CIDADE, CULTURA E EDUCAÇÃO: O DIÁLOGO ENTRE O URBANO E O ESCOLAR. UM ESTUDO SÓCIO-HISTÓRICO DA EMERGÊNCIA DA ESCOLA REPUBLICANA NO VALE DO PARAÍBA PAULISTA (1896-1960) Mauro Castilho Gonçalves UNITAU O presente trabalho apresenta uma discussão sobre as relações entre o urbano e o escolar no bojo das transformações preconizadas com a emergência do projeto republicano num campo geográfico específico: o Vale do Paraíba paulista, num período que se estendeu do final do século XIX, momento histórico da gênese das primeiras escolas republicanas – os Grupos Escolares – até 1960, ápice do fenômeno da urbanização na região. Da mesma forma propõe uma incursão na rede de relações históricas construídas no interior da sociedade do Vale do Paraíba paulista, principalmente na cidade de Taubaté, marco da tradição bandeirante e católica e que revelou em sua história, particularmente com a emergência de suas primeiras indústrias e a constituição mais sólida de seu espaço urbano, um importante marco no que diz respeito à chamada escolarização moderna. Em outras palavras, pretendemos descortinar e compreender a massa de informações e fontes ainda inexploradas, aquelas vinculadas à emergência da escola republicana em Taubaté e região. Propõe, igualmente, realizar um mapeamento das fontes histórico-educacionais existentes no Vale do Paraíba, afim de categorizar as relações entre cidade-educação-cultura, à luz da historiografia inglesa do pósguerra, notadamente as pesquisas do historiador E. P. Thompson, especificamente as noções de experiência e cultura, articuladas em seus trabalhos de maior repercussão acadêmica e política. Para poder “apanhar” a complexidade inerente ao real, recorremos ao conceito de cultura pensado por esse historiador. Marcus A. T. Oliveira (2002) vem discutindo a pouca atenção dada à historiografia inglesa pelas pesquisas em história da educação no Brasil, devido, segundo este autor, a uma tendência fortemente radicada na perspectiva francesa. Os ensinamentos de Thompson, bem como de outros autores da mesma escola historiográfica, observa Oliveira, podem incrementar o campo da história da educação ao fornecer uma visão alternativa sobre temas, o trabalho com as fontes, o diálogo entre teoria e empiria, etc. O legado thompsoniano pode facilitar nossa familiarização com as reflexões baseadas no conflito e na luta hegemônica. Tal perspectiva incentivaria a descartar, ainda segundo Oliveira, as análises estanques e congeladas de alguns conceitos (alienação, reificação, luta de classes, etc.), tão comuns em pesquisas de determinada tradição na área da história da educação brasileira. Partindo da hipótese segundo a qual a região valeparaibana notabilizou-se pela consolidação de um modo urbano-católico de organização educacional, citadina e cultural, o trabalho pretende apresentar uma análise da ação das elites políticas e letradas, particularmente aquelas vinculadas ao paradigma católico. No que se refere à imprensa vinculada à Igreja, vale destacar a ação do jornal O Lábaro, periódico criado em 1910 pela Diocese de Taubaté, com grande penetração regional. Os sujeitos que se envolveram na modelação deste espaço de veiculação ideológica e doutrinária, da hierarquia propriamente dita ao laicato militante, preconizaram um projeto de inserção no universo urbano envolvendose direta ou indiretamente na constituição do desenho das mais tradicionais cidades do Vale do Paraíba paulista. Do ponto de vista da escolarização propriamente dita, vale notar que a emergência e a consolidação da escola republicana, processo civilizatório (Elias, 1994), deu-se no bojo desta complexa rede marcada por interesses corporativos. Ao elegermos a cidade de Taubaté e a região do Vale do Paraíba paulista com suas especificidades históricas, particularmente no tocante ao vínculo que pretendemos estabelecer entre o moderno, o urbano, a indústria e a escola, necessariamente teremos de levar em conta todo um conjunto de tradições, uma história acumulada a partir de experiências datadas. Na dialética urbano-rural, laico-católico, científico-filosófico, novo-velho, poderemos detectar um feixe de possibilidades do real. A partir do exposto, elegemos fontes primárias heterogêneas, na tentativa de “apanhar” a complexidade de Taubaté e região no período que se estendeu da proclamação da República até os anos 50 do século passado1, bem como as experiências de diferentes sujeitos. No processo de investigação serão levados em conta o contexto e o processo, num diálogo permanente e dialético, buscando os significados históricos no âmbito de sua concretude, sem, contudo, negligenciar a força propulsora do processo. A imprensa laica e católica da cidade, bem como a documentação primária que este trabalho de pesquisa reúne sobre algumas escolas católicas e públicas da região, possibilitarão uma incursão na história de determinadas instituições escolares que emergiram no interior da urbe, produzindo práticas e um conjunto simbólico ainda inexplorado pelas pesquisas em história da educação. A pesquisa propõe o estudo dos principais jornais constituidores de uma mentalidade urbanocatólica na região, com destaque ao C.T.I. Jornal, órgão da indústria de tecelagem Companhia Taubaté Industrial, fundada no final do século XIX, além das fontes legislativas. No caso do setor católico, privilegiaremos, como afirmamos, o semanário católico O Lábaro. Esse jornal adquiriu, ao longo de sua trajetória, uma importância considerável nos meios católicos. Cobria toda a diocese de Taubaté, região eclesiástica que, do ponto de vista geográfico, abarcava grande parte do Vale do Paraíba paulista e Litoral Norte. Vale ainda destacar um debate, no início do século XX, envolvendo dois jornais que circularam na cidade de Taubaté, a saber: O Taubateano, dirigido por Tavares Filho, de linha liberal, defensor da liberdade de imprensa e religiosa e A Verdade, coordenado por Luiz dos Santos, defensor do paradigma católico. Interessa-nos, também, arrolar e discutir a história de instituições escolares para verificar a ação político-educacional de determinados sujeitos que exerceram influência na constituição do “campo” educacional no Vale do Paraíba paulista, discutindo práticas escolares em sua vertente pedagógica, bem como as relações entre a instituição escolar e a sociedade, numa perspectiva dinâmica, entendendo o espaço escolar como uma teia de experiências diversas. Nesse sentido, as articulações entre as transformações urbanas e as experiências escolares, sejam em práticas pedagógicas definidas e/ou em políticas de formação de agentes educacionais, dentre outras formas de produção, difusão, apropriação de determinados padrões culturais, serão objeto de investigação propostos por esta pesquisa. Podemos citar, por exemplo, outras iniciativas de igual vulto arquitetadas pelas elites empresariais, comerciais e católicas da região, particularmente na cidade de Taubaté. São elas: a criação, no final da década de 30, da Sociedade Taubateana de Ensino, ou como ficou mais conhecida a Escola do Comércio, para formar um universo de profissionais para atuar no emergente setor comercial da cidade. Além dessa iniciativa, vale destacar a inauguração, no início da década de 50, do Colégio Taubateano, projeto que articulou setores urbanos ligados ao comércio, à indústria e ao laicato católico. O Grupo Escolar da C.T.I., inaugurado no final da década de 30, pode também ser incluído no rol das iniciativas. Tais projetos apresentaram especificidades que poderão ser aprofundadas ao longo do projeto desta pesquisa. Os pilares da constituição do ideário urbano-católico na região, baseados, como afirmamos, no tripé indústria-escola-igreja, ocuparam, na pauta católica, uma grande importância, transformando-se nos veículos de divulgação da nova mentalidade que a Igreja tentava incorporar num mundo que rapidamente se transformava. Tratava-se de um projeto que se pode chamar de modernização conservadora (aliás, que se verificou em outros momentos da história da Igreja Católica). Em relação ao Vale do Paraíba paulista, a originalidade encontra-se na maneira como a Igreja criou estratégias de acomodação/transformação de sua realidade interna em relação ao mundo exterior, influenciando a configuração de discursos e práticas de apropriação e difusão de um ideário cultural específico. As demandas sociais, políticas e culturais de uma região que foi se constituindo ao seu modo e à luz dos interesses locais de grupos hegemônicos, foram decisivas para que a hierarquia e parcela importante do laicato católico, buscassem alternativas no sentido de disputar espaços no coração da urbe. A hierarquia católica, sem dúvida, foi decisiva na montagem de um arcabouço cultural e educacional específico, porém não podemos minimizar a atuação de parcelas do laicato na conformação e na constituição de um paradigma urbano-católico na região. O paradigma urbano-católico, entendido como um conjunto de práticas e modelos culturais que de variadas formas, foi incorporado pelos sujeitos por meio dos instrumentos à disposição da elite letrada, tornou-se emergente e consolidou-se no coração das cidades que, no período em questão, tornaram-se o epicentro da consolidação do tripé indústria-escola-igreja. A escola e a imprensa, por exemplo, veículos culturais de divulgação de práticas e modelos, foram extremamente relevantes na viabilização do projeto ora delineado. O urbano, aqui, não está em oposição radical ao rural. Ao contrário, entre tais dimensões e realidades existe um diálogo permanente.2 Uma dialética produtiva. Uma interdependência. Além da imprensa, a hierarquia católica da região manteve, nestas décadas, permanente diálogo com as instituições de ensino. As inúmeras páscoas estudantis, por exemplo, que, na ocasião, representavam, para a população, verdadeiras festas cívicoreligiosas, recebiam apoio incondicional do clero diocesano. A idéia segundo a qual a educação e a cultura representariam os baluartes da formação integral dos indivíduos, levou os representantes católicos a investirem todas as suas forças na defesa do ensino religioso nas escolas públicas, na demarcação do espaço cultural, principalmente pela via da imprensa e do impresso, nas alianças com os diferentes setores urbanos e nas práticas que denominamos civilizatórias. Os diferentes sujeitos construíram uma história própria, ora acomodando seus interesses, ora avançando nas transformações necessárias para responder às demandas em emergência. O movimento de ação e reação que as elites políticas e letradas, a hierarquia católica e seu laicato produziram no decorrer do período, foi fundamental na constituição/conformação de um modo de viver urbano-católico que não traiu suas raízes rurais, morais e dogmáticas. Sergio Miceli mostrou que a Igreja Católica, desde a década de 1920, organizou uma rede paralela à hierarquia eclesiástica, formada por intelectuais preocupados em conscientizar os quadros católicos da crise que passava a tradicional oligarquia do “café-com-leite”. Isso poderia explicar a entrada e a presença estratégica da Igreja em organizações presentes no campo social (escolas, editoras, jornais, etc.). Segundo este autor, o exemplo mais significativo dessa investida católica nos anos 20 foi a criação da revista A Ordem (em 1921), do Centro Dom Vital (1922) e da revista Festa, publicada no Rio de Janeiro em 1927-8 e 1934-5. Os editores da revista, segundo Miceli, defendiam um modelo de “modernismo” que contrastava com a perspectiva advinda da Semana de 1922. Propunham a retomada do “espiritualismo”, característica da “tradição brasileira autêntica”. Miceli afirma ainda que, a partir dos anos 30, os setores eclesiásticos sentiram-se ameaçados com determinadas “novidades” que emergiam no campo do ensino e da cultura. Especificamente no setor educacional, havia grande preocupação quanto à introdução, no Brasil, da filosofia pragmática do pensador norte-americano John Dewey e a entrada, em órgãos oficiais, de educadores responsáveis por reformas em alguns estados da Federação. Ao término da exposição do chamado “rearmamento institucional da Igreja católica”, Miceli relembra o posicionamento pontifício de Leão XII, em fins do século XIX, sobre sua relação com o “mundo profano”. Adotando uma postura política de alinhamento com as oligarquias da década de 20, a Igreja preferiu aderir ao regime Vargas, para fazer valer seus interesses pastorais e ideológicos (o autor cita, por exemplo, a criação da Universidade do Rio de Janeiro, dirigida pelos jesuítas). Inspirada na tradição pontifícia, a Igreja do Brasil recordava Leão XIII ao advertir seus discípulos de que “era preciso ‘aceitar a situação pública, tal como se apresentava, sem discutir-lhe praticamente a legitimidade’, a fim de assegurar a ‘existência biológica e empírica da Igreja no mundo’” (Miceli, 2001:128). Algumas cidades da região experimentavam nova expansão e redefinição de seus territórios. Bairros periféricos consolidavam-se como alternativa de moradia e lazer. A especulação imobiliária, o novo traçados das ruas, a maciça presença do automóvel, a necessidade da moralização do trânsito, a chegada da indústria pesada, a preocupação das elites com a educação e a cultura das classes populares, a discussão em torno do pioneirismo taubateano no Vale do Paraíba, a questão universitária, etc. foram motivações incorporadas pelas cidades no âmbito do Legislativo, do Executivo e de outras instituições vinculadas à formação do ser social. A Igreja Católica da região pode ser considerada uma das mais importantes instituições que, inserida no debate, participou ativamente da vida das cidades, propondo alternativas no campo da cultura e da educação. Destacamos, na década de 50, o 50º aniversário da diocese de Taubaté e as festividades em torno da consolidação do jornal O Lábaro (também comemorando 50 anos de existência) e a criação de novas escolas católicas, como a Escola Normal Nossa Senhora do Bom Conselho, a Escola Anchieta e o Ginásio Taubateano3. A Igreja Católica, naquelas décadas, como que renovando suas investidas nos espaços extra muros, por meio de uma ação organizada, iniciou um diálogo com diferentes setores da cultura e educação: cineastas, radialistas, jornalistas, educadores, cientistas, professores etc. Esses sujeitos foram alvos de constantes contatos, sem contar a produção sistematizada em documentos pontifícios. Os avanços na ciência e as novas manifestações culturais nos campos das artes, da arquitetura, da música, etc. forçaram as autoridades eclesiásticas e parcelas do laicato influente a rever iniciativas e projetos em diferentes áreas do saber humano. Além disso, como sabemos, foi recorrente, por parte da Igreja, a reivindicação de verbas públicas para as iniciativas privadas no setor do ensino, prova empírica da influência exercida pela Igreja Católica nesse campo. Também merecem destaque as reclamações sobre a precária situação do ensino público na região, particularmente Taubaté, desde as condições materiais dos prédios até as reivindicações salariais dos professores.4 O estudo das décadas em destaque, portanto, parece pertinente para os objetivos a que nos propusemos no decorrer da pesquisa. Nosso intento é demonstrar que a cidade de Taubaté e a região valeparaibana, guardadas as devidas proporções, naquela ocasião, por meio de diferentes instrumentos de acomodação/configuração e da ação de sujeitos datados historicamente, forjou uma sociedade urbano-católica, organizando práticas e construindo representações baseadas na articulação entre o idílico rural e o dinâmico urbano. A Igreja Católica local (hierarquia e laicato) transformou-se no principal instrumento desse processo, na medida em que alicerçava na aliança com setores privilegiados da economia e das letras os pilares de sustentação de sua hegemonia no interior da cidade. A urbe, a seu modo, pulsava e descobria um modus vivendi próprio. Privilegiar a imprensa e a escola para poder captar a dinâmica estruturante da cultura moderna e urbana é o desafio que propomos a esta pesquisa. 1 Este recorte cronológico diz respeito à investigação que estamos efetuando na imprensa laica e católica e na documentação legislativa e escolar. Entendemos que tal período possui um significado por trazer em seu bojo não somente as primeiras escolas republicanas para a região, mas também por se tratar de uma longa duração em que o trinômio indústria-escola-igreja consolidou-se no coração da cena urbana. 2 Cf. Willians (1989). O pensador inglês alerta para o que ficou consolidado como generalizações no que diz respeito às características e às relações entre o campo e a cidade. O campo e a cidade, guardadas as inter-relações presentes nesse diálogo, apresentam-se sob numerosas formas: do agricultor ao agroindustrial; da capital do Estado ao centro religioso. 3 A primeira inaugurada em 1954, o Ginásio Taubateano em 1951 e a Escola Anchieta no final da década de 50 do século passado, todas em Taubaté. A pesquisa realizará um rastreamento nas fontes documentais (impressa, atas legislativas, fontes escolares etc.) nas principais cidades do Vale do Paraíba, para a montagem de um mapa que possibilite visualizar o grau de atuação dos setores católicos, em aliança com os grupos urbanos emergentes, na confecção do projeto de modernização conservadora, baseado no tripé escola-indústrias-igreja. 4 Segundo a imprensa, era alarmante a situação dos prédios dos Grupos Escolares Dr. Lopes Chaves (um dos mais antigos da região, inaugurado em 1902, na cidade de Taubaté) e Jacques Felix, da Vila São Geraldo, também localizado em Taubaté. Bibliografia ELIAS, N. 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