança do povo, sem o que está fadada ao insucesso e ao estabelecimento de
uma democracia que pode ser conceituada como democracia delegativa.
A boa governança é apontada como mecanismo de exercício de governo
com finalidade de estabelecer o bom governo, enquanto direito decorrente dos
novos direitos de cidadania.
Por fim, através das ponderações lançadas no decorrer do presente
trabalho, espera-se ter contribuído para o debate democrático sobre a necessidade
de
efetivação
da
democracia,
estabelecendo
governos
verdadeiramente
democráticos, nos quais o cidadão possua voz e possa participar da tomada de
decisões políticas que permitam a implementação das políticas públicas eficazes e
capazes de resolver os problemas de cada região deste país de dimensão
continental que se chama Brasil.
205
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALTHUSIUS, Johannes. Política. Tradução reduzida de Política Metodicamente
Apresentada e Ilustrada com Exemplos Sagrados e Profanos. Trad. Joubert de
Oliveira Brízida. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.
ANASTASIA, Fátima; AZEVEDO, Sérgio de. Governança, “Accountability” e
Responsividade. Revista de Economia Política, v. 22, n. 1, jan./mar. 2002.
ARISTÓTELES. A Política. Trad. Pedro Constantin Tolens. São Paulo: Martin Claret,
2007.
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2007.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. rev.
e atual. São Paulo: Malheiros, 2008.
BARACHO, Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Federalismo. Rio de Janeiro:
Forense, 1986
BARROS, Sergio Resende de. Contribuição dialética para o constitucionalismo.
Campinas: Millenium, 2007.
BARBOSA, Ruy. Commentarios à Constituição Federal Brasileira. v. III. São Paulo:
Saraiva, 1993.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2001.
____________________. Curso de Direito Econômico. São Paulo: Celso Bastos,
2004.
____________________. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. São Paulo:
Celso Bastos, 1997.
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a
partir da Constituição de 1988. São Paulo, Malheiros, 2005.
BISCARETTI DI RUFFIA, Paolo. Introducción al derecho constitucional comparado y
1988-1990: un Trienio de Profundas Transformaciones Constitucionales en
Occidente en la URSS y en los Estados Socialistas del Este Europeo. Trad. de
Hector Fix Zamudio. México: Fondo de Cultura Económica, 2006.
BITTAR, Eduardo C. B. Metodologia da Pesquisa Jurídica: teoria e prática da
monografia para os cursos de direito. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007.
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política.
Trad. Marco Aurélio Nogueira. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
206
_______________. Entre duas Repúblicas: às origens da democracia italiana. Trad.
Mabel Malheiros Bellati. Brasília, Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa
Oficial, 2001.
_______________. Do Facismo à Democracia: Os regimes, as ideologias, os
personagens e as culturas políticas. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2007.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
_________________. Teoria do Estado. 6. ed. rev. e ampl. Malheiros: São Paulo,
2007.
_________________. Democracia direta, a democracia do terceiro milênio. In:
RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes; BERARDI, Luciana Andrea Acorsi. Estudos de Direito
Constitucional em Homenagem a profa. Maria Garcia. 2. ed. São Paulo: IOB, 2008.
BONAVIDES, Paulo; MARQUES DE LIMA, Francisco Gerson; BEDÊ, Fayga, Silveira
(Coord.). Constituição e Democracia: estudos em homenagem ao professor J. J.
Gomes Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006.
BOTTO JUNIOR, Armando. Estado, política e classes sociais: ensaios teóricos e
históricos. São Paulo: UNESP, 2007.
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Democracia Republicana e Participativa. Novos
Estudos Cebrap, n. 71, p. 77-91, mar. 2005.
_____________________________. Uma Nova Gestão para um Novo Estado:
Liberal, Social e Republicano. Revista do Serviço Público, n. 52, v. 1, p. 5-24, jan.
2001.
_____________________________. Os Primeiros Passos da Reforma Gerencial do
Estado de 1995. Disponível em: <www.bresserpereira.org.br>. Acesso em 07 dez.
2009.
BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos; WILHEIN, Jorge; SOLA, Lourdes (Org.).
Sociedade e Estado em transformação. São Paulo: Editora Unesp; Brasília: ENAP,
1999.
BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito
jurídico. São Paulo: Editora Saraiva, 2006.
_____________________________. Direito Administrativo e políticas públicas. São
Paulo: Saraiva, 2002.
BURDEAU, Georges. O Estado. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão.
São Paulo: Martins Fontes, 2005.
207
BURDEAU, Georges; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Direito Constitucional. 27.
ed. Trad. Carlos Souza. Barueri: Manole, 2005.
CADERMATORI, Daniela Mesquita Leutchuk de. O diálogo democrático. Curitiba:
Juruá, 2007.
CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e de Direito Constitucional.
Coimbra: Almedina, 1998.
CAGGIANO, Monica Herman Salem. Sistemas Eleitorais X Representação Política.
São Paulo, 1987. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo.
______________________________. Controle do Mercado por via de Tabelamento.
Revista de Direito Público, v. 100, p. 43, 1991.
______________________________. Direito parlamentar e direito eleitoral. Barueri:
Manole, 2004.
______________________________. Oposição na Política: propostas para uma
rearquitetura da democracia. São Paulo: Angelotti, 1995.
______________________________. Aula proferida em curso de pós-graduação
stricto sensu, no Instituto Presbiteriano Mackenzie, em 07 out. 2008.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
CARDOSO, Fernando Henrique. A construção da democracia: estudos sobre a
política brasileira. São Paulo: Siciliano, 1993.
CASELLA, Paulo Borba et al. Direito Internacional, humanismo e globalidade: Guido
Fernando Silva Soares. São Paulo: Atlas, 2008.
CAVALCANTI, Amaro. Regime federativo e a república brasileira. Brasília: UnB,
1983.
CHEIBUB, José Antonio; PRZEWORSKI, Adam. Democracia, Eleições
Responsabilidade Política. Rev. Bras. Soc., São Paulo, vol. 12, n. 35, out. 1997.
e
COMISSÃO SOBRE GOVERNANÇA GLOBAL. Nossa Comunidade GlobalComissão sobre Governança Global. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas,
1996.
COMPARATO, Fabio Konder. Direito Público: estudos e pareceres. São Paulo:
Saraiva, 1996.
DAHL, Robert A. Poliarquia: Participação e Oposição. Trad. Celso Mauro Pacionik.
São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005.
208
_____________. Who Governs? Democracy and Power in an American City. New
Haven: Yale University, 1962.
_____________. Polyarchy – participation and opposition. New Haven: Yale
University, 1971.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25. ed. São
Paulo: Saraiva, 2005.
_______________________. Estado de Direito e Direitos Fundamentais. In:
FIGUEIREDO, Marcelo; PONTES FILHO, Valmir (Org.). Estudos de Direito Público
em Homenagem a Celso Antonio Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros, 2006.
DINIZ, Eli. Reforma del Estado y Gobernanza Democrática: hacia la democracia
sostenible? Trabalho apresentado na Conferência Internacional sobre “Democracia,
Gobernanza y Bienestar en las Sociedades Globales” (Instituto Internacional de
Gobernabilidad), realizada em Barcelona, entre 27 e 29 de novembro de 2003.
DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e Seus Efeitos. 4. ed. atual. São Paulo:
Saraiva, 1998.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas,
2007.
DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos. Trad. Cristiano Monteiro Oitica. 2. ed.
Brasília: Universidade de Brasília, 1980.
FARAH, Marta Ferreira Santos. Parcerias, novos arranjos institucionais e políticas
públicas no nível local de governo. RAP – Revista de Administração Pública, v. 35,
n. 1, p. 119-145, jan./fev. 2001.
FERRAJOLI, L. O Direito como Sistema de Garantias. In: OLIVEIRA JÚNIOR; José
Alcebíades de. O Novo Direito e Política. Porto Alegre: Livraria do Advogado.
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar,
privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri: Manole, 2007.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio. Versão
5.1. 3. ed. Curitiba: Positivo.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 34. ed. rev.
e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
________________________________. Estado de Direito e Constituição. 4. ed. São
Paulo: Saraiva, 2007.
________________________________. Aspectos
Contemporâneo, São Paulo: Saraiva, 2003.
do
Direito
Constitucional
209
________________________________. Constituição e Governabilidade: ensaio
sobre a (in)governabilidade brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995.
______________________________. O Parlamentarismo. São Paulo: Saraiva,
1993.
______________________________. O Poder Constituinte. 3. ed. rev. e ampl. São
Paulo: Saraiva, 1999.
______________________________. Direitos humanos fundamentais. 8. de. rev. e
atual. São Paulo: Saraiva, 2006.
FIGUEIREDO, Marcelo; PONTES FILHO, Valmir (Org.). Estudos de Direito Público
em Homenagem a Celso Antonio Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros, 2006.
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria Geral do Estado. Trad. Marlene Holzhausen.
São Paulo: Martins Fontes, 2006.
FONSECA, Aníbal Freire. O Poder Executivo na República Brasileira. Brasília:
Universidade de Brasília, 1981.
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 4. ed., São Paulo:
Malheiros, 2004.
GARCIA, Maria (Coord.). Democracia, hoje. Um modelo político para o Brasil. São
Paulo: Celso Bastos, 1997.
GENEREUX, Jacques. Introdução à política econômica. Trad. Maria Stela Gonçalves
e Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Loyola, 1995.
GONÇALVES, Alcindo. O Conceito de Governança. Anais do XV Congresso
Nacional do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em
Direito,
Manaus,
nov.
2006.
Disponível
em:
<http://conpedi.org/manaus/arquivos/Anais>. Acesso em: 07 dez. 2009.
GOOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? A genealogia filosófica de uma
grande aventura humana. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GRAU, Eros Roberto. Planejamento econômico e regra jurídica. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1978.
___________. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1978.
___________. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 4. ed.
São Paulo: Malheiros, 2006
GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro; WATANABE,
Kazuo (Coord.). Direito Processual Coletivo, e o anteprojeto de Código Brasileiro de
Processos Coletivos. São Paulo: Saraiva, 2003.
210
GUERRA FILHO, Willis Santiago (Coord.). Dos direitos humanos aos direitos
fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre factividade e validade. v. II. 2. ed.
Trad. Flavio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 3. ed. rev. e atual. Belo Horizonte:
Del Rey, 2002.
HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. De acordo
com a Nova Revisão Ortográfica.
HUERTAS, Franco. O método PES: entrevista com Matus. Trad. Giselda Barroso
Sauveur. São Paulo: FUNDAP, 1996.
ISHAM, Jonathan; KAUFMANN, Daniel; PRITCHETT, Lant. Civil Liberties,
Democracy, and the Performance of Government Projects. The international bank for
reconstruction and development. The World Bank. The World Bank Economic
Review, v. 11. n. 2, p. 219-242, 1992.
JELIN, Elizabeth; HERSHBERG, Eric (Org.). Construindo a Democracia: Direitos
Humanos, Cidadania e Sociedade na América Latina. Trad. Ana Luiza Pinheiro. São
Paulo: Edusp, 2006.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista de Brito. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
KISSLER, Leo; HEIDEMANN, Francisco G. Governança pública: novo modelo
regulatório para as relações entre Estado, mercado e sociedade? Revista de
Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 40, n. 3, maio/jun. 2006.
LARENZ, Karl. Derecho Justo. Fundamentos de Etica Jurídica. Trad. Luis Diez
Picazo. Madrid: Civitas, 1993.
LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Trad. Hiltomar Martins Oliveira.
Belo Horizonte: Líder, 2008.
LECHNER, Norbert. Os novos perfis da política: um esboço. Lua Nova, São Paulo,
n. 62, 2004.
LIJPHART, Arend. Modelos de Democracia: desempenho e padrões de governo em
36 países. Trad. Roberto Franco. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos. 6. ed. rev., atual., ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
____________________________. Ação Popular. 3. ed., rev. e atual. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998.
211
MANIN, Bernard. As Metamorfoses do Governo Representativo. Revista Brasileira
de Ciências Sociais, n. 29, out. 1995.
MANIN, Bernard; PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Suzan
Representação. Lua Nova, São Paulo, v. 67, p. 105-138, 2006.
C.
Eleições
e
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; LOPES QUEIROZ, João Eduardo.
Planejamento. In: MARTINS CARDOZO, José Eduardo; LOPES QUEIROZ, João
Eduardo; BATISTA DOS SANTOS, Márcia Walquíria (Org.). Curso de Direito
Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2006.
MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 3. ed. rev. e ampl. São
Paulo: Saraiva, 2006.
MARTINES JUNIOR, Eduardo. República e Isonomia – Licitação e sua
inexigibilidade na contratação de serviços advocatícios pelo Poder Público. Revista
de Direito Constitucional e Internacional, Revista dos Tribunais, n. 47, ano 12,
abr./jun. 2004.
MEDEFF, Carmem Guimarães; GARCIA, Cid (Org.). Metodologia para formação de
gestores em políticas públicas. Brasília: FLACSO, 2005.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 20. ed. São Paulo:
Malheiros, 1995.
______________________. Direito Municipal Brasileiro. 15. ed. São Paulo:
Malheiros, 2006.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade.
3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007
________________________ (Org.). Estudos em Homenagem a Geraldo Ataliba.
São Paulo: Malheiros.
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade.
São Paulo: Celso Bastos, 1998.
MIGUEL, Luís Felipe. Impasses da Accountability. Revista de Sociologia e Política,
n. 25, p. 25-38, nov. 2005.
MILANI, Carlos; ARTURI, Carlos; SOLINÍS, Germán. (Org.). Democracia e
governança mundial: que regulações para o século XXI? Porto Alegre:
UFRGS/UNESCO, 2000.
MILL, John Stuart. O governo representativo. Trad. Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo:
IBRASA, 1983.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo I – O Estado e os
sistemas constitucionais. 5. ed. rev. e atual. Coimbra: Coimbra Editora, 2004.
212
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora,
2002.
MODESTO, Paulo. Notas para um debate sobre o princípio da eficiência. Revista do
Serviço Público, ano 51, n. 2, p. 105-119, abr./jun. 2000.
MONTESQUIEU, Charles Secondat, Baron de. O espírito das leis: as formas de
governo, a federação, a divisão dos poderes, presidencialismo versus
parlamentarismo. Trad. Pedro Vieira Mota. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
MORAES, Alexandre de. Presidente da
presidencialismo. São Paulo: Saraiva, 2002.
República:
a
força
motriz
do
MOSCA, Gaetano; BOUTHOUL, Gaston. História das doutrinas políticas desde a
antiguidade. Trad. Marco Aurélio de Moura Matos. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara,
1987.
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria metódica
estruturante. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
PRZEWORSKI, Adam (Org.). Sustainable Democracy. Cambridge: Cambridge
University, 1995.
OFFE, Claus. A Atual Transição da História e Algumas Opções Básicas Para As
Instituições Da Sociedade. In: BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos; WILHEIN, Jorge;
SOLA, Lourdes (Org.). Sociedade e Estado em Transformação. São Paulo: Editora
Unesp; Brasília: ENAP, 1999.
O’BRIEN, Robert. The Nuances of Multilevel and Global Governance: Multilevel
Governance and Democracy. Framing the Debate, Queen’s University
Kingston,
2002.
Disponível
em
<http://www.pinkcandyproductions.com/portfolio/conference/globalization/pdf/obrie>. Acesso
em: 07 dez. 2009.
O’DONNELL, Guillermo. Rendición de cuentas horizontal e nuevas poliarquias.
Revista Nueva Sociedad, n. 152, p. 143-167, nov./dez. 1997.
O’DONNELL, Guillermo. Delegative Democracy. Journal of Democracy, National
Endowment for Democracy/The Johns Hopkins University, v. 5, n. 1, p. 55-69, jan.
1994.
OLIVEIRA Jr., José Alcebíades de (Org.). O Novo Direito e Política. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1997.
OSÓRIO, Fabio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública,
corrupção, ineficiência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
OXFORD. Advanced Learner’s Dictionary of Current English. 7. ed. Oxford
University, 2005.
213
PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Eficácia e Aplicabilidade
Constitucionais Programáticas. São Paulo: Max Limonad, 1999.
das
Normas
PINTO, Paulo Brossard de Souza. O Impeachment: aspectos da responsabilidade
política do Presidente da República. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1992.
PITKIN, Hanna Fenichel. Representação: palavras, instituições e idéias. Lua Nova,
São Paulo, v. 67, p. 15-47, 2006.
PRADO, Otávio. Governo Eletrônico, Reforma do Estado e Transparência: O
Programa de Governo Eletrônico do Brasil. São Paulo, 2002. Tese (Doutorado em
Administração Pública e Governo) – Escola de Administração de Empresas de São
Paulo da Fundação Getúlio Vargas.
PROUDHON, Pierre-Joseph. Do Princípio Federativo (1863). Trad. Francisco
Trindade. São Paulo: Imaginário, 2001.
QUEIROZ, C. M. Os actos políticos no Estado de Direito: o problema do controle
jurídico do poder. Coimbra: Almedina, 1990.
RANIERI, Nina Beatriz Stocco. Governabilidade e Estado Democrático de Direito – o
uso e o controle das medidas provisórias. In: GARCIA, Maria (Coord.). Democracia,
hoje: um modelo político para o Brasil. São Paulo: Celso Bastos, 1997.
RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes; BERARDI, Luciana Andrea Accorsi (Org.). Estudos de
Direito Constitucional: homenagem à professora Maria Garcia. 2. ed. São Paulo:
IOB, 2008.
RIVERO, Jean; MOUTOUH, Hugues. Liberdades Públicas. Trad. Maria Ermantina de
Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes Rocha. República e “Res Pública” no Brasil – traços
constitucionais da organização política brasileira. In: MELLO, Celso Antonio
Bandeira de (Org.). Estudos em Homenagem a Geraldo Ataliba. São Paulo:
Malheiros.
ROCHA, Raul Machado. Direito Constitucional. 3. ed. rev. e atual. Belo Horizonte:
Del Rey, 2002.
ROSENBAUM, Allan. Boa Governação, a responsabilidade e o Servidor Público.
Disponível em: <www.un.org>. Acesso em: 07 dez. 2009.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político.
Trad. L. S. Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade, Governança e Democracia:
Criação de Capacidade Governativa e Relações Executivo-Legislativo no Brasil PósConstituinte. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 40, n. 3,
1997. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S001152581997000300003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 04 nov. 2009.
214
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Horizonte do Desejo: instabilidade, fracasso
coletivo e inércia social. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
SCHMITT, Carl. O conceito do político: teoria do partisan. Trad. Geraldo de
Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
SHIMURA, Sérgio. Tutela Coletiva e sua efetividade. São Paulo: Método, 2006.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26. ed. rev. e atual.
São Paulo: Malheiros, 2006.
SILVA, Roberto Luiz. Direito Comunitário e de Integração. Porto Alegre: Síntese,
1999.
SMANIO, Gianpaolo Poggio. Tutela penal dos interesses difusos. São Paulo: Atlas,
2000.
SMANIO, Gianpaolo Poggio. As dimensões da cidadania. Revista Jurídica. Novos
Direitos e Proteção da Cidadania, São Paulo: Escola Superior do Ministério Público
de São Paulo, ano 2, p. 13-23, jan./jun. 2009.
TAVARES, André Ramos. Tribunal e Jurisdição Constitucional. São Paulo: Celso
Bastos, 1998.
WOLKMER, Antonio Carlos; VIEIRA, Reginaldo de Souza (Org.). Estado, política e
direito: relações de poder e políticas públicas. Criciúma: UNESC, 2008.
Download