HEPATITE C SUAS MANIFESTAÇÕES EXTRA-HEPÁTICAS KAREM LÓPEZ ORTEGA NILCE SAMECIMA KAWAJI Este texto é produto de parte de Monografia de conclusão de Curso de Especialização em Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais da FUNDECTO-FOUSP em 2006. 1- INTRODUÇÃO A hepatite C vem sendo estudada há vários anos. Nos últimos 10 anos, avanços significativos foram feitos no estudo de sua epidemiologia, modos de transmissão, patogênese, diagnóstico e tratamento (STRAUSS et al.,, 1999). A grande maioria das infecções é assintomática e anictérica e, apenas um quarto dos indivíduos, relatam anorexia, fraqueza, náuseas, vômitos e adinamia (AYUB, 2000). Dentre as hepatites virais é a única que apresenta manifestações extra– hepáticas, sendo que a maioria delas possui origem imunológica. O tratamento da hepatite C crônica pode melhorar a evolução dessas manifestações (AYUB, 2000). As manifestações extra-hepáticas podem ser divididas em hematológicas, glandulares, renais e dermatológicas (HAJJAR et al., 1999). Ainda que qualquer alteração sistêmica possa interferir no tratamento odontológico do paciente portador de hepatite C, a síndrome de Sjögren, as lesões liquenóides e o líquen plano, são as manifestações extra-hepáticas de especial interesse em odontologia. 11 2- REVISÃO DA LITERATURA 2.1- Hepatite C 2.1.1 – O vírus O vírus da hepatite C (VHC) foi identificado pela primeira vez em 1989, nos Estados Unidos, a partir de plasmas de chimpanzés contendo o agente da hepatite não A e não B (JUNIOR et al. 1995; FOCACCIA et al., 1997; NAGAO et al., 2004). O VHC é um vírus RNA da família Flaviviridae. Apresenta um formato esférico, com envelope lipídico de diâmetro de 35-50 nm (AYUB, 2000, JUNIOR et al., 1995), que contém genoma em fita simples de polaridade positiva medindo 9,7 kilobases de comprimento (STRAUSS, 2001). Na poliproteína, com uma longa fase de leitura aberta (open reading frame) distinguem-se as proteínas estruturais: core, E1 e E2 (regiões mutáveis) e as não estruturais ou NS (2 a 5). Essas últimas são responsáveis pela replicação viral (STRAUSS, 2001) (Figura 1). Figura 1- Vírus da hepatite C. A) Exemplificação esquemática do VHC (NIDDK, 2006); B) Exemplificação gráfica das proteínas contidas no genoma viral (ANZOLA, BURGOS, 2006). Portanto, o agente etiológico da hepatite C, não é uma partícula homogênea, podendo apresentar uma diversidade ampla de genótipos. Já foram descritos 6 genótipos e 30 subtipos (Figura 2) (MACCONALDT et al., 2004; JUNIOR et al., 1995; BRANDÃO et al., 2001; POLJACKI et al., 2000), sendo os mais estudados os genótipos 1a e 1b. 11 12 Figura 2 – Árvore pilogenética dos tipos e subtipos de VHC (SIMMONDS, 2006). 2.1.2 Curso clínico A grande maioria das infecções é assintomática e anictérica. Após um período médio de incubação de 50 dias (15 a 150 dias), dependendo da carga viral adquirida, quase todos os pacientes apresentam aumento nos níveis de transaminases (AYUB 2000). Após a exposição inicial, o RNA do vírus da hepatite C pode ser detectado no sangue, dentro de 1 a 3 semanas (HAJJAR et al., 1999, AYUB 2000). Somente 25 a 35 % desenvolvem sintomas como mal-estar, dor no hipocôndrio direito, náuseas, vômitos, fraqueza ou anorexia e alguns se tornam ictéricos (HAJJAR et al., 1999). Outros autores relatam que os sintomas podem aparecer em até 50% dos casos de hepatite aguda (JUNIOR et al., 1995). Estima–se que 20% a 30% dos pacientes se livram da infecção, caracterizada pela cura autolimitada, desaparecendo o RNA-VHC e ocorrendo a normalização das enzimas hepáticas (FOCACCIA et al., 1997, AYUB 2000). A probabilidade de a 12 13 infecção aguda evoluir para forma crônica é de aproximadamente 80% (AYUB 2000) (Figura 3). Figura 3 – Representação esquemática do curso clínico da infecção pelo VHC (JORGE, 2006). Configura–se quadro de hepatite crônica quando os pacientes que não conseguem clarear o vírus após seis meses de infecção. Os níveis de transaminases têm ampla oscilação no decorrer da doença, não atingindo a normalização. Nos primeiros vinte anos a infecção segue silenciosamente, e o paciente raramente apresenta fadiga ou mal estar (AYUB 2000). A hepatite C é diagnosticada na doação de sangue ou quando os níveis de transaminases estiverem altos nos exames laboratoriais de rotina. Os sintomas relativos à disfunção hepática, como icterícia, ascite e sangramentos, só aparecem nas fases avançadas (AYUB 2000). O diagnostico de hepatite crônica só pode ser feito após a realização de uma biópsia hepática, que deve ser indicada após seis meses de transaminases persistentemente elevadas (AYUB 2000). 13 14 A cirrose é o ponto final desse processo e acomete os infectados, após, pelo menos, 20 anos de contagio (AYUB 2000). Com cerca de 30 anos de infecção pelo VHC e com quadro de cirrose, pode aparecer câncer de fígado (AYUB 2000). 2.1.3 – Meios de transmissão O VHC é isolado no sangue, urina, saliva, sêmen, liquido ascítico e outra secreções. Entretanto, é a transmissão parenteral o principal meio de disseminação viral, tornando fundamental o controle na qualidade do sangue oferecido na transfusão (AYUB 2000). A mais importante forma de transmissão é por transfusão de hemoderivados. Com a obrigatoriedade de testes para detecção do RNA do VHC em bancos de sangue, houve uma redução nos casos relativos à transfusão (AYUB 2000). Atualmente a transmissão via endovenosa em usuário de drogas é responsável pela metade dos casos novos. Tatuagens, “pieercings”, acupuntura e o uso de cocaína intranasal também são descrito como outra forma de transmissão. Pacientes renais crônicos submetidos à hemodiálise constituem outro grupo de risco. Apesar da transmissão sexual ser incomum, é de grande importância epidemiológica e social. A transmissão vertical parece ser diretamente proporcional à carga viral materna. Também pode ocorrer soroconversão após acidente ocupacional com profissionais de saúde. (AYUB 2000, POLJACKI et al., 2000). A transmissão através de pele ou mucosa ainda não foi provada (POLJACKI et al., 2000). Modos de Transmissão da hepatite C Comuns Incomuns Uso de drogas endovenosas Cocaína intranasal Transfusões de sangue Piercing Acidentes com agulhas Tatuagens Transmissão perinatal Transmissão sexual 14 15 Figura 4 – Modos de transmissão da hepatite C (JORGE, 2006). A figura 5 evidencia os fatores de risco para o contágio pelo VHC. Fatores de risco para o contágio da hepatite C Transfusão de sangue ou derivados Uso de drogas ilícitas Hemodiálise Exposição a sangue por profissionais da área de saúde Receptores de órgãos ou tecidos transplantados Recém-nascidos de mães portadoras Contatos sexuais promíscuos ou com parceiros sabidamente portadores Exposição a sangue por material cortante ou perfurante de uso coletivo sem esterilização adequada: • • • • • • • • procedimentos médico-odontológicos tatuagem (agulhas e tintas) acupuntura manicure / pedicure body piercing contato social ou familiar com material de uso pessoal ( barbeadores, escovas dentais, etc ) "medicina" folclórica ( inclui "cirurgias espíritas" ) barbeiros e cabelereiros Figura 5 – Fatores de risco para o contágio da hepatite C (JORGE, 2006). 2.1.4 - Diagnóstico A pesquisa de infecção pelo VHC se baseia em dois tipos de testes laboratoriais: os testes que detectam anticorpos contra o vírus da hepatite C (ELISA e RIBA) e os que pesquisam a presença do RNA do VHC no soro (PCR). (JUNIOR et al., 1995). O teste sorológico para diagnostico de hepatite C, rotineiramente utilizado desde o inicio dos anos 90, é um teste imunoenzimático (ELISA) para detecção de anticorpos contra o vírus da hepatite C (anti-VHC) (AYUB 2000). Esse teste adquiriu maior sensibilidade e especificidade com o desenvolvimento de suas segundas e terceiras gerações (ELISA II ou III) (STRAUSS 2001). 15 16 Assim sendo, nos casos com valor preditivo alto para a infecção pelo VHC, a reatividade do teste ELISA possui valor diagnóstico definitivo. Na dúvida, é possível requisitar testes confirmatórios, como o imunoblot (RIBA e INNOLIA). A realização desses testes revela-se particularmente útil no descarte de falsos-positivos em populações de baixo risco (STRAUSS 2001, Ayub 2000). Os testes RIBA II ou III têm sido empregados na avaliação diagnóstica de pessoas com baixa probabilidade de infecção pelo VHC e com reação positiva ao teste ELISA (BRANDÃO et al., 2001). A reação em cadeia da polimerase (PCR) é uma das técnicas que amplifica uma parte do genoma do vírus (STRAUSS 2001), utilizando sondas de ácido nucléico (sondas genéticas, ou primers) que são fragmentos de DNA ou RNA com estrutura complementar a uma seqüência do acido nucléico a ser detectado (BRANDÃO 2001). Outra variante técnica é aquela que em vez de parte do genoma viral, amplifica-se o sinal de sua presença, conhecida como “branched DNA” (bDNA), muito mais reprodutíveis porém menos sensíveis do que a PCR (STRAUSS 2001). Os métodos que adotam técnica de biologia molecular para genotipagem, utilizando porções do genoma, incluem a PCR aninhada (“nested PCR”), a técnica de RFLP (“restriction fragment length polymorphism”), a hibridização reversa e o seqüenciamento direto da região não-codificante 5. Suas principais vantagens são a informação direta sobre seqüência dos nucleotídeos do genoma viral, alta sensibilidade, por se basearem na PCR, e a possibilidade de identificar o subtipo viral (BRANDÃO et al., 2001). A biópsia hepática por punção guiada por ultra-sonografia ou por videolaparoscopia é considerada como padrão-ouro no acompanhamento de 16 17 pacientes com hepatite C crônica. Deve ser indicada antes do tratamento para afastar outras possibilidades de hepatopatias e outras contra-indicações. Por se tratar de exame invasivo não isento de morbidade, deve ter uma indicação criteriosa. É contra-indicado em indivíduos com aumento no tempo de protrombina e deve ter indicação cuidadosa nas pessoas com cirurgias gastrintestinais prévias (AYUB, 2000). 2.1.5 - Tratamento O tratamento da hepatite C objetiva deter a progressão da doença hepática pela inibição da replicação viral. A redução da atividade inflamatória costuma impedir a evolução para cirrose e carcinoma hepatocelular, havendo também melhora na qualidade de vida dos pacientes. Os medicamentos disponíveis até o momento, entretanto, conseguem atingir os objetivos propostos em menos da metade dos pacientes tratados. A precocidade do diagnóstico leva ao tratamento de pacientes freqüentemente assintomáticos, impedindo que quase metade deles evolua para fases sintomáticas da doença hepática, de mais difícil controle (STRAUSS, 2001). A eficácia do tratamento deve ser definida bioquimicamente com a normalização das transaminases e com o desaparecimento do antígeno viral. A resposta sustentada é definida como a manutenção dos parâmetros anteriormente citados por, no mínimo, seis meses após o término do tratamento (AYUB, 2000). Até meados da década de 90, a única medicação disponível para o tratamento da hepatite crônica C era o interferon-α. Contudo, após 48 semanas de tratamento, a resposta virológica (negativação do RNA do VHC por PCR) era observada em apenas 5% a 20% dos pacientes. Esse insucesso, apesar das diversas dosagens, preparações e esquemas terapêuticos utilizando monoterapia com interferon, estimulou a realização de estudos com terapia combinada, sendo a 17 18 mais avaliada a associação de interferon-α com ribavirina, um análogo nucleosídio sintético (ALVES, 2003). A combinação do interferon-alfa com a ribavirina melhora a resposta virológica sustentada para 38-43%, com correspondente melhora na análise histológica (biópsia) e, possivelmente, nas complicações a longo prazo da hepatite (mas para esse último faltam estudos prospectivos a longo prazo ) (JORGE, 2006). Hoje recomenda-se a terapia com interferon α - 3.000.000 unidades por via subcutânea, 3 vezes por semana e ribavirina 1.000 mg ao dia por via oral em < 75 kg e 1.200 mg em > 75 kg (JORGE, 2006). Infelizmente, os melhores resultados do tratamento são naqueles pacientes com doença que naturalmente seria mais benigna, ou seja, genótipo do vírus que não seja o 1, baixa viremia e ausência de fibrose ou cirrose ao início do tratamento (JORGE, 2006). Mesmo na ausência de fatores benéficos ao tratamento, ele deve ser realizado, mas recomenda-se que dure 48 semanas, ao contrário das normais 24 semanas (nos pacientes acima, não há melhora significativa da resposta dobrandose o tempo de tratamento, mas nos casos mais severos sim ) (JORGE, 2006). Os interferons são glicoproteínas produzidas por células infectadas por vírus. Até agora foram identificados três tipos: o alfa, produzido por linfócitos B e monócitos, o beta, por fibroblastos e o gama, por linfócitos T-helper e NK. O IFN-alfa age diretamente contra o vírus e também aumenta a resposta imune (JORGE, 2006). Bioquímicamente, os interferons pertencem à superfamília das citoquínas e modulam a atividade de vários componentes do sistema imune, aumentando a habilidade dos organismos na luta contra infecções bacterianas, parasitarias e virais. 18 19 Constituem–se, portanto, em famílias de proteínas responsáveis por efeitos antivirais, antiproliferativos e imunomoduladores por excelência (CONTE, 2000). A ribavirina é uma análogo sintético da guanosina que tem ação direta contra vírus RNA e DNA, por provável mecanismo de inibição da DNA polimerase vírusdependente. A ribavirina sozinha, no entanto, não tem qualquer efeito sobre a hepatite C (JORGE, 2006). Recentemente uma nova formulação de interferon foi introduzida no tratamento dos pacientes portadores do VHC, o Interferon peguilado ou peginterferon. Associando a molécula polietilenoglicol ao interferon, conseguiu-se produzir uma nova modalidade de interferon com absorção e eliminação mais lentas. Graças a isso, o interferon peguilado pode ser administrado por via subcutânea apenas uma vez por semana e ainda manter um nível no sangue contínuo, mais adequado que as três administrações semanais do interferon comum - o resultado são melhores resultados e uma discreta menor incidência de efeitos colaterais. Em monoterapia, a taxa de resposta virológica sustentada é de 39%, com resultados ainda maiores com a associação peginterferon + ribavirina (JORGE, 2006). Alem da baixa eficácia terapêutica, os medicamentos disponíveis, interferon e ribavirina, provocam efeitos colaterais importantes e devem ser administrados por período de tempo prolongado, exigindo monitoração médica especializada constante. Outro aspecto a ser considerado é o alto custo do processo terapêutico, onerando não apenas os indivíduos acometidos, mas toda a sociedade, já que em nosso país existe a distribuição dos medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (STRAUSS, 2001). 19 20 Em 1 a 2% dos casos aparecem manifestações auto-imunes em pacientes sob tratamento com interferon: tireoidite, síndrome de Sjögren, artrite e anemia hemolítica (Figura 6). Lesões liquenóides induzidas por medicamentos podem estar presentes com várias características clínicas, incluindo as lesões clássicas de líquen plano, lesões psoriasiformes, pápulas eczematosas e placas, localizadas ou generalizadas. Lesões liquenóides surgem caracteristicamente no tronco e nas extremidades, diferindo da distribuição flexural do líquen plano clássico. O período de latência para o desenvolvimento das lesões líquenóides varia de meses a mais de 1 ano, baseado na dosagem, resposta do hospedeiro e tempo de exposição à droga (ARMOUR et al., 2005). Efeitos colaterais do tratamento com interferon alfa e ribavirina na hepatite C Leucopenia Neutropenia Trombocitopenia Anemia hemolítica Fadiga Depressão e outros transtornos psiquiátricos Sintomas "gripais": febre e dores musculares Sintomas gastrointestinais: náuseas e perda do apetite Sintomas respiratórios: tosse e falta de ar Dificuldade no controle de diabetes Disfunção na tireóide: hiper ou hipotireoidismo Sintomas dermatológicos: descamações (rash) e perda de cabelos Risco aumentado de defeitos de nascença em grávidas Figura 6 - Efeitos colaterais do tratamento com interferon alfa e ribavirina na hepatite C (JORGE, 2006). O desenvolvimento de líquen plano em pacientes com hepatite C crônica em uso de interferon α, com ou sem ribavirina, tem sido relatado. Não há tendência 20 21 particular entre os tipos de interferon α (2a ou 2b, padrão ou peguilado) para indução das reações liquenóides. É interessante notar que pacientes com hepatite C crônica e com líquen plano, tratados com interferon α, apresentam melhora no líquen plano coexistente. A ribavirina sozinha pode causar foto-sensibilidade, mas não está associada ao aparecimento de líquen plano ou lesões liquenóides. Destacam-se, alguns casos de lesões liquenóides induzidas secundariamente ao uso de propanolol G-CSF (ARMOUR et al., 2005). A infecção pelo VHC afeta cerca de 170 milhões de pessoas no mundo (SÈNE et al., 2004). Seguida à infecção aguda, desenvolve-se hepatite crônica em 80% dos casos, podendo levar ao carcinoma hepatocelular. (LAUER and WALKER 2001 apud SÈNE, 2004). Outras doenças são freqüentemente relatadas, associadas à infecção pelo VHC, porém sem necessariamente provar a real associação (SÈNE et al., 2004). 2.2- Manifestações extra-hepáticas no VHC A ocorrência de manifestações extra-hepáticas não é muito elucidada, por causa dos mecanismos envolvidos em sua gênese e pela repercussão multisistêmica da hepatite C, que envolve uma complexa resposta vírus-hospedeiro (HAJJAR et al., 1999). Embora as evidências sejam ainda incompletas, as síndromes extrahepáticas, observadas na hepatite viral crônica, parecem ser mediadas por mecanismos imunológicos. Esses pacientes comumente, apresentam manifestações imunológicas, incluindo auto-anticorpos circulantes e doenças auto-imunes (HAJJAR et al., 1999). Há vários mecanismos potenciais para explicar as manifestações extrahepáticas da infecção pelo vírus da hepatite C, incluindo: (1) injuria direta citopática; 21 22 (2) lesão produzida pela deposição de imunocomplexos; (3) resposta imunológica induzida pelo vírus, como a formação de auto-anticorpos ou ativação de linfócitos citotóxicos; (4) indução de linfócitos monoclonais ou policlonais; e (5) lesão produzida pelos efeitos indiretos da resposta inflamatória, como pela liberação de citocinas (como os interferons e o fator de necrose tumoral) (HAJJAR et al., 1999). Entre as manifestações extra-hepáticas associadas à hepatite C, podem ser citadas a crioglobulinemia mista e suas complicações em pele, alterações neurológicas e renais e o envolvimento reumatológico. Outras doenças como vasculite sistêmica leucocitoclástica, linfoma, fatiga, porfíria cutânea tardia, síndrome de Sjögren, produção de auto-anticorpos e glomerulonefrite (Nagao, 2004) Também são evidenciadas as manifestações de moderado grau de associação à hepatite C, que incluem o linfoma não-Hodgkin de células B, trombocitopenia auto-imune, urticária e Diabetes Mellitus tipo II. Outras doenças, como a tireoidite auto-imune e o líquen plano, são questionadas quanto a sua eventual associação com o VHC (SÈNE et al., 2004). A primeira associação da infecção crônica pelo vírus C com manifestações imunomediadas foi sugerida em 1990, quando foram relatados dois pacientes com hepatite C e crioglobulinemia mista. Desde então, um número considerável de manifestações extra-hepáticas tem sido descrito. Didaticamente, as manifestações extra-hepáticas podem ser divididas em hematológicas, glandulares, renais e dermatológicas (HAJJAR et al.,, 1999). 2.2.1- As alterações hematológicas: Crioglobulinemia mista Crioglobulinas são imunoglobulinas circulantes ligadas a outras imunoglobulinas ou proteínas que se precipitam de forma reversível em baixas 22 23 temperaturas. Os sintomas da crioglobulinemia do tipo I são decorrentes da oclusão vascular resultante da precipitação protéica. Já a crioglobulinemia mista (tipo III) é uma doença por deposição de imunocomplexos (LEVY, 2006). As crioglobulinas do tipo I são imunoglobulinas monoclonais, IgG ou IgM mais freqüentemente, embora IgA e proteínas de Bence Jones já tenham sido identificadas. Crioglobulinas do tipo II consistem em dois tipos de componentes de imunoglobulinas, sendo um deles monoclonal. A composição mais comum é de um fator reumatóide IgM monoclonal formando um complexo com uma IgG policlonal. Embora a concentração de crioglobulinas do tipo II seja muito alta, um pico monoclonal típico nem sempre é aparente na imunoeletroforese. Os fatores reumatóides monoclonais do tipo IgG são identificados em 10% dos casos de crioglobulinemia do tipo II, e os fatores reumatóides do tipo IgA são raros (LEVY, 2006). A crioglobulinemia mista é uma doença linfoproliferativa, que pode levar a deposição de imunocomplexos circulantes, em vasos de pequeno e médio calibre. Em muitos casos, apresenta-se com a tríade clínica de púrpura palpável, artralgia e fraqueza, mas pode envolver os rins, o sistema nervoso e o cérebro (HAJJAR et al., 1999, POLJACKI et al., 2000). Pode ser detectada em 35-54% dos pacientes com hepatite C. Quando a crioglobulemia ocorre em associação com uma doença primaria como a síndrome de Sjögren, denomina-se crioglobulemia essencial mista (HAJJAR et al., 1999). Encontrar anticorpos VHC e/ou RNA viral em 96 % dos pacientes com crioglobulinemia mista, pode ser considerado prova definitiva entre a associação da etiopatogenia entre a infecção da hepatite C e a crioglobulinemia mista (POLJACKI et al., 2000). 23 24 Embora as crioglobulinas sejam encontradas em vários pacientes, sintomas só ocorrem em 25 % dos casos (HAJJAR et al., 1999). Diversas formas de tratamento são empregadas no controle da crioglobulinemia mista, entre elas os imunossupressores, como os corticóides. Mas, geralmente o tratamento do VHC, baseado na terapia com interferon, apresenta resultados satisfatórios no controle dessa doença (MAZZARO et al.,2000). Linfoma Ferri et al., (1996) descreveu um aumento na prevalência de anti-vírus VHC (20 a 40%) em pacientes com linfomas não-Hodgkin, mas não em outras neoplasias hematológicas. Duas grandes séries mostraram que a correlação mais forte ocorria no imunocitoma, um tumor com malignidade de baixo grau associada com a crioglobulinemia. A possibilidade de que a crioglobulinemia por vírus VHC poderia progredir par um linfoma não-Hodgkin foi testada em um estudo com 31 pacientes com crioglobulinemia mista e RNA do vírus VHC no soro e na medula óssea. A biópsia de medula óssea confirmou a presença de linfoma não-Hodgkin de baixo grau em 12 (30%) e de infiltração medular policlonal não reativa em 11 (36%). O seguimento desses pacientes mostrou a progressão de distúrbios linfo-proliferativos em 50% dos casos. Embora o RNA viral fosse detectado em todos os pacientes, evidências clínicas e bioquímicas de doença hepática só eram presentes em 48% e anticorpos anti-VHC eram indetectáveis em alguns. Não está claro se o desenvolvimento do linfoma não-Hodgkin está relacionado a um efeito direto do vírus da hepatite C nos linfócitos ou se a proliferação monoclonal ou policlonal é induzida por estímulo viral ou por inflamação crônica. O fato é que o RNA do VHC tem sido detectado em linfonodos de pacientes com linfoma não-Hodgkin, mas este não tem a capacidade de se integrar ao DNAm do hospedeiro e não apresenta oncogenes 24 25 conhecidos nem a transcriptase reversa, o que torna improvável um efeito oncogênico (FERRI et al., 1996). Anemia aplástica O desenvolvimento de anemia aplástica tem sido descrito em seguida a hepatite por vírus C pós-transfusional, em associação com anticorpos anti–LKM1 e crioglobulinemia. Em séries maiores, não houve diferença na prevalência de antiVHC em anemia aplástica associada à hepatite e anemia aplástica de outras causas. A detecção do RNA do vírus da hepatite só se correlacionava com o número de transfusões de sangue, recebidas após o desenvolvimento da anemia aplástica. Apesar ser uma associação rara (HAJJAR et al., 1999). 2.2.2- Alterações glandulares: Tireoidopatias As doenças da tireóide são as doenças auto-imunes mais comumente associadas com a hepatite C crônica. Anticorpos anti-tireóide estão presentes em 5,2 a 12,5 % dos pacientes com hepatite C (PANTERON et al. , 1993 apud HAJJAR et al., 1999). A doença da tireóide, principalmente o hipotiroidismo, ocorre em 3,1 a 5.5 % dos pacientes (TRAN et al, 1993). A maior prevalência, tanto de anticorpos quanto de doença clinicamente manifesta, encontra-se entre as mulheres mais velhas. Porém, um estudo suscitou duvidas sobre essa associação, na medida em que não encontrou diferença na prevalência de anticorpos anti-tireóide entre doadores normais e aqueles com hepatite C (WILSON, 1997 apud HAJJAR et al., 1999). 25 26 O interferon pode induzir à formação de anticorpos anti-tireoide e à doença tireoideana, que às vezes desaparecem após a suspensão do tratamento, fato que pode confundir a investigação sobre sua gênese (HAJJAR et al., 1999). Síndrome de Sjögren A síndrome de Sjögren clássica é uma desordem auto-imune caracterizada por infiltração linfocítica das glândulas salivares e lacrimais, decorrente da disfunção de linfócitos T e da hiper-reatividade de células B, associados ao aumento da produção de imunoglobulinas e de auto-anticorpos, apresentando a tríade característica de xerostomia, xeroftalmia e artrite reumatóide. (CABRAL et al., 2001, MELO et al., 2000). A doença pode ocorrer de forma isolada (Síndrome de Sjögren primária) ou associada a outras doenças reumáticas auto-imunes (Síndrome de Sjögren secundária). Em alguns casos, esta síndrome pode se apresentar com sintomas vagos relacionados apenas com xerostomia e xeroftalmia em outros, o processo auto-imune pode assumir a forma de uma doença grave, afetando vários outros órgãos. A síndrome pode ser acompanhada de outras doenças presumivelmente auto-imunes, como a cirrose biliar primária, hepatite crônica ativa, poliartrite, lúpus eritematoso sistêmico, esclerodermia, poliartrite nodosa, macroglobulinemia de Waldenströn e tireoidite de Hashimoto. Microscopicamente as alterações são há muito conhecidas sob o nome de Mikuliez ou lesão linfoepitelial benigna (MELO et al., 2000). Foram sugeridas varias causas para esta síndrome: genéticas, hormonais, infecciosas e imunológicas. Alterações imunológicas sugerem um processo mórbido de grande complexidade. A alteração generalizada se refere a uma hiperatividade policlonal das células B que reflete uma falta de regulação por subpopulações da 26 27 célula T. Basicamente uma reação inflamatória crônica, de origem auto-imune, que pode ficar limitada às glândulas exócrinas ou se propagar, envolvendo distúrbios sistêmicos do tecido conjuntivo (MELO et al., 2000). A síndrome acomete predominantemente mulheres na meia idade (proporção de 9:1 homens), embora possa ser vista em todas as idades, incluindo a infância. A prevalência da síndrome de Sjögren primaria é de cerca de 0,5% a 1% e cerca de 30 % dos pacientes com doenças reumatóides apresentam síndrome de Sjögren secundária (MELO et al., 2000). A característica típica da doença primária é a secura da boca e dos olhos, em conseqüência da hipofunção das glândulas salivares e lacrimais. Isto, freqüentemente, resultando em sensação dolorosa de queimação da mucosa bucal, nariz, laringe, faringe e arvore traqueo-bronquial (buco-faringo-laringite seca) e a vagina. Na forma secundária, a artrite reumatóide e lúpus eritematoso são as doenças auto-imunes mais comuns. Menos freqüente, doenças como esclerodermia, cirrose biliar primaria, polimiosite, vasculite, parotidite e hepatite crônica ativa. Há relatos de que os pacientes apresentam maior incidência de linfomas, acometendo pulmões (doença pulmonar intersticial difusa subclinica) e o trato gastrintestinal. Os linfomas podem aparecer após vários anos de aparência benigna, geralmente em pacientes com doença sistêmica (MELO et al., 2000). Pacientes com Sjögren e infectados pelo vírus da hepatite C comumente têm capilarite linfocítica (17 a 49%), mas tendem a apresentar uma forma mais leve que aquela observada na doença primária. Apenas 14% tem as manifestações histológicas observadas no Sjögren “verdadeiro”. Além disso, a sialoadenite linfocítica, observada na infecção pelo vírus C, em muitos casos não se associa com xerostomia ou com a presença de anticorpos anti-Ro (SS-A). Também difere a 27 28 natureza do infiltrado inflamatório observado nesses pacientes, predominantemente constituído de linfócitos CD8, contrastando com o observado no Sjögren primário. As diferenças clínicas e patológicas sugerem que a infecção pelo vírus da hepatite C está associada com a sialoadenite linfocítica crônica e não com a síndrome de Sjögren verdadeira (HAJJAR et al., 1999). A sialoadenite linfocítica consistente com síndrome de Sjögren foi, inicialmente, descrita em 57% de pacientes com hepatite crônica, mas estudos mais recentes, em pacientes com Sjögren primário, mostraram que a infecção com o VHC ocorria em percentagem similar a da população–controle. Em estudo realizado em 110 japoneses com doenças crônica de fígado; sendo 29 com o vírus da hepatite B (VHB) e 81 com o VHC, foi observado que a prevalência da Síndrome de Sjögren, de acordo com critérios europeus e japoneses, foi significantemente mais elevada em pacientes com infecção crônica de VHC do que nos pacientes com infecção crônica de VHB. Simultaneamente, combinando líquen plano oral e síndrome de Sjögren observou-se 8,6% (7/81) pacientes com infecção pelo VHC, mas apenas em 9 com infecção pelo VHB (NAGAO et al., 2003). Estudo na França encontrou 57 % de infecção crônica de VHC associado à doença crônica do fígado, exibindo grau 3 ou 4 de sialadenites. Um estudo subseqüente notou que, em contraste à síndrome de Sjögren, a infiltração linfocítica nos pacientes infectados pelo vírus VHC foi pericapilar ao invés de peridural, com uma não destruição dos ductos das glândulas salivares e que capilares linfocíticos assemelham-se a um estágio inicial da doença. Dados remotos mostram que até 80% de indivíduos infectados pelo vírus VHC, poderão ter alguma anormalidade salivar ou lacrimal, freqüentemente representado por sinais histopatológico de sialadenite moderada, evidencia clínica de boca seca e, principalmente, de olhos 28 29 secos, está freqüentemente ausente (mas, pode ser subestimado). Alguns estudos parecem indicar que esta sialadenite pode ser significantemente diferente da que síndrome de Sjögren primária (CARROZZO et al., 2003). Pacientes infectados com VHC podem ter síndrome de Sjögren com sialadenite com sintomas clínicos moderados, embora se tenha poucos dados sobre as funções salivares e lacrimais desses pacientes (CARROZZO et al., 2003). 2.2.3- Alterações renais As alterações renais, como a glomerulonefrite membranoproliferativa e a síndrome nefrótica, têm sido descritas como manifestações extra-hepáticas associadas à hepatite C. A relação entre insuficiência renal e hepatite C aumenta consideravelmente na presença de crioglobulinemia. O tratamento com interferon resulta na redução da proteinúria, correlacionada com a redução da viremia. Mas, não se observa melhora da função renal. Sendo comum a recidiva da viremia e da doença renal. Alguns pacientes com infecção crônica pelo vírus C também podem apresentar proteinúria e insuficiência renal na ausência de crioglobulinemia, o que sugere que todos os pacientes com doença glomerular devem ser submetidos à sorologia para o vírus C. Além da doença glomerular, inflamação e atrofia tubulointersticial são comuns. Esses dados apontam para o fato de que o vírus da hepatite C possivelmente represente um fator crítico no desenvolvimento de glomerulonefrite em alguns pacientes cuja etipatogênese parece estar relacionada com a deposição de imunocomplexos associada com a crioglobulinemia ou com a deposição de antígenos virais, seguida de uma resposta imunológica. Hipóteses alternativas advogam que a infecção crônica com o vírus da hepatite C resulta na formação de autoanticorpos que reagem com antígenos nativos renais e que a doença crônica 29 30 hepática, pode contribuir para a patogênese da glomerulonefrite membranoproliferativa diretamente (HAJJAR 1999). 2.2.4 - Alterações dermatológicas Vasculite leucocitoclástica A vasculite leucocitoclástica se caracteriza pelo processo inflamatório de pequenos vasos cutâneos, principalmente vênulas, podendo alcançar também artérias, promovendo necrose de pele. Histologicamente observa-se a presença de leucocitoclasia (resíduo de núcleos de leucócitos), promovendo a "poeira nuclear" (PANICO, 1998). A apresentação mais freqüente é a púrpura palpável, que tem predileção pelos membros inferiores e comumente está associada ao envolvimento articular, mas também pode haver a vasculite urticariforme, de curta duração e não pruriginosa. A vasculite de vasos de médio calibre manifesta-se usualmente por neuropatias: polineuropatia simétrica, mononeurite simples ou múltipla, neuropatia autonômica ou cranial. Na pele, pode haver lesões ulceradas (como na poliarterite nodosa), livedo reticular, rash maculopapular e paniculite. está associada à positividade do fator reumatóide e do fator antinuclear (FAN), à presença dos anticorpos anti-Ro (SSA) e anti-La (SSB), ao consumo de frações do complemento e à presença de hipergamaglobulinemia e crioglobulinas. Os pacientes que apresentam hipergamaglobulinemia costumam evoluir com ataques recorrentes de púpura palpável (BACON, CARRUTHERS, 1995; RAMOS-CASALS ET AL., 2004). Alguns casos de vasculite leucocitoclástica são descritos em pacientes com hepatite C, sendo geralmente conseqüência da crioglobulinemia. Apresentando–se clinicamente como púrpuras palpáveis e petéquias. A análise histopatológica 30 31 demonstra vasculite dérmica, associada a um infiltrado neutrofílico intra e perivascular (HAJJAR 1999). Porfiria cutânea tardia As porfirias são um grupo de distúrbios provocados por deficiências das enzimas envolvidas na síntese do heme. O heme, um composto químico que transporta o oxigênio e confere a cor vermelha ao sangue, é um componente fundamental das hemoproteínas, um tipo de proteína encontrado em todos os tecidos. A maior quantidade do heme é sintetizada na medula óssea para a produção de hemoglobina. O fígado também produz grandes quantidades de heme e a maioria é utilizada como um componente dos citocromos. Alguns citocromos no fígado oxidam substâncias químicas estranhas, incluindo medicamentos, para que sejam eliminadas mais facilmente do organismo. Oito enzimas diferentes intervêm nas etapas seqüenciais da síntese do heme. Quando existe deficiência de uma das enzimas que participam da produção do heme, os precursores químicos do heme podem acumular-se nos tecidos (especialmente na medula óssea ou no fígado) (MERCK, 2006). A porfiria cutânea tardia, a forma mais comum de porfiria, causa a formação de bolhas na pele exposta à luz solar. A porfiria cutânea tardia ocorre em todo o mundo e é a única porfiria não hereditária. Este distúrbio, uma porfiria hepática, ocorre quando o uroporfirinogênio descarboxilase, uma das enzimas hepáticas necessárias para a síntese do heme, é inativada. Os fatores que contribuem para o seu aparecimento são o ferro, o álcool, os estrógenos e a infecção pelo vírus da hepatite C. Menos comum, a porfiria cutânea tardia ocorre em indivíduos infectados pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV). Embora o distúrbio não seja hereditário, uma deficiência parcial da enzima uroporfirinogênio descarboxilase 31 32 herdada de um dos pais algumas vezes torna o indivíduo suscetível. Nestes casos, ele é denominado porfiria cutânea tardia familiar (MERCK, 2006). Além de ocorrer a formação de bolhas nas áreas expostas ao sol, a pele, especialmente a das mãos, também torna-se sensível a pequenos traumatismos. As bolhas são substituídas posteriormente por crostas e cicatrizes que levam um longo tempo para cicatrizar. A lesão cutânea ocorre porque as porfirinas produzidas pelo fígado são transportadas pelo plasma sangüíneo até a pele. Pode ocorrer um aumento da pilificação facial (MERCK, 2006). A porfiria cutânea tardia é a porfiria mais fácil de se tratar. O procedimento mais amplamente recomendado é a flebotomia, na qual é realizada a remoção de meio litro de sangue a cada 1 ou 2 semanas. Este procedimento acarreta uma discreta deficiência de ferro no paciente. As concentrações de porfirinas no fígado e no plasma sangüíneo diminuem gradualmente e a pele melhora e, finalmente, recupera-se totalmente (MERCK, 2006). A infecção pela hepatite C tem sido considerada um importante fator de precipitação da sintomatologia da porfíria cutânea. Não considerando o alto nível de soropositividade entre porfíria cutânea tardia em pacientes (62-100%), a associação entre com a infecção pelo VHC, ainda não está muito claro (POLJACKI et al., 2000). Líquen plano O líquen plano é uma doença inflamatória crônica relativamente comum. Acomete pele e membranas mucosas, separadamente ou em combinação (NAVASALFARO et al., 2003), podendo acometer a mucosa genital (CUNHA et al., 2002). Freqüentemente envolve a cavidade oral, com ou sem comprometimento cutâneo concomitante. A mucosa oral pode apresentar variações relacionadas às 32 33 características locais da mucosa na cavidade oral (NAVAS-ALFARO et al., 2003, CUNHA et al., 2002). Foi descrito clinicamente pela primeira vez por Erasmus Wilson, em 1969, e, apesar de mais de um século transcorrido após sua primeira descrição, sua etiologia e patogênese permanecem obscuras. (CUNHA et al., 2002, ISSA et al., 1999). A associação entre líquen plano oral e doença hepática crônica foi descrita pela primeira vez em 1978, por Rebora e colaboradores (CUNHA et al., 2002, BORTOLLUZZI et al., 2002). Para alguns autores parece claro o envolvimento da infecção pelo VHC no desenvolvimento de alguns casos de líquen plano oral, entretanto porque isso ocorre ainda não foi esclarecido. A variação de manifestações clínicas do líquen plano oral e seus diferentes cursos, bem como seu potencial cancerizável, sua variação histopatológica e sua etiopatogenia obscura tornam essa doença desconcertante na abordagem clínica dos pacientes por ela acometidos (BORTOLUZZI et al., 2002). A prevalência de líquen plano em pacientes com hepatite C e vice–versa varia amplamente na literatura, com alguns trabalhos mostrando resultados favoráveis a essa associação e outros não apontando uma correlação. Poljacki e colaboradores (2000) evidenciaram 35% de prevalência de desordens hepáticas em pacientes com líquen plano. As manifestações clínicas do líquen plano na infecção pelo VHC eram caracterizadas por lesões de pele generalizadas, com envolvimento erosivo das membranas da mucosa oral. A eficiência da terapia com interferon era variável (POLJACKI et al., 2000). Issa e colaboradores realizaram a pesquisa de anticorpo anti-VHC, em 34 pacientes portadores de líquen plano de pele. Para fins comparativos, 36 pacientes portadores de hepatite C foram submetidos a exame dermatológico na busca de 33 34 lesões sugestivas de líquen plano. Foi constituído um grupo controle de 60 pacientes, doadores de sangue selecionados aleatoriamente em um banco de sangue e aparentemente saudáveis. Entre esses, apenas os que apresentaram sorologia positiva para os VHB e ou VHC foram submetidos a exame dermatológico. Entre os 34 pacientes portadores de líquen plano, apenas 2 apresentaram sorologia positiva para VHC. No grupo de pacientes portadores de hepatite C, nenhum apresentou lesão sugestiva de líquen plano. No grupo controle, o único doador de sangue com sorologia positiva para o VHC também não apresentou lesão sugestiva de líquen plano oral. Os autores concluíram que os índices de positividade para o VHC registrados na casuística dificultavam o limite entre causalidade e casualidade da associação líquen plano à hepatite C (ISSA et al., 1999). Erke e colaboradores, em 2001, avaliaram a presença de anticorpos anti-VHC e RNA do VHC no soro em 54 pacientes com líquen plano e em 54 pacientes com doenças dermatológicas menores. Foram colhidas biópsias de tecidos com e sem lesão cutânea dos pacientes infectados pelo VHC. Relataram 7 pacientes (12,9%) com líquen plano no grupo estudado, e 2 pacientes do grupo controle (3,7%) apresentavam anticorpos anti-VHC positivos. Cinco dos sete pacientes que apresentaram anticorpos anti-VHC positivos apresentavam também RNA-VHC na biopsia de lesão de pele. Estava ausente o RNA viral em 3 das 4 amostras de soro dos pacientes com líquen plano positivos para RNA–HVC e que correspondia com as biopsias de pele não lesionada. A prevalência de infecções por VHC não aumentou em pacientes com líquen plano, entretanto os achados sugerem que o vírus pode potencializar a função patogênica em tecidos cutâneos, causando líquen plano em pacientes infectados pelo VHC geneticamente suscetíveis. 34 35 Para elucidar uma relação direta entre o líquen plano oral (LPO) e a infecção pelo VHC, Nagao et al., (1998) investigaram a existência do RNA HVC em 19 amostras de tecido de LPO de indivíduos com e sem anticorpos para HVC. Os resultados indicaram que o HVC persistia e se replicava em lesões de LPO, sugerindo uma função patológica do HVC no LPO. Chainani-Wu et al., (2004) fizeram uma revisão da literatura de 1966 à junho de 2003, relacionando o líquen plano oral e o VHC. No estudo de prevalência de VHC entre pacientes com líquen plano oral foram encontrados diferentes resultados pelos pesquisadores (Figura 7). 35 36 AUTORES E ANO DE PAÍS/CIDADE PUBLICAÇÃO NÚMERO DE PORCENTAGEM PACIENTES Nagao et al, 1995 JÁPÃO 45 62% Tanei et al., 1995 JAPÃO 45 37,8% FRANÇA 28 29% ITÁLIA 100 13% Roy et al., 2000 ESCÓCIA 6 0% Van der Meij e Van der HOLANDA 55 0% SAN 31 45% OHIO 195 0% ESPANHA 62 11,3% PAQUISTÃO 184 23,4% Dupond et al., 1998 Grote et al., 1999 Waal, 2000 Chainani-Wu et al., 2000 FRANCISCO Eisen, 2002 Romero et al., 2002 Mahboob et al., 2003 Figura 7 – Prevalência de VHC em pacientes com líquen plano oral Nesse mesmo trabalho, Chainani-Wu et al., (2004) também relataram a prevalência de líquen plano oral entre pacientes com VHC (Figura 8). AUTORES E ANO DE PAÍS/CIDADE PUBLICAÇÃO Grote et al., 1999 NÚMERO DE PORCENTAGEM PACIENTES ALEMANHA 127 2.4% Henderson et al., 2001 ESCÓCIA 40 20% Mignogna et al., 2001 ITÁLIA 300 1,6% Nagao et al., 2002 JAPÃO 59 8,5% Figura 8 – Prevalência de líquen plano oral em pacientes com VHC. Em estudo com casos controles, relatando a prevalência de VHC em pacientes com líquen plano oral foram encontrados os resultados da figura 9 (Chainani-Wu et al., 2004). 36 37 AUTORES E ANO DE PAÍS/CIDADE GRUPO GRUPO ESTUDO CONTROLE n (%) n (%) ITÁLIA 19/70 (27,1%) 3/70 (4,3%) Bagan et al., 1998 ESPANHA 23/100 (23%) 5/100 (5%) Ingafou et al., 1998 INGLATERRA 0/55 (0%) 0/110 (0%) ITÁLIA 76/263 3/100 (3%) PUBLICAÇÃO Carrozzo et al., 1996 Mignogna et al., 2001 (28,8%) Beaird et al., 2001 ESTADOS 4/24 (17 %) 1/20 (5%) 6/68 (8,8%) 1,4 %* UNIDOS Figueiredo et al., 2002 BRASIL Figura 9 – Estudos caso-controle de prevalência de VHC em pacientes com LPO. * dado da população geral; n=número de pacientes estudados; %=porcentagem A figura 10 demonstra os resultados do estudo comparativo relacionando a prevalência de LPO em pacientes com VHC com grupo controle de LPO. AUTORES E ANO DE PAÍS/CIDADE PUBLICAÇÃO Bagan et al., 1998 ESPANHA GRUPO GRUPO ESTUDO CONTROLE n (%) n (%) 17/505 1/100 (1%) (3,36%) Nagao et al., 1997 JAPÃO 4/61 (6,6%) 6/591 (1%) Nagao et al., 2000 JAPÃO 5/31 (16,1%) 7/150 (4,7%) Figueiredo et al., 2002 BRASIL 6/126 (4,7%) 898 (0,6%)* Figura 10 – Estudos caso-controle de prevalência de LPO em pacientes com VHC l. * dado da população geral; n=número de pacientes estudados; %=porcentagem Estudando 600 pacientes do sul da Itália com líquen plano oral (390 mulheres e 210 homens, com idade media de 52,6 anos) Mignogna et al., (2002) comparou os aspectos epidemiológicos da infecção pelo VHC com prevalência de VHC na população em geral, associados ao líquen plano. E todos os casos de lesões 37 38 liquenóides foram biopsiados para confirmação de diagnóstico. Dos 600 pacientes com LPO, 169 foram testados com ELISA II para reação de anti-VHC e 165 com RIBA. 25,5% dos pacientes foram positivos para o VHC. Analisando os grupos por idades, a prevalência foi de 0,0% (0/3) em jovens com menos de 30 anos, 4.6 %(3/65) no grupo de 30-39 anos, 12,5 % (15/120) no grupo de 40-49 anos, 27,5%(55/200) no grupo de 50-59 anos e 43,3% (92/212) no grupo acima de 60 anos. Os autores sugerem que dados epidemiológicos, quando comparados, sejam feitos considerando-se a idade e o comportamento clinico do líquen plano diante do tratamento ou não com interferon. Concluíram que os relatos que evidenciam associações entre líquen plano e VHC podem, possivelmente, conter alguns erros nos procedimentos de análise, podendo levar a resultados incorretos: (1) grupo controle sem análise de idade específica e predomínio de anti-VHC positivo; (2) incapacidade de prever dados em relação ao real predomínio de VHC vírus na população geral. Os autores também sugerem que mais estudos epidemiológicos de outros países são necessários, analisando a prevalência de infecção pelo VHC em torno da idade prevalente especifica, comparando com a real idade da população em geral, incluindo jovens e idosos (MIGNOGNA et al., 2002). Mas não só os aspectos epidemiológicos da associação entre o LPO e o VHC foram estudados. Os autores também se propuseram a determinar a diferença clínica (características e comportamento) entre o LPO em pacientes positivos e negativos para o VHC. Os autores evidenciaram Em ambos os grupos, a prevalência de LPO na forma mista (lesões em placa–reticular e atrófico–erosivo) foi semelhante. A forma reticular foi mais freqüente em pacientes VHC positivos, as lesões em placa foram mais prevalentes em pacientes VHC negativos e não houve diferenças significativas entre as lesões erosivas e lesões atróficas. Com esses dados os 38 39 autores concluíram Concluindo que há diferenças significantes entre LPO entre pacientes VHC positivos e negativos, na forma reticular e de placa, e que estes achados reforçam a necessidade de examinar o fígado de todos os pacientes com LPO (MIGNOGNA et al., 2000). Em 1998, Mignogna et al., se dispuseram a determinar a positividade para anticorpos anti-VHC em 263 pacientes com líquen plano oral e em um grupo controle de 100 pessoas. A prevalência de anticorpos anti-VHC no grupo de pacientes com líquen plano oral, foi maior do que na população sadia (controle), sugerindo uma ligação entre as 2 doenças (MIGNOGNA et al., 1998). Parece haver diferenças geográficas com relação à coexistência de hepatite C e líquen plano oral. Os trabalhos que mostram associação entre essas duas doenças são particularmente vistos no Japão e certos paises europeus como Itália, Espanha e França. É possível que essa diferença geográfica seja devido a um tipo particular de genótipo do VHC, já que há distribuição geográfica heterogênea do LPO (CUNHA et al., 2002). Considerando o grande potencial patogênico do vírus VHC com possível envolvimento dermatológico, e provável associação entre vasculite cutânea necrosante com crioglobulemia mista, porfíria cutânea tardia, líquen plano e infecção crônica pelo VHC, todos os pacientes com estas desordens devem ser testados para hepatite C e, em todos os casos de hepatite C, deve-se investigar sinais e sintomas de doenças dermatológicas (POLJACKI et al., 2000). 39