1 LANÇAMENTO DO TEMA DO CONGRESSO O IV Congresso da APA Ao realizarmos este IV Congresso no vigésimo aniversário da APA, poderíamos ter optado por celebrar um evento de congratulação pela idade ou longevidade alcançada pela associação. No entanto, tomámos uma opção diferente, de arriscar que este evento tivesse um papel confirmatório do dinamismo da antropologia em Portugal e fosse um acto reflexivo sobre a sua própria condição de existência na actualidade. Os meios dessa reflexão não passariam, porém, pelo desenvolvimento de discursos sobre o que se faz e menos ainda sobre as maneiras como aquilo que fazemos se distinguem e evoluiram em relação ao que fazíamos no passado. Diferentemente, a ideia foi tornar o congresso um desafio a nós próprios, um desafio sobre a nossa capacidade de concretizar no essa definição do que seria hoje a antropologia em Portugal capaz de fazer. Foi no âmbito desta aposta que surgiu, primeiro, o tema do congresso - Classificar o Mundo - e, em segundo lugar, a estratégia de articulação de redes à qual chamamos de “Antropologias Cruzadas”. Passo então a explicitar melhor tanto o tema quanto a estratégia que subjaz a esta ideia geral de uma reflexão sobre a antropologia a partir do que está vivo no presente com “ingredientes” vindos do longo termo. Se as grandes categorias de diferenciação sociocultural que têm guiado a história teórica da nossa disciplina se constituem, elas próprias, por actos sucessivos de classificar, ao mesmo tempo, o acto de classificar – objectos, conceitos, relações – é também um objecto privilegiado da reflexão antropológica sobre processos sociais e culturais, políticos e cognitivos de 2 entendimento do mundo. Este entrelaçamento entre estruturas de poder, de modos de entendimento e de nos situarmos no mundo, no sentido mesmo de encontrarmos as teias de relações que nos constituem enquanto pessoas é o nervo do nível mais abrangente do tema do congresso. As temáticas que escolhemos para as sessões plenárias espelham essa triangulação: lógicas de poder; estrutura/transformação; livre arbítrio. Sabemos que várias das reflexões sobre história da antropologia surgidas nas últimas décadas atribuem ao debate sobre o totemismo no século XIX a fundação da antropologia. Refiro-me, portanto, às discussões sobre a relação entre formas de nomear certos recortes da vida social por referência a elementos da vida e do universo da natureza. Esta leitura pode ser muito útil para se pensar na actual condição da antropologia. É que, se as reflexões de Tylor ou Frazer no século XIX remetiam o assunto para a área da “religião primitiva” vendo-o como uma espécie de bolha de pensamento a partir do qual se formava a diversidade no mundo, mesmo assim (e sem que o explicitassem certamente) o exercício a que se dedicaram de debater as classificações totémicas sustentava-se na necessidade de reflectir sobre como essas classificações se constituíam no mundo e por isso podem ser vistos como elos de fundação da antropologia como um saber sobre a condição humana enquanto condição necessariamente situada e relacional. O debate sobre classificar nesse período longínquo novecentista fundou ainda, como sabemos, outras linhas de reflexão antropológica: primeiro, aquelas que se prendem com a relação entre seres humanos, não humanos e outras criaturas, sujeitos e/ou objectos que povoam o mundo; segundo, a relação estreita mas normalmente bem complexa entre formas de se estar relacionado (numa ligação intrínseca entre relações familiares, de pertença étnica) e estruturações de poder. Em suma, classificar o mundo 3 coloca-nos perante esta ideia de que a reflexão sobre os processos culturais de comunicação se prolonga na reflexão sobre processos de construção do mundo. Cada vez mais a antropologia tem sido capaz de situar a reflexão sobre a construção de categorizações em complexas estruturações de poder, analisando como elas produzem discriminação e desencadeiam desigualdades, ao mesmo tempo que tem sido capaz de renovar o arcaico sentido da sociedade como comunidade para falar, mesmo assim, de formas de promoção da solidariedade e de comprometimento no mundo. O tema de classificar serve, assim, para apontar para esta relevância contemporânea de dois eixos epistémicos que este tema clássico na antropologia invoca: Primeiro, aquele que se prende com a diferenciação humana, as políticas de discriminação étnica, de género, de circulação de pessoas, de fechamento de fronteiras e abertura do mercado, de mobilidade humana e ainda sobre os grandes divisores de sistemas sociais e cognitivos. Ordenar o mundo, como bem sabemos é um processo de conquista e a antropologia tem sido e é uma das formas de conhecimento que melhor consegue analisar essas sofisticadas e submersas formas de poder que muitas vezes só se desvelam na observação de práticas e no exercício comparativo. Em segundo lugar, discutir como classificar o mundo implica reflectir sobre as próprias condições de produção do conhecimento antropológico: sobre o universalismo e o particularismo, a comparação e a etnografia remetendo-nos para um modo de reflexivismo que nos obriga a pensar sobre os processos de construção das categorias analíticas que permitem o entendimento da vida e do poder. 4 Antropologias Cruzadas Este tema serviu de ponto de partida, como sabem, para um segundo desafio que chamámos de “Antropologias Cruzadas”. Este desafio foi pensado como uma forma de confirmar (mais uma vez na prática) como se configura actualmente a antropologia que tem vindo a ser desenvolvida por todos os que se ligam a instituições portuguesas está inscrita em redes internacionais abrangentes e difusas, mas ao memso tempo específicas e concretas. Estamos a falar de uma historicidade de práticas que têm a língua e as inserções nacionais dos sujeitos como um aspecto a ter em conta não porque elas tenham um valor em si, mas pela rede de relações que tais pertenças constituem com efectividade. A ideia que subjaz a este projecto é que há certos níveis de reconhecimento no diálogo que ao longo destas últimas décadas se tem consolidado entre a antropologia em Portugal e noutras partes do mundo que passa por uma relação com a língua, não enquanto repertório de comunicação no sentido estrito, mas como um repertório de práticas que resultam em conhecimento. Trata-se de um fórum que tem por objectivo consolidar e dar visibilidade à interlocução transnacional entre antropólogos que falam ou lêem em português. Convidámos antropólogos filiados em instituições portuguesas e em instituições estrangeiras para partilharem interesses temáticos de investigação na coordenação de painéis temáticos que designámos Painéis Convidados. Prestar atenção ao tipo de conhecimento que resulta desta parceria é, no nosso entender, potenciar globalmente a antropologia. 5 O empreendimento inscreve a APA pelo menos no caminho para a criação de uma placa giratória da investigação em antropologia que se realiza em português um pouco por todo o mundo num sentido absolutamente ajustado aos critérios em vigor na construção da ciência, de uma forma que pode ser criativa e produtiva. A este respeito importa também sublinhar a importância estratégia do desenvolvimento científico na Europa nas últimas décadas e seus reflexos na política científica em Portugal, permitindo a portugueses experiências de formação e de interlocução em variadíssimas partes do mundo e, ao mesmo tempo, abrindo as portas à entrada de estrangeiros na formação e investigação em Portugal. Se a estratégia das antropologias cruzadas era de confirmação, os resultados são de convalidação. Estamos perante um congresso onde o cruzamento não apenas de antropólogos provenientes de diversos países, mas, e principalmente, de uma viabilidade de diálogo entre elas tem uma expressão muito marcante. Não importa apenas (mas não podemos descurar) o facto de ser ter tornado no encontro de antropologia em Portugal com o maior número de participantes. Nestes dias estarão neste congresso cerca de 260 antropólogos ligados a instituições portuguesas (ainda que alguns estrangeiros) e cerca de 230 ligados a instituições estrangeiras - entre os quais 70 noutros países da Europa, cerca de 140 no Brasil, e os restantes no Perú, Moçambique, México, EUA e Canadá. O Programa do Congresso O programa deste congresso é uma espelho fiel da potencialidade criativa desta rede de relações. Temos 51 painéis temáticos, com cerca de 370 6 comunicações três sessões plenárias e um festival de cinema onde este entrelaçamento de antropólogos se faz presente das formas mais diversas. Os participantes abordam um vasto leque de temáticas. Iremos ter um conjunto lato de painéis, por exemplo, sobre terapias e religião, mas também sobre a sua articulação com emoções, com o sofrimento, com a experiência, e o medo; formas de reclassificação de espaços tal como são experienciados em situações de exílio ou repatriamento; sobre objectos e classificações que se articulam não apenas com a subjectividade, mas também com os lugares, as casas, a fisicalidade dos espaços e seus níveis de abstracção; outro tema presente é o da identidade revisitada sob a lógica das categorizações discriminatórias, prestando atenção ao capital, ao trabalho, à articulação entre processos económicos e aspectos de cidadania, de ordenação do território urbano e suas culturas cívicas. Alguns painéis apontam para contextos etnográficos e/ou nacionais específicos, importando sublinhar o caso da reunião inédita num congresso de antropologia em Portugal de antropólogos a trabalhar sobre Timor Leste e a presença das reflexões sobre o contexto ameríndio, normalmente ausentes ou distantes do debate antropológico em Portugal; o debate sobre categorias de reflexão que atravessam fronteiras como o Atlântico e o Islão são igualmente de ressaltar; O colonialismo aparece aqui associado a diversas histórias de colonização das quais fazem parte também os espartilhos instituídos pelas novas categorias que resultam da União Europeia, e o cruzamento dessa reflexão com a área do biopoder e da ciência. Questionam-se, em suma, as próprias fronteiras do que é o processo colonial. O turismo e património aparecem sob diversos ângulos, articulados com a problematização contemporânea da cultura. O acto de classificar por recursos discursivos e de linguagem faz-se presente em painéis sobre imagens, sobre os media, e 7 reflecte-se igualmente na inclusão no programa do congresso de um festival de Filme Antropológico que se espera que seja o começo de futuros ciclos ligados à antropologia visual na APA. As abordagens sobre o corpo, a pessoa e o género não repetem as formulações que conhecemos na década de 1990. O corpo aparece tratado em dimensões fisiológicas, sociais e cosmológicas agora a partir de reflexões totalmente alheadas ou mesmo incompatíveis com o que anteriormente julgávamos só poder resultar de associações da antropologia social e cultural com um certo conhecimento da biologia. O género aparece-nos configurado a partir da articulação de escalas de relações globais, associando-se à circulação de ideias e pessoas. A discriminação, a desigualdade, o cosmopolitismo e a vigilância associando-se de forma inovadora a questões que, na literatura clássica, seriam da ordem da cidadania. As transversalidades de diferenciação são ainda marcadas pelas gerações, pelo ciclo de vida e pela família. A história da antropologia é também foco de reflexão, congregando contributos originais que cruzam o que alguns autores chamam de uma quarta tradição na história da antropologia. As reflexões sobre fazer antropologia surgem abordadas de forma singular, apontando para a integração metodológica dos imponderáveis no modo de fazer etnografia, assim como para a antropologia aplicada como área específica e merecedora de reflexão na antropologia contemporânea. 8 AGRADECIMENTOS: Termos chegado a este programa nunca teria sido possível sem o apoio de várias instituições, algumas das quais arriscaram connosco desde o início a estratégia de integração internacional. A este primeiro nível que foi fundametal para concretizar esta concepção do congresso, gostaria de agradecer, primeiro, à Fundação para a Ciência e Tecnologia no seu apoio directo por meio do programa Fundos de Apoio à Comunidade Científica, e ainda por ser o principal financiador dos centros de investigação que subsidiaram o congresso. Entre esses centros, vale a pena salientar o apoio substantivo do ICS e do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) no financiamento da vinda dos conferencistas convidados para as sessões plenárias e dos coordenadores de Painéis Temáticos Convidados. Numa segunda fase de organização do congresso, a participação de todos vós, por meio das inscrições, foi o principal garante da sua concretização. Tivemos, por fim, um apoio a diversos níveis de todos os departamentos e universidades onde se ensinam graduações e/ou pósgraduações em antropologia em Portugal: o Departamento de Antropologia da Universidade Nova de Lisboa, do ISCTE e do ISCSP e ainda o Museu Nacional de Etnologia. Gostava de vos chamar desde já a atenção para um dossier do Livro do Congresso sobre o “o ensino, a investigação e a divulgação da antropologia em Portugal” no qual contei com a generosa colaboração de vários colegas a quem deixo o meu agradecimento. Instituições públicas como o Instituto Português da Juventude e a Câmara Municipal de Lisboa viabilizaram muitas das iniciativas do congresso, enquanto que entidades comerciais que usualmente não víamos 9 associadas aos nossos congressos se mostraram sensíveis ao evento e apoiaram, em alguns casos de forma particularmente generosa, a água que nos ajudará a não secar as palavras nestes dias (Aguas do Luso) e os sumos e cafés servidos nos intervalos (o Pingo Doce, bem como a Delta). Vai finalmente um particular agradecimento para o apoio da instituição que viabiliza que estejamos literalmente aqui sentados - o ISCTE - pela cedência de salas em quatro pisos deste edifício, e o ICS pela cedência e facilidades oferecidas para a Feira do Livro (vale a pena visitar a partir das 13,30) e já agora pela cedência gratuita do gabinete permanente da associação no ICS. Por fim, quero aqui expressar o meu agradecimento pessoal e o de toda a Direcção da APA à comissão de Programa e Executiva, constituída por antropólogos provenientes da grande maioria das universidades onde se ensina e investiga antropologia em Portugal, nomeadamente pela organização do programa por membros da Direcção e pela Catarina Fróis, pela organização da Feira do Livro (Susana Durão, João Vasconcelos e Sónia Vespeira de Almeida); pelo lançamento dos livros (Clara Saraiva e Madalena Patriarca); pela montagem das exposições (Humberto Martins, Filipe Reis e Paulo Mendes); pelo festival de cinema (Clara Carvalho, Humberto Martins, e os elementos convidados do juri Catarina Alves Costa e José Ribeiro). Ao João Leal, Clara Saraiva e Catarina Alves Costa agradeço a iniciativa e concretização da homenagem a Benjamim Enes Pereira (e ao Benjamim a sua preença entre nós). Finalmente, agradeço desde já ao secretariado do congresso, principalmente a solidariedade de Raquel Carvalheira e Isabel de Melo. Como continuaremos ainda a tê-las a elas e aos cerca de cinquenta alunos de antropologia que se voluntariaram para viabilizar a organização do evento a 10 zelar pelo seu funcionamento nos próximos três dias, deixo um agradecimento mais personalizado para a sessão de encerramento. Conto agora convosco, coordenadores de painéis e comunicantes, desejando-vos os meus sinceros votos de que estes sejam dias de debate de ideias e criatividade que fiquem na nossa memória pelas melhores razões que desde já são para mim as de ter podido contar com a vossa presença. Obrigado a todos por terem vindo. Lisboa, 9 de Setembro de 2009 Presidente da APA Susana de Matos Viegas