ARTIGO ORIGINAL REFORMA PSIQUIÁTRICA NA BAHIA: DESAFIOS E (DES)CAMINHOS Monica Lorencetti Fornaziera Rosimeira das Chagas Delgadob Resumo A Reforma Psiquiátrica, por ser um processo histórico recente, de embates e conquistas, envolvendo os mais diversos atores sociais, requer ampla discussão e encaminhamentos em todo o Brasil e em particular no estado da Bahia. O principal objetivo deste trabalho, além de compreender a rede de serviços de saúde e as demais redes intersetoriais, é construir um diagnóstico situacional que possa nortear as propostas de ações de saúde mental no estado, com base na identificação das dificuldades apresentadas pelos serviços e das informações disponibilizadas pela rede de serviços. Metodologicamente, trata-se de pesquisa de cunho quantitativo e qualitativo. A discussão dos dez aspectos que destacam as principais dificuldades para a implementação da Reforma Psiquiátrica no estado Bahia permitiu concluir-se que as questões apontadas não fogem às principais dificuldades presentes nos demais estados brasileiros no que diz respeito ao seu fortalecimento e à sua efetiva implementação. Palavras-chave: Reforma psiquiátrica. Saúde pública. Saúde mental. Política nacional de saúde mental. PSYCHIATRIC REFORM IN BAHIA: CHALLENGES AND (TEM)PATHS Abstract The Psychiatric Reform, being a recent historical process of clashes and conquests which involved diverse social actors, requires extensive discussion and referrals Especialista em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH)/FIOCRUZ. Mestra em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), FIOCRUZ. Psicóloga – Coordenação Estadual de Saúde Mental, Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (SESAB). b Especialista em Saúde Mental Coletiva pela Faculdade Ruy Barbosa. Educadora Física – Coordenação Estadual de Saúde Mental, Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (SESAB). Endereço para correspondência: Rua Senador Vergueiro, nº. 135, Flamengo, Rio de Janeiro. CEP: 22230-000. [email protected] a 412 Revista Baiana de Saúde Pública throughout Brazil and particularly in the state of Bahia. The main objective of this work, besides understanding the network of health services and the other intersectoral networks, is to build a situational diagnosis that can guide the proposals for mental health services in that state, based on the identification of the difficulties presented by the services and of the information provided by the network of services. Methodologically, this research is quantitative and qualitative. The discussion of the ten aspects that highlight the main difficulties for the implementation of the Psychiatric Reform in Bahia lead to the conclusion that the issues raised are the same as the main difficulties which are present in other Brazilian states regarding the strengthening and effective implementation of the Reform. Key words: Psychiatric reform. Public health. Mental health. National policy on mental health. REFORMA PSIQUIÁTRICA EN BAHIA: RETOS Y (DES)CAMINOS Resumen La Reforma Psiquiátrica, como un proceso histórico de los recientes enfrentamientos y conquistas, involucrando diversos actores sociales, requiere de un amplio debate y encaminamientos en todo el Brasil y, en particular, en el estado de la Bahía. El objetivo principal de este trabajo, además de entender la red de servicios de salud y otras redes intersectoriales, es la construcción de un diagnóstico situacional que pueda guiar las propuestas de acciones de la salud mental en el estado, basado en la identificación de las dificultades que presentan los servicios y en la información proporcionada por la red de servicios. Metodológicamente, es una investigación de tipo cuantitativa y cualitativa. La discusión de los diez aspectos que ponen en relieve las principales dificultades para la implementación de la Reforma Psiquiátrica en el estado de Bahía, llegó a la conclusión de que las cuestiones planteadas no escapan a las principales dificultades presentes en otros estados del Brasil con respecto a la aplicación efectiva y a su fortalecimiento. Palabras-clave: Reforma psiquiátrica. Salud pública. Salud mental. Política nacional de salud mental. INTRODUÇÃO O Sistema Único de Saúde (SUS) constitui-se enquanto uma processualidade – ainda em curso – decorrente do engajamento e do amplo debate promovidos pelos v.35, n.2, p.412-431 abr./jun. 2011 413 profissionais progressistas da saúde, sanitaristas, sindicatos e representantes da sociedade organizada e civil de modo geral, em torno do que se denominou Movimento pela Reforma Sanitária Brasileira, responsável por promover discussões e propor modificações para as políticas e as práticas públicas de saúde vigentes no país desde a Constituição Federal de 1967.1 Sua elaboração é paralela ao processo de transição democrática do país e tem como referencial a VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada no ano de 1986. Um dos pontos centrais suscitados pela então chamada “reforma sanitária” é o entendimento de que todas as ações e serviços de saúde deveriam ser unificados em seus conceitos, princípios e diretrizes, além de serem descentralizados.2 Marco na formulação de propostas de mudanças no setor saúde, essa conferência organizou um documento que propôs a definição da saúde como uma confluência de condições biopsicossociais. Esse documento serviu como referência para as discussões posteriores na Assembleia Nacional Constituinte de 1987. A Constituição Federal Brasileira3 contempla os vários acordos internacionais entre países no que diz respeito à garantia dos direitos das pessoas e ao papel do Estado Democrático no cumprimento desses direitos. No caso da saúde da população, a Constituição considerou o acordo internacional de Alma Ata,4 que consolidou o conceito de saúde adotado pelo sistema sanitário da Organização Mundial de Saúde (OMS) que considera – ainda que essa conceituação seja controversa e amplamente discutida – a saúde enquanto um estado de bem-estar físico, mental e social e não simplesmente a ausência de doença,3 além de afirmar categoricamente que a única alternativa ao tratamento ou reabilitação das doenças é ter como objetivo proteger e promover a saúde e a “qualidade” de vida dos sujeitos. Uma vez que define a saúde como um direito de todos e dever do Estado, propõe-se a legislar acerca de políticas, sociais e econômicas – condicionantes e determinantes do processo saúde x doença – que visam a diminuição do risco de doença e de outros agravos à saúde e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.3 Cabe ressaltar a centralidade de alguns conceitos consolidados pela Lei Orgânica da Saúde (LOS),5 definidos enquanto princípios e diretrizes que orientam as ações e os serviços de saúde no país desde então. Por seu turno, a Reforma Psiquiátrica Brasileira, compreendida enquanto um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, ainda que tenha construído uma trajetória singular, é contemporânea ao engendramento do “movimento pela reforma sanitária”, nos anos de 1970 e de 1980. Nesse momento alinhou-se aos princípios e às diretrizes do SUS, em especial à universalidade, integralidade, descentralização e participação popular.6 414 Revista Baiana de Saúde Pública Pode-se dizer que a reforma psiquiátrica está fundamentalmente pautada na reivindicação dos direitos civis e humanos dos sujeitos em sofrimento psíquico e na possibilidade de invenção de um modelo outro de atenção e cuidado que não aquele centrado no asilamento promovido e historicamente naturalizado pela instituição hospitalar psiquiátrica. Uma reivindicação pela desospitalização e pela desinstitucionalização da loucura, portanto, que coloca em questão, para os profissionais da área em geral, e para toda a humanidade em particular, não apenas a funcionalidade e eficácia terapêutica dos hospitais psiquiátricos, mas também a própria razão de ser de sua existência. A desinstitucionalização é esse processo, não apenas técnico, administrativo, jurídico, legislativo ou político, mas, sobretudo, ético, de reconhecimento de uma prática que introduz novos sujeitos de direito e novos direitos para os sujeitos.7 Contudo, é somente no ano de 2001 que a Lei Paulo Delgado8 – já tramitando enquanto projeto de lei no Congresso Nacional desde o ano de 1989 – é sancionada no país com a proposta de regular as internações psiquiátricas e de orientar o redirecionamento da assistência em saúde mental na perspectiva de oferta de serviços abertos, de base comunitária e territorial, serviços esses substitutivos ao hospital psiquiátrico. Os serviços já não serão locais de repressão, exclusão, disciplina, controle e vigilância panóptica. Devem ser entendidos como dispositivos estratégicos, como lugares de acolhimento, de cuidado e de trocas sociais. Enquanto serviços que lidam com as pessoas e não com as doenças, devem ser lugares de sociabilidade e produção de subjetividades.9:69 Esse também é o ano em que ocorre a III Conferência Nacional de Saúde Mental e, em seguida, o Ministério da Saúde, por intermédio da Coordenação Nacional de Saúde Mental, adota a Reforma Psiquiátrica como política oficial para o setor, elaborando o documento “A Reforma Psiquiátrica e a Política de Saúde Mental no Brasil”,10 que discute e sugere, de forma esclarecedora, o que vem a ser esses serviços substitutivos, dando visibilidade e impulso aos necessários processos de “desinstitucionalização” da loucura e de mudança da lógica do cuidado. Atualmente, no Brasil, a constituição e a consolidação de uma rede integral de cuidado em saúde mental, que assegure a livre circulação das pessoas com transtornos mentais pelos serviços, comunidades e cidades e ofereça cuidados com base nos recursos oferecidos pelas comunidades,8 colocam-se como um desafio. Este modelo é composto por v.35, n.2, p.412-431 abr./jun. 2011 415 serviços e equipamentos diversos que se dispõem a substituir efetiva e progressivamente as internações em hospitais psiquiátricos, tais como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura, o Programa de Volta para Casa e os Leitos de Atenção Integral em Saúde Mental. Estes podem encontrar-se tanto em hospitais gerais, nos Centro de Atenção Psicossocial do tipo III, em emergências gerais, quanto em serviços hospitalares de referência para álcool e outras drogas. Nessa proposta de conformação de uma rede de atenção psicossocial, destaca-se, enquanto questões centrais e para além dos CAPS, a inclusão das ações de saúde mental na atenção básica, a formação e qualificação de recursos humanos, a promoção de direitos de usuários e familiares e o incentivo à sua participação no processo de cuidado.10 No estado da Bahia, a condução da gestão das políticas públicas em saúde mental encontra-se em consonância com as proposições da Política Nacional de Saúde Mental e sua Rede de Atenção em Saúde Mental tem se transformado de forma significativa desde a publicação da Lei no. 10.216.8 Dentre as diversas ações adotadas e realizadas, aqui interessa destacar que, por intermédio da Secretaria Estadual da Saúde (SESAB), o estado implantou, no ano de 2007, a estratégia do Apoio Institucional em Saúde Mental, visando a estruturação e a efetivação das propostas, entre outras, de Educação Permanente, assessoramento, acompanhamento e cooperação aos municípios, junto aos mais diversos atores, como usuários, gestores locais, trabalhadores e as demais redes públicas. Desde então, amparado nessa proposta, tem buscado avançar na construção de parâmetros assistenciais e de regulação em Saúde Mental dos seus 417 municípios. O Apoio Institucional, tal qual no estado efetivado, encontra-se fortemente referendando pela Análise Institucional,11 uma vez que se propõe a problematizar as práticas instituídas e seu contínuo processo de desterritorialização e reterritorialização. Também tem se apoiado no Método Paidéia,12 com vista ao engendramento de espaços coletivos para a co-gestão da qualificação dos municípios, entendendo que a gestão produz efeitos sobre os modos de ser e de proceder de trabalhadores e de usuários das organizações. “Ao não reconhecer que toda gestão é produto de uma interação entre pessoas, verifica-se, com frequência, tendência a se reproduzirem formas burocratizadas de trabalho, com empobrecimento subjetivo e social dos trabalhadores e dos usuários.”12:47 Esse apoio institucional ainda se propõe a trabalhar com base na distribuição territorial do Plano Diretor de Regionalização (PDR) do estado e nas nove Macrorregiões de Saúde por ele estabelecidas. Para tanto, uma das estratégias metodológicas adotadas foi a realização e sistematização de um “diagnóstico situacional” acerca das principais demandas e 416 Revista Baiana de Saúde Pública dificuldades encontradas na implementação da Política Nacional de Saúde Mental no estado. Isso foi feito principalmente por meio das 47 visitas técnico-institucionais aos municípios, entre os anos de 2007 e 2009, e das 25 ações de educação permanente, no formato de oficinas ali realizadas. Além disso, optou pelas discussões coletivas por intermédio dos chamados Grupos Técnicos (GT), envolvendo algumas áreas de concentração da Saúde Mental. Até o ano de 2009, eram sete os GT em andamento na Área Técnica de Saúde Mental (ATSM) da SESAB: álcool e outras drogas; infância e adolescência; idoso; assistência farmacêutica; pessoas com sofrimento mental em situação de privação de liberdade; educação permanente e o GT de Rede. Este último compôs-se, na ocasião, por representantes de instituições de ensino do Estado, bem como do Movimento Social. O GT de Rede, em função de sua proposta, qual seja, entender e propor a efetivação de uma Rede de Atenção Integral em Saúde Mental no Estado, esteve mais próximo da discussão e da construção desse “diagnóstico situacional”. É assim que, concluído esse “levantamento”, foi produzido um documento denominado “Análise da Situação de Saúde Mental do Estado da Bahia, em julho de 2008”,13 que subsidiou a Área Técnica de Saúde Mental da SESAB na proposição de alguns pontos nodais e de dificultadores – também de algumas propostas de ação e regulação – presentes na efetiva implementação da Reforma Psiquiátrica no Estado da Bahia.14 Este artigo propõe-se a apresentar e discutir esses documentos, priorizando os “dificultadores” apontados. O principal objetivo deste trabalho, além de compreender a rede de serviços de saúde e as demais redes intersetoriais, é construir um diagnóstico situacional que possa nortear as propostas de ações de saúde mental no Estado, com base na identificação das dificuldades apresentadas pelos serviços e das informações disponibilizadas pela rede de serviços. METODOLOGIA A necessidade de melhor compreender a situação da saúde mental no Estado da Bahia levou à realização, pela Área Técnica de Saúde Mental (ATSM) da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (SESAB), de um mapeamento dos serviços de saúde e de saúde mental, financiados pelo SUS, assim como dos serviços de assistência social e de educação, por município e por Macrorregião de Saúde. Assim, foi elaborada uma pesquisa de cunho quantitativo e qualitativo, baseada nos dados secundários fornecidos pelo Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES)15 – competência julho de 2008 –, pelas informações fornecidas pelos municípios do Estado da Bahia nas 25 oficinas de Saúde Mental realizadas nas nove macrorregiões entre os v.35, n.2, p.412-431 abr./jun. 2011 417 meses de outubro do ano de 2007 e julho do ano de 2008, com a participação de 166 dos 417 municípios do estado da Bahia, como também pelas 47 visitas técnico-institucionais. Foram ainda consultadas as fontes oficiais disponibilizadas pelo Ministério da Educação (MEC), Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), Secretaria do Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza do Estado da Bahia (SEDES) e Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (SESAB). As oficinas foram articuladas pelos apoiadores institucionais em parceria com as Diretorias Regionais de Saúde (DIRES) e os gestores locais, pautadas na metodologia participativa. Essas oficinas contaram com a participação de gestores de saúde, trabalhadores da rede de saúde e saúde mental, além de representantes de outros setores e instituições. Importante ressaltar que os “problemas” não estão relacionados por ordem de importância ou prioridade e há uma fina coadunação entre eles, de modo que a separação por pontos é também um recurso didático. Este artigo tem como propósito apresentar e fazer uma análise mais detalhada desses dois documentos.13,14 DISCUSSÃO De forma sistemática e não pretendendo esgotar as discussões, apresentam-se as principais dificuldades encontradas para a implementação da Reforma Psiquiátrica no estado da Bahia. Como primeiro ponto – a despeito de, no cenário nacional, a Bahia encontrar-se em 20ª posição dentre os 24 estados brasileiros com relação ao número de leitos SUS por 1.000 habitantes – destaca-se a existência de um grande número de leitos psiquiátricos, 888 ao todo, distribuídos nos sete Hospitais Psiquiátricos do estado.16 No que tange a esse aspecto, as oficinas desenvolvidas permitiram sugerir que a presença desses equipamentos de saúde tem dificultado a desconstrução do imaginário social acerca do lugar ocupado pelo hospital psiquiátrico enquanto espaço privilegiado de “tratamento” à loucura. Constatou-se ainda, nas comunidades onde coexistam hospital psiquiátrico e serviços substitutivos, em particular os Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), que o primeiro ainda tem sido utilizado enquanto recurso para acolhimento nas situações de “crise”. Aponta-se aqui que a redução progressiva, responsável e pactuada – simultânea ao fortalecimento da rede de serviços substitutivos – dos leitos em hospitais psiquiátricos tem sido uma das prerrogativas da Política Nacional de Saúde Mental,10 estando mais claramente definida pela Portaria nº 251/2002.17 418 Revista Baiana de Saúde Pública Em agosto de 2004, o Ministério da Saúde anunciou a decisão de intervir judicialmente em 10 hospitais psiquiátricos conveniadas ao SUS, após os resultados da avaliação realizada pelo Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares (PNASH/Psiquiatria) e após denúncias de movimentos organizados (Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil e Conselho Federal de Psicologia, Movimento da Luta-antimanicomial, movimentos locais de familiares de pacientes) que pediam providências quanto aos maus-tratos nas instituições psiquiátricas.18:27 Visando a redução progressiva dos leitos, a ATSM e o GT de Rede propuseram, enquanto ações estratégicas, a realização de um diagnóstico da situação das populações hospitalizadas com identificação de origem, tempo de permanência, diagnóstico clínico, situação social, frequência de reinternações, identificação de serviços de referência nos municípios de origem; a pactuação com o município de um processo de desospitalização acompanhado de um plano de implantação de uma rede de serviços substitutivos; o assessoramento e apoio à implantação/implementação do Programa de Volta para Casa19,20 e de Residências Terapêuticas,21 prioritariamente em municípios onde existam hospitais psiquiátricos; estabelecimento de critérios para a abertura de Leitos de Atenção Integral em Saúde Mental nos Hospitais Gerais da Rede Própria.22 Enquanto segundo desafio, destaca-se a insuficiência de profissionais de psiquiatria no estado da Bahia, seus múltiplos vínculos empregatícios, bem como a necessidade de uma formação acadêmico/profissional que seja compatível com as necessidades de cuidado em saúde mental, tal qual preconizado pela Política Nacional de Saúde Mental.10 De acordo com o CNES, o estado da Bahia possuía, no período da pesquisa, 529 profissionais cadastrados nas diversas Unidades de Saúde dos municípios. Esse dado, entretanto, não revela o quantitativo absoluto de médicos psiquiatras existentes no estado, considerando que alguns desses profissionais estão cadastrados em mais de um município/ estabelecimento de saúde. Cabe ainda destacar que dos 529 médicos cadastrados, 172 estão no município de Salvador, 49 em Feira de Santana, 12 em Vitória da Conquista, 9 em Lauro de Freitas, 8 em Itabuna, 5 em Ilhéus. Assim, 48,20% dos psiquiatras estão concentrados nos municípios de maior porte do estado. Na grande maioria das vezes, apenas um médico psiquiatra é responsável pela assistência em vários municípios de menor porte. A Residência Médica em Psiquiatria, realizada pela SESAB em dois dos hospitais do município de Salvador, por meio de concurso público anual, possui um número restrito v.35, n.2, p.412-431 abr./jun. 2011 419 de vagas – uma média de nove por ano. Pelo número de inscritos, verifica-se uma média de cinco candidatos para cada vaga,23 o que nos faz supor uma baixa procura por essa especialidade médica. Considerando que nos municípios do estado da Bahia, em média, são habilitados cerca de 20 novos CAPS a cada ano,16 torna-se evidente a insuficiência desses profissionais para suprir tal demanda. Com o propósito construir, junto às instituições de ensino e às entidades de classe, alternativas para essa questão, pensou-se na construção de agendas de discussão com a Associação Psiquiátrica da Bahia (APB) e o Conselho Regional de Medicina (CREMEB), objetivando problematizar o modo de inserção da psiquiatria na Reforma Psiquiátrica, bem como com a Superintendência de Recursos Humanos da Secretaria da SESAB para discussão dos programas de Residência Médica em Psiquiatria mantidos pelo Estado e também sobre a possibilidade de abertura de novas residências, inclusive no interior da Bahia. O terceiro aspecto é o número reduzido de CAPS III no Estado. Um dos recursos estratégicos para a substituição das internações psiquiátricas, o CAPS III, constitui-se em dispositivo fundamental, por possibilitar o acolhimento noturno, pelo funcionamento ininterrupto, inclusive nos fins de semana e feriados.24 No Brasil, a quantidade reduzida de CAPS III – 46 ao todo16 –, os mecanismos para sua implantação e a fragilidade dos dispositivos que garantam sua efetividade e resolutividade apresentam-se enquanto outro grande desafio para a efetiva consolidação das propostas da “Reforma”. De acordo com os critérios populacionais definidos pelo Ministério da Saúde,24 o CAPS III deve ser implantado em municípios com população superior a 200.000 habitantes. Tomando este como único critério para abertura desse serviço, apenas seis municípios baianos respondem a ele25 e, atualmente, apenas dois CAPS III estão implantados e em funcionamento no estado (municípios de Alagoinhas e Feira de Santana).16 Na tentativa de ampliação do número desse serviço, são propostos: a definição de municípios prioritários e estratégicos para sua implantação, seguida da negociação e pactuação com o Ministério da Saúde e gestores municipais; a discussão em torno da possibilidade de incentivo financeiro estadual aos municípios; o assessoramento aos municípios na elaboração de Projetos Terapêuticos Institucionais e na implantação dos serviços; e a pactuação na Comissão Intergestora Bipartite (CIB), de forma a legitimar as implantações. Outro ponto nodal verificado é a ausência de respostas às necessidades de assistência a Saúde Mental nos municípios com população inferior a 20.000 habitantes. 420 Revista Baiana de Saúde Pública Para a discussão desse ponto, consideram-se dois aspectos importantes: primeiro, que as ações de Saúde devem ser priorizadas na Atenção Básica,26-28 e que essas ações não devem excluir a assistência em saúde mental; segundo, que dos 417 municípios existentes no estado, cerca de 60%, ou 250 do total, possuem população abaixo de 20.000 habitantes,25 portanto, não estão habilitados a implantar CAPS, uma vez que essa é a população mínima para o funcionamento desses serviços com recursos federias.24 Assim, seria correto dizer que a atenção e o cuidado em saúde mental devem ser ofertados e priorizados pela Atenção Básica,29 o que nem sempre tem ocorrido. Visando sistematizar ações de Saúde Mental na Atenção Básica, em 2006, o Ministério da Saúde definiu, para pactuação com os estados e municípios, os Parâmetros Assistenciais da Saúde Mental na Atenção Básica30 pelo processo de Programação e Pactuação Integrada (PPI).31 As ações devem ser realizadas nas Unidades Básicas de Saúde, por equipe multiprofissional, considerando o número de atendimentos de acordo com a existência ou não do CAPS, visando garantir a assistência ambulatorial. Ressalta-se ainda que, a partir de 2008, os Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASF)32 recomendaram, de forma clara, a inclusão de ao menos um profissional de saúde mental por equipe, para a realização de ações conjuntas. Ainda assim, em todo o estado da Bahia, salvo alguns poucos municípios, as iniciativas de ações estruturadas de saúde mental na Atenção Básica são incipientes. Dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde29 indicam que 56% das equipes de PSF referem realizar “alguma ação de saúde mental”. Por sua proximidade com as famílias e as comunidades, elas se constituem num recurso estratégico para o enfrentamento do sofrimento psíquico. Afora isso “[...] a Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde estimam que quase 80% dos usuários encaminhados aos profissionais de Saúde Mental não trazem, a priori, uma demanda especifica que justifique a necessidade especializada”.33:146 Desta feita, o documento em análise propõe a construção de novos arranjos assistenciais em Saúde Mental pautados na imprescindível construção intra e intersetorial, ou seja: construção, em parceria com a Diretoria de Atenção Básica (DAB/SESAB), de ações de Educação Permanente voltadas às equipes da Atenção Básica do estado; produção de material didático, abordando a interface Saúde Mental x Atenção Básica; inclusão de ações de Saúde Mental nos Programas já existentes nas demais Secretarias de Estado; redimensionamento ou expansão de espaços/equipamentos de convivência social existentes nos Programas de outras secretarias –Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate à pobreza (SEDES), Secretaria do Trabalho Emprego e Renda (SETRE), Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC) e v.35, n.2, p.412-431 abr./jun. 2011 421 Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SECULT) – visando, entre outras, a reinserção social das pessoas com transtorno mental. A seguir, e enquanto quinto aspecto, destacam-se os limites da cultura “técnico sanitária” e psiquiátrica acerca da “Reforma” no âmbito das gestões municipais. A quantidade reduzida de municípios que incluem ações e Programas de Saúde Mental nos seus Planos Municipais de Saúde pode ser tomada enquanto um indicador desses “limites” e pode ser entendida enquanto uma das causas que dificultam a organização e a implementação de uma rede de saúde mental que efetivamente trabalhe na perspectiva da integralidade e de forma resolutiva. Esses “limites” ainda podem ser entendidos enquanto uma das maiores justificativas para que os hospitais psiquiátricos ainda sejam acionados enquanto recurso de cuidado no Estado e para que haja encaminhamentos da demanda de saúde mental de município para município, o que aponta para a fragilidade na efetivação da diretriz de descentralização/municipalização do SUS. Novamente com base no entendimento de que a grande maioria das ações de saúde, no SUS, é de responsabilidade municipal,26-28 um das atribuições da gestão estadual é criar dispositivos que possam, com base na pactuação, fortalecer a gestão municipal. Assim, a necessidade de sensibilização da gestão municipal no que diz respeito ao planejamento e efetivação de ações e serviços de saúde mental na localidade, contribuiu para pensar-se, inicialmente, na necessidade de fortalecimento da função de regulação estadual, principalmente mediante o estabelecimento de parâmetros de assistência para a Saúde Mental na Atenção Básica/Unidades Básicas de Saúde, tendo por perspectiva a PPI.31 Além disso, estimular a presença de profissionais de referência qualificados nas DIRES com papel de articulação e acompanhamento das ações nos municípios; estimular a definição de profissionais de referência em Saúde Mental na gestão municipal para a coordenação das ações dessa área; estimular a criação de Programas Municipais de Saúde Mental – com elaboração de estratégias para a expansão da rede de atenção integral à Saúde Mental – e sua discussão nos Conselhos Municipais de Saúde; estimular a organização dos Grupos de Referência Macrorregionais (Grupo de Referência diz respeito, aqui, a um colegiado de trabalho composto por profissionais de saúde da rede, profissionais das instituições de ensino, bem como usuários e familiares e gestão, objetivando a discussão da saúde mental no âmbito regional); produzir regularmente informativos de Saúde Mental da SESAB, que ofereçam dados sobre a situação da saúde mental no Estado; propor ao Conselho Estadual de Saúde (CES), ao Conselho Estadual dos Secretários Municipais de Saúde da Bahia (COSEMS-BA) e 422 Revista Baiana de Saúde Pública à Comissão Intergestora Bipartite (CIB) o debate acerca das diretrizes do Programa de Saúde Mental do Estado da Bahia e sua implementação de acordo com as realidades locorregionais; e, por fim, o fortalecimento e consolidação da estratégia de Apoio Institucional na Área Técnica de Saúde Mental do Estado. Enquanto sexto ponto destacam-se os limites da atenção integral ao uso de risco e à dependência de álcool e outras drogas no estado. Este, sem dúvida, apresenta-se enquanto um grande nó estratégico, na medida em que há um aumento significativo do uso abusivo de substâncias psicoativas, em especial o álcool, em todo o Brasil.34 Esta problemática remete-nos a dois aspectos relevantes: primeiro, a progressiva diminuição da idade para o início do consumo de algum tipo de substância psicoativa e a “interiorização” desse consumo, o que indica uma mudança significativa do perfil epidemiológico de consumo, que exige reformulações e maior atenção do SUS e das políticas públicas para a área; segundo, o fato de que as “causas externas” vêm se configurando como uma importante causa de mortalidade, tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento.35,36 No estado da Bahia, esses índices se confirmam.34 Contudo, e dada a gravidade da situação, todo o estado da Bahia conta com apenas 13 CAPS para acolhimento e cuidado em álcool e outras drogas – CAPS ad17 –, embora possua dez municípios com critério populacional para habilitação desse serviço. Não dispõe ainda de Leitos de Atenção Integral em Saúde Mental, dispositivo também destinado ao atendimento à crise em saúde mental deflagrada pelo uso abusivo de alguma substância psicoativa, ou leitos de desintoxicação em Hospitais Gerais.16 Outro aspecto contributivo para o agravamento dessa situação é a ausência de propostas, na estratégia de Educação Permanente estadual, voltadas para a formação e preparo das equipes dos serviços de saúde, nos três níveis de atenção, para o acolhimento dessa demanda (salvo particularidade de alguns municípios). Embora historicamente a problemática do uso, do abuso e da dependência de substâncias psicoativas tenha sido abordada por um modelo médicocentrado, em 2003 a Política Nacional de Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas foi apresentada pelo Ministério da Saúde [...] Este documento assinala a necessidade de se facilitar o acesso de usuários ao tratamento, de se ampliar o olhar dos profissionais, bem como considerar os processos subjetivos, as heterogeneidades, as multiplicidades e as particularidades e diferenças dos sujeitos.37:23 v.35, n.2, p.412-431 abr./jun. 2011 423 No tocante a essa questão, propôs-se a formalização do Plano Estadual para Atenção Integral Relativa ao Uso de Risco e Dependência de Álcool e outras Drogas,38 o levantamento dos recursos assistenciais e comunitários destinados às pessoas que fazem uso grave de álcool e outras drogas no estado; estabelecimento de critérios para definição de municípios estratégicos para implantação de CAPS ad; negociação com gestores municipais para a sua implantação e pactuação na CIB; criação de condições para implantação de leitos para alcoolistas nos hospitais gerais, conforme orientado pela Portaria nº 2.197,39,40 iniciando-se pelos Hospitais da Rede Própria do Estado e pela sensibilização dos gestores municipais onde existam hospitais municipais e conveniados ao SUS. E, ainda, produção intersetorial de propostas de regulação estadual para o funcionamento das chamadas “Comunidades Terapêuticas” no Estado; a avaliação da possibilidade, junto ao Ministério da Saúde, de formação de consórcios intermunicipais para implantação de CAPS ad em municípios considerados estratégicos, para assistência e Apoio Matricial; problematização da demanda por leitos de desintoxicação, ampliando a rede social para oferecimento de continência social nos casos mais graves pela estimulação da criação de espaços de hospitalidade e construção de propostas de Educação Permanente junto à DAB/ SESAB. Outro aspecto a ser problematizado está relacionado às limitações quanto às respostas assistenciais oferecidas à atenção integral em saúde mental à infância e à adolescência. No Brasil é notória a omissão da saúde pública no direcionamento das políticas de saúde mental para a infância e adolescência, com uma rede historicamente constituída por instituições filantrópicas e privadas, com forte componente tutelar, como educandários, abrigos, escolas especiais, institutos para deficientes mentais e clínicas para autistas.10 As ações dirigidas a crianças e adolescentes no Brasil atravessaram um século de história cir­cunscritas a um ideário de proteção, que, parado­xalmente, redundou na construção de um modelo de assistência com forte tendência à institucionali­zação e em uma concepção segmentada, não inte­gradora, da população infanto-juvenil.10:35 Não obstante a Lei n° 10.216,8 é apenas no ano de 2004 que é instituído, pelo Ministério da Saúde, o Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-Juvenil,41 com a finalidade de construir, coletiva e intersetorialmente, as bases, princípios e diretrizes de uma política pública de saúde mental especificamente dirigida a esse segmento da população.42 424 Revista Baiana de Saúde Pública Os dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde43 permitem-nos visualizar com mais clareza a trajetória de implantação do serviço substitutivo, CAPS Infantil (i), destinado a essa população: em todo o Brasil, no ano de 2009, estavam habilitados 112 desses serviços, sendo cinco no estado da Bahia.16 Contudo, na mesma época, já existiam 683 CAPS I em todo o Brasil, sendo 103 no estado da Bahia. Como proposta para ampliação e fortalecimento da assistência à infância e à adolescência, propôs-se: a formalização de um Plano Estadual para Atenção Integral à Saúde Mental da Infância e Adolescência, construído necessariamente na perspectiva da intersetorialidade; a realização de levantamento, por Macrorregiões de Saúde do Estado, dos serviços existentes que acolham a demanda desse segmento; ampliação da rede de serviços para a atenção integral à infância e adolescência. O oitavo aspecto destacado é a existência de grande rotatividade de profissionais nos serviços e a precariedade dos vínculos empregatícios, um dos fatores contributivos para a fragilidade de investimento efetivo e continuado na qualificação das equipes de trabalho e da continuidade dos Projetos Terapêuticos Institucionais adotados pelas equipes dos serviços. Esta rotatividade acaba ainda por gerar a descontinuidade dos “vínculos” terapêuticos, imprescindíveis na continuidade e efetividade do cuidado em saúde mental. De uma maneira mais global, as pressões por mudanças e reestruturações que atingem as organizações privadas também atingem as do setor público. Nem sempre na mesma época e da mesma forma, mas o certo é que a ideologia de feição neoliberal, na qual a acumulação capitalista se faz premente e dominante, também atinge o Estado brasileiro. Isto significa, por sua vez, uma mesma lógica em relação à concepção de mundo e de trabalho.44:11 Aponta-se para o uso, cada vez mais frequente, de mecanismo de terceirização e quarteirização pela administração pública, tal qual utilizada na iniciativa privada. No âmbito da Saúde Pública brasileira, em particular e mais especificamente, pelas contratações por intermédio das chamadas “Organizações Sociais”. Tal prática é empregada para o adiamento de concursos públicos, o que acaba por favorecer não apenas as práticas clientelistas, mas também a precarização das relações de trabalho quanto à qualificação e benefícios sociais.45 Como alternativa, propõe-se uma discussão com os gestores municipais para estimular a realização de contratações de profissionais por meio de concursos públicos para a área de Saúde Mental; engendramento, em parceria com a Escola Estadual de Saúde Pública, v.35, n.2, p.412-431 abr./jun. 2011 425 de estratégias de apoio e suporte aos processos de Educação Permanente nos municípios, em âmbito microrregional, levando em conta as especificidades locorregionais. Como penúltimo dificultador, aponta-se a fragilidade do Apoio Matricial na Atenção Básica pelos CAPS e das ações de Saúde Mental nesse nível de atenção. O Apoio Matricial pode ser entendido enquanto um suporte técnico especializado, ofertado a uma equipe multiprofissional de saúde, a fim de ampliar seu campo de atuação e qualificar suas ações.46 Em Saúde Mental, mais especificamente, esse “apoio” seria uma ferramenta para agenciar a instrumentalização das equipes, subvertendo o “Modelo Médico Assistencial” dominante, que se traduz na fragmentação do trabalho e na produção excessiva de encaminhamentos às diversas áreas.47 Na Política Nacional de Saúde Mental,10 o Apoio Matricial é um arranjo organizacional também contemplado. Nesse arranjo, a equipe de saúde mental compartilha alguns casos com as equipes de Atenção Básica. Esse compartilhamento se produz na forma de co-responsabilização pelos casos, que pode se efetivar através de discussões conjuntas de casos, intervenções conjuntas junto às famílias e comunidades ou em atendimentos conjuntos, e também na forma supervisão e capacitação.10:34 Essa compreensão permitiu, fundamentalmente, a proposição da construção conjunta (Diretoria de Atenção Básica/Diretoria de Gestão do Cuidado) de Linhas de Cuidado em Saúde Mental na Atenção Básica e posterior pactuação e implantação junto aos municípios. Além disso, o acompanhamento do processo de implantação dos NASF, em que o profissional de saúde mental seja a referência para as ações de Apoio Matricial nas ESF sob sua responsabilidade; por fim, o trabalho de Educação Permanente junto às equipes dos CAPS do Estado, responsáveis elas mesmas pelas ações de Apoio Matricial no seu território adstrito. Entende-se que a efetivação dessas propostas é de fundamental importância para evitar o movimento em direção à “capsização” da assistência em saúde mental no Estado. Por fim, destaca-se a insuficiência da Política Estadual de Assistência Farmacêutica, quanto ao fornecimento de medicações ditas “psiquiátricas”. A discussão acerca da ampliação das categorias diagnósticas apresentadas pelos códigos internacionais de doença, ampliação esta feita em torno de um processo generalizado daquilo que se pode denominar de “patologização do normal”,48 bem como do processo de medicalização do “sofrimento social”, não recente, contudo intensificado na atualidade, 426 Revista Baiana de Saúde Pública é uma das pautas mais urgentes do campo da saúde mental, por suas consequências e implicações na vida dos sujeitos. Não a despeito, mas justamente em função da necessidade da discussão criticada das práticas e conceitos no âmbito da psicopatologia e no âmbito da fronteira entre o “normal” e o “patológico”, é que a questão da “assistência farmacêutica” apresenta-se, no nosso entendimento, enquanto um dos nós críticos da implementação da “Reforma” no estado da Bahia e em todo país. No ano de 2007, o Ministério da Saúde aprovou as normas de execução e financiamento da assistência farmacêutica na Atenção Básica em saúde49 e inseriu os medicamentos da saúde mental no elenco de referência da assistência farmacêutica básica. Os medicamentos de dispensação excepcional50 – fornecidos e controlados na capital do estado por serviços de saúde de referência e no interior pelas DIRES – são, pela legislação atual, parte do componente especializado da assistência farmacêutica, de acordo com a Política Nacional de Assistência Farmacêutica.51 Esses dados permitiram às pesquisadoras sugerir a articulação entre a Diretoria de Gestão do Cuidado (DGC/SESAB) e a Diretoria de Assistência Farmacêutica (DASF/SESAB) para a construção de um diagnóstico da situação da Assistência Farmacêutica em Saúde Mental na Bahia e do fluxo de distribuição dessas medicações, bem como o desenvolvimento de uma proposta de controle e regulação da distribuição e problematização da prescrição, tanto qualitativa quanto quantitativa, dessas medicações nos serviços. Partindo da ideia de que tanto as políticas públicas de saúde quanto o processo de implementação da reforma psiquiátrica brasileira constituem-se enquanto processo histórico dinâmico, fortemente perpassado por interesses múltiplos, em sua maioria antagônicos, e que seu fortalecimento se dá com base na construção cotidiana nos mais diversos âmbitos, como serviços, gestão, comunidade, movimento social, imaginário social, entre outros, este artigo não pretendeu esgotar as discussões acerca daquilo que se propôs, nem apontar soluções definitivas para os (dez) caminhos aqui elencados. Ressalta-se que os documentos que serviram de base para esta discussão dizem respeito a um período e contexto específicos e que uma parte, tanto dos problemas/ dificultadores, quanto das propostas apresentadas, foi redimensionada e/ou encaminhada. Por fim, respeitando as particularidades locorregionais e o intermitente movimento de territorialização e desterritorialização das forças subjacentes ao campo da “saúde mental”, conclui-se, com base neste estudo, que as questões apontadas acerca do estado da Bahia não fogem às principais dificuldades presentes nos demais estados brasileiros no que diz respeito ao fortalecimento e à efetiva implementação da Reforma Psiquiátrica. v.35, n.2, p.412-431 abr./jun. 2011 427 REFERÊNCIAS 1. Brasil. Presidência da República. Constituição de 1967, de 20 de outubro de 1967. Brasília; 1967. 2. Santos L, Andrade LOM. Vinte anos de SUS: o sistema de saúde no Brasil no século 21. Rev Saúde em Debate. 2009;33(82):201-13. 3. Brasil. Presidência da República. Constituição de 1988, de 5 de outubro de 1988. Brasília; 1988. 4. Declaração de Alma Ata - Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde. URSS; 1978. 5. Brasil. Presidência da República. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. 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