ROCK IN RIO: MUITO MAIS DO QUE UM FESTIVAL, UM LOCAL DE DISPUTAS LUÍS FELLIPE F. AFONSO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (PPGHC-UFRJ) E-mail: [email protected] O festival Rock in Rio foi um divisor de águas na música brasileira. A partir dele, o rock passa a ser considerado a música representativa da juventude brasileira, as bandas ganham mais espaço na grande mídia e recebem um alto investimento da indústria fonográfica. O evento provou que havia no Brasil um público jovem ávido para consumir rock. O rock é um gênero musical ligado à juventude, ele se apresenta como o grito geracional que separa o mundo jovem do adulto. Ouvir certas bandas e cantar certas músicas muitas vezes não são apenas questão de gosto, mas uma forma do jovem se impor em certos espaços, sejam eles públicos ou privados. Às vezes reduzido à condição de crítica as instituições políticas, o rock possui um forte caráter questionador à moral adulta e ao cenário social, além de ser um elemento agregador das identidades jovens. Esse tipo de música tornou-se assim a principal forma de comunicação da juventude, afinal, desde o seu início, na década de 1950, esse gênero musical possuía o diferencial de que seus ídolos tinham a mesma idade dos ouvintes, levando à uma identificação a partir dos temas cantados. Enquanto os grandes ídolos anteriores - como Frank Sinatra e Johnnie Ray - já eram adultos e cantavam esse mundo, os cantores de rock - como Chuck Berry e Little Richard - cantavam o universo jovem, onde os temas eram festas, namoros, carros e diversão. Para Simon Firth, o rock é gerador da coletividade jovem, a partir de gostos musicais similares. As escolhas de músicas e bandas preferidas ainda são pessoais, criando a identidade individual do jovem ouvinte, porém ao interagir com outros adolescentes, agregam suas 1 identidades individuais, tornando-as coletivas a partir de sua socialização (FIRTH, 1980, p. 50-74). Devemos lembrar que nessa fase da vida o indivíduo está se definindo em seu meio social, a escolha de um estilo musical ou de uma banda preferida reflete a necessidade de pertencer à um grupo e obter status dentro desse grupo. Diferente de outras partes do mundo, o rock no Brasil demora a se consolidar como principal gênero musical jovem. Apesar de chegar ao país na década de 1950, o rock encontra dificuldades para se firmar devido à falta de identificação entre músico e público e, na década de 1960, quando já havia a criação dessa ligação, aos choques entre as identidades jovens do período, além da censura e repressão pela Ditadura Militar, que dominava a política brasileira. Essas fatores levaram o rock brasileiro na década de 1970 à um cenário underground1, sendo separado em pequenos nichos de público jovem. O rock brasileiro só ganha status de grito geracional e representante da juventude brasileira na década de 1980.2 A década de 1980 é um momento único de transição política na história Brasileira. Nessa época o país, que recebeu de volta os exilados políticos, graças a Anistia de 1979, retoma a lentos passos espaço a participação da sociedade na política, que havia sido perdido com o Golpe Militar em 1964. A busca da sociedade por mais participação política muitas vezes entra em choque com o planejamento dos militares, criando uma disputa na qual haverá avanços políticos e retrocessos. Nesse ambiente de disputa surge uma nova juventude que consegue se impor como a grande produtora e consumidora de cultura no Brasil. Essa nova juventude que proporcionou a possibilidade de um grande festival de rock no país, mas quem era essa juventude? "Geração Coca-Cola":A juventude na década de 1980 Devemos ter em mente que esses jovens cresceram no pós-golpe de 1964, ou seja, não vivenciaram um governo democrático e, muitos, não possuíam uma lembrança da repressão aos opositores do regime militar durante os "anos de chumbo". A imagem do clima ufanista, 1 Termo relacionado a práticas artísticas que são deixadas de lado pela grande mídia. Para uma discussão mais aprofundada sobre o motivo do rock demorar a estourar no Brasil, ver AFONSO, Luís Fellipe Fernandes. "Nós vamos invadir sua praia": Representações da juventude brasileira através do Rock. Rio de Janeiro, Editora Multifoco, 2014. 2 2 com o "milagre econômico" e a conquista do tricampeonato na Copa do Mundo de Futebol em 1970, estava mais viva na memória desses jovens. Por estarem vivendo um momento de abertura política, essa geração passa a ser cobrada por uma forte atuação política, comparando-a com as atitudes da geração de 1960. Esses jovens se negam aceitar esse papel de portador das esperanças e utopias. Muitos, por não viverem num modelo democrático, não confiam em partidos e organizações políticas, também não acreditam que a redemocratização acabará com todos os problemas políticos e sociais. A fala do personagem de Luiz Fernando Guimarães, na peça Trata-me Leão, do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, reflete a negação do jovem sobre esse momento: " Não me mande ir a luta que eu não gosto. Tá legal? Vá a luta você." (BRYAN, 2004, P.22) Partindo dessa negação, o jovem da década de 1980 começa a desenvolver um novo tipo de cultura, descompromissada de qualquer identificação partidária e que ganha força no período. Isso abre espaço para a discussão de outros temas apresentados por esses jovens e que durante muito tempo foram considerados tabus, tanto pela direita quanto pela esquerda, como nos lembra Nelson Motta: A MPB, a geração mais tradicional, dizia que a garotada dos anos 1980 foi criada sob a ditadura, não pôde ouvir nada, não viu determinados filmes, não leu alguns livros e matérias nos jornais. Foi criada na alienação. Engano total! Porque essa juventude veio com muito mais fúria e informadíssima. Tanto que Cazuza e Renato Russo foram os primeiros a tocar em dois temas-tabus para a esquerda e para a direita: sexo e drogas. (PICCOLI, 2008, P.79) Junto com a música, há a divulgação em larga escala de todo um movimento cultural realizado por e pensado para os jovens, em várias mídias: cinema, artes plásticas, grafite, música, jornais, livros, artes visuais etc. Um fotógrafo jovem produz a capa de um disco de uma banda jovem de rock, que por sua vez é analisada por um jornalista jovem e utilizada num filme sobre a juventude. Fecha-se um ciclo onde as atividades de produção, divulgação, análise e consumo são realizadas pelos jovens, que se mostram um forte nicho consumidor e produtor de cultura. 3 Por ser um "agregador" de identidades, o rock toma a frente como principal representação cultural dessa geração. O chamado BRock3, foi um novo tipo de rock criado por esses jovens. Inicialmente eles vão buscar romper com a MPB por dois motivos, o primeiro é a necessidade de negar um grande movimento musical anterior para se firmar como uma música nova, como diz Leoni, ex membro das bandas Kid Abelha e Heróis da Resistência, “já havia MPB demais; e, que quando adolescente, são as diferenças que denotam sua identidade. Rejeitamos muito a música brasileira para firmar nossa própria cara.” (ALEXANDRE, 2002, P.180) O segundo motivo é que eles não conseguiam se identificar com os artistas da geração anterior. Devido ao exílio e a censura, alguns dos principais artistas da MPB cantavam uma realidade que não era a do jovem na década de 1980, essa falta de ligação afastou os roqueiros desses artistas, que buscavam uma voz que cantasse sua realidade. Clemente, vocalista da banda Inocentes, mostrou esse afastamento através do “Manifesto Punk: Fora com o mofo da MPB! Fim da ideia de falsa liberdade”, de 1982, onde ele dizia: Procuramos algo que a MPB já não tem mais e que ficou perdido nos antigos festivais da Record [...] Nós estamos aqui para revolucionar a música brasileira, para dizer a verdade sem disfarces [...] para pintar de negro a asa branca, atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer (ALEXANDRE, 2002, P.60). Por isso, o jovem passa a ter sua principal influência musical vinda do exterior, principalmente de dois gêneros do rock que estavam em evidência no cenário internacional nessa época: O Punk e a New Wave. Esses gêneros são readaptados à realidade brasileira tornando-se uma das mais altas vozes da juventude. O Punk talvez tenha sido a influencia mais intensa dentro BRock, principalmente em relação as bandas de Brasília e de São Paulo. Notamos que ele não ficou preso à uma classe 3 BRock é uma nomenclatura criada pelo jornalista Arthur DaPieve para designar o rock brasileiro jovem produzido na década de 1980. Esse rock também foi chamado por outros nomes pela imprensa - tais como Nova Jovem Guarda, Geração New Wave, Rock Brasil e Rock Popular Brasileiro (RPB) - porém nenhum deles conseguiu o destaque que BRock, por isso minha escolha em utiliza-lo. 4 social, já que os artistas eram desde operários fabris (Região do ABC, em São Paulo) até mesmo filhos da classe média alta (Região da Colina, em Brasília). Sendo uma “reação ao romantismo hippie e a uma perda de status social” ( ANAZ, 2006, P. 44), a música Punk se caracteriza por melodias simples e letras agressivas, criticando a situação política, econômica e social do mundo. Seu ápice foi no final da década de 1970, na Inglaterra, quando a música foi tocada por jovens das classes operárias que sofriam com a falta de empregos, destoando do seu começo nos EUA que estava mais ligado a ideia de boêmia. A ideia do Punk é que sendo uma arte crua e direta, ela atingiria mais facilmente as emoções. Pregava uma atitude política extremamente revolucionária ao adotar o lema “faça você mesmo”4, em que qualquer ato deve ser feito de maneira que rompa completamente com o status quo. Esses grupos acabaram sendo extremamente politizados, muitas vezes adotando o anarquismo, e se engajando em movimentos de esquerda5. A segunda influência do BRock foi o chamado New Wave, movimento musical derivado do Punk e bastante presente no Rio de Janeiro. Esse estilo é mais focado na melodia e dialoga com outros gêneros como o Reggae, o Classic Rock e a Disc Music. Sua atitude também é critica em relação à sociedade, mas não tão agressiva como o Punk, tomando deste a presença de palco e o jeito não convencional da vestimenta (FRIEDLANDER, 2006, P.364). Aqui a contestação sai um pouco do plano político-social e passa a ser do plano moral, lembrando um pouco o que foi feito pela Jovem Guarda6. As bandas que optam pelo estilo New Wave utilizam a cultura Pop para criar uma identidade jovem dentro do meio musical. Tanto nas letras quanto nas vestimentas são notados diversos símbolos culturais que pertencem ao universo jovem, como quadrinhos, 4 Do it yourself no original O grupo inglês The Clash lança em 1981 o disco triplo Sandinista! Em homenagem ao grupo de esquerda que chega ao poder na Nicarágua, enquanto no Brasil várias pessoas que adotaram a ideologia Punk no ABC paulista são filiadas ao PT. 6 A Jovem Guarda foi um grupo de jovens cantores que na década de 1960 que alcançaram sucesso através do rock. Foi muito criticado no período pelos movimentos de esquerda, mas teve uma grande aceitação popular, a ponto de seu principal ídolo - Roberto Carlos - ter os discos mais vendidos da época. Apesar do sucesso, foi um movimento de curta duração. Para mais informações ver AFONSO, Luís Fellipe Fernandes. Op. Cit. 5 5 referências a esportes da moda ou programas de TV7. Diferente do Punk, a New Wave não procura romper com a sociedade, mas impor-lhe sua estética. Para esse artigo, nós focaremos mais na New Wave ao invés do punk, pois as bandas que tocaram no Rock in Rio foram mais influenciados por este gênero. Essa nova geração que muda a relação entre rock e juventude no Brasil, alcança seu ápice no Rock in Rio. O festival "foi a institucionalização da cultura jovem nacional por todos os meios imagináveis: palco e público enorme, transmissão nacional pela Rede Globo, apoio das gravadoras, das rádios e da imprensa.” (ALEXANDRE, 2002, P.190) O pré-Rock in Rio. Com a divulgação do rock brasileiro pela rádio Fluminense FM, "A Maldita", e os diversos shows no Circo Voador (ambos no Rio de Janeiro), associados ao sucesso das danceterias - que estavam aumentando em número por todo o Brasil e priorizavam o rock em seus setlist, além de abrir espaço para novas bandas em seus palcos - e o estouro da banda Blitz em 1982, que abriu o mercado fonográfico para diversas bandas de jovens, o BRock começava a mostrar sua cara. O jovem brasileiro provou que havia um público roqueiro ávido por bandas e shows. O Brasil não tinha tradição em receber e realizar shows de rock. A imagem do Brasil no circuito de shows internacionais não era boa. Existiram diversos casos que afastavam os artistas internacionais, como a falta de pagamento à banda Kiss em 1975 até a proibição de uma apresentação da banda Queen, em 1981, no Maracanã pelo então governador do Rio de Janeiro, Chagas Freitas, poucas horas antes do início do show. Outro grande problema que desestimulava o investimento nesses espetáculos era o preconceito que havia com o gênero, poucas empresas investiram em realizar shows estrangeiros ou unir as bandas locais para um grande evento pois achavam que o retorno não seria satisfatório. Para Frejat, guitarrista e vocalista da banda Barão Vermelho, o Rock in Rio ajudou a acabar com essa imagem: 7 O primeiro LP da banda Blitz, "As aventuras da Blitz", de 1982, vinha acompanhado de uma história em quadrinhos protagonizado pela banda. 6 Rock in Rio foi emblemático. Até 1985, contavam-se nos dedos os artistas internacionais que haviam estado no Brasil nos últimos quinze anos: Police, Kiss, Earth, Wind & Fire, Peter Frampton, Van Halen, Queen. E só. No Rock in Rio, em duas semanas de festival se apresentaram grandes nomes do rock mundial do momento: Queen, em fase muito forte, Iron maide, Ozzy Osbourne, AC/DC, George Benson e James Taylor, que não faziam rock.O Festival mexeu muito com o cenário da música. Provamos que existia um público de rock no Brasil. Porque, até aquele momento, nenhum dos grandes realizadores de eventos, e a grande mídia, tinha detectado que havia aquele público. chegou-se à conclusão de que se o público gostava de rock brasileiro é porque já ouvia rock internacional. (PICCOLI, 2008, P.8586) Partindo desse cenário, a ideia de Roberto Medina, diretor da empresa Artplan Eventos, que já havia trazer ao Brasil o cantor Frank Sinatra, em 1980, era visto como grandiosa demais, e por isso foi bastante criticada. O cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio Sales, lançou uma nota em novembro de 1984, durante o Episcopado Leste I da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dizendo que" o festival se realiza num período de recessão econômica. Milhões estão sendo gastos. Uma música alienante e provocatória: as consequências de ordem moral e social devem preocupar pais e mestres"8. É curioso notar como o cardeal também retoma um discurso moralista e o associa à política para diminuir não só o festival, mas o gênero rock. Tal discurso será apresentado tanto pela direita quanto pela esquerda. Em dezembro de 1984, o festival é novamente criticado na imprensa, agora pelo presidente da CNBB, Ivo Lorscheiter, “O festival Rock in Rio é um escândalo nacional pelo que significa em termos de alienação e gastos financeiros. É uma verdadeira afronta à maioria da juventude brasileira”.9 A esquerda também começa a criticar o evento, no suplemento “Juventude” do jornal “Voz da Unidade” do PCB, reproduzido pelo jornal Folha de São Paulo, de janeiro de 1985, Lucas Manhães, que assina o artigo, intitula o festival de "Rockareta in Rio", associando-o à outro movimento musical que estava tomando forma no período, o axé, criticando o slogan pacifista ao não propor “Nada de transgressão cultural, 8 9 Folha de S. Paulo, 24/11/1984. Folha de S. Paulo, 15/12/1984. 7 nem gana, nem raiva, nem explosão, nada que se pareça com o rock primitivo de um Eric Clapton, Jimi Hendrix ou mesmo de um Jonh Lennon”10 e critica os produtores ao tratarem a juventude “como um bando de idiotas que devem ser manipulados feitos marionetes" a serviço de interesses camuflados”11 Outro grande problema político para a realização do RIR foi a oposição do então governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola. O irmão de Roberto Medina era o deputado federal mais votado pelo PDS nas eleições de 1982, Rubem Medina, que visava o governo do Estado, Brizola passa a atacar o festival, afirmando que o empresário o estava usando com pretensões políticas (Encarnação, 2011, P.14). Apesar de embargar a obra em 21 de setembro de 1984, Brizola não conseguiu impedir que o festival ocorresse como era planejado. Rock in Rio: O Woodstock carioca O primeiro Rock in Rio foi realizado entre os dias 11 a 20 de janeiro de 1985 em Jacarepaguá, como um megaevento de rock. Foi montado uma imensa estrutura em cima do terreno de 250 mil metros quadrados. a cidade do rock contou com um palco giratório de 5.600 metros quadrados, contendo 1.000 chapas de compensado de madeira, que ficava pelo menos à 3 metros de distância do púbico, com um teto de estrutura metálica de 500 toneladas. Abrigava doze camarins e duas coxias imensas para o som, além de dividir-se em três partes para diminuir o tempo de espera entre uma banda e outra. Para iluminar o festival foram utilizados 3.200 refletores que estavam espalhados pelo palco e plateia, tudo comandado por uma mesa computadorizada, sendo outro fato inédito até então no país. Quatro torres metálicas de 6 metros de altura contendo 144 refletores, com filtros coloridos eram projetados à plateia. Ao todo foram necessários 2 milhões de watts para conseguir utilizar todo equipamento elétrico. O sistema de som era garantido por 100 decibéis de som, distribuídos entre as 120 caixas instaladas nas colunas laterais do palco. A cidade do rock, o local do evento, contava com quatrocentos banheiros químicos e dois mini-hospitais, sendo que, para casos mais sérios, ainda havia um helicóptero preparado 10 11 Folha de S. Paulo, 09/01/1985. Folha de S. Paulo, 09/01/1985. 8 para levar à algum hospital próximo. Foi estabelecido um forte sistema de segurança onde ninguém da plateia permanecesse depois do ultimo show. (BIVAR, 2004, P.255-256) Com o custo de mais de dois milhões de dólares e sem ajuda do poder público, Medina vendeu o direito de usar temporariamente o nome Rock in Rio para algumas marcas e a exclusividade de atuar em alguns setores no evento. A Brahma ficou com a venda exclusiva de cerveja e refrigerante e a Rede Globo de Televisão com os direitos de transmissão para toda a América Latina. Outra parte da verba veio de também das empresas que se instalaram nas 38 lojas no mini-shopping, cuja construção foi por elas financiada. Outras empresas que investiram no festival foram: Souza Cruz, Lubrax, Bob’s, McDonald’s, Nestlé, Kibon, Mister Pizza, entre outros. A malharia Hering adquiriu os direitos sobre o logotipo do festival – o mapa do Brasil em forma de guitarra, com o eixo virado para o Rio, girando num globo terrestre. (BIVAR, 2004, P.253-254) A imprensa brasileira deu um forte destaque ao festival, além da transmissão televisionada pela TV Globo, diversos periódicos enviaram correspondentes para acompanhar diariamente o RIR, através das análises dos shows e crônicas sobre a sua experiência no evento. Foram lançadas cadernos especiais sobre as bandas, a estrutura e como chegar a Cidade do Rock. Devido a falta de intimidade da grande mídia brasileira e de algumas publicações sobre rock, essas buscaram informar sobre situações genéricas, aproveitando o sucesso do festival.Por exemplo, a revista Carícia, voltada ao público feminino adolescente, trazia um texto assinado pelo psicanalista Jacob Pinheiro Goldberg sobre os efeitos do corpo nesse tipo de show, que poderia chegar ao orgasmo (ALEXANDRE, 2002, P.192). Até mesmo a imprensa internacional foi enviada para acompanhar o evento, jornais como o New York Times, Observe e La Stampa, além de revistas como Rolling Stones e Billboard. Alberto Flores D'Arcais, do jornal italiano La Reppublica, publicou sobre o RIR que "Os meios de comunicação não economizaram a sua atenção". (BIVAR, 2004, P.257) A TV Globo mandou imagens do Rock in Rio para o Brasil todo. Foi aquele estouro nacional. Marcou a entrada do rock no mainstream. trabalhei como comentarista da Globo e vi, como se fosse em Woodstock, o rock brasileiro embalar 150 mil jovens que estavam em paz, felizes cantando e dançando. 9 Foi superemocionante, ainda mais para quem viveu aqueles quinze anos de espera. (Nelson Motta, em entrevista para PICCOLI, 2008, P.85) No festival tocaram as atrações internacionais Iron Maiden, Queen, Whitesnake, Scorpions, George Benson, Rod Stewart, James Taylor, Al Jarreu, The Go-Go's, Ozzy Osbourne, Yes, The B-52's e Nina Hagen. Enquanto das nacionais tocaram Gilberto Gil, Erasmo Carlos, Rita Lee, Moraes Moreira, Elba Ramalho, Pepeu Gomes e Baby Consuelo, Eduardo Dusek, Alceu Valença, Ivan Lins, Ney Matogrosso e as bandas de rock Barão Vermelho, Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens, Os Paralamas do Sucesso, Blitz e Lulu Santos. Havia uma hierarquia nas apresentações, onde as bandas jovens abriam o dia, seguidos pelos cantores brasileiros das gerações anteriores e o fechamento da noite sempre eram os artistas internacionais. Isso causou um problema, afinal, artistas que estavam estourando, como a Blitz, e outros já consagrados, como Rita Lee e Erasmo Carlos, ficavam com menos espaço do que artistas que já não estavam em seu auge, como James Taylor. Essa programação influenciava diretamente na divisão do tempo estipulado para cada apresentação. Ao analisarmos o tempo de show estipulado notamos que enquanto Os Paralamas do Sucesso se apresentaram nos dias 13 e 16 de janeiro em 40 e 45 minutos, respectivamente, e Rita Lee tinha 60 minutos para se cantar no dia 16 de janeiro, Rod Stewart possuía 90 minutos para seus shows nesses dois dias. (FRANÇA, 2003, P.71). Além disso, as primeiras bandas sofreram com a qualidade de som deficiente, uma fraca iluminação, por ainda ser dia, e o menor número de pessoas em seus shows, já que o público ainda estava chegando. Tais falhas técnicas atrapalharam os shows de Lulu Santos e da Blitz, que teve uma perda de som por quase um minuto no microfone durante uma música. (BIVAR, 2004, P.260) Esses problemas foram agravados com o fato de serem quase exclusivo com os artistas brasileiros, enquanto os internacionais recebiam um tratamento diferenciado. Segundo os organizadores, essa falhas ocorriam devido a falta de costume dos técnicos brasileiros em lidar com os aparelhos eletrônicos presentes no RIR, associado com a barreira linguística entre estes e os orientadores estrangeiros. Porém os artistas brasileiras contam de problemas com os técnicos estrangeiros. Fernanda Abreu, vocalista da Blitz, desabafa ao relatar sobre a falha em seu microfone que "aquilo foi a gota d'água de uma série de coisas (entre elas, a 10 obrigação dos brasileiros andarem de crachá) que estavam acontecendo desde o camarim" e que ao reclamar com o técnico americano, ouviu um "fora daqui" . (BIVAR, 2004, P.260) Outros artistas relatam outros casos de descaso com os artistas nacionais, como Frejat e Lulu Santos, respectivamente: O Primeiro Rock in Rio foi muito injusto nesse sentido. Barão era uma banda com estrutura muito simples: baixo, teclado, guitarra, bateria e voz. Senti que os produtores do festival não tinham certeza de que alguém no Brasil pudesse fazer um show coerente. Então delegaram [a performance técnica e artística] completamente a equipes estrangeiras...Para eles os clientes eram AC/DC, Queen, Ozzy Osbourne, quem fosse internacional. O tratamento VIP era dado a eles. Isso foi uma coisa que doeu, porque o festival foi feito no nosso país e fomos destratados. Deu certo Trauma. (PICCOLI, 2008, P.90-91) O que éramos nós? Nada. Houve um momento em que eu estava passando por um corredor para ir ao meu camarim e um segurança me encostou na parede. Nina Hagen ia passar. O "engraçado" era que o segurança era brasileiro. Mas eu já era o Lulu Santos.(PICCOLI, 2008, P.90) Isso vai causar um choque nas novas bandas de rock, ao entrar em contato com esse novo tipo de show12, que exigia um novo tipo de postura e um equipamento mais profissional, esses artistas buscaram se profissionalizar. Até aquele momento, tocar rock no Brasil era uma prática amadora, mesmo com o sucesso de alguns grupos, os jovens tocavam sem o intuito de viver da música. Roger, cantor da banda Ultraje a Rigor, explica que "[a fama] era a última coisa em que pensávamos. Era uma possibilidade tão distante que nem nos preocupávamos com ela." (ANAZ, 2006, P.9). A partir do Rock in Rio a visão já muda e esses jovens artistas buscam a profissionalização, como lembra Lulu Santos " Se hoje tenho uma apresentação profissional...aprendi ali". (PICCOLI, 2008, P.90) Outro ponto que devemos nos atentar foi que, dessa nova geração rockeira do Brasil, somente foram chamados grupos cariocas, mesmo já havendo bandas de sucesso em outros estados como Titãs e Ultraje a Rigor. Tal qual não podemos considerar a juventude como um grupo uno, pois há várias juventudes convivendo entre si (BOURDIEU, 1983, P.113), não podemos pensar o BRock como algo unificado, onde todos os grupos faziam o mesmo tipo de 12 A maioria estava acostumada a fazer shows em boates e algumas casas de shows. 11 música ou tinham a mesma relação com a sociedade. Ao mesmo tempo, não podemos ver esses grupos como completamente separados, afinal, havia uma troca de influências entre eles e diversas questões eram compartilhadas. Ao "agregar" diversas identidades individuais, o BRock promove uma disputa interna para que haja algumas identidades representantes 13, ao mesmo tempo que as une para alcançar um espaço dentro do cenário cultural brasileiro. A partir daí podemos considerar o Rock in Rio um evento voltado ao BRock carioca14, ou seja, um local que se restringiu a executar apenas uma parte das identidades que compõe a cultura jovem do período, mas que também proporcionou visibilidade a todas as outras identidades, ao provar que no Brasil havia um grande público consumidor de rock. Mesmo sendo "esquecidos" pelos organizadores do festival, alguns grupos que não se apresentaram foram lembrados pela banda Os Paralamas do Sucesso em suas apresentações, ao tocar a música "Inútil" do grupo Ultraje a Rigor, e, especialmente, no dia 13 de janeiro, ao declarar: A gente, se pensasse três anos atrás num evento como o Rock in Rio, a gente sabe que não seria possível, que isso aqui está acontecendo graças aos novos grupos brasileiros, que fizeram com que essa música se tornasse conhecida. Então, essa música que a gente vai tocar agora a gente dedica para Lobão e os Ronaldos, Ultraje a Rigo, Magazine, Titãs e a Rádio Fluminense FM. (FRANÇA, 2003, P.73) Essa exclusão do Rock in Rio não agradou alguns artistas paulistas. Rédson, do grupo Cólera, juntou algumas bandas punks da cidade para o evento São Paulo Também Tem Rock, no teatro Lira Paulista. O rock passa a apresentar uma noção de comunidade local, cuja ligação é baseada nas experiências vividas (nesse caso a segregação regional). Quando analisamos o rock temos que ter em mente de que há entre os estudiosos e o público (principalmente este) umas discussões sobre o que é o "falso" e o "verdadeiro" rock, baseado num discurso para legitimar sua identidade. Ou seja, há um discurso de autenticidade onde um grupo tenta reafirmar sua identidade sobre o outro a partir do seu subgênero de rock 13 O caso mais explícito seria o de alguns grupos Punks paulistas que chegam a se enfrentar fisicamente para disputar quem deve ou não ser considerado Punk. 14 Mesmo nesse caso poderíamos discutir qual BRock carioca apareceu no Rock in Rio. 12 preferido. No Rock in Rio essa discussão se dá de maneira explícita entre público e alguns artistas. Como dito acima, não havia no Brasil uma tradição de grandes festivais de rock, devido a isso, as programações diárias uniam artistas de estilos diferenciados. O principal público-alvo dos dias 15 e 19 de janeiro eram os chamados metaleiros, fãs do Heavy Metal, um grupo que possuí membros mais "intransigentes em relação ao que não fosse do seu gosto" (BIVAR, 2004, P.261), ao mesmo tempo nesse dia tocaram artistas como Eduardo Dusek e Kid Abelha, cujo rock inspirado na New Wave, se distanciavam dessa plateia. O resultado foi uma repulsa por parte do público, que chegou a agredir alguns artistas, sendo através de vaias ou fisicamente. No dia 15, Eduardo Dusek foi o segundo artista a se apresentar, ao entrar a plateia já o insultava e arremessava areia e pedra no palco. Devido a essa recepção agressiva o cantor começou a discutir com o público e encerrou o show sem cantar quatro de suas músicas programadas. Em suas palavras: A apresentação foi traumática, porque estávamos no mesmo dia que o Scorpions e a plateia estava indócil. Era uma gente, digamos assim, malcriada. Não deixaram nenhum artista brasileiro cantar.Todo mundo tomava lata...Aí eu baixei a porrada no público.Falei que eles não tinham cultura mesmo, que eram uns idiotas e que fossem pra casa..." (BIVAR, 2004, P.261) Essa falta de organização também prejudicou a banda Kid Abelha. Ao abrir esse mesmo dia, e ser prejudicada pelos problemas de iluminação e som, ainda foi agredida por diversos objetos lançados pelo público. Leoni admite que a escalação do grupo para tocar nesse dia foi infeliz, "... o pessoal não tinha noção do que eram os movimentos e Kid Abelha para Heavy Metal é o fim da picada"(BIVAR, 2004, P.262). A resposta das bandas veio no dia seguinte, já com outro público, através de um discurso do Herbet Vianna, guitarrista e vocalista da banda Os Paralamas do Sucesso. O grupo, um dos mais elogiados durante o festival ao se despedirem deixaram o seu recado: eu fiquei chateado com que parte da plateia fez com o Eduardo Dusek e o Kid Abelha, de jogar pedra. Eu acho o seguinte: que cada um tem o direito de ir ver o grupo que gosta, vem na hora que vai tocar o seu grupo, cara.Em 13 vez de vir jogar pedra, fica em casa aprendendo a tocar guitarra. Quem sabe no próximo você está aqui no palco. (FRANÇA, 2003, P.74) Essa disputa entre estilos de rock se apresenta como uma forma de reforçar uma identidade de grupo pelos jovens. Busca-se impedir que um estilo apareça, ou que sua importância seja diminuída, para que outro possa se sobrepor. Nesses dias as bandas internacionais, ligadas ao Heavy Metal, não tiveram problemas em suas apresentações, além de terem sido bem recebidas e ovacionadas pela mesma plateia que agrediu os grupos brasileiros. Para Hall, o mundo globalizado cria identidades comunitárias em detrimento das nacionais, porém estas ainda permanecem fortes, o que leva a criação de novos valores e novas formas de interação social (HALL, 2006, P.72). Na cultura jovem, os locais de diversão - nesse caso específico o Rock in Rio - se tornam locais de disputas, por meio de resistência e negociações. O festival foi pensado como um lugar de interação entre as várias culturas jovens, entretanto, ao mesmo tempo abriu espaço para disputas indenitárias, intensificado pela grande exposição dada pela mídia ao evento. O pós-Rock in Rio e a explosão do BRock O sucesso do Rock in Rio mostrou que a cultura jovem no Brasil era um negócio rentável. O evento foi reflexo das práticas culturais que estavam acontecendo na década de 1980, mas que possuíam um tímido espaço na grande mídia. A partir do festival, gravadoras e outras empresas de comunicação apostam suas fichas em ações voltadas à juventude. A TV Globo começou a produzir programas com temáticas voltadas para a juventude como "Armação Ilimitada", série que usava elementos da cultura pop para contar as desventuras de dois jovens amigos. Programas ligados às bandas, onde mostravam seus shows ou clipes, também começaram a aparecer em diversas emissoras. As bandas de BRock foram a grande aposta das gravadoras, além de possuírem um baixo custo de produção dos seus discos - afinal não exigiam grandes estúdios, salários altos e os músicos utilizados costumavam ser somente os integrantes das bandas - mostravam uma resposta rápida nas vendas. Esse apelo comercial foi essência para as gravadoras, que estavam 14 passando por uma crise financeira no período e se recuperaram graças à essas bandas (MIDANI, 2008). O número de LPs e compactos das novas bandas cresceu de maneira significativa, abrindo espaços para grupos de grande sucesso e para bandas com apenas um . Logo após o Rock in Rio, ainda no ano de 1985, foi a maior momento de venda de LPs da década, em parte ajudada por uma economia que voltava a se estabilizar com o Plano Cruzado, parte por causa dos jovens ávidos a consumir produtos. As bandas que tocaram no festival aproveitaram para comprar instrumentos dos grupos internacionais e buscaram uma profissionalização técnica. Graças a essa profissionalização, algumas gravadoras começaram a investir em grandes shows para essas bandas, trocando a forma de apresentação de pequenas para grandes plateias. O maior exemplo foi a banda RPM e seu histórico show "Rádio Pirata", nele havia sido planejado esquemas de luz, som e postura de palco para aproveitar de melhor maneira possível a imagem da banda. A imagem externa do Brasil, em relação à shows musicais, é melhorada. Devido ao sucesso do Rock in Rio, onde não houve problemas de pagamento e a boa relação entre público e as bandas internacionais, mais artistas se apresentaram no país. Além disso, alguns grupos brasileiros tentaram uma carreira musical internacional, tocando e gravando discos em outros países da América Latina, EUA e Europa. A partir do Rock in Rio as bandas jovens começaram a se profissionalizar, além de conseguirem um espaço maior na mídia. Ao mesmo tempo ele foi uma vitrine onde as identidades jovens conseguiram se expor, em alguns shows com conflito. Por causa dessas mudanças, o Rock in Rio torna-se essencial para entender não só a explosão da cultura jovem no Brasil, mas também a consolidação do rock como música dentro do país. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: AFONSO, Luís Fellipe Fernandes. "Nós vamos invadir sua praia": Representações da juventude brasileira através do Rock. Rio de Janeiro, Editora Multifoco, 2014. ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta: o rock e o Brasil dos anos 80. São Paulo, DBA Dórea Books and Art, 2002. 15 ANAZ, Silvio. Pop Brasileiro dos Anos 80. Mackenzie, 1° edição, 2006. BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. BRYAN, Guilherme. Quem tem um sonho não dança: cultura jovem brasileira nos anos 80. RJ, Record, 2004. CARDOSO, Ruth e SAMPAIO, Helena. Bibliografia sobre juventude. São Paulo. Edusp, 1995. ENCARNAÇÃO, Paulo Gustavo da. ROCK IN RIO – UM FESTIVAL (IM)PERTINENTE À MÚSICA BRASILEIRA E À REDEMOCRATIZAÇÃO NACIONAL. Revista Patrimônio e História [online], Vol.7 n.1, UNESP, São Paulo, 2011. FRANÇA, Jamari. Os Paralamas do Sucesso: vamo batê lata. São Paulo: 34, 2003. FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: Uma História Social. 4°ed., RJ, Record, 2006. FRITH, Simon. La Sociologia del Rock . Madrid, ediciones Jucar, 1980. MATTERN, Mark. Acting in Concert: Music, Community and Political Action. New Jersey, Rutgers University Press. 1998. MEDOVOI, Leerom. Rebels: Youth and the Cold War origins of identity. Duke University Press. 2005. MIDANI, André. Música, ídolos e poder: do vinil ao download. RJ, Nova Fronteira, 2008. MORAES, Marcelo Leite de. 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