Eclesiologia – Aula n. 6 – 07.05.14 A IGREJA COMO MISTÉRIO – SACRAMENTO DE SALVAÇÃO 1. A redescoberta do mistério da Igreja Enquanto os primeiros tratados de eclesiologia davam maior destaque à institucionalidade da Igreja, a imagem do Corpo de Cristo e da analogia da encarnação do Verbo aplicadas à Igreja vieram completar sua auto-compreensão. O Concílio Vaticano II veio coroar o progresso dos tratados eclesiológicos, especialmente na Constituição Dogmática Lumen Gentium, que apresenta a Igreja como visível e invisível numa simultaneidade. A Igreja não poderia ter outra compreensão de si mesma do que aquela querida e preparada pelo Pai, como expressão máxima de seu amor, oculto e misterioso, pela humanidade. “O Pai eterno, por libérrimo e arcano desígnio de sua sabedoria e bondade, criou todo o universo. Decretou elevar os homens à participação de sua vida divina” (LG 8). Aí entendemos a Igreja que se vê como desígnio da Santíssima Trindade, concebida para tornar a humanidade participante da intimidade de sua vida divina. O primeiro e o segundo capítulo da LG nos dão uma visão completa e complementar da Igreja. O primeiro capítulo apresenta a Igreja como mistério – dimensão invisível – e o segundo capítulo como Povo de Deus – dimensão visível. A palavra mistério vem do grego mystêrion, significando coisa arcana, secreta, especialmente sacra. No Novo Testamento não há referência aos mistérios da Antiguidade. Na maioria das vezes significa o desígnio salvífico divino, concebido e escondido desde todos os séculos, mas revelado agora, na plenitude dos tempos, por Jesus Cristo, o Salvador de todos os homens. O mistério constitui-se, portanto, no mistério de Cristo. Ao apresentar a Igreja como Mistério, a LG a designa como uma realidade divina, transcendente e salvífica, que se revela e se manifesta de alguma maneira visível. Ao se dizer que “A Igreja é um mistério”, significa que a Igreja é uma realidade divina transcendente e salvífica visivelmente presente entre os homens. Na parte externa e visível da Igreja, ao mesmo tempo, se esconde e se revela sua realidade divina e invisível. Assim, o mistério da Igreja evoca o desígnio de Deus sobre a humanidade em Jesus Cristo. Se é verdade que está fora do alcance do ser humano, porque é qualitativamente diferente de qualquer objeto da ciência humana, contudo, atinge e age na pessoa, e sua revelação esclarece a respeito dela mesma. A Igreja é mistério porque, vindo de Deus e estando ao serviço de seu desígnio, é organismo de salvação, relacionado inteiramente com Cristo. Por isso, o mistério da Igreja revela ao homem a sua condição de filho de Deus salvo pelo sangue de Jesus Cristo. Todos quantos são incorporados a essa vida misteriosa em Deus são associados, assumidos e configurados “aos mistérios da vida de Cristo”, que é chefe e cabeça da Igreja. Vivem, assim, em Cristo e por Cristo, e na medida em que vivem, revelam seu mistério ao mundo de maneira fiel, embora em sobras, até o fim dos tempos, quando se manifestar em plena luz. A salvação invisível de Jesus Cristo acontece por meio da Igreja visível. Ela é medidora da salvação por meios concretos, como o é a instituição e a organização. A Igreja é, ao mesmo tempo, divina e humana. A salvação acontece por mediação humana. Cristo assim o quis quando chamou os Doze, os constituiu como colégio e deu-lhes a plenitude do poder. Por isso, ela é peregrina na história e está em dependência da história até à consumação dos tempos. 1 Eclesiologia – Aula n. 6 – 07.05.14 A Igreja não é apenas uma comunidade de pessoas que creem em Deus e em sua ação salvífica na história. Ela mesma é uma parte dessa atividade salvífica; portanto, ela mesma é objeto e mistério da fé. 2. A Igreja como mistério – sacramento de salvação O Vaticano II designa a Igreja como “sacramento universal de salvação” (SC 26; LG 1, 48 e 59; AG 1, 5; GS 45). Essa qualificação é também funcional: “E porque a Igreja é em Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG 1). A palavra sacramento aplicada à Igreja teve seu conceito ampliado quanto ao seu conteúdo e significado ao longo dos séculos. Os Padres viam a Igreja como sacramento no sentido da dimensão histórica de Deus que se encarna em vista da salvação da humanidade e que se torna presente através da Igreja. Na Idade Média, especialmente na Escolástica, essa junção das dimensões invisível e visível cai em desuso, em detrimento de uma visão mais jurisdicista e institucional. O Vaticano I ignorou o conceito de sacramento aplicado à Igreja, apesar de caracterizá-la como sinal erguido entre as nações. A Encíclica Mystici Corporis (1943), de Pio XII, foi feliz em expressar adequadamente a noção da Igreja como Sacramento de Cristo. Desde então esse conceito foi sempre retomado e aprofundado, especialmente a partir dos estudos dos Padres da Igreja. Santo Agostinho, ao falar da Igreja como sacramento da salvação, diz que ela é a “forma visível da graça invisível”. Ela é o sacramento por conter a graça do Espírito do Senhor glorificado na sua forma social e visível, além de comunicar e essa graça, enquanto possível, por meio das ações particulares de cada uma das sete ações específicas às pessoas dispostas a aceitá-las pela fé. Quanto ao termo mistério aplicado à Igreja, podemos dizer que Deus oferece à pessoa, sob o véu da realidade humana perceptível, o mistério de Si mesmo. Na Igreja o mistério salvífico de Deus está presente e atua. A sacramentalidade é, pois, a forma que Deus assume paa aproximar-se da pessoa como graça, e é a forma pela qual Ele pode ser encontrado. Essa qualidade é inerente à Igreja, porque ela é sacramento primordial e global, que inclui toda a forma sacramental. Assim, não é a Igreja que produz a salvação, mas ela transmite e proclama a salvação recebida de Jesus Cristo. Enquanto os sete sacramentos indicam a salvação do ser humano em cada caso (Batismo, Matrimônio, por exemplo), a sacramentalidade da Igreja diz respeito à salvação em sua totalidade, porque nela estão compreendidas todas as realidades, quando se fala em salvação. Assim como cada um dos sete sacramentos é sinal de Cristo, a Igreja também o é para o mundo. Como sacramento universal de salvação, a contribuição salvífica da Igreja se estende a todas as pessoas, de todos os tempos e lugares, não apenas para quem já se confessa membro da mesma, pois ela é um povo aberto, isto é, católico. A Igreja se mostra como sacramento da unidade, pois tem como fundamento Deus Trino, que realiza a unidade de todos os seres humanos, integrando o universo e o cosmo. 2 Eclesiologia – Aula n. 6 – 07.05.14 3. A Igreja, Corpo de Cristo O conceito de Igreja enquanto Corpo de Cristo passou por um desenvolvimento histórico. Foi muito estudado nos primeiros séculos, especialmente nos tempos apostólicos e dos Padres da Igreja, sendo deixada de lado em boa parte do segundo milênio e sendo retomada nos últimos dois séculos. A expressão Corpo de Cristo é tipicamente paulina. Designa, segundo a concepção do autor sagrado, não somente o corpo humano, mas também o organismo social, nos quais os membros são solidários. Dessa forma, a imagem mostra a relação indissolúvel entre o corpo ressuscitado de Jesus Cristo e o Corpo eclesial, pois o corpo glorioso de Cristo tem sua extensão no Corpo eclesial, devido a uma identidade, ao mesmo tempo misteriosa e real, na qual acontece o mistério salvífico de Deus. Os Padres da Igreja empregaram essa expressão sobretudo para tratar do tema da unidade, pois preocupavam as inúmeras heresias que surgiam em meio ao cristianismo nascente. Essas dimensões todas foram retomadas no Vaticano II, a partir do qual pode-se dizer: • Cristo é a Cabeça da Igreja, seu Corpo. Ele é o princípio vital, motor e nutritivo da Igreja; • A multiplicidade de membros indica que a Igreja é constituída por todos os fiéis do mundo e de todos os tempos, com diversidade de funções; • A unidade da Igreja, que una e indivisa, é constituída por Cristo, mediante o Espírito Santo; • A dimensão sacramental da união entre Jesus Cristo e as pessoas é a união da Cabeça com os membros; • A Igreja é o Corpo de Cristo, no qual o de indica a pertença, ou seja, a quem a Igreja pertence, de quem recebe o nome. Ela é o instrumento visível com o qual pode continuar sua missão. Nesse sentido, ela é instrumento de Cristo. 4. A Igreja, realidade simultaneamente visível e espiritual “O único Mediador Cristo constitui e incessantemente sustenta aqui na Terra a sua santa Igreja, comunidade de fé, esperança e caridade, como organismo visível pelo qual difunde a verdade e a graça a todos. Mas a sociedade provida de órgãos hierárquicos e o Corpo Místico de Cristo, a assembleia visível e a comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a Igreja enriquecida de bens celestes, não devem ser consideradas duas coisas, mas formam uma só realidade complexa em que se fundo o elemento humano e o divino. É por isso, mediante uma não medíocre analogia, comparada ao mistério do Verbo encarnado” (LG8). A Igreja é um mistério, é assembleia “em Deus e no Senhor” (1Tm 1,1). É neste mundo que ela mostra o aspecto de uma sociedade visível e organizada. A unidade desses dois elementos é comparada com a Eucaristia, que é constituída de duas coisas, uma terrena e outra celeste. Daqui concluímos que a Igreja não é só de Deus. Ela não é só espiritual e invisível, nem pertence somente aos escolhidos. Tampouco ela é só dos homens, como se constituísse uma realidade meramente eclesiológica. A dupla natureza da Igreja aparece em uma única e una Igreja, só compreensível no mistério e que será plena na eternidade, quando for glorificada inteiramente em Cristo. Existe salvação fora da Igreja? Em primeiro lugar constatemos: a Igreja é sinal eficaz e universal de salvação para o mundo, o que significa que ninguém poderá salvar-se sem a eficácia desse 3 Eclesiologia – Aula n. 6 – 07.05.14 sinal. Como sacramento universal de salvação, a Igreja transmite efetivamente, de forma invisível, o que ela representa visivelmente: a salvação de todos, sob todos os aspectos. Assim, todos se salvam pela Igreja. Os que nela estão, por haurirem da graça e da união com Deus mediante os sacramentos e a prática da caridade. Os que estão fora dela, por receberem das sementes de verdade espalhadas pelo mundo – mesmo fora da comunhão plena com Deus – desde que O busquem de coração sincero e pratiquem a caridade. Para compreendermos melhor a resposta à pergunta acima feita dirijamos um olhar mais detalhado sobre a Constituição Dogmática Lumen Gentium Os fiéis católicos; a necessidade da Igreja 14. O sagrado Concílio volta-se primeiramente para os fiéis católicos. Fundado na Escritura e Tradição, ensina que esta Igreja, peregrina sobre a terra, é necessária para a salvação. Com efeito, só Cristo é mediador e caminho de salvação e Ele torna-Senos presente no Seu corpo, que é a Igreja; ao inculcar expressamente a necessidade da fé e do Batismo (cfr. Mc. 16,16; Jo. 3,15), confirmou simultaneamente a necessidade da Igreja, para a qual os homens entram pela porta do Batismo. Pelo que, não se poderiam salvar aqueles que, não ignorando ter sido a Igreja católica fundada por Deus, por meio de Jesus Cristo, como necessária, contudo, ou não querem entrar nela ou nela não querem perseverar. São plenamente incorporados à sociedade que é a Igreja aqueles que, tendo o Espírito de Cristo, aceitam toda a sua organização e os meios de salvação nela instituídos, e que, pelos laços da profissão da fé, dós sacramentos, do governo eclesiástico e da comunhão, se unem, na sua estrutura visível, com Cristo, que a governa por meio do Sumo Pontífice e dos Bispos. Não se salva, porém, embora incorporado à Igreja, quem não persevera na caridade: permanecendo na Igreja pelo «corpo», não está nela com o coração. Lembrem-se, porém, todos os filhos da Igreja que a sua sublime condição não é devida aos méritos pessoais, mas sim à especial graça de Cristo; se a ela não corresponderem com os pensamentos, palavras e ações, bem longe de se salvarem, serão antes mais severamente julgados. Os catecúmenos que, movidos pelo Espírito Santo, pedem explicitamente para serem incorporados na Igreja, já lhe estão unidos por esse desejo, e a mãe Igreja já os abraça com amor e solicitude. Vínculos da Igreja com os cristãos não-católicos 15. A Igreja vê-se ainda unida, por muitos títulos, com os batizados que têm o nome de cristãos, embora não professem integralmente a fé ou não guardem a unidade de comunhão com o sucessor de Pedro. Muitos há, com efeito, que têm e prezam a Sagrada Escritura como norma de fé e de vida, manifestam sincero zelo religioso, creem de coração em Deus Pai onipotente e em Cristo, Filho de Deus Salvador, são marcados pelo Batismo que os une a Cristo e reconhecem e recebem mesmo outros sacramentos nas suas próprias igrejas ou comunidades eclesiásticas. Muitos de entre eles têm mesmo um episcopado, celebram a sagrada Eucaristia e cultivam a devoção para com a Virgem Mãe de Deus. Acrescenta-se a isto a comunhão de orações e outros bens espirituais; mais ainda, existe uma certa união verdadeira no Espírito Santo, o qual neles atua com os dons e graças do Seu poder santificador, chegando a fortalecer alguns deles até ao martírio. Deste modo, o Espírito suscita em todos os discípulos de Cristo o desejo e a prática efetiva em vista de que todos, segundo o 4 Eclesiologia – Aula n. 6 – 07.05.14 modo estabelecido por Cristo, se unam pacificamente num só rebanho sob um só pastor. Para alcançar este fim, não deixa nossa mãe a Igreja de orar, esperar e agir, e exorta os seus filhos a que se purifiquem e renovem, para que o sinal de Cristo brilhe mais claramente no seu rosto. Relação da Igreja com os não-cristãos 16. Finalmente, aqueles que ainda não receberam o Evangelho, estão de uma forma ou outra orientados para o Povo de Deus. Em primeiro lugar, aquele povo que recebeu a aliança e as promessas, e do qual nasceu Cristo segundo a carne (cfr. Rm. 9, 4-5), povo que segundo a eleição é muito amado, por causa dos Patriarcas, já que os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis (cfr. Rm. 11, 28-29). Mas o desígnio da salvação estende-se também àqueles que reconhecem o Criador, entre os quais vêm em primeiro lugar os muçulmanos, que professam seguir a fé de Abraão, e conosco adoram o Deus único e misericordioso, que há de julgar os homens no último dia. E o mesmo Senhor nem sequer está longe daqueles que buscam, na sombra e em imagens, o Deus que ainda desconhecem; já que é Ele quem a todos dá vida, respiração e tudo o mais (cfr. At. 17, 25-28) e, como Salvador, quer que todos os homens se salvem (cfr. 1 Tm. 2,4). Com efeito, aqueles que, ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também eles podem alcançar a salvação eterna. Nem a divina Providência nega os auxílios necessários à salvação àqueles que, sem culpa, não chegaram ainda ao conhecimento explícito de Deus e se esforçam, não sem o auxílio da graça, por levar uma vida reta. Tudo o que de bom e verdadeiro neles há, é considerado pela Igreja como preparação para receberem o Evangelho, dado por Aquele que ilumina todos os homens, para que possuam finalmente a vida. Mas, muitas vezes, os homens, enganados pelo demônio, desorientam-se em seus pensamentos e trocam a verdade de Deus pela mentira, servindo a criatura de preferência ao Criador (cfr. Rm. 1,21 e 25), ou então, vivendo e morrendo sem Deus neste mundo, se expõem à desesperação final. Por isso, para promover a glória de Deus e a salvação de todos estes, a Igreja, lembrada do mandato do Senhor: «pregai o Evangelho a toda a criatura» (Mc. 16,16), procura zelosamente impulsionar as missões. 5