ZEUS E A FILOSOFIA - SOL

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DO MITO À FILOSOFIA
José Carlos Avelino da Silva1
Os vínculos do mito grego com a realidade histórica, social e cultural são a base de seu
potencial filosófico. Os deuses do panteão olímpico e suas histórias são um espelho da
sociedade e do ser humano. No mito, encontramos a trama histórica em torno do qual o mito se
desenvolveu. Além disso, o mito tem qualidade literária ou não seria mito. A fantasia e a
imaginação, que enriquecem a literatura, existem no mito, são o que há de belo no fato vivido.
A sustentação do mito é a verdade filosófica (alegorizada), a verdade histórica e
antropológica (filtrada e recriada), a verdade psicológica (fantasiada) e o belo, este sem alegoria
nem filtramento. O fato tem significado social (e por isso se transforma em mito), quando
contribui para a inserção do ser humano na sociedade, estruturando as relações sociais. O fato
tem significado social, quando contribui para a compreensão de que o mundo hoje é resultado
do de ontem e, portanto, o amanhã seguirá o mesmo rumo.
O significado profundo do mito é sempre amplo, referindo-se à existência humana na
plenitude de sua potencialidade. O mito mescla a realidade objetiva e suas possibilidades. O
alcance do mito é maior que sua aparência de simples história e sugere claramente a filosofia.
Seu conteúdo filosófico são os conceitos ainda não formulados, mas já vislumbrados. Zeus é a
primeira formulação da ideia do ser. Sendo a primeira, ainda se encontra atrelada às
determinações do mundo sensível.
O mito grego é uma propedêutica ao nascimento dos conceitos filosóficos e racionais.
Mito é protoconceito. A razão e a filosofia têm origem grega, porque, na península dos Bálcãs,
os mitos abordaram questões relativas à realidade, com elevado potencial interpretativo.
O mito transmite simbolismo, essa linguagem emocional que transmite valores. O
simbolismo é real apesar de não racional. Do fato de o simbolismo não ser racional, muita gente
acha que ele não é real. Entretanto, mito é verdade. Quem estabelece a verdade do mito não é a
análise racional, mas a cultura da qual ele participa.
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de Goiás.
Doutor Université Paris (Panthéon-Sorbonne) e Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica
O simbolismo é a linguagem da cultura e é refratário à razão, às relações causais, à prova
científica, às categorias certo e errado. A cultura (e, como parte dela, o simbolismo e o mito)
não pode viver sem contradição, pois é sempre vivência de um todo heterogêneo, está sempre
distante de qualquer homogeneidade e singularidade. Ao abraçar o simbolismo, o ser humano
garante o direito a um mundo pleno de diversidade, buscando a liberdade que o simbolismo dá.
O mito é livre.
O certo e o errado bem como o rigor metodológico são uma preocupação filosófica. No
simbolismo, não há incoerência entre o verdadeiro e o falso. Os referenciais da lógica simbólica
são outros. A lógica não-formal do simbolismo é a lógica da importância em uma determinada
cultura: o que é importante é preservado, o que não é importante é deixado de lado.
É comum a ideia de que o simbolismo não tem lógica ou que a razão substitui o
pensamento mítico. Mito e razão são dois métodos que a humanidade se muniu para interpretar
o mundo e a vida. O conceito é referenciado à razão. A filosofia veio para afirmar a
possibilidade de se fazer ciência e acrescentar uma compreensão mais aprofundada da vida e
do ser humano. Sem dúvida, a filosofia colocou o ser humano em um patamar superior de sua
existência.
No entanto, a filosofia não substituiu o mito, não o aniquilou, colocando-o
cuidadosamente em segundo plano. A representação racional da realidade não aniquila nem
desmente o simbolismo, apenas complementa-o. Mito e razão são complementares. Ambas as
representações têm significado, cada uma em seu campo de validade.
A filosofia afirmou a relação de causa e efeito dentro do mesmo campo em que o
fenômeno existe, garantiu a ordenação sequencial dos instantes, a contiguidade espacial, a
relação unicidade/multiplicidade que se estabelece entre conceito e realidade, a realidade
natural como uma imposição inevitável, a relação unívoca entre a realidade e a representação,
os acontecimentos seguindo um determinado padrão (uma determinada lei), a teoria como
interpretação do mundo, a coerência e a razão instrumental.
A lógica não-formal do simbolismo resume-se a referenciais mais simples: o mito dá
importância ao que a cultura coloca como importante. O que é importante para a sociedade é
preservado, o que não é importante é deixado de lado. Dar importância ao que é importante está
além do certo e do errado.
A lógica do mito não tem familiaridade com dois princípios filosóficos que apareceram
com os pré-socráticos, tiveram a atenção de Platão e foram formulados por Aristóteles: o da
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identidade e o da não-contradição. O princípio da identidade, ausente em geral da mitologia
grega, foi, no entanto, sugerido por alguns mitos. O mito não dá a mínima importância para a
coerência e dois fatos excludentes podem ser igualmente válidos.
O pensamento racional colocou a ciência no lugar do simbolismo como interpretação
do mundo. Entretanto, não é a ciência que dá significado às coisas (a ciência explica os
fenômenos), mas sim o simbolismo que dá significado à vida, inclusive à ciência. Dizer que o
nosso mundo é racional é só meia verdade. Queiramos ou não, somos seres simbólicos, apesar
de estarmos indelevelmente presos às informações da sensibilidade.
Olhar um rio e ver ali um deus-rio é uma maneira de explicar o que se está vendo. Não
é como se explica hoje, depois do advento do mundo natural e das disciplinas afins (física,
química, geografia, geologia etc.), mas foi a maneira como se explicou durante milênios. Olhar
a palavra coca-cola e ver ali juventude, esporte e alegria é uma maneira muito comum de se ver
essa realidade.
A razão é importante para validar a verdade científica. Por outro lado, a verdade do mito
é inerente a ele, o mito não precisa de um método para validar sua verdade. Mito é verdade. O
mito como forma de interpretar a realidade objetiva ficou para trás, dando lugar à razão. A
filosofia cumpriu seu papel de enriquecer o espírito humano, retirando do mito o atributo de ser
a única expressão da verdade.
Razão e simbolismo, filosofia e mito estão bem presentes em nossa sociedade. Superar
o confronto entre os dois não é negá-los, mas encontrar uma alternativa de vida e de sociedade
que integre essas duas maneiras de perceber a realidade e nos coloque no caminho do bemestar, da harmonia e da felicidade.
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