Marxismo, a filosofia insuperável do nosso tempo!

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“Marxismo, a filosofia insuperável do nosso tempo!”
Sandra Cordeiro Felismino1
Sartre em Questão de Método fez esta declaração que tomamos de empréstimo para o
título deste artigo no qual procuramos demonstrar a atualidade do pensamento de Marx na fase
contemporânea, por muitos chamada de capitalismo tardio. Ressalte-se que não se trata de um
texto sobre a relação entre marxismo e existencialismo; desta se ocupou, por exemplo, Lukács em
Existencialismo ou Marxismo?, que data de 1947.
A utilização da proclamação de Sartre constitui-se apenas um recurso estilístico de
que lançamos mão, com o objetivo de produzir efeito altissonante necessário em tempos
marcados pelo império das concepções e idéias de livre-cambistas vulgares - babel dos novos
paradigmas - e do antimarxismo contemporâneo. Trata-se, pois, de tomá-la como ponto de
partida que visa conter o ímpeto daqueles que julgam oportuno remeter ao museu arqueológico o
quadro categorial de Marx, demonstrando o porquê de o marxismo se manter insuperável para a
crítica da ordem social burguesa e para expor o movimento do capital.
Na demonstração da atualidade do marxismo é inevitável o confronto com os
argumentos que fundam a tese da perda da centralidade do trabalho nas sociedades tardocapitalistas, a partir da qual se proclama o esgotamento do potencial analítico do marxismo,
contrariamente ao que fez Sartre. Uma estratégia teórica que limitada à imediaticidade (esfera
caótica, reificada das relações sociais) não revela as conexões efetivamente existentes e decisivas
da realidade social contemporânea. Sob uma determinada visão do que seja a realidade, as
temáticas se circunscrevem aos fenômenos do cotidiano, a sua descrição/interpretação, sem
explicitar os seus determinantes sociais. Ao nível das manifestações fenomênicas, a consciência
reificada, efetiva sobre o modo capitalista de produção e organização social, no máximo, uma
crítica de cunho culturalista. Confundem-se as categorias trabalho concreto e trabalho abstrato e
face à retração dos postos de trabalho na indústria proclamam o fim da sociedade do trabalho e,
conseqüentemente, não conseguem enxergar o desafio hegemônico à ordem existente emanado
do movimento organizado da classe trabalhadora.
O antagonismo entre as classes sociais fundamentais é considerado como
divergências de interesses; a exploração não vem à tona porque ao nível da aparência do sistema
social predominam relações de equivalência; o estranhamento deixa de ser realidade nos novos
processos de produção em que reinam autonomia, independência, participação, colaboração; o
trabalho deixa de ser o fundamento ontológico da realidade humano-social. Portanto, como o que
pode vir a trazer um questionamento radical da sociedade capitalista não é objeto de análise para tanto a postura teórico-metodológica deveria ultrapassar o fenomênico e isto reclama uma
clara posição crítico-política -, uma parte da produção teórica nas ciências sociais acaba se
restringindo a questões subordinadas ou apenas a críticas localizadas, desconectadas do quadro
das determinações fundamentais.
1
Sandra Cordeiro Felismino. Professora da Faculdade de Educação – FACED/UFC. Doutora em Educação Brasileira pela UFC.
E-mail:[email protected]
2
O mais comprometedor hoje está presente nas interpretações acerca das
transformações tecnológicas da produção capitalista feitas a partir de uma “confusão” entre o
significado do progresso técnico-científico – feito fundamentalmente em vista dos interesses
capitalistas – e a redução do trabalho vivo. Os apologetas do fim da sociedade do trabalho
desconsideram que essa redução, interpretada como advinda da introdução tout court das novas
tecnologias aos processos de trabalho, é um mecanismo que historicamente vem sendo acionado
pelos capitalistas, no sentido de adaptarem continuamente o número de trabalhadores às
necessidades de expansão do capital. A hoje tão desejada produção enxuta nada tem de tão novo;
faz parte do sonho sempre renovado do capitalista para maximizar os lucros e aumentar o
controle sobre a força de trabalho. Marx já o interpretava como uma lei na sociedade capitalista:
“Graças ao progresso da produtividade do trabalho social, quantidade sempre crescente de meios
de produção pode ser mobilizada com um dispêndio progressivamente menor de força de
trabalho”2.
Dessa “objetividade” que enevoa o caráter histórico das relações sociais,
naturalizando-as, emerge necessariamente uma posição político-ideológica resignada à ordem
estabelecida das coisas, que “... nos países capitalistas avançados revela uma insuspeitada
capacidade de adaptação e autopreservação”3. As teorizações que são elaboradas a partir de um
ponto de vista ideológico estabelecido, o dos interesses da burguesia, não se comprometem com a
correspondência objetiva entre as categorias e a realidade, mas com a identidade do pensamento
com “a ordem e a conexão das coisas”. Em nome da liberdade e da pluralidade, tudo que é visível
aos olhos basta como referendo ontológico para as construções gnosiológicas.
Proliferam coleções de opiniões cujo rigor é medido pela persistência argumentativa
ou pela forma cientificista de que se reveste o discurso. Porém o quesito de mais legitimidade diz
respeito à identificação com a orientação ideológico-intelectual dominante e, portanto, com o
afastamento de qualquer rescaldo marxista – “teoria datada, circunscrita ao século XIX”. Toda a
contribuição de Marx caducou fundamentalmente, segundo o pensamento mais “avançado”,
porque sua teoria estaria restrita à sociedade do trabalho. Desse ponto de vista, considerar-se-ia
que se neste final de século o trabalho deixa de ser “objetivamente” uma realidade que estrutura e
organiza as relações sociais, então perderia também sua centralidade teórica.
Uma crítica radical ao capitalismo hoje vem sendo considerada démodé, portanto
somente em círculos intelectuais “ultrapassados” se discutem alternativas ao capitalismo. A partir
de uma crítica culturalista – predominante na sociologia contemporânea – acerca da realidade
social estabelecida sob a égide do capitalismo, observa-se que vem vigorando à moda da “crítica
romântica”4 uma insatisfação quanto à “racionalidade” econômica capitalista, sua extensão a
todas as esferas da vida a partir do desenvolvimento técnico-científico alcançado (base, contudo,
de uma outra sociabilidade, mantida a forma capitalista de produção e de distribuição da riqueza
social). Nessa nova sociedade, não mais constrangida pela necessidade do trabalho remunerado,
os homens estabeleceriam entre si e com a natureza relações mais ricas, à base de uma interação
intersubjetivamente mediada, cujas normas de comportamento seriam susceptíveis de reflexão. A
2
Karl Marx, O Capital. Crítica da Economia Política. Livro 1 – O Processo de Produção do Capital. Trad. Reginaldo Sant’Anna.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989b, p.749.
3
José Paulo Netto, Capitalismo e Reificação. São Paulo: Liv. Ed. Ciências Humanas, 1981, p.31.
4
Essa expressão Lukács a utiliza no texto Marx e o Problema da decadência Ideológica, redigido em 1938 e constituinte da obra
Problemas do Realismo, no qual faz uma crítica às condições da reflexão teórica na etapa histórico-social em que a sociologia se
articula como ciência autônoma. (Netto, 1981b, p.109)
3
“utopia” da sociedade socialista seria abandonada porque, além da experiência histórica socialista
ter fracassado, no seio do próprio capitalismo se gestariam as condições, mediante a liberação do
trabalho, para o livre desenvolvimento das individualidades e da formação artística, científica
dos indivíduos5.
A idéia de que novas demandas analíticas se impõem é a expressão da crença de que
o tardo capitalismo sofreu transformações essenciais, configuradoras de uma nova ordem social
e, por isso, a explicitação das novas determinações do ser social estaria a requerer um novo
aporte categorial. Os defensores de tal idéia, em geral, presos à imediaticidade dos fenômenos
sociais, estão se reportando a uma suposta debilidade analítica do marxismo, que não mais daria
conta da elucidação das formas atuais de relação entre as classes sociais, das determinações do
valor das mercadorias, do significado político dos novos “atores sociais” etc. Bem como essa
idéia pode ser herdeira direta da crença, também idealista, segundo a qual o desenvolvimento das
categorias independe do desenvolvimento da realidade histórico-social, como se não fosse por
aquele implicado de forma necessária.
Para os ideólogos do “fim da sociedade do trabalho”, principalmente, com a
introdução da microeletrônica e da robótica, o desenvolvimento social se autonomizaria em
relação ao trabalho abstrato remunerado, e a riqueza produzida mediante o conhecimento e a
vontade dos homens seria, fundamentalmente, obra do poder mítico da automação e da
informatização. O equívoco de tal postura revela-se, pelo menos, em três aspectos: primeiro, na
interpretação que identifica as forças produtivas como pura tecnologia, considerando esta, então,
como o fator determinante do modo de ser da sociedade e de suas transformações; segundo, na
cisão estabelecida entre forças produtivas e relações de produção; e, terceiro, na desconsideração
do fato de que a tecnologia é apenas parte das forças produtivas.
Ora, o desenvolvimento social alcançado pela humanidade nesta última quadra de
século não apenas possibilitou o enorme progresso técnico-científico, mas, ao mesmo tempo,
impôs o aceleramento da ciência, deslocando seus resultados para além das necessidades
diretamente requeridas pelo intercâmbio do homem com a natureza e, assim, das necessidades
imediatas do trabalho. Cada vez mais mediadas e complexas vão se tornando as relações sociais
entre os homens e destes com a natureza. Contudo, em que pese a objetividade desse fato, ou
melhor, ainda que,
... nos estágios mais desenvolvidos da práxis social, as posições teleológicas tenham um
peso secundário em relação ao trabalho imediato [...], a posição do fim já não visa a
transformar diretamente um objeto natural [...] os meios já não são intervenções
imediatas sobre objetos naturais [...] o trabalho se constitui a sua insuprimível base.6
É interessante chamarmos a atenção para o fato de que isto – “El volumen cuantitativo
y la eficacia [intensidad] con los que el capital se há desarrollado en cuanto capital fixe, en
cuanto poder sobre el trabajo vivo ...”7- que é para uma parte do pensamento sociológico
contemporâneo a instauração da realidade do “pós-tudo”, é tão somente a realização de uma
tendência do movimento do capital já analisada, desde o século passado, com argúcia, por Marx
5
Essa idéia, extraída diretamente do pensamento de Marx está, no entanto, inteiramente descolada do quadro teórico-ideológico
marxiano, que apontou para a possibilidade histórica da realização de uma vida plena de sentido, se e somente se for superada a
produção fundada no valor de troca, ou seja, a formação social capitalista. Ver essa questão em Elementos Fundamentais para a
Crítica da economia Política (Grundrisse), volume 2. 1989
6
Georg Lukács, O Trabalho. In: Ontologia Dell’Essere Sociale II. Trad. Ivo Tonet. Não publicado, 1984, p.27
7
Karl Marx, Elementos Fundamentais para la Crítica de la Economia Política (Grundrisse) 1857-1858. 1 e 2. México; Siglo
Veintiuno Editores, 1989a, p.221-22.
4
para apontar o rumo do desenvolvimento social quando da generalização da aplicação
tecnológica das ciências à produção, sob o capitalismo.
Diz Marx:
El desarrollo del capital fixe revela hasta qué punto el conocimiento o knowledge social
general se ha convertido en fuerza productiva inmediata, y, por lo tanto, hasta que
punto las condiciones del proceso de la vida social misma han
entrado bajo los
controles del general intellect y remodeladas conforme al mismo [...] revela, desde otro
punto de vista, el grado de desarrollo alcanzado por la riqueza en general o del
desarrollo del capital.8
A nosso ver trata-se de teorizações que reproduzem o modo alienado de aparecer das
relações sociais. São, portanto, expressão teórica alienada das relações sociais alienadas, ou
ainda: são manifestações ou reflexos teóricos da forma alienada da produção capitalista que, por
sua vez, corresponde a uma forma alienada do trabalho humano. Teorizações que se opõem a um
ideal de "ciência humana" não-fragmentada, diga-se, marxismo, que tem como fim o
desvelamento das relações ontológicas fundamentais da vida real e cujos resultados resistem à
prova do desenvolvimento histórico concreto.
O que diferencia a análise de Marx de uma certa análise contemporânea, acerca da
subsunção do trabalho vivo ao trabalho objetivado, é crucial do ponto de vista teóricometodológico e político. Marx aponta essa tendência no bojo de sua análise das contradições do
sistema capitalista e não como resultado inexorável de um linear desenvolvimento histórico que
levaria, inevitavelmente, ao esgotamento da utopia da sociedade do trabalho. Trata como
aprofundamento do antagonismo entre trabalho e capital e não como fim da história; “... como el
ultimo desarrollo de la relación de valor y de la producción fundada no valor ...”9 e não como o
fim da sociedade do trabalho.
E mais, lembre-se de que o capital não tem outro conteúdo social que não o trabalho,
portanto, a pretensão de dominação total do capital é irrealizável.
... se formalmente o capital pode ser a totalidade da relação entre si mesmo e o trabalho
assalariado, materialmente ele não pode prescindir da sua oposição sempre renovada ao
trabalho vivo [...] porque a sua realização integral como ‘sujeito automático’ da
produção, através da ‘aplicação tecnológica das ciências naturais’, e na forma mais
próxima do seu conceito, como capital fixo, tende a subverter a sua própria base de
valorização, o tempo de trabalho.10
Em que pesem as transformações na base material e ao nível das representações
sociais, permanecem as mesmas determinações do capital para reproduzir suas condições de
valorização: o trabalho vivo como fonte de extração de mais valia e de lucro, a fetichização das
relações de exploração e o controle pela classes dominantes das condições alienadoras do
trabalho – hoje não mais restritas ao trabalho industrial, mas espraiadas pelas formas “modernas”
de contratação e subcontratação da força de trabalho.
Assumindo um caráter novo, as formas de alienação hoje dominantes estão
encobertas por uma bruma ideológica, cada vez mais densa, que responde pelo nome de
8
Marx, Idem, ibidem, p.230.
Marx, Idem, ibidem, p.229.
10
Luiz Marcos Muller, Exposição e Método Dialético em ‘O Capital’. Boletim SEAF-MG - N.2 .1982, p.39.
9
5
cientificidade, fato este que exige desvelamento e desmistificação. A ideologia oficial do sistema,
hoje, encobre as relações entre progresso técnico-científico e determinações capitalistas, bem
como oculta os limites sócio-históricos desse desenvolvimento. Aliás, tarefa antiga de toda
ideologia que pretende escamotear os antagonismos entre as classes sociais.
É claro que a riqueza e a complexidade da realidade social fazem germinar interesses
e conflitos que, embora se subordinem às relações entre as classes sociais, a estas não são
redutíveis. Contudo, como afirma Mészáros,
Embora as formas particulares de estratificação e hierarquização da força de trabalho
variem enormemente de um lugar para outro e de um tipo para outro de desenvolvimento
[...] as características facilmente idendificáveis da exploração de classe são em toda
parte evidentes [...] o que patenteia a inevitabilidade da confrontação hegemônica, não
entre os vários agentes sociais historicamente novos e entre as estratégias
correspondentes, mas muito mais simplesmente, entre o capital e o trabalho.11
Em outras palavras: face a essa realidade objetiva o problema é, então, o de não
substituir a antagônica relação entre as classes sociais pelas lutas sociais das minorias, quando o
objetivo são as transformações que caminhem em sentido contrário à lógica de acumulação do
capital e do sistema produtor de mercadorias.
Atribuir à contemporânea transformação da forma de consumo da força de trabalho e
da relação de compra e venda desta como metamorfose do trabalho, tomando em consideração
apenas os efeitos imediatamente visíveis das mudanças por que vêm passando os processos de
produção capitalista, é a demonstração de que a análise da realidade social é feita a partir de uma
perspectiva que “... não é capaz de se colocar acima daquela visão primitiva da realidade,
segundo a qual só se reconhece como materialidade, aliás como objetividade em-si, a
coisalidade...”12.
Esta postura, que se limita às manifestações fenomênicas - do ajuste da ordem social
capitalista ao enfrentamento das contradições da sociedade burguesa - tem se prestado,
historicamente, à apologia das relações econômicas existentes. Segundo ela, tratar-se-iam de
relações que se modernizam, que avançam no sentido do progresso técnico-científico, tendo
como telos o bem-estar da humanidade. Considerando, no entanto, que os benefícios deste
crescimento econômico estão limitados a 10% da população do mundo, cuja outra face
corresponde a uma situação planetária de desigualdade social, dito em outras palavras, exclusão
de parte significativa da população mundial e concentração de renda de uma minoria, resultantes
do modo capitalista de produção e distribuição da riqueza social, não restam dúvidas acerca da
necessidade de se desmistificarem, teórica e praticamente, os processos e as relações que se
realizam na esfera da aparência do sistema.
A sociabilidade capitalista tardia, com suas novas formas de estruturação do trabalho,
não supera a relação na qual o valor de uso é suporte material do valor de troca e os valores de
troca têm que ser reduzidos a uma substância comum, isto é, a trabalho abstrato e, obviamente,
não supera as relações de estranhamento do trabalho. Esta, ao contrário,
... re-põe, em novas bases, as leis da circulação simples de mercadorias[...] e reforça a
ideologia da troca de equivalentes [...] O trabalhador se sente mais livre, como um
István Mészáros, O Poder da Ideologia. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Ensaio, 1996, p.591-592.
Georg Lukács, Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx. In: Ontologia do Ser Social. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São
Paulo: Liv. Ed. Ciências Humanas, 1979b, p.48.
11
12
6
cidadão que trabalha no seu próprio local de sua produção. [...] Sente-se patrão de si
mesmo [...] Sente-se proprietário. Igualmente livre, porque ele é quem organiza o
processo de trabalho e estabelece, por iniciativa própria, a duração de sua jornada de
trabalho [...] O trabalhador não se confronta com o capitalista como mero vendedor de
capacidade de trabalho, não entra no mercado de mãos vazias, mas, sim, traz uma
mercadoria que foi produzida antes de ingressar na esfera da circulação. Por conta disso,
apagam-se todas as diferenças entre os parceiros da troca ... .13
Ressalte-se que isto ocorre na esfera da circulação, mas o “coração” do capitalismo
está na esfera da produção, instância onde o modo de ser do sistema adquire a sua especificidade
histórica, a de ser forma de organização social na qual a produção de mercadorias se generaliza e
a própria força de trabalho é, ela própria, uma mercadoria. A opacidade da relação entre os novos
processos de organização do trabalho e a luta de classe serve ao aprofundamento da reificação da
consciência e, diretamente, à manutenção do domínio do capital sobre o trabalho.
Mesmo com o desenvolvimento científico-tecnológico que permite a substituição
progressiva do trabalho vivo por trabalho morto, não se sustenta a idéia dos que tributam à
tecnologia uma auto-suficiência na produção da riqueza. A relação entre o trabalhador e as forças
industriais de produção continua sob férreo controle do capitalista. A subsunção real do trabalho
ao capital14 caracteriza o modo de domínio do capital.
Uma investigação que não alcança a malha de determinações que torna peculiar a
organização capitalista da vida social, permanecendo na esfera da cotidianidade15 reificada, tende
a minimizar o sentido dos processos alienantes e alienados que dominam, de modo intensivo e
extensivo, toda a sociedade,
desborda a esfera da produção, domina a circulação e o consumo e articula uma indução
comportamental que penetra a totalidade da existência dos agentes sociais particulares o inteiro cotidiano dos indivíduos (...) e todas as instâncias que outrora o indivíduo
podia reservar-se como áreas de autonomia convertem-se em limbos programáveis.16
Destarte, o revolucionário em vista da emancipação humana, seria a ruptura com as
determinações econômicas capitalistas. Com Mészáros,
... a abolição da determinação mecânica da base material sobre a superestrutura. [...] O
desenvolvimento ‘livre, desobstruído e universal’, sob as condições do novo modo de
produção, implica o fim do determinismo material unilateral e, a partir daí, também uma
13
Francisco José Soares Teixeira, Pensando com Marx. Uma leitura Crítico-Comentada de O Capital. São Paulo: Ensaio, 1995,
p.33.
14
Claudio Napoleoni, em seu livro “Lições sobre o Capítulo sexto (inédito) de Marx”, transcreve e comenta a passagem em que
Marx faz a distinção entre o processo de trabalho subsumido apenas formalmente ao capital do processo de subsunção real.
“Quando o capital quebra todas as barreiras, até então existentes, para o aumento indefinido da mais-valia [...] com a produção
da mais-valia relativa ‘modifica-se toda a figura real do modo de produção e surge (inclusive do ponto de vista tecnológico) um
modo de produção especificamente capitalista, sobre cuja base e com a qual se desenvolvem ao mesmo tempo as relações de
produção – correspondentes ao processo de produção capitalista – entre os diversos agentes da produção, e em particular entre os
capitalistas e os assalariados. Aumentam as forças produtivas por força da aplicação da maquinaria’” (1981, p.74)
15
Embora a cotidianidade, esfera insuprimível do mundo fenomênico, seja o ponto de partida da observação imediata e da
representação “do conjunto de actividades que caracterizam la reproducción de los hombres particulares, los cuales, a su vez,
crean la posibilidad de la reproducción social” (Heller,1977,p.19), para a exposição das determinações fundamentais da
realidade, as quais não se manifestam imediatamente, o método científico tem que ir alem desta.
16
Netto, Capitalismo e Reificação, cit., p.81-82.
7
relação radicalmente nova entre a base anterior e a superestrutura no novo reino da
liberdade.17
As evidências empíricas têm sido pródigas em deixar claro que a situação do
trabalhador, em tempos de reestruturação produtiva - inclusive do proclamado trabalhador
polivalente, virtuoso e com poder de decisão -, permanece sobredeterminada, fundamentalmente,
pelos interesses do capital. Esta não proporciona, a rigor, elementos para a fomentada ilusão de
que os trabalhadores podem realizar um trabalho com liberdade e autonomia, mas, ao contrário,
fornece a exata medida da seguinte realidade: enquanto o trabalho continuar sob o domínio do
capital, eles estarão submetidos à férrea razão da produtividade e “mais sujeitos à violência das
coisas”.
Ainda com Marx,
... em seu impulso cego, desmedido, em sua voracidade por trabalho excedente, viola o
capital os limites extremos, físicos e morais, da jornada de trabalho. Usurpa tempo que
deve pertencer ao crescimento, ao desenvolvimento e à saúde do corpo. Rouba o tempo
necessário para se respirar ar puro e absorver a luz do sol. Comprime o tempo destinado
às refeições (...) O sono normal necessário para restaurar, renovar e refazer a força física
reduz o capitalista (...) Não tem qualquer sentido o tempo para educação, para o
desenvolvimento intelectual, para preencher funções sociais, para o convívio social, para
livre exercício das forças físicas e espirituais, para o descanso dominical... .18
A sociedade contemporânea em absoluto ultrapassou a situação em que o controle
dos processos sócioeconômicos fundamentais pertence ao capital, isto é, à classe dominante,
permanecendo, portanto, oposto aos interesses dos trabalhadores. É, pois, uma ilusão imaginar
que nesta realidade social, na qual a satisfação das necessidades mais elementares é, para a
maioria do planeta, algo a ser conquistado a cada dia, já estejam dadas as condições de
possibilidade de realização da utopia do tempo livre, em que as atividades serão
autodeterminadas, e os indivíduos poderão eleger livremente o que mais lhe satisfaz realizar.
Lembra-nos Mészáros que,
... enquanto o capital puder encontrar novas saídas para a expansão do vasto terreno de
sua ascendência global, a não possibilidade de realização do indivíduo social permanece
apenas uma contradição latente desta sociedade, em vez de ‘explodir’ suas bases
estreitas.19
Em Marx está bastante clara a dependência histórica que a instauração da sociedade
do tempo livre tem em relação à permanência das determinações capitalistas sobre a sociedade do
trabalho. No Terceiro Manuscrito (V) argumenta que,
A abolição positiva da propriedade privada constitui a abolição positiva de toda
alienação, o regresso do homem à sua existência humana, isto é social (...) assim como a
sociedade produz o homem enquanto homem, assim ela é por ele produzida. A
actividade e o espírito20 são sociais tanto no conteúdo como na origem; são actividade
social e espírito social.21
É fundamental se entender a radicalidade desta condição para não se cair na ilusão de
que o progresso técnico-científico é portador em si das condições de liberação do trabalho. Nunca
17
István Mészáros, Filosofia, Ideologia e Ciência Social. Ensaios de Negação e Afirmação. Trad.Laboratório de tradução do
CENEX/FALE/UFMG. São Paulo: Ensaio, 1993.
18
Marx, O Capital., cit, p.300 - 301
19
Mészáros, O Poder da Ideologia, cit., p.374
20
espírito, segundo nota do tradutor português, entendido também como usufruto, gozo.
21
Karl Marx, Manuscritos Económico-Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1993, p.193-194.
8
é demais lembrar o vínculo social da tecnologia e que o processo capitalista de trabalho não pode
ser reduzido ao seus componentes técnicos, uma vez que ele é uma relação social. Na sociedade
capitalista todo avanço técnico-científico, toda redução do tempo de trabalho necessário, tem sido
resultado da busca de maximização do lucro e por isso tem se convertido em meio de extração de
mais-valia.
Contudo é preciso também se ter o cuidado para não cair em outro erro, o de fazer
uma análise factual da realidade descurando-se da dialeticidade ontológica do real.Ainda com
Marx:
El capital mismo es la contradicción en proceso [...] Las fuerzas productivas y las
relaciones sociales se le aparecen al capital únicamente como medios, y no son para él
más que medios para producir fundándose en su mezquina base. In fact, empero,
constituyen las condiciones materiales para hacer saltar a esa base por los aires.22
E isto não será fruto de um determinismo tecnológico, mas tarefa do sujeito social
criado pelo próprio capitalismo e a ele antagônico: a classe trabalhadora. É a luta de classe quem
decidirá o sentido do progresso técnico-científico e da redução do trabalho necessário da
sociedade ao qual este desenvolvimento corresponde.
Face a essas condições, resultantes da ação contraditória dos homens e somente
transformadas por uma ação consciente - inelimináveis, portanto, por força de argumentos
lógicos ou por prédicas morais -, a exposição das contradições do próprio sistema capitalista, em
sua fase tardia, é a perspectiva teórico-metodológica que continua sendo a mais fecunda para a
crítica radical do sistema. Ao mesmo tempo em que põe em evidência os mecanismos de que se
serve o capital para enfrentar os obstáculos a sua valorização, também propicia o rastreamento
dos elementos gerados por essa forma de produção que contêm o germe do desenvolvimento
positivo das reais necessidade humanas.
Não é supérfluo repetir que, na atual fase do capitalismo, a produção e a circulação de
bens e serviços, estando subordinada aos objetivos da acumulação do capital predomina a lógica
de produção capitalista de mercadorias. Nem mesmo o ufano trabalho por conta própria,
aclamado como autônomo, que se realiza dentro de casa, com todos os recursos tecnológicos, e
cujo produto é vendido através de fax ou pela internet, independe das condições gerais da
produção e circulação capitalista de mercadorias, tampouco é o trabalhador dono de seu tempo de
trabalho para, livremente, estabelecer o nº de horas de trabalho, de descanso e de lazer. Nesse
novo modo de organização do trabalho, o chamado contaproprismo, a jornada de trabalho se
efetiva num tempo superior às oito horas diárias, conquistadas a ferro e fogo, pela luta
multissecular entre capitalistas e trabalhadores. Desrespeitada, contemporaneamente, pela pressão
do desemprego, pela redução da massa de salário dos que ainda têm emprego e pela ilusão da
onipotência do trabalho autônomo.
Aliás, nada de novo. Sobre a maximização do uso intensivo e extensivo da força de
trabalho – há séculos objetivo precípuo do capital – para ultrapassar até o limite do dia natural23,
Marx já havia se pronunciado. Afirma ele:
22
23
Karl Marx, Elementos Fundamentais para la Crítica de la Economia Política (Grundrisse), .cit., p.229.
Hoje são consideradas moderníssimas as empresas (em paises do primeiro mundo) onde o trabalhador pode escolher a melhor
hora para trabalhar com melhores condições, nem que sejam horas noturnas ou madrigais. Ressalte-se que estas condições não
alteram em nada a sua condição de força de trabalho e são permitidas por servirem diretamente ao aumento da produtividade do
trabalho a serviço dos interesses do capital. Sabe-se que o trabalhador só usufrui dos ganhos da produtividade do trabalho em
situações temporárias a depender da correlação de forças entre as classes sociais, isto é, da luta de classes.
9
A partir do nascimento da indústria moderna, no último terço do século XVIII, essa
tendência transformou-se num processo que se desencadeou desmesurado e violento
como uma avalanche. Todas as fronteiras estabelecidas pela moral e pela natureza, pela
idade ou pelo sexo, pelo dia e pela noite foram destruídas. As próprias idéias do dia e da
noite desvaneceram (...) Eram as orgias do capital.24
Assim, o trabalhador flexível, independente também se relaciona com as condições
geradas a partir de seu trabalho de modo alienado. Está ele numa relação estranhada com o objeto
de seu trabalho, quanto mais produz menos possui; em sua atividade produtiva, que não lhe
pertence; e em relação a si mesmo, porque não produz livre e criativamente. Essa é “A feição que
o modo capitalista de produção imprime às condições e aos produtos do trabalho em relação ao
trabalhador...”, a qual, como o desenvolvimento técnico-científico e as novas formas de
organização do trabalho, se torna ao mesmo tempo mais dura e mais invisível.
Sob o capitalismo contemporâneo, o trabalhador, desamparado pelo sistema de
regulamentação da jornada de trabalho e dos direitos do trabalho está, mais do que nunca,
resignado à sanção bíblica aplicada ao homem infrator: “comerás o teu pão com o suor do teu
rosto”, ou condenado a aplicar sua força de trabalho o mais intensamente possível para poder
satisfazer as suas necessidades primárias, ou ainda, “... socialmente compelido a vender todo o
tempo ativo da sua vida, sua própria capacidade de trabalho, seu direito à primogenitura por um
prato de lentilhas” 25.
A ilusão, muito difundida, de que as novas formas de organização do trabalho
permitem ao trabalhador passar de um trabalho heterodeterminado e canalizar sua energia
criativa para um trabalho autônomo e livre é desmentida pela objetiva realidade da
potencialização da exploração, hoje escamoteada pela ideologia, segundo a qual não mais se vive
numa sociedade onde o trabalhador vende ao capitalista sua força de trabalho, porém numa
sociedade de produtores independentes de mercadorias. A discussão de Marx sobre o fetichismo
da mercadoria é esclarecedora para a compreensão dessa nova forma de produção na qual o
trabalho vivo se torna evanescente, contudo a produção capitalista de riqueza continua nele
fundada. Afirma Marx,
... os trabalhos privados atuam como partes componentes do conjunto do trabalho social,
apenas através das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por
meio destes entre os produtores. Por isso, para os últimos, as relações sociais entre seus
trabalhos privados aparecem de acordo com o que realmente são, como relações
materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas, e não como relações sociais
diretas entre indivíduos em seus trabalhos.26
Não se pode, absolutamente, desconsiderar os vários fenômenos que estão se
processando no interior e na superfície do sistema capitalista – mantidas, nunca é demais repetir,
as condições essenciais de vigência do domínio do capital sobre o trabalho – nem subestimar as
repercussões desses fenômenos reais na representação da sociedade burguesa. Contudo difícil é o
enfrentamento do complexo problema da alienação, crescentemente exacerbado por toda a
parafernália que o sistema produtor de mercadorias produz e lança mão para dificultar a visão do
que há para além da vitrine do planetário shopping center, isto é, da realidade fenomênica da
24
Marx, O capital, cit., p.316.
25
Idem, ibidem, p.308
26
Idem, ibidem, p.81-82
10
sociabilidade capitalista e, sobretudo, para escamotear as mediações sociais que vinculam os
indivíduos ao mundo da produção.
Ao mesmo tempo em que as contradições da realidade social vão se tornando mais
agudas, a orientação ideológica dominante se efetiva através de mecanismos dissimuladores da
exploração e expropriação, próprias do modo capitalista de produção de mercadorias, os quais
vão se tornando mais e mais eficientes face à derivação do capital para a produção cultural.
Então, sobre a materialidade das novas formas de organização do trabalho, que têm sua razão de
ser no fato de atenderem às exigências de maximização de lucros e de controle sobre a força de
trabalho, forma-se uma bruma que opacifica as reais determinações sócioeconômicas das
transformações que vêm ocorrendo no mundo do trabalho – com severas repercussões no
movimento político dos trabalhadores –, criando a atmosfera de legitimidade à tendência
“moderna” de desenvolvimento do sistema capitalista. Ë difícil não se sucumbir ao argumento da
“necessidade necessária”.
Os procedimentos teóricos baseados no marxismo estão, pois, em sentido inverso aos
da epistemologia das ciências sociais contemporâneas: buscam “destruir a aparência de
casualidade” de que se revestem os fenômenos econômico-sociais, isto para falar apenas do
aspecto da reflexão. Sabe-se que não é a questão da teorização em si o que mobiliza as
investigações científicas no campo marxista, senão o problema político da transformação prática
da sociedade capitalista. Em status nascendi, o marxismo já traz explícita a sua função histórica,
a de ser a teoria de uma classe que quer se transformar em classe dirigente. Nele atividade teórica
e atividade prática estão necessariamente imbricadas; “... trata-se de uma filosofia que é também
uma política e de uma política que é também uma filosofia”27.
Para o pensamento que se julga avançado, nas ciências sociais contemporâneas, toda
a contribuição de Marx caducou fundamentalmente porque sua teoria estaria restrita à sociedade
do trabalho. Deixando de ser o trabalho uma realidade que estrutura e organiza as relações
sociais, suplantado por um novo tipo de intercâmbio e de comunicação entre os homens, perde
também sua importância teórica. Logo, o marxismo nada tem mais a dizer. Substitui-se a
centralidade ontológica do trabalho pela centralidade fenomenológica do mundo de vida e
consideram-se, então, já superadas, as formas discursivas universais de explicação macro-social.
À base de uma análise parcial do real vêm-se produzindo novos olhares através dos
quais não se enxergam mais as contradições estruturais entre capital e trabalho nem as
antagônicas relações entre as classes sociais. “É neste contexto que surge a idéia de que a
humanidade atingiu o teto da história e que, por isso, hoje se pode entoar o réquiem das
ideologias e da luta de classe da luta de classes”28. A materialização dessa postura teórica é
visível no movimento epistemologista que vem buscando teorizar acerca das novas questões
postas ao homem pela atualidade da forma de ser do capitalismo.
27
Antonio Gramsci, Concepção Dialética da História. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro. Civilização brasileira.
1986, p.107.
28
Francisco José Soares Teixeira, (Org.) Neoliberalismo e Reestruturação Produtiva. São Paulo: Cortez/UECE, 1996, p.18. Para
uma crítica a essa tendência, que acaba por dar argumentos aos apologetas do fim do antagonismo entre as classes sociais – os
quais agem no sentido de persuadir para a crença de que uma nova sociabilidade emerge, graças à ação dos movimentos sociais –
ver a análise de Antunes sobre a diferença entre a luta da classe-que-vive-do-trabalho e das outras modalidades de lutas sociais
(como a ecológica, a feminista, a dos negros, a dos homossexuais etc.) para as transformações que caminhem em sentido
contrário à lógica de acumulação do capital e do sistema produtor de mercadorias.
11
Assim, toda fertilidade teórica do marxismo, que reside no fato de ter captado a
centralidade do trabalho29 na produção da realidade humano-social e de ter analisado o trabalho
do ponto de vista ontológico, decompondo-o em seus componentes essenciais, teleologia e
causalidade, cuja relação é modelo para todas as outras formas de práxis, é posta em questão.
Este caráter paradigmático do trabalho significa que o modo de operar do homem constitui o
fundamento ontológico das categorias mais específicas e mais complexas da sociabilidade,
porque “... no trabalho já estão in nuce, nos seus traços mais gerais, mas também mais decisivos,
problemas que em estágios superiores do desenvolvimento humano se apresentam de forma mais
generalizada, desmaterializada sutil e abstrata”30.
O trabalho, modo genuíno de determinação distintiva da existência humana frente à
animalidade, continua sendo para o marxismo o eixo norteador para a exposição das reais
conexões entre as condições materiais da produção e a superestrutura ideológica. A gênese e o
desenvolvimento da realidade humano-social, suas mais avançadas conquistas, tanto no plano
material como no plano espiritual, são derivados da base ontológica inabalável do intercâmbio do
homem com a natureza. Ainda que tenham se tornado muito complexas as mediações que se
interpõem nesta relação, que a ciência tenha atingido um alto grau de abstração que a faça
independente das posições teológico-causais originadas no trabalho (autonomia sempre relativa)
ou que as formas superiores de práxis tenham até ganhado supremacia, o trabalho continua a ser o
fundamento material da vida social.
Assim, para uma abordagem ontológica do ser social, o trabalho é o determinante do
aparecimento de outros complexos sociais; das exigências nascidas do trabalho, isto é, das
necessidades originadas na complexa relação dos homens com o mundo vão se desenvolvendo,
complexificando, ganhando autonomia relativa, a linguagem, o direito, a moral, a ciência etc.
Não obstante o crescente “afastamento das barreiras naturais”, por mediações de mediações,
permanece ontologicamente determinante a necessidade do intercâmbio do homem com a
natureza, mediante o trabalho, para a história de cada um desses complexos sociais parciais.
Sendo dialético o modo de exposição das determinações do real, isto permitiu a
Marx desvelar a contraditoriedade presente no processo de trabalho, explicitando-o tanto
em sua acepção geral, enquanto processo que permeia todo o ser do homem, “... condição
fundamental de toda a história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser cumprida
todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos”31, como em sua
acepção particular, historicamente determinada na forma capitalista de trabalho: trabalho
reduzido à força de trabalho, base de toda a alienação.
O desvelamento da problemática do estranhamento do trabalho - perda pelo
trabalhador do controle do processo e do produto de seu trabalho, em conseqüência do processo
de alienação de si mesmo – não levou Marx a tirar desta constatação conclusões de cunho
moralistas e/ou fatalistas, à base da “crítica romântica”. Como afirma Lukács,
29
O marxismo não instituiu a centralidade do trabalho na vida dos homens; apenas captou o que está na realidade. Assim, à
centralidade teórica corresponde a centralidade ontológica. Aliás, já Aristóteles analisou o processo de trabalho do ponto de vista
ontológico, decompondo-o em seus componentes essenciais: teleologia e causalidade.
30
Georg Lukács, O Trabalho, cit., p.26.
Karl Marx e Friedrich Engels, A Ideologia Alemã (Feuerbach). Trad. José Carlos Bruni e Marco Aurélio Nogueira. São Paulo:
HUCITEC, 1986, p.39.
31
12
Marx prossegue por caminhos objetivo-ontológicos, e não subjetivo-axiológicos [...]
Interessava-lhe compreender o processo capitalista como um todo, isto é, como síntese
entre o que é visivelmente aparente e o que está oculto, para, então, desnudar as suas
contradições e apontar as condições de possibilidades de sua superação. Trata-se da
constatação de um estado de coisas ontológico, independendemente, de como ele seja
avaliado posteriormente.32
Sob as relações sociais capitalistas, o trabalho comporta a simultaneidade de dois
processos diversos e contraditórios: o processo essencial, necessário de objetivação social do
homem, como fonte de realização/efetivação da existência humano-social, e o fenômeno,
puramente social, do estranhamento. Assim, o trabalho, processo social que expressa sempre as
condições objetivas de um determinado momento histórico, efetiva-se na sociedade burguesa
para e por meio da produção e reprodução das relações capitalistas de trabalho, contexto este em
que a objetivação das relações sociais cria pari passu a existência humana estranhada .
Desta feita, em sentido ontológico, sob a produção capitalista de mercadorias, o
processo de efetivação do homem e de constituição da realidade humano-social se volatiza face
às exigências do processo de valorização do valor, as quais desenvolvem, desmesuradamente, as
condições objetivas e subjetivas do trabalho, sempre em vista do atendimento das necessidades
do capital. Contudo, sendo este processo contraditório, mesmo que nas relações capitalistas a
negatividade seja uma característica marcante ao trabalho, não o é de forma absoluta33. Apesar
das condições adversas à sua potencialização, o trabalho não perde a sua positividade.
Dialeticidade ontológica desconsiderada por um certo tipo de análise feita unicamente sob o
ponto de vista do aviltamento do trabalho regido pelos interesses do capital
Em relação à questão da incapacidade do marxismo para embasar a análise crítica da
ordem capitalista contemporânea – lembre-se, aliás, que a contestação do pensamento de Marx é
mais antiga ainda – o que se deve ter presente no combate dessa posição teórico-política é a
própria tese, marxista, segundo a qual o movimento teórico segue o movimento do real. Isto
significa, simplesmente, o que não é pouco, - haja vista o lugar que esta tese ocupou no rico
debate e confrontação de Marx e Engels contra o hegelianismo - que as teorias são delimitadas
pelo horizonte das sociedades concretas donde emergem, que é, pois, da materialidade desse
contexto, em seu movimento de ser e vir-a-ser, que se radicam as condições de manutenção das
mesmas34.
Permanecendo ainda presentes as determinações fundantes da relação entre capital e
trabalho, isto é, trabalho reduzido à força de trabalho e capital enquanto apropriação do trabalho
não pago, “... el capital en cuanto aquello que absorve em sí trabajo vivo – ‘cual si tuviera dentro
del cuerpo el amor’ ”35 , o marxismo continua sendo a teoria capaz de dar conta da crítica da
sociabilidade marcada e dominada pelo poder do capital. Se se considera que Marx investigou as
condições objetivas, não apenas a gênese mas também o movimento contraditório da produção e
32
Georg Lukács, Os Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx, cit., p.39.
33
“Marx fala justamente da perda do humano entendida como coisificação ou animalização da existência/transmutação do
humano em animal – mas, essas expressões devem ser compreendidas no sentido do descenso ao nível mais ínfimo do humano, e
não no sentido de que o homem tenha literalmente o estatuto ontológico do animal ou da coisa” (Vázquez, 1986, p.138).
34
Sartre, por exemplo, manifesta sua adesão, “sem reservas a esta fórmula do Capital, pela qual Marx entende definir seu
´materialismo`: ´o modo de produção da vida material domina em geral o desenvolvimento da vida social, política e
intelectual`”(1973, p.132).
35
Karl Marx, Elementos Fundamentais para la Crítica de la Economia Política (Grundrisse), cit., p.227.
13
reprodução da acumulação capitalista, só seria possível negar as suas idéias36 se o capitalismo
tivesse se tornado o avesso de si mesmo.
Nas palavras de Gramsci,
Marx inicia intelectualmente uma idade histórica que provavelmente durará séculos, isto
é, até o desaparecimento da sociedade política e o advento da sociedade regulada.
Somente quando isto ocorrer, a sua concepção de mundo será superada (concepção da
necessidade pela concepção da liberdade).37
A realidade social tardo-capitalista não ultrapassou a experiência histórica que
determinou o capitalismo e, portanto, a que fez gerar o marxismo, ainda que as condições
dinâmicas se alteraram, as articulações se complexificaram, novas determinações surgiram, a
opacidade dos processos sociais turve a compreensão da ordem existente e as relações entre as
classes sociais se encontrem dissimuladas.
Em face disso afirma José Paulo Netto,
O legado marxiano é a teoria do ser social na ordem burguesa e o método para
prosseguir a investigação desta ordem enquanto se mantiver como tal. [...] A
superioridade teórico-metodológica de Marx e seus continuadores é incontestável no
trato de questões fulcrais da ordem burguesa – por exemplo, as crises, o
subdesenvolvimento, o capitalismo monopolista. Mas ela não me parece menos
pronunciada no enfoque de fundamentais problemas contemporâneos, tais como os
novos papéis sócioeconômicos do Estado, as conexões entre o Estado e as grandes
corporações, a revolução científica e técnica e suas implicações na organização do
trabalho, o ‘fenômeno urbano`, as relações da economia mundial no estágio da plena
transnacionalização do capital, as novas formas de dependência (tecnológica, financeira,
etc.).38
Quando a relação de forças sociais e políticas entre as classes instaurarem uma nova
ordem social outras contradições surgirão “para além do capital”, as quais, seguramente, exigirão
para sua explicitação um novo arcabouço teórico-metodológico que apreenda as novas
determinações do real39.
36
Lembre-se que o pensamento de Marx não se constitui um sistema dogmático de verdade absoluta e eterna. O marxismo aplica
a si mesmo o princípio da historicidade de toda concepção de mundo e encarna a contradição entre verdade absoluta e verdade
relativa. Isto porque, “..a história nunca poderá encontrar seu coroamento definitivo num estágio ideal e perfeito da humanidade;
uma sociedade perfeita, um ‘Estado’ perfeito, são coisas que só podem existir na imaginação” (Engels, s.d., 173)
37
Gramsci, Concepção Dialética da História, cit., p.94.
38
José Paulo Netto, Crise do Socialismo e Ofensiva Neoliberal. São Paulo: Cortez, 1993, p.38, 62.
Apenas a titulo de ilustração, retomemos as palavras de Sartre: “Logo que existir para todos uma margem de liberdade real
para além da produção da vida, o marxismo deixará de viver; uma filosofia da liberdade tomará seu lugar. Mas não temos nenhum
meio, nenhum instrumento intelectual, nenhuma experiência concreta, que nos permita conceber esta liberdade ou esta filosofia”
(Op. cit, p.132)
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