EDITORA AVE

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EDITORA
AVE-MARIA
Bem-aventurado o homem a quem Deus corrige!
Não desprezes a lição do Todo-poderoso,
pois ele fere e cuida; se golpeia, sua mão cura.
Seis vezes te salvará da angústia,
e, na sétima, o mal não te atingirá.
No tempo de fome, te preservará da morte,
e, no combate, do gume da espada;
estarás a coberto do açoite da língua,
não terás medo quando vires a ruína;
rirás das calamidades e da fome,
não temerás as feras selvagens.
Farás um pacto com as pedras do chão,
e os animais dos campos estarão em paz contigo.
Dentro de tua tenda conhecerás a paz,
visitarás tuas terras, onde nada faltará;
verás tua posteridade multiplicar-se,
e teus descendentes crescerem como
a erva dos campos.
Entrarás maduro no sepulcro,
como um feixe de trigo que se recolhe
a seu tempo.
Eis o que observamos; é assim;
eis o que aprendemos; tira proveito disso.
Jó 5,17-27
Para o amigo Juan Andrés,
que nas muitas conversas
sobre esse tema me mostrou
que a felicidade não é
um momento na vida,
mas uma vida
consagrada a Deus.
A
nos atrás fui trabalhar durante a Semana
Santa em uma cidade bem pequena no interior. Lugar em que todo mundo se conhece.
Naqueles dias o comentário na cidade era
sobre um andarilho desconhecido que estava
dormindo na praça em frente à igreja.
As pessoas da localidade estavam assustadas, não sabiam de quem se tratava. Alguns tentaram se aproximar, mas o homem não queria
muita conversa; mesmo assim, eles perceberam
que não era alguém perigoso.
Algumas senhoras, enquanto se encaminhavam para as celebrações, levavam bolachas e
pães para o homem – era uma atitude nobre.
Na tarde de quinta-feira, enquanto eu atendia confissões, o homem entrou na igreja, esperou todos se confessarem e perguntou:
– Padre, posso falar com o senhor?
– Mas é claro, sente-se! – respondi.
Foi um diálogo de mais ou menos uma hora
e meia. E inesquecível.
Enquanto se sentava, ele foi logo avisando que
não estava ali para confessar-se, e falou que fazia
muito tempo que não falava com ninguém sobre sua
vida, e era justamente isso que gostaria de fazer.
Contou-me que fora casado, tivera três filhos, havia estudado, estava empregado, mas
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sentia um vazio muito grande, nada era capaz de
fazê-lo de fato feliz.
Num belo dia, tomou forças e decidiu partir
em busca de uma resposta que pudesse mudar
sua vida. E desde esse momento andava de um
lugar para outro, sem residência fixa.
Nos primeiros meses conseguiu hospedarse em algumas pensões, mas com o passar do
tempo o dinheiro acabou e a solução foi morar
na rua.
Perguntei, então, quanto tempo havia que
ele peregrinava, disse-me que mais de dez anos.
Falou-me que durante esse tempo ele passara
por vários estados do Brasil, mas sempre buscava as cidades menores. Disse que esporadicamente recebia ajuda de desconhecidos, mas
nunca quis estabelecer contato profundo com
ninguém.
– E sua família? – indaguei.
Respondeu que nunca mais tinha tido contato.
Percebi nos olhos daquele homem uma sinceridade profunda. Eu sabia que ele não mentiria
para mim, por isso quis que a conversa fosse além.
Perguntei:
– E nesse tempo, longe de tudo e de todos,
você encontrou o sentido, é feliz?
Com olhar de criança, falou:
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– Meu erro foi ter saído de casa sem uma
bússola interna. Confiei demais em mim. Talvez
eu não precisasse ter me aventurado tanto, talvez a resposta estivesse bem perto. A sonhada
felicidade ainda não me chegou.
– E Deus? – questionei.
– Sei pouco dele – respondeu.
Depois de um silêncio, continuou:
– Faz dias que uma frase vem martelando na
minha cabeça, por isso entrei aqui, creio que é
uma passagem da Bíblia, aquela que fala assim:
eu sou o caminho, a verdade e a vida... acredito
que talvez eu não saiba o que seja a verdade, e
nem tampouco saiba viver feliz, e nunca soube,
porque ainda me falta saber o caminho. E sem
caminho, padre, sou testemunha de que a gente
não chega a lugar algum.
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Bem-aventurado
A expressão “bem-aventurado” designa aquele que é muito feliz ou que conquistou a felicidade
completa.
Na Bíblia essa expressão quase nunca está
relacionada a um desejo ou a uma saudação,
como se alguém quisesse desejar felicidade ao
outro; trata-se mais de uma constatação, ou seja,
é como se eu encontrasse uma pessoa e depois
de uma conversa com ela eu constatasse: nossa,
como ela é feliz.
Encontramos alguns exemplos na Sagrada
Escritura em que a bem-aventurança é utilizada: Feliz o homem que não procede conforme o
conselho dos ímpios, não trilha o caminho dos
pecadores, nem se assenta entre os escarnecedores. Feliz aquele que se compraz no serviço do
Senhor e medita sua lei dia e noite (Salmo 1,1-2).
De uma forma poética, o salmista enfatiza
que a felicidade pode ser facilmente percebida
na vida de todas as pessoas que escolhem trilhar os caminhos do Senhor e contemplam sua
própria história diariamente como parte do pro-
15
8 caminhos para a felicidade
jeto de Deus. A vida desses bem-aventurados é
marcada pela serenidade e pela paz interior, são
como a árvore plantada na margem das águas
correntes: dá fruto na época própria, sua folhagem não murchará jamais. Tudo o que empreende, prospera (Salmo 1,3).
Feliz aquele que encontrou um amigo verdadeiro, e que fala da justiça a um ouvido atento.
Como é grande aquele que encontrou sabedoria
e ciência! Mas nada é tão grande como aquele
que teme o Senhor: o temor a Deus coloca-o acima de tudo. Feliz o homem que recebeu o dom
do temor a Deus (Eclesiástico 25,12-15).
Nesse relato do livro do Eclesiástico, a bemaventurança é marcada pelos dons que a pessoa
cultiva ou adquiriu, por exemplo a riqueza de
uma verdadeira amizade, que bem sabemos ser
indispensável para a felicidade. O autor ainda
menciona como fundamentais os dons da sabedoria e da ciência, e num grau superior o temor
a Deus. Essa passagem bíblica pode ser relacionada com os dons do Espírito Santo, que marcam
o amadurecimento na fé do cristão. Cultivar os
dons do Espírito abre as portas do interior para a
felicidade. São eles: sabedoria, inteligência, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor a Deus.
Disse Jesus: Bem-aventurado aquele para
quem eu não for ocasião de queda! (Mateus 11,6).
Nesse versículo do Evangelho de Mateus, em
que responde aos discípulos de João Batista sobre
16
Bem-aventurado
sua missão de Messias, Jesus descreve que são felizes todos os que se apoiam na Pedra Fundamental que é o Cristo e, depois de professarem sua fé
não se perdem em meio a outras doutrinas.
Na parábola do semeador, Jesus falou: Mas,
quanto a vós, bem-aventurados os vossos olhos,
porque veem! Ditosos os vossos ouvidos, porque
ouvem (Mateus 13,16).
Nessa parábola bastante conhecida, Jesus
chama de felizes todos aqueles que nasceram
depois da promessa realizada, sua encarnação.
Muitos desejaram ver e ouvir; porém, a nós
nos foi dado o privilégio de conhecer o mistério
salvífico anunciado pelo Senhor. Fazemos parte da nova aliança, estamos incorporados no
corpo místico de Cristo, conhecemos sua palavra e podemos contemplar seus sinais através
dos tempos.
Simão Pedro respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho
de Deus vivo”. Jesus, então, lhe disse: “Feliz és,
Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne
nem o sangue que te revelou isto, mas meu Pai
que está nos céus” (Mateus 16,16-17).
Diante da pergunta de Jesus “Quem vocês
dizem que eu sou?”, Pedro, em nome da comunidade, responde afirmando que Jesus é o próprio
Deus. A reposta de Pedro faz Jesus reconhecer
que a fé nele é garantia de felicidade: Você, Pedro, é feliz, porque aceitou a revelação do mistério da fé.
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8 caminhos para a felicidade
Bem-aventurada és tu que creste, pois se hão
de cumprir as coisas que da parte do Senhor te
foram ditas! (Lucas 1,45).
No final do relato da visita de Maria à sua
prima Isabel, antes de Maria cantar o Magnificat, Isabel constata a felicidade da mãe de Deus:
essa bem-aventurança é o selo da espiritualidade mariana. Aquele que acredita e deposita sua
confiança no Pai irrestritamente perceberá que
as promessas de Deus se farão verdade. A felicidade de Maria tem início quando ela, diante da
proposta divina, diz: Eis aqui a serva do Senhor.
Faça-se em mim segundo a tua palavra.
Enquanto ele [Jesus] assim falava, uma mulher
levantou a voz do meio do povo e lhe disse: “Bemaventurado o ventre que te trouxe, e os peitos que
te amamentaram!”. Mas Jesus replicou: “Antes
bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra
de Deus e a observam” (Lucas 11,27-28).
Neste caso, uma mulher interrompe Jesus
para proclamar bem-aventurada Maria, por ter
sido a mãe do Salvador; porém, ele salienta que
Maria é muito mais feliz por ouvir e praticar a
Palavra de Deus. Jesus destaca em Maria o papel
de modelo no discipulado. Ela é feliz por estar
atenta à voz do Pai.
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O Sermão
da Montanha
Na Sagrada Escritura há dois relatos do Sermão da Montanha, um em Mateus e outro em
Lucas1. A versão de Lucas é considerada uma
condensação da narração de Mateus, a mais conhecida: nela Jesus apresenta oito2 bem-aventuranças, que serão a base fundamental deste livro
e que chamaremos de caminhos para a felicidade.
No alto da montanha, Jesus faz um longo
discurso, ou sermão, que se estende pelos capítulos 5, 6 e 7 de Mateus. Jesus inicia o sermão
descrevendo a felicidade e a vocação dos chamados a ser discípulos (5,1-16); numa segunda parte, considerada a central do discurso, Jesus conclama os discípulos a viver a verdadeira justiça;
e na terceira e última parte somos convidados a
1. Existem diferenças entre os relatos de Mateus e Lucas;
porém, meu objetivo neste livro não é traçar um paralelo
exegético entre os dois textos, mas fazer uma leitura espiritual do relato de Mateus.
2. Alguns estudiosos defendem que as bem-aventuranças são
nove e não oito, devido aos versículos 11 e 12 do capítulo
quinto de Mateus. Porém, para a maioria dos biblistas o
número oito é mais plausível, pois, nos versículos 11 e 12,
nós temos uma promessa para o futuro. Neste livro utilizarei o número oito por ser o mais aceito.
19
8 caminhos para a felicidade
viver um compromisso de fidelidade com o Reino
por meio da obediência (7,13-29). Darei destaque
somente às bem-aventuranças, que estão nos
primeiros versículos do capítulo 5.
O contexto
As bem-aventuranças são narradas por Mateus segundo uma lógica ascendente.
A intenção do autor é mostrar a teologia de
Jesus logo no início de sua vida pública. Antes
de apresentar o Sermão da Montanha, o autor
descreve o Batismo de Jesus e em seguida a tentação no deserto. No Batismo, o Filho de Deus é
revestido com a força do Espírito, e é justamente
essa força, esse Espírito, que faz que Jesus vença
a tentação.
Após esse episódio, ele inicia sua pregação;
porém, antes mesmo de se tornar conhecido como
um grande profeta, ele escolhe seus discípulos.
Diante do desconhecido, esses homens e mulheres chamados por Jesus dão um voto de confiança, pois eles “não têm certeza”.
Ainda era cedo para essas pessoas abandonarem tudo e seguirem Jesus; porém, foi justamente isso o que aconteceu, não tanto pelo que
eles viram e ouviram, mas sobretudo graças ao
que sentiram. Deus assim suscita no coração dos
discípulos o desejo da entrega total.
20
O Sermão da Montanha
Confirma-se assim a frase de Jesus: Não fostes vós que me escolhestes, mas eu vos escolhi e vos
constituí para que vades e produzais fruto, e o vosso
fruto permaneça (João 15,16). Graças à experiência
de Deus que esses discípulos vão adquirindo no contato com Jesus, a fé vai se fortalecendo, enraizandose nas entranhas de cada um deles.
A grande catequese que os discípulos receberam é iniciada com um longo discurso de Jesus,
o Sermão da Montanha. Assim percebemos que
é imprescindível a todo aquele que deseja seguir
Jesus ouvir suas orientações.
Como o próprio nome diz, o sermão é proferido de uma montanha. Na Sagrada Escritura,
a montanha tem uma conotação simbólica do
lugar de encontro com Deus. É onde Deus fala,
revela-se, mostra-se.
O Sermão da Montanha está intimamente
relacionado com uma passagem fundamental do
Antigo Testamento, a subida de Moisés ao monte
Sinai. Moisés recebe de Deus as tábuas da Lei no
alto do monte, e isso logo depois de o povo experimentar a liberdade. Agora, também do alto de
um monte, Jesus indica o caminho de liberdade
plena aos seus discípulos.
A liberdade é entendida aqui como o rompimento de todas as correntes internas e externas.
Jesus quer deixar claro que se nós, discípulos
dele, de fato seguirmos seus ensinamentos sere-
21
8 caminhos para a felicidade
mos homens e mulheres verdadeiramente livres:
É para que sejamos homens livres que Cristo nos
libertou. Ficai, portanto, firmes e não vos submetais outra vez ao jugo da escravidão (Gálatas 5,1).
No Sermão da Montanha, Jesus não reescreve as leis ou os mandamentos, mas os enche
de sentido.
No Sinai, o povo de Deus se reúne em torno
do monte para ouvir Deus através de Moisés. No
episódio do Novo Testamento, novamente o povo
se reúne em torno da montanha para ouvir Jesus. Agora é o próprio Deus quem fala a eles.
Antes de subir na montanha, o evangelista
relata que Jesus viu as multidões.
Ver e não ser indiferente é a manifestação da
misericórdia divina que vela por nós.
Em outras passagens da Sagrada Escritura,
percebemos que o primeiro passo para alguém
ajudar o próximo é deixar-se comover por aquilo
que vê.
Um bom exemplo dessa realidade é a parábola do Bom Samaritano… Diante do homem caído
por terra, ferido e quase morto, um sacerdote,
ao vê-lo, passa adiante; um levita também vê o
sofrimento do homem, mas segue seu caminho…
tanto o sacerdote como o levita podem ter pensado assim: “Pobre senhor, vou fazer uma oração
por ele para que nada de mau lhe aconteça”; ou
podem ter agido de forma pior, julgando interior-
22
O Sermão da Montanha
mente: “Deve ser um bandido, alguém que merece estar passando por essa situação”.
A atitude do samaritano é diferente, é a mesma ação que Deus tem por nós: não vira os olhos,
não finge que não está vendo nada, não julga…
mas é movido pela compaixão. Diz o texto que
o samaritano aproximou-se, e o relato segue da
forma como conhecemos.
Quando Jesus sobe na montanha para proferir as bem-aventuranças, o fato de ele ter visto
as multidões manifesta que ele, como Bom Pastor que conhece seu rebanho (cf. João 10,1-16),
sabia de tudo o que afligia aquelas pessoas, conhecia suas dores, seus desejos mais íntimos, os
segredos a ninguém revelados.
O Pastor sabe o nome de cada ovelha, suas
histórias, e expõe a própria vida para que nenhuma delas se perca.
Assim, podemos ter certeza de que as bemaventuranças pronunciadas pela boca de Jesus
são para o conforto espiritual da multidão que
está diante dele; porém, também são palavras dirigidas aos rebanhos de qualquer tempo, pois em
todas as diferentes épocas os problemas que assolam a vida da humanidade são sempre os mesmos.
Ao ler as bem-aventuranças é bom que eu
tenha a certeza de que Jesus me viu: ele sabe o
que se passa comigo, ele me conhece, ele não é e
nunca será indiferente e, o mais importante, ele
23
8 caminhos para a felicidade
jamais dirá que desistiu de mim, que meu caso é
perdido. Escrevi este parágrafo do livro na primeira pessoa para que possamos sentir pessoalmente, individualmente o peso dessas palavras.
Mateus inicia o relato dizendo que Jesus,
após subir a montanha, sentou-se: esse gesto
manifesta a maestria, a sabedoria. Os discípulos se aproximam para ouvir Jesus. É necessário
aproximar-se dele para ouvi-lo, entendê-lo.
Nesse caso, o discípulo de Jesus não é formado
pelo ensino a distância. É impossível sermos seguidores dele se não nos sentamos aos seus pés e ouvimos seus ensinamentos como sentenças de vida.
Mateus vai além, e escreve algo que parece
insignificante: diz que Jesus abriu a boca para
ensinar. O próprio Jesus nos revela que a boca
fala daquilo que o coração está cheio (cf. Mateus
15,18). Ou seja, o ensinamento de Jesus – suas
verdades – era o que movia seu interior.
O próprio Espírito orientava a pregação do
Mestre: O espírito do Senhor está sobre mim,
porque me ungiu; e enviou-me para anunciar a
boa-nova (Lucas 4,18).
A introdução que Mateus faz ao discurso de
Jesus nos questiona, ou deveria nos questionar:
Em quais momentos abrimos a boca, desejamos falar?
Quais são as palavras predominantes em
nossas conversas?
24
O Sermão da Montanha
Uma boa análise dos últimos diálogos que
tivemos na semana poderá nos assustar. Se falamos daquilo que move nosso ser, então do
que falamos?
Poderemos nos surpreender, percebendo que
não abrimos nossa boca para instruir, apaziguar,
confortar, consolar, fortalecer o outro; porém,
muitas vezes, foi por meio de nossas palavras
que causamos divisões, julgamos, condenamos e
“envenenamos” as pessoas que nos cercam.
Quando Jesus abre a boca, ele repete o gesto
feito pelo Pai, na criação do mundo, ao dar vida,
alento, alma ao barro, ao ser humano. Tanto na
Criação como no envio dos apóstolos, em que o
Cristo sopra sobre eles para que sejam impregnados do Espírito Santo, o Ser de Deus é propagado
pela boca.
Os que ouvem as palavras do Mestre, os que
recebem seu hálito de vida deixam para trás o
homem velho... Eis que eu renovo todas as coisas
(Apocalipse 21,5).
O apóstolo João, o discípulo amado, demonstra essa sensibilidade de estar atento aos
ensinamentos de Jesus, e depois manifesta seu
desejo – mais que um desejo, a compreensão de
sua missão faz que ele escreva:
O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o
que temos visto com os nossos olhos, o que temos
contemplado e as nossas mãos têm apalpado no
25
8 caminhos para a felicidade
tocante ao Verbo da vida – porque a vida se manifestou, e nós a temos visto; damos testemunho
e vos anunciamos a vida eterna, que estava no
Pai e que se nos manifestou –, o que vimos e ouvimos nós vos anunciamos, para que também vós
tenhais comunhão conosco. [...] para que a vossa
alegria seja completa (1 João 1,1-3.4).
Quando lemos a Sagrada Escritura, de modo
especial as bem-aventuranças, temos que desejar, ardentemente, sentarmo-nos aos pés do
Mestre para ouvir suas palavras, palavras que
no entanto não nos servirão somente para enxugar uma lágrima do sofrimento que porventura estejamos vivendo: a Palavra de Jesus deve
ser assimilada, deve penetrar em nossos poros,
deve limpar nosso interior e nos transformar em
criaturas novas, e deve, sobretudo, fazer que tenhamos vontade de gritar para o mundo: “Somos
testemunhas da graça de Deus!”.
O profeta Isaías atesta que a Palavra de Deus
é eficaz, cumpre sempre a sua missão:
Tal como a chuva e a neve caem do céu e para
lá não volvem sem ter regado a terra, sem a ter
fecundado, e feito germinar as plantas, sem dar
o grão a semear e o pão a comer, assim acontece
à palavra que minha boca profere: não volta sem
ter produzido seu efeito, sem ter executado minha
vontade e cumprido sua missão (Isaías 55,10-11).
26
A felicidade
para Jesus
Tentemos responder de forma rápida: “Que
significa felicidade?”.
Independentemente de sexo, religião, raça,
condição social, todos buscam a felicidade. Mas
que é, de fato, a felicidade?
A etimologia dessa palavra me surpreendeu.
Confesso que a origem desse termo me abriu horizontes para entender melhor o que é ser feliz.
“Feliz” provém do latim felix (genitivo felicis),
palavra que originalmente queria dizer “fértil”,
“frutuoso” (“que dá frutos”), “fecundo”.
Mais tarde, por extensão metafórica de sentido, já que o que é fértil é também propício, favorável, felix tornou-se sinônimo de “afortunado”, “alegre”, “satisfeito”.
Felicidade é, portanto, a entrega que se faz
de si na busca de dar frutos.
Podemos dizer que ser feliz não é somente
chegar à colheita, mas fazer todo o trabalho que
antecede ao celeiro cheio: a preparação da terra,
o plantio, a espera, o cuidado durante o crescimento e, no final, a colheita.
27
8 caminhos para a felicidade
A felicidade tem início num propósito: plantar!
Enquanto se trabalha para que o fruto seja
colhido, a felicidade acompanha o processo. Esse
propósito deve ser verdadeiro, sincero e essencial em nossa vida. É o sentido que damos àquilo
que fazemos.
Pra Jesus, a felicidade pode ser entendida
diante dessa concepção. Na mensagem evangélica, Jesus nunca associa o ser feliz ao trabalho
pronto, realizado, também não a uma vida desprovida de preocupação, sofrimento, perseguição.
Se ser feliz é dar frutos, vale lembrar a bela
passagem em que Jesus diz: se o grão de trigo,
caído na terra, não morrer, fica só; se morrer,
produz muito fruto (João 12,24).
Entendemos nesse versículo bíblico que
para dar fruto é necessário expor a vida, ter uma
causa primordial para a qual se vive…
Felicidade é o fundamento, o suporte que
rege nossas ações. Se não há “morte”, entrega total de si a um propósito, então ficamos sós, com
nossos egoísmos, num mundo ilusório; porém,
quando sabemos para onde queremos ir e nos colocamos em marcha, o fruto – a felicidade – nos
seguirá desde o primeiro passo.
No Evangelho de João, Jesus nos revela o
caminho da tão aspirada felicidade:
Em verdade, em verdade vos digo: o servo não
é maior do que o seu Senhor, nem o enviado é
28
A felicidade para Jesus
maior do que aquele que o enviou. Se compreenderdes essas coisas, sereis felizes, sob condição de as praticardes (João 13,16-17).
Assim, vemos que para Jesus a felicidade
não está relacionada a um momento, não é uma
circunstância, mas uma atitude de reconhecimento do poderio de Deus sobre nós.
Deveríamos ter consciência de que nossa
vida não nos pertence – temos a vida, estamos
vivos… mas o sopro de vida é de Deus.
Quando nos colocamos ou tentamos nos
sentar no trono que pertence ao Altíssimo, então
existe sempre uma insatisfação existencial, pois,
não está ao nosso alcance mudar a maioria das
coisas que acontecem.
O que podemos fazer é dar sentido a tudo o
que nos acontece. Nós não somos maiores que o
Criador. Se crermos nisso e vivermos essa verdade, então perceberemos, por trás de cada acontecimento, os olhos de Deus que velam por nós.
É difícil, eu bem sei, nos dias de hoje falar de vontade de Deus. Temos nossas próprias
vontades, somos livres para decidir, é verdade;
porém, existe uma razão maior para estarmos
vivos, e isso é inegável. Quando conseguimos
contemplar nossa existência dentro desse universo maior, então percebemos que existe um
porquê, que as coisas simplesmente não acontecem por acaso.
29
8 caminhos para a felicidade
Mais que à compreensão desse ensinamento de Jesus, a felicidade está sujeita a vivermos
essa verdade como regra de vida: sereis felizes,
sob condição de as praticardes…
Esse ensinamento de Jesus está conectado
à parábola da videira e os ramos… Nós não somos o agricultor, não somos a videira, somos os
ramos… Esse ensinamento poderá nos libertar:
Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor. Todo ramo que não der fruto em mim, ele
o cortará; e podará todo o que der fruto, para que
produza mais fruto. Vós já estais puros pela palavra que vos tenho anunciado. Permanecei em mim
e eu permanecerei em vós. O ramo não pode dar
fruto por si mesmo, se não permanecer na videira.
Assim também vós: não podeis tampouco dar
fruto, se não permanecerdes em mim. Eu sou a
videira; vós, os ramos.
Quem permanecer em mim e eu nele, esse dá
muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer.
Se alguém não permanecer em mim será lançado
fora, como o ramo. Ele secará e hão de ajuntá-lo
e lançá-lo ao fogo, e será queimado. Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis tudo o que quiserdes e
vos será feito. Nisso é glorificado meu Pai, para
que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos (João 15,1-8).
É somente permanecendo em Deus que daremos frutos, seremos felizes… mas para isso é
necessário sermos podados uma vez ou outra.
30
A felicidade para Jesus
Muitas das podas que recebemos na vida nos
revoltam, não as entendemos no momento, mas
uma leitura mais abrangente de nossa história
nos mostrará que existe por trás de cada acontecimento a pedagogia de Deus.
Para nós, seres humanos “modernos”, é difícil entender e conceber as bem-aventuranças.
Como alguém pode ser feliz ou bem-aventurado passando fome, sofrendo, sendo caluniado…?
Nesse caso a felicidade não está no bemestar, na calmaria, mas na razão e no entendimento de estarmos passando por essa ou aquela
situação.
Se estamos mergulhados em um sofrimento
e a cruz é simplesmente cruz, somos crucificados gritando e esperneando.
Porém, quando conseguimos ver além daquele momento, daquela circunstância, pois preenchemos de sentido com um propósito maior a
nossa existência, então o sofrer adquire sentido.
Mesmo sofrendo, a razão maior que está movendo a nossa existência nos fará feliz, pois não nos
entregamos, não desistimos, não abaixamos nossa cabeça, mas “lutamos” com dignidade.
A luta aqui não é tanto contra os tormentos,
pois alguns são inevitáveis – como uma doença,
por exemplo –, mas se trata da luta interna que
travamos conosco mesmo em face do que acreditamos: lutar é nunca perder a esperança e ter diante
31
8 caminhos para a felicidade
dos olhos a fé sincera que nos move. É a adesão, é o
grande amém da liturgia… Faça-se, cumpra-se sua
vontade, Senhor… eu creio.
Jesus experimentou essa entrega no momento mais crucial de sua vida. O texto bíblico
chama esse episódio de suprema angústia:
Conforme o seu costume, Jesus saiu dali e dirigiu-se para o monte das Oliveiras, seguido dos
seus discípulos. Ao chegar àquele lugar, disselhes: “Orai para que não caiais em tentação”. Depois se afastou deles à distância de um tiro de
pedra e, ajoelhando-se, orava: “Pai, se é de teu
agrado, afasta de mim este cálice! Não se faça,
todavia, a minha vontade, mas sim a tua”.
Apareceu-lhe então um anjo do céu para confortá-lo. Ele entrou em agonia e orava ainda
com mais instância, e seu suor tornou-se como
gotas de sangue a escorrer pela terra. Depois de
ter rezado, levantou-se, foi ter com os discípulos e achou-os adormecidos de tristeza. Disselhes: “Por que dormis? Levantai-vos, orai, para
não cairdes em tentação” (Lucas 22,39-46).
Sabendo da condenação inevitável, da dor
de carregar a cruz e do martírio, Jesus ora ao
Pai. Ele sabe de sua missão, sabe por que veio ao
mundo. Na oração, manifesta o seu querer, mas
não o impõe sobre os desígnios de Deus: Não se
faça, todavia, a minha vontade, mas sim a tua.
Aos discípulos ele ensina que a oração é a
principal armadura para não cair em tentação.
32
A felicidade para Jesus
Nesse caso, a tentação maior é desistir, entregarse ao desespero dos que navegam na vida sem a
luz da fé.
A tristeza nos faz adormecer diante da vida.
Dormir é o mesmo que tentar se refugiar num
mundo de sonhos e não enfrentar a realidade.
Jesus questiona: Por que dormis?.
Esse questionamento é feito a nós também
todas as vezes que buscamos abrigo seguro na
fantasia, no irreal, e não somos fortes o suficiente para lutar.
Jesus ordena aos discípulos: Levantai-vos,
orai, para não cairdes em tentação.
Levantar nesse caso é o mesmo que assumir
a vida, é carregar a própria cruz.
É no carregar a cruz que a felicidade se manifesta, pois ela só beija os fortes, os corajosos,
os que têm os olhos fixos nos olhos do Pai.
Quando a felicidade é volúvel, instável, então não somos felizes, vivemos dormindo.
Felicidade não é o pote de ouro no fim do
arco-íris, não é toda riqueza do mundo, não são
todos os prazeres que a vida pode dar, não é o
ter, não é o possuir, felicidade não é a pessoa
que eu desejo.
A felicidade não está diante dos olhos, não
pode ser apalpada com as mãos, não pode ser
33
8 caminhos para a felicidade
degustada pelo paladar, a felicidade não está e
nunca estará fora.
Por isso somos tão infelizes, pois buscamos
nas coisas algo que não se pode abraçar.
A própria expressão “buscar a felicidade”
deveria ser questionada. Sempre buscamos algo
que não temos ou que perdemos.
A palavra “buscar” nos remete quase sempre
ao mundo externo. Por isso, fazemos associações
errôneas de felicidade com objetos, pessoas ou
situações.
E no caso da infelicidade chegamos a acreditar que em determinados momentos o mundo conspira para a nossa infelicidade, podemos
enumerar pessoas que para nós são a causa de
estarmos infelizes. Isso também é perigoso, pois
responsabilizamos os outros por algo pessoal.
A frase “os incomodados que se mudem” parece fazer sentido nessas horas, pois geralmente
chegamos a sonhar acordados que se “desaparecêssemos” tudo se resolveria.
Nós podemos sair daqui, do lugar onde estamos inseridos, e ir em busca da felicidade no
outro lado do mundo… A ideia não é nova, pelo
contrário, muitos de nós acreditamos nisso: “Há
horas em que tenho vontade de fugir!”
Mesmo que viajemos, deixemos tudo para
trás para iniciar uma nova vida em busca da fe-
34
A felicidade para Jesus
licidade, vale lembrar que levaremos nossa principal bagagem… nós mesmos.
Não há como divorciar-nos de quem somos.
A busca pela felicidade lá do outro lado do mundo, se não for antecedida pela busca de si mesmo,
numa viagem interior de autoconhecimento, não
valerá nada. Dois ou três meses naquele lugar,
naquela circunstância, naquele estilo de vida,
nos cansarão, desistiremos. E estaremos nós, novamente, buscando… buscando…
O fruto da insaciável busca pela felicidade
nas coisas externas é a frustração.
Uma pergunta: Você já se sentiu frustrado
mesmo depois de ter conseguido tudo ou quase
tudo que imaginava ser a perfeita felicidade?
Pois é, você não é o único!
O mundo de consumo em que vivemos tenta a todo custo através da mídia publicitária nos
convencer de que se não aderirmos, se não dermos
um voto de fidelidade a tudo o que ela nos propõe
como sumamente necessário, seremos infelizes.
Compramos, adquirimos, acumulamos, substituímos, e a busca por ser feliz vira um vício indomável. Enriquecemos os que vendem em suas
prateleiras a receita mágica da felicidade. Porém,
semana que vem estaremos novamente na fila do
“supermercado”.
Felicidade é virtude!
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8 caminhos para
a felicidade
Na Sagrada Escritura, o número 8 é simbólico. O número 7 reflete a plenitude, o infinito,
é um número perfeito. Vale lembrar a pergunta
que Pedro fez para Jesus:
“Senhor, quantas vezes devo perdoar a meu irmão, quando ele pecar contra mim? Até sete
vezes?”. Respondeu Jesus: “Não te digo até
sete vezes, mas até setenta vezes sete” (Mateus
18,21-22).
Oito é portanto sete mais um, seria como que o
transbordamento da plenitude... Aos olhos de Deus,
oito é graça que não se cabe em si, transborda.
Maria nos dá um exemplo dessa graça, dessa
felicidade, no cântico Magnificat:
Minha alma glorifica ao Senhor, meu espírito
exulta de alegria em Deus, meu Salvador, porque olhou para sua pobre serva. Por isso, desde
agora, me proclamarão bem-aventurada todas
as gerações (Lucas 1,46-48).
Assim, as oito bem-aventuranças são o transbordar da alma de felicidade em Deus. Não há
nada que ofusque a luz, a presença de Deus em
nós. Esse fogo que arde sem se ver.
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8 caminhos para a felicidade
Existem caminhos para a felicidade?
Ao tratar das bem-aventuranças, não tenho
a pretensão de dar receitas para alguém ser feliz.
Quando dei o título a este livro de 8 caminhos para a felicidade, não foi pensando em indicar, por meio do ensinamento de Jesus, oito
roteiros com dicas como as de guias de viagem.
Isso seria impossível!
Como já dissemos, não podemos conceber a
felicidade como algo externo, fora de nós.
Na verdade esses caminhos não são estradas, rodovias que se veem.
A realidade que me cerca, as situações externas que vivo, os relacionamentos que estabeleço
devem me conduzir a uma interiorização daquilo
que sou, como sou e onde pretendo chegar. Esse
é o caminho…
Essa viagem será, com toda certeza, uma
das mais difíceis.
Porque, quando buscamos a verdade dentro
de nós mesmos, somos colocados diante de um
espelho que reflete não só nossa imagem física,
mas tudo aquilo que somos interiormente. E nem
sempre é fácil olhar-nos e sobretudo aceitar-nos.
Porém, como diz Jesus, a verdade tem o poder de
nos libertar (cf. João 8,32).
Jesus fala de oito bem-aventuranças, mas
poderiam ser quinze, vinte, não importa o número, não se trata de uma cifra fechada.
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8 caminhos para a felicidade
O grande bem-aventurado é aquele que enxerga a vida como algo a mais.
O bem-aventurado é aquele que não vive
somente momentos de felicidade, mas segue seu
caminho existencial com uma tranquilidade interna capaz de constranger qualquer situação
extrema.
São bem-aventurados os que são iluminados
pela fé em algo e, diante desse acreditar, desse
confiar, se entregam totalmente.
Bem-aventurado é aquele que constrói sua
casa sobre a rocha: não importa o que vier, ventos, tempestades, terremotos, furacões… as bases da casa não serão abaladas.
A casa aqui é entendida como o centro de
nosso ser, a alma.
Ao contrário, quando edificamos nossa construção interior, moldamos nosso ser guiados pela
vaidade, pela fugacidade, pela prepotência, pela
arrogância, quando acreditamos que somos o
centro do universo, e nos coroamos como senhores de nós mesmos, então nossa casa é construída sobre a areia… ao menor sopro, somos pó que
o vento leva.
O mestre é claro:
“Aquele, pois, que ouve estas minhas palavras
e as põe em prática é semelhante a um homem
prudente, que edificou sua casa sobre a rocha.
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8 caminhos para a felicidade
Caiu a chuva, vieram as enchentes, sopraram
os ventos e investiram contra aquela casa; ela,
porém, não caiu, porque estava edificada na
rocha. Mas aquele que ouve as minhas palavras e não as põe em prática é semelhante a
um homem insensato, que construiu sua casa
na areia. Caiu a chuva, vieram as enchentes,
sopraram os ventos e investiram contra aquela
casa; ela caiu e grande foi a sua ruína”. Quando
Jesus terminou o discurso, a multidão ficou impressionada com a sua doutrina. Com efeito, ele
a ensinava como quem tinha autoridade e não
como os seus escribas (Mateus 7,24-27).
O caminho da felicidade é ouvir e colocar em
prática a palavra de Jesus. A prudência é o equilíbrio, é manter-se de pé sobre a rocha, mesmo
em meio aos fortes ventos.
O Mestre Jesus reconhece que são bemaventurados os que vivem a pobreza, a dor, a
mansidão, os que têm sede de justiça, os que são
misericordiosos, os que buscam a paz, os que são
puros de coração e os que são perseguidos por
causa do Reino de Deus.
Após cada bem-aventurança, Jesus parece coroar com um prêmio os que se dedicam a vivêla. Não é uma medalha, como para quem cumpre uma maratona. É o fruto de que falamos
anteriormente. Não é uma compensação: “Olha,
você está passando por isso, mas no final será
recompensado.”
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8 caminhos para a felicidade
Uma ação gera a outra; portanto, não é prêmio, é resultado da semente lançada na terra, é
fruto do trabalho, do labor, de querer ser sempre
fiel a Deus e sua vontade. É a gratuidade do amor
do Pai.
Vendo aquelas multidões, Jesus subiu à montanha.
Sentou-se e seus discípulos aproximaram-se dele.
Então, abriu a boca e lhes ensinava, dizendo:
“Bem-aventurados os que têm um coração de
pobre, porque deles é o Reino dos céus!
Bem-aventurados os que choram, porque serão
consolados!
Bem-aventurados os mansos, porque possuirão
a terra!
Bem-aventurados os que têm fome e sede de
justiça, porque serão saciados!
Bem-aventurados os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia!
Bem-aventurados os puros de coração, porque
verão Deus!
Bem-aventurados os pacíficos, porque serão
chamados filhos de Deus!
Bem-aventurados os que são perseguidos por
causa da justiça, porque deles é o Reino dos
céus!” (Mateus 5,1-10)
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Primeiro caminho
A pobreza
Bem-aventurados os que têm um coração de pobre,
porque deles é o Reino dos Céus.
Quando falamos em pobreza, logo imaginamos a privação dos bens materiais.
Em nossa cultura, ser pobre está relacionado
a não possuir coisas. A carência é a característica
das pessoas que vivem nessa situação.
Em Mateus, essa bem-aventurança proferida por Jesus é espiritualizada. Feliz não é o pobre
por ser pobre, mas aqueles que se fazem pobres,
algo que vai além da matéria: se fazem pobres no
coração. Porém, a pobreza desde o espírito supõe
o desprender-se da matéria.
Essa é a recomendação do Mestre, que envia
seus discípulos em missão: Disse-lhes: “Não leveis coisa alguma para o caminho, nem bordão,
nem mochila, nem pão, nem dinheiro, nem tenhais duas túnicas” (Lucas 9,3). As palavras de
Jesus parecem por demais radicais. E são: somos
enviados a viver, no caminho da nossa existência; quanto mais bagagem externa adquirimos,
mais encarcerados nos tornamos.
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8 caminhos para a felicidade
A pessoa que vive a pobreza desde o coração
não estabelece uma relação de posse com as coisas e
com as pessoas. O ter não vira prisão, meta de vida.
A maioria das pessoas que aspira à riqueza, à matéria faz isso, imaginando que o possuir é a garantia
da solução de todos os problemas.
Não nos enganemos: existem muitos ricos
que são pobres de coração, e muitos pobres que
são extremamente mesquinhos. Não podemos
generalizar e nem medir essa mensagem de Jesus pela conta bancária de alguém.
Pobre para Jesus é aquele que não vive preso na busca desenfreada pelo possuir. O pecado
não está em ser rico, mas na relação estabelecida
com o dinheiro.
Os “ricos” imaginam que seu status, prestígio, ouro podem comprar tudo. Esse é o principal
engano que a riqueza produz. Alguns creem que,
por ter uma condição de vida melhor que a maioria das pessoas, são melhores, especiais… alguns
se sentem até endeusados.
Uma das frases célebres de Jesus faz referência a esse tema: Nenhum servo pode servir a dois
senhores: ou há de odiar a um e amar o outro, ou
há de aderir a um e desprezar o outro. Não podeis
servir a Deus e ao dinheiro (Lucas 16,13).
O problema está justamente na dependência completa do dinheiro. Quando Jesus diz que
não podemos servir a dois senhores, ele afirma
que o dinheiro tem o poder de nos fazer escravos
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Primeiro caminho – a pobreza
dele, pior, corremos o risco de tratar o dinheiro
como um deus... de viver em função dele, perder
o sono, a tranquilidade, no afã de acumular mais
e mais. Para quê?
O dinheiro cega…
Quem ama o dinheiro nunca se fartará. Quem
ama a riqueza não tira dela proveito. Também
isso é vaidade. Quando abundam os bens, numerosos são aqueles que comem. Que vantagem
há para os seus possuidores, senão ver como se
comportam? Doce é o sono do trabalhador, tenha
ele pouco ou muito para comer; mas a abundância do rico o impede de dormir.
Vi uma dolorosa miséria debaixo do sol: as riquezas que um possuidor guarda para sua própria desgraça. [...] Nu saiu ele do ventre de sua mãe, assim
nu voltará. De seu trabalho nada receberá que possa levar em suas mãos (Eclesiastes 5,9-12.14).
Não podemos dizer que amamos Deus, que
desejamos servi-lo se é o dinheiro que rege a nossa vida.
Ser pobre de coração é saber que as coisas
que temos não nos pertencem, pois não levaremos nada do que temos, somente do que somos.
Um bom exemplo de pobreza, riqueza e relação com o dinheiro é a parábola contada por
Jesus logo depois de afirmar que não podemos
servir a dois senhores:
Havia um homem rico que se vestia de púrpura
e linho finíssimo, e que todos os dias se banque-
45
8 caminhos para a felicidade
teava e se regalava. Havia também um mendigo,
por nome Lázaro, todo coberto de chagas, que
estava deitado à porta do rico. Ele avidamente
desejava matar a fome com as migalhas que caíam da mesa do rico… Até os cães iam lamber-lhe
as chagas. Ora, aconteceu morrer o mendigo e
ser levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu
também o rico e foi sepultado.
E, estando ele nos tormentos do inferno, levantou os olhos e viu, ao longe, Abraão e Lázaro
no seu seio. Gritou, então: “Pai Abraão, compadece-te de mim e manda Lázaro que molhe em
água a ponta de seu dedo, a fim de me refrescar a língua, pois sou cruelmente atormentado nestas chamas”. Abraão, porém, replicou:
“Filho, lembra-te de que recebeste teus bens
em vida, mas Lázaro, males; por isso ele agora
aqui é consolado, mas tu estás em tormento.
Além de tudo, há entre nós e vós um grande
abismo, de maneira que os que querem passar
daqui para vós não o podem, nem os de lá passar para cá”. O rico disse: “Rogo-te então, pai,
que mandes Lázaro à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos, para lhes testemunhar que
não aconteça virem também eles parar neste
lugar de tormentos”. Abraão respondeu: “Eles
lá têm Moisés e os profetas; ouçam-nos!” O
rico replicou: “Não, pai Abraão; mas, se for
a eles algum dos mortos, arrepender-se-ão”.
Abraão respondeu-lhe: “Se não ouvirem a
Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão
convencer, ainda que ressuscite algum dos
mortos” (Lucas 16,19-31).
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Primeiro caminho – a pobreza
A chave de interpretação dessa parábola é
que o rico vivia voltado para sua própria ostentação. Ele não tinha olhos para mais nada, a não
ser para seu próprio umbigo. Lázaro, o pobre, estava deitado à porta do rico… mas nem por isso
era visto; ao contrário, era ignorado. Quando não
vive a pobreza desde o coração, a pessoa tende
a não enxergar mais ninguém que não seja ela
mesma. Não há caridade, altruísmo, doação de
si… É o egoísmo levado ao extremo.
Parece ser um caso irreal, folhetim de novela,
mas se avaliarmos a relação que estabelecemos
com o dinheiro nos daremos conta de que muitas vezes somos tentados a acreditar que nossa
felicidade está nas coisas que podemos comprar.
O artífice do mal usou esse argumento até para
tentar Jesus: O demônio transportou-o, uma
vez mais, a um monte muito alto, e lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua glória, e
disse-lhe: “Eu te darei tudo isto se, prostrandote diante de mim, me adorares”. Respondeu-lhe
Jesus: “Para trás, Satanás, pois está escrito:
Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás”
(Mateus 4,8-10).
Os religiosos (homens e mulheres que se
consagram a Deus professando os votos de pobreza, castidade e obediência) são formados
para viver essa pobreza desde o coração. Não
se trata de privar-se dos bens materiais, mas de
consagrar-se inteiramente, unicamente a Deus.
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8 caminhos para a felicidade
Muitas congregações religiosas tentam fazer que
seus formandos tenham uma experiência pastoral junto aos mais necessitados, os fragilizados
socialmente. A intenção não é tanto evangelizálos, mas que sejam evangelizados por eles, que
percebam que em geral os que nada têm são os
que mais conseguem doar.
Naquele mesma hora, Jesus exultou de alegria
no Espírito Santo e disse: “Pai, Senhor do céu e
da terra, eu te dou graças porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, bendigo-te porque
assim foi do teu agrado” (Lucas 10,21).
A pobreza de coração gera humildade. E somente as pessoas humildes sabem reconhecer a
presença, a manifestação, a graça de Deus nas
coisas mais simples. São sensíveis, agradecidas…
Outra característica da pessoa que vive a
pobreza desde o coração é a confiança na providência de Deus. Quando acreditamos que nosso
dinheiro pode providenciar tudo, então Deus foi
sepultado em nosso existir.
Crer na providência é rezar como o salmista:
O Senhor é meu pastor, nada me faltará. Em
verdes prados ele me faz repousar. Conduz-me
junto às águas refrescantes, restaura as forças
de minha alma. Pelos caminhos retos ele me
leva, por amor do seu nome. Ainda que eu atravesse o vale escuro, nada temerei, pois estais
comigo. Vosso bordão e vosso báculo são o meu
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Primeiro caminho – a pobreza
amparo. Preparais para mim a mesa à vista de
meus inimigos. Derramais o perfume sobre minha cabeça, e transborda minha taça. A vossa
bondade e misericórdia hão de seguir-me por
todos os dias de minha vida. E habitarei na casa
do Senhor por longos dias (Salmo 22).
A felicidade na pobreza de coração
Quando eu cursava a faculdade de teologia
em Curitiba, trabalhei dois anos num albergue
chamado São João Batista, das irmãs vicentinas,
que acolhia pessoas de várias partes do Brasil e do
exterior que vinham até aquela cidade para fazer
tratamento de câncer. O tratamento geralmente
era longo, e como as pessoas atendidas, em sua
maioria, eram muito pobres, elas não podiam viajar com frequência para suas cidades de origem.
Meu trabalho era me aproximar das pessoas
e conversar com elas, coisa simples, nada elaborado… eu pouco falava, minha função era ouvir.
Cada história era uma aula teológica para
mim. Confesso que em muitos casos eu chorava
por dentro, pois sabia que não poderia fazer nada.
Nesse meu trabalho eu conheci uma senhora
que chegou para o tratamento de um câncer já
adiantado, uma metástase. No albergue ela estava sozinha, a família era de muito longe. O que
me chamava a atenção nessa senhora, aparentemente pobre, enferma, só, era uma alegria que
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8 caminhos para a felicidade
contagiava todos os albergados. Não era um sorriso plástico, externo, mas de uma sinceridade
arrebatadora.
Um dia em nossa conversa perguntei a ela:
– O que faz você rir, passando por todos esses problemas?
Ela me respondeu:
– Deus nunca deixou de sorrir para mim, eu
só retribuo.
Aparentemente pobre, enferma, só… aparentemente.
Os pobres de coração são felizes, pois encontraram sua riqueza em Deus.
Fruto – deles é o Reino dos Céus
O Reino dos Céus será de quem aqui na terra
já viveu antecipadamente o que é ser regido pelo
Altíssimo.
Não se trata de uma novidade, mas de uma
continuação no céu do que experimentamos aqui.
O pobre de coração deposita toda a sua confiança em Deus e em sua vontade, vive voltado
para ser uma oblação agradável ao Pai.
Por isso, no Reino Celeste tomarão “posse”
do paraíso os que foram capazes de desprenderse de tudo, os que não viveram apegados às vaidades, às fugacidades.
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Primeiro caminho – a pobreza
O Reino dos Céus pertencerá aos que vivem
livremente sem o peso de estar atados na prepotência, na falta de humildade.
O Reino dos Céus é também semelhante a um
tesouro escondido num campo. Um homem o
encontra, mas o esconde de novo. E, cheio de
alegria, vai, vende tudo o que tem para comprar aquele campo.
O Reino dos Céus é ainda semelhante a um negociante que procura pérolas preciosas. Encontrando uma de grande valor, vai, vende tudo o
que possui e a compra (Mateus 13,44-46).
Oração para viver a felicidade
na pobreza de coração
Senhor, dai-me a pobreza de coração,
que eu saiba me desapegar
de todas as coisas ou pessoas
que me aprisionam interiormente.
Sei que nada nem ninguém me pertence,
fazei que minha vida seja
uma busca constante da liberdade
da alma e que a felicidade que provém
de ti, essa sim, possa imperar
no meu pobre coração.
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