COORDENAÇÃO GERAL Celso Fernandes Campilongo Alvaro de Azevedo Gonzaga André Luiz Freire ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP TOMO 1 TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO COORDENAÇÃO DO TOMO 1 Celso Fernandes Campilongo Alvaro de Azevedo Gonzaga André Luiz Freire ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO DIRETOR PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA Pedro Paulo Teixeira Manus DE SÃO PAULO DIRETOR ADJUNTO FACULDADE DE DIREITO Vidal Serrano Nunes Júnior ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP | ISBN 978-85-60453-35-1 <https://enciclopediajuridica.pucsp.br> CONSELHO EDITORIAL Celso Antônio Bandeira de Mello Nelson Nery Júnior Elizabeth Nazar Carrazza Oswaldo Duek Marques Fábio Ulhoa Coelho Paulo de Barros Carvalho Fernando Menezes de Almeida Ronaldo Porto Macedo Júnior Guilherme Nucci Roque Antonio Carrazza José Manoel de Arruda Alvim Rosa Maria de Andrade Nery Luiz Alberto David Araújo Rui da Cunha Martins Luiz Edson Fachin Tercio Sampaio Ferraz Junior Marco Antonio Marques da Silva Teresa Celina de Arruda Alvim Maria Helena Diniz Wagner Balera TOMO DE TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO | ISBN 978-85-60453-36-8 Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo I (recurso eletrônico) : teoria geral e filosofia do direito / coords. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro Gonzaga, André Luiz Freire - São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017 Recurso eletrônico World Wide Web Bibliografia. O Projeto Enciclopédia Jurídica da PUCSP propõe a elaboração de dez tomos. 1.Direito - Enciclopédia. I. Capilongo, Celso Fernandes. II. Gonzaga, Álvaro. III. Freire, André Luiz. IV. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 1 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO SEMIÓTICA JURÍDICA Clarice von Oertzen de Araujo INTRODUÇÃO A semiótica pura é uma disciplina formal, voltada ao tratamento e à investigação dos fenômenos de linguagem. Neste escopo, várias escolas se constituíram e propuseram métodos de investigação das manifestações dos fenômenos linguísticos e culturais. As diversas propostas ora se aproximaram mais da linguística, ora da lógica, da retórica, ou ainda da tradição de uma filosofia hermenêutica. Sendo a semiótica uma ciência das linguagens que estuda todas as formas de manifestação da cultura, a sua aplicação como técnica de investigação do universo jurídico revela-se como excelente e contemporâneo instrumento heurístico. Como disciplina pura, a semiótica é teórica e abstrata. Já as semióticas aplicadas, também chamadas de semióticas descritivas ou empíricas, são práticas e lidam com questões relativas às disciplinas e áreas específicas às quais a semiótica pura foi sobreposta. Desta forma, a semiótica jurídica se caracteriza como uma semiótica aplicada. É uma derivação das técnicas e métodos de investigação da semiótica pura projetados no fenômeno jurídico. Duas aproximações da semiótica jurídica seriam possíveis para a elaboração do verbete: aplicações da semiótica ao universo jurídico e seria uma apresentação superficial, em se tratando de um texto verbete, que se proponha a informar conceitos gerais, e que, pela própria natureza de verbete, não trataria de seu funcionamento, sua dinâmica. A perspectiva monista fornece os conceitos fundamentais de uma escola particular de aplicação da semiótica ao Direito e adentra mais profundamente nos desdobramentos da manipulação dos conceitos, os efeitos de emprego que uma específica escola de semiótica jurídica se propôs ao produzir a aplicação de uma matriz de semiótica pura ao fenômeno social e jurídico. Na semiótica pura as diferentes matrizes desenvolvidas ao longo do século XX podem ser estudadas de forma independente. Ou seja: a semiótica não peirceana, cujos estudos foram compreendidos de forma abrangente pelo que se convencionou denominar 2 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO semiologia1 (semiótica estrutural de Saussure), a semiótica lógica de Morris2 e a semiótica filosófica de Peirce. Estas opções de refletiram nas investigações empreendidas pela semiótica jurídica, como a seguir se demonstrará. SUMÁRIO Introdução ......................................................................................................................... 2 1. Semiologia jurídica ................................................................................................. 3 2. Semiótica jurídica na proposta neopositivista de Charles Morris ........................... 5 2.1. A sintaxe.................................................................................................... 10 2.2. A semântica ............................................................................................... 11 2.3. A Pragmática ............................................................................................. 13 3. Semiótica jurídica na proposta de Charles Sanders Pierce ................................... 14 4. Conclusão .............................................................................................................. 20 Referências ..................................................................................................................... 22 1. SEMIOLOGIA JURÍDICA A semiótica jurídica foi desenvolvida como método característico de estudo do Direito nos anos 60, a partir do estudo de Felix Oppenhein, Outline of a Logical Analysis 1 A distinção observada entre o emprego dos termos ‘semiótica’ e ‘semiologia’ observa uma diferença estabelecida por Hjelmslev e adotada por Greimas, para os quais a semiótica designaria um sistema de signos com estruturas hierárquicas similares à linguagem, a exemplo da língua, dos códigos de trânsito, da arte, da música e da literatura. O emprego de ‘semiologia’ ficou reservado à teoria geral, à metalíngua ou à metassemiótica de tais sistemas. Na semiótica pura, a oposição entre semiologia e semiótica foi extinta em 1969 pela Associação Internacional de Semiótica, que adotando a posição de Roman Jakobson, optou pela unificação do termo em torno da designação de ‘semiótica’ (Noth, 1995, p. 24). Entretanto, no campo da semiótica jurídica, esta diferença de nomenclatura continuou a ser observada, conforme o texto deste verbete revela, talvez em razão da escola greimasiana se recusar a definir a semiótica como uma teoria dos signos, definindo-a como uma teoria da significação (Noth, 1995:17). 2 NÖTH, Winfried. A semiótica do século XX. 3 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO of Law. A independência entre as versões semiológicas, estruturalistas/funcionalistas e a matriz peirceana foi observada por Landowski e Kalinowski ao tratarem das propostas de aplicação da semiótica ao Direito em verbetes diferentes do Dicionário Enciclopédico de Teoria e Sociologia do Direito,3 mencionando a semiologia jurídica e a semiótica jurídica. A diferenciação continua sendo observada na esfera jurídica por importantes estudiosos da área.4 A primeira remonta à aplicação do trabalho de Saussure, foi preferencialmente empregada por autores de língua romana e cresceu entre os autores e investigadores de tradição jurídica continental. A semiologia jurídica formula a proposta de oferecer um princípio de inteligibilidade do fenômeno jurídico segundo as suas próprias perspectivas. Para a linha semiológica de investigação, o fenômeno jurídico abrange as regras do Direito Positivo, os fatos jurídicos geradores de efeitos, os atos legais de criação das leis e as práticas interpretativas dos textos legais. Adotando a premissa segundo a qual a significação de um texto de lei, de um regulamento, de um acórdão ou de um contrato não é dotada de imediata clareza e univocidade, a semiologia jurídica se propõe a somar instrumentos com as tradicionais técnicas de interpretação do Direito. Esta vertente considera indissociáveis os aspectos sintáticos e semânticos da linguagem do Direito e se preocupa em oferecer uma estratégia para a sua investigação5 ao trabalhar, sobretudo, com uma teoria da narratividade que seja própria ao Direito. A semiótica narrativa que trabalha sobre a matriz greimasiana adota o cálculo lógico empreendido pela semiótica lógica como uma estratégia para a determinação das posições dos sujeitos de direito. A definição destas posições permite a configuração de suas competências e capacidades para a criação de situações intersubjetivas que reflitam relações de igualdade, dominação, cooperação, rivalidade. Para a construção da gramatica narrativa do Direito o componente sintático mais importante na organização da intersubjetividade é a relação hierárquica estabelecida entre o sujeito do fazer jurídico e os destinatários que estas ações podem afetar. A matriz greimasiana destaca que nenhum sistema de direito obedece a uma racionalidade definida 3 ARNAUD, André-Jean [et al.] Dicionário enciclopédico de teoria e sociologia do direito. ROCHA, Leonel Severo. Teoria do direito no século XXI: da semiótica à autopoiese. Sequência. n. 62, jul. 2011, pps. 193-222. 5 LANDOWSKI, Eric. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica. p. 52. 4 4 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO a priori, seja ela formulada ou não em termos narrativos.6 A experiência indutiva7 revela o fenômeno jurídico como linguagem e como discurso normativo. O discurso caracterizando-se como a linguagem posta em ação.8 Efetivamente, a semiótica jurídica, com seu aparato metodológico permite conceber o processo de positivação normativa como fenômeno do discurso (sem, contudo, limitar ou reduzir o Direito unicamente ao fenômeno discursivo9), como enunciação, como fato de linguagem. Esta premissa deriva da adoção de um quadro categorial aristotélico,10 característico da tradição ocidental, que preconiza a análise do ato predicativo realizado pelo sujeito ao expressar-se num discurso em que a realidade está representada.11 Algumas obras importantes para a epistemologia jurídica trouxeram esta opção: é o caso de Bernard S. Jackson (1980; 1987), que explorou a semiótica estruturalista de A. J. Greimas relacionada às teorias positivistas de Hart, MacCormick, Dworkin e Kelsen. Outros autores que aplicaram a matriz greimasiana aos estudos sociológicos, políticos e jurídicos foram Landowski (1992) e Bittar (2001). No Brasil também é conhecida a aplicação da semiologia de Saussure aos estudos políticos empreendida por Warat e Rocha (1995 – 2ª versão), sob forte influência da Escola Analítica de Buenos Aires, e por eles denominada de semiologia política. 2. SEMIÓTICA JURÍDICA NA PROPOSTA NEOPOSITIVISTA DE CHARLES MORRIS Outra vertente da semiótica, situada fora das correntes estruturalistas do século 6 Idem. p. 74. A metodologia semiótica de matriz greimasiana persegue a cientificidade de demarcação de seu objeto valendo-se da indução e da dedução. BITTAR. Eduardo C. Linguagem juridica. p. 46. 8 DUBOIS, Jean. Dicionário de linguística. p. 192. 9 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica. p. 7. 10 Benjamin Lee Whorf declara: “Nós dissecamos a natureza seguindo linhas estabelecidas por nossas línguas nativas. As categorias e tipos que isolamos no mundo dos fenômenos não os encontramos ali porque nos olham de frente; pelo contrário, o universo é-nos apresentado num fluxo caleidoscópico de impressões que devem ser organizadas por nossa inteligência – o que significa: pelos sistemas linguísticos em nossas mentes. Nós escalpelamos a Natureza, organizamo-la em conceitos, e lhe atribuímos significados, em grande parte porque participamos de um acordo para organizá-la dessa maneira – acordo que se impõe em toda comunidade linguística e que se codifica nos padrões de linguagem. Trata-se, evidentemente, de um ato implícito e não formulado, mas seus termos são absolutamente obrigatórios; não poderíamos falar a não ser submetendo-nos à organização e à classificação de dados decretadas pelo acordo”. Tradução colhida em CAMPOS, Haroldo de. Ideograma. Lógica, poesia, linguagem. p. 229 e ss. 11 SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa da. Curso de semiótica geral. p. 40. 7 5 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO XX que é muito aplicada ao Direito é a de Charles Morris. A teoria dos signos de Morris é anterior à semiótica europeia, não mantém vínculos com a tradição linguística e situase no ambiente behaviorista americano dos anos 30 e 40.12 As inspirações deste modelo foram a semiótica de Peirce, o behaviorismo social, o interaciocismo simbólico de George H. Mead, o empirismo e o positivismo lógico. Com sua proposta, Morris pretendeu contribuir para um projeto de unificação das ciências. A trilogia sintaxe/semântica/pragmática permanece exercendo influência na semiótica aplicada e foi amplamente adotada na semiótica jurídica. Para Charles Morris, todos os tipos de discurso revelam um modo de significação e um uso primário dominantes. A linguagem legal revela um exemplo de discurso designativo-incitativo.13 O discurso legal revela aquilo que uma sociedade está preparada para assumir e empreender a título de ações e posturas jurídicas, no caso de certas condutas serem ou não adotadas pelos indivíduos. Em nível designativo, o discurso legal refere-se ao corpo de leis que designa as práticas com as quais a comunidade se comprometeu a controlar os comportamentos sociais adotando o uso da força institucionalizada pelo Direito. Neste sentido, um enunciado legal somente será um enunciado normativo se por proferido pelas autoridades competentes e independe de sua verdade ou falsidade, no sentido científico. O aspecto incitativo se refere aos estímulos que a ordem jurídica oferece para sequências de respostas14 que os indivíduos integrantes de uma sociedade são incitados a adotar como condutas adequadas às prescrições das normas jurídicas. A segmentação dos processos semióticos ou da semiose (ação ou efeito gerado pelos signos) em três aspectos ou dimensões que podem ser abstraídos para o propósito de serem estudados isoladamente, e a denominação dos planos de investigação em “sintático”, “semântico” e “pragmático” foi inicialmente proposta em 1938, por Charles William Morris (1901-1979), ao elaborar uma monografia (Foundations of the Theory of Signs15) que deveria compor a International Encyclopedia of Unified Science, publicação integrante de um extenso projeto de unificação das ciências, o que era um ideal 12 NÖTH, Winfried. Op. cit. MORRIS, Charles. Writings on the general theory of signs. p. 210. 14 NOTH, Winfried. Op. cit., p. 227. 15 MORRIS, Charles. Fundamentos de da teoria de los signos. 13 6 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO fundamental do positivismo lógico.16 Inclusive Morris contribuiu para levar Rudolf Carnap aos Estados Unidos, em 1936. Ele acreditava na complementaridade de aspectos dos estudos empreendidos entre positivistas lógicos e pragmatistas, ambas as correntes tratando as questões do ‘significado’. Morris pretendia estabelecer a contribuição da semiótica para a exatidão das ciências humanas, adotando-se a concepção do signo como unidade científica fundamental. Nessa perspectiva, a noção de signo poderia assumir análoga importância à noção de átomo para as ciências físicas ou à noção de célula para as ciências biológicas. A valorização e a ênfase na utilidade da investigação semiótica não mirava apenas a sua promoção ao estatuto de uma ciência, mas também se concebia a semiótica como instrumento a serviço do rigor epistemológico de pesquisas científicas nas mais diversas áreas do conhecimento. Entre os positivistas lógicos, entretanto, a ênfase da investigação relativa ao significado dos termos nas proposições residia no aspecto sintático, por se caracterizar como a sua traduzibilidade em outras proposições. Nas palavras de Morris: “Se dizemos que o significado de um símbolo é a expectativa que levanta, isso é praticamente equivalente a dizer que o significado de um símbolo é sua extensão possível (isto é, todos os objetos aos quais pode ser aplicado) e isso, por sua vez, é semelhante a dizer que o significado de um símbolo é determinado pela especificação daquelas características que um objeto deve ter para que o símbolo seja aplicado. E, então, já que essas características devem, por sua vez, ser especificadas pelo uso de outros símbolos, nos vemos levados à posição formalista de que o significado de um símbolo é determinado por suas conexões sintáticas com outros símbolos (isto é, pelas regras gramaticais de seu uso”.17 As dimensões sintática, semântica e pragmática foram concebidas por Morris na 16 A monografia de Morris tornou-se o capítulo 2 do volume 1 da International Encyclopedia of Unified Science (University of Chicago Press). Curioso é o comentário de Thomas A. Sebeok a respeito da segmentação: “A tripartição da semiótica em sintática, semântica e pragmática - endossada repetidamente por Carnap (1942:8-11) - se tornou um dogma que é geralmente mais observado externamente do que dentro da semiótica, porque seu uso técnico operacional aparece minimamente”. Semiotics in the United States. p. 74. A observação de Michel Meyer reforça o mesmo sentido: “O que há de insatisfatório nesta divisão da linguagem é que não podemos isolar estes níveis. Crer o contrário é empenhar-se numa via positivista. Aliás, foi o positivismo que consagrou esta divisão, seguido nisso, curiosamente, por Chomsky”. Lógica, linguagem e argumentação. p. 110. 17 Tradução colhida em WALL, Cornelis de. Sobre pragmatismo. p. 193. 7 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO condição de abstrações, relações diádicas consideradas dentre as possibilidades combinatórias dos três correlatos que compõem a estrutura do signo (veículo sígnico, designatum, intérprete). Esta classificação é mais próxima da lógica do que da lingüística, conforme adiante se revelará. O estudo das línguas naturais não pode abstrair das relações pragmáticas, havidas entre os usuários em situações de comunicação efetiva. Pois é a partir do estudo dos fatos de linguagem que as sistematizações das diferentes línguas são formuladas. É a partir da dimensão pragmática que as abstrações sintáticas e semânticas de uma língua natural podem ser realizadas. Na semiótica Jurídica é comum encontrarmos a adoção da divisão operada nos moldes da lógica entre os campos da sintaxe, da semântica e da pragmática das normas jurídicas. É notável, de fato, o efeito produzido pelo Círculo de Viena e o movimento do positivismo lógico sobre as ciências jurídicas, o que torna compreensível a afinidade dos juristas com as concepções semióticas de Charles Morris. O emprego dessa nomenclatura pode também se dever à afinidade epistemológica entre o positivismo filosófico e o jurídico,18 predominante na jurisprudência do século XX. Em investigação reconhecidamente seminal da área de semiótica jurídica situase o artigo de Felix E. Oppenheim, Outline of a logical analyisis of law, publicado em 1944. Observando a matriz lógica estabelecida por Charles Morris e Rudolf Carnap, o trabalho se propõe a demonstrar a possibilidade de aplicação da análise lógica ao campo jurídico, a fim de exibir alguns traços essenciais do direito. Segundo Oppenheim, o Direito Positivo é expresso em uma linguagem natural e assume a forma de regras, decisões, comandos. Mesmo os signos não linguísticos, como o apito de um guarda, os sinais de trânsito, e outros gestos, podem ser traduzidos em linguagem verbal (word language). A análise lógica da linguagem legal lida com os aspectos lógicos dos enunciados prescritivos, a fim de construir um modelo simplificado e estabelecer princípios que proporcionem a análise lógica de qualquer ordenamento jurídico. A investigação não lida com os efeitos da lei (law in action), os quais ficariam reservados a um estudo empírico. Estudos lógicos e empíricos do direito seriam complementares. Oppenheim compara o Direito Positivo a um filme. É possível parar o projetor e concentrar a atenção na imagem que ficou cristalizada no momento da paralização do 18 VIEHEG, Theodor. Tópica y filosofia del derecho. p. 54. 8 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO aparelho. Ao desenvolver sua concepção de semântica normativa, Georges Kalinowski19 opta por uma alternativa que se opõe à de Charles Morris. O filósofo polonês afirma que há expressões que não possuem designata em sentido próprio, embora possuam, entretanto, sua própria semântica. Classifica as expressões em categoremáticas e sincategoremáticas. Os sincategoremas não designam isoladamente nada, apenas podem co-designar. Quanto aos categoremas, divide-os em vazios ou não vazios. Os primeiros não designam em sentido forte, mas apenas em sentido fraco, pois são meras criações do entendimento, como ‘Hamlet’ ou ‘Barão de Munchaussen’. Ou seja, não têm realidade extramental. As expressões não vazias designam em sentido forte, porque se referem a entes reais existentes, com independência de nosso entendimento, como ‘Donald Trump’ou ‘Vladimir Putin’. Para Kalinowski as proposições podem designar estados de coisas meramente possíveis. Em sua perspectiva realista, a semântica deve se ocupar não só das função de designação das expressões linguísticas, mas também da significação. Neste ponto Kalinowski opõe sua semântica da significação frontalmente à de Carnap, optando por uma semântica realista e completa que estabeleça a distinção entre a significação dos signos linguísticos em relação ao pensamento e a designação, função de grande número de signos linguísticos em relação a entes reais, não levando em conta apenas uma ou outra. Não há designação sem significação, ainda que esta não esteja acompanhada de uma designação em sentido forte, como ocorre com as expressões vazias. A designação em sentido próprio ou forte se refere estados de coisas reais, atuais ou possíveis. Os objetos ou estados de coisas meramente intencionais são designata em sentido fraco, impróprio, ou metonímico. Supor a possibilidade de designar sem se pensar em absolutamente nada seria uma suposição gratuita da antropologia pós-humeana, sistematicamente assumida pelos neopositivistas e seus seguidores. Assim, segundo Kalinowski, para que as normas possam fundar-se em uma realidade objetiva diversa se sí mesmas e dos sujeitos que as elaboram, promulgam e estão obrigados por elas, é necessário aceitar a possibilidade de que as expressões que as significam se refiram a uma 19 A síntese que será aqui apresentada sobre a semântica normativa de Kalinowski foi produzida essencialmente a partir do artigo de seu discípulo, Carlos I. Massini. Correas. Sobre la significación y designación de las normas. La contribución de Georges Kalinowski a la semántica normativa. Boletı́n mexicano de derecho comparado, vol. XXXVI, núm. 106, enero - abril, 2003, pp. 65-94. 9 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO realidade transcendente ao sujeito. A tendência analítica caracteriza as investigações de Aulis Aarnio, que desenvolveu análises conceituais da linguagem jurídica, a fim de revelar a impossibilidade de derivar conclusões particulares a partir de definições de conceitos jurídicos gerais. A partir da mudança verificada pela mudança que se tornou conhecida como ‘o segundo Wittgenstein’, a pragmática ocupou o papel e os objetivos que antes estavam reservados à sintaxe e à semântica. Nos estudos de filosofia do direito esta virada se refletiu no interesse que a filosofia da linguagem analítica aplicada ao universo jurídico demonstrou pela investigação das decisões práticas produzidas pelos tribunais. Neste eixo, os trabalhos de von Wright sobre explicação e compreensão exerceram importante influência em Aarnio, tanto mais em se considerando que o lógico finlandês sucedeu a Wittgenstein na cátedra de Cambridge. 2.1. A sintaxe A concepção de sintaxe lógica elaborada por Morris omite deliberadamente as dimensões semântica e pragmática, a fim de se concentrar na estrutura lógico-gramatical da linguagem. Situam-se no domínio da sintaxe as relações formais que os signos mantém entre si bem como as regras de combinação que permitem a construção correta de estruturas sígnicas mais complexas ou sintagmas. As regras sintáticas, estando próximas do cálculo, foram definidas como o domínio das implicações, em três diferentes acepções: a) estudo da estrutura formal dos signos; b) regras de combinação para a geração de signos compostos; c) as relações formais dos signos entre si; A imputabilidade é a conexão sintática típica e elementar do direito. A forma sintática que corresponde aos signos normativos (direito positivo) é a forma deôntica biproposicional. A regra jurídica é proposição normativa bimembre e organizada sob a forma de juízo complexo (hipotético-condicional). As normas são proposições prescritivas e possuem um functor específico, que é o ‘dever-ser’ ( o ‘dever ser’ é tripartido nas formas ‘obrigatório’, ‘permitido’ e ‘proibido’). Mas a deontologia, isoladamente, ainda não é o que caracteriza a sintaxe jurídica, pois está presente e caracteriza também as normas éticas, morais, religiosas. Além disso, há o acoplamento 10 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO (em forma de disjunção excludente) entre a norma que estatui direitos e deveres intersubjetivos e a sanção que pune o descumprimento dos deveres assumidos. Outros encadeamentos entre as normas assumem as formas de coordenação, subordinação, inclusão, relações entre classes, pertinencialidade. Do ponto de vista sintático, a validade das normas do direito é considerada pelo positivismo como o correto encadeamento entre normas de diferentes graus hierárquicos. A questão da validade das normas implica a investigação das relações hierárquicas entre normas superiores e inferiores. Mesmo nos casos em que uma norma superior não determine o conteúdo de uma norma inferior, o que é denominado por Kelsen de perspectiva dinâmica da ordem jurídica, as relações apresentam o seu caráter hierárquico. A questão das fontes do direito e da produção de normas jurídicas em um dado ordenamento apresenta, portanto, um expressivo valor sintático. Tradicionalmente, a doutrina jurídica entende a validade como uma relação de supra-infra ordenação, na medida em que o direito regula a sua própria ordenação, e as normas determinam como deve ocorrer a criação de outras normas, muitas vezes limitando ou indicando o seu conteúdo.20 2.2. A semântica O termo “semântica” foi originalmente utilizado por Morris em referência à relação verificada entre os signos e seus designatum,21 ou os objetos os quais o signo designe ou denote. Entretanto, no domínio coberto pelo termo “semântica” registram-se divergências entre a concepção dos linguistas e a dos lógicos. Haroldo de Campos definiu a Semântica Geral como “uma tentativa de anatomia dos velhos e dos novos ‘modos de pensar’, oferecendo métodos por meio dos quais se possa fazer a transição”.22 Em geral, segundo os linguistas, a “semântica” recobre o 20 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. p. 129. Morris trabalhou com uma distinção entre designatum e denotatum. O termo designatum refere-se aos objetos aos quais o signo se refere, sejam eles reais ou não. Para a alusão do signo a um objeto real é que Morris atribuiu o termo denotatum. Assim, todo signo alude a um designatum, mas nem sempre a um denotatum. Seria uma diferença semelhante àquela estabelecida entre “coisa” e “objeto”, na medida em que os objetos podem ser reais, como as coisas, mas podem ser também ideais ou culturais. Portanto, o designatum possui um campo semântico necessariamente maior que o do denotatum. 22 CAMPOS, Haroldo de. Ideograma. Lógica, poesia, linguagem. p. 232. 21 11 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO domínio da língua e o seu emprego; o que a lógica atribuiria à “pragmática”. A este respeito houve um ilustrativo debate entre Chaim Perelman e Émile Benveniste que vale a pena conhecer.23 A questão enfrentada pelos linguistas da mutação dos significados das palavras no uso corrente da língua é análoga àquela que se verifica no campo das linguagens técnicas que dela retiram o seu substrato. No Direito, o fenômeno ocorre de maneira muito semelhante. O clássico tema de interpretação das normas, segundo a intenção do legislador ou da norma em si mesma, é uma questão à qual os doutrinadores jurídicos atribuem um caráter eminentemente semântico.24 Também é desta natureza a premissa da heterogeneidade dos conteúdos de significação das unidades normativas.25 O aspecto semântico dos signos diz respeito à suas relações com os objetos que denotam. O caráter semântico das normas jurídicas diz respeito às relações entre as normas (signos) e as condutas intersubjetivas ou relações (objetos). A linguagem prescritiva, portanto, é semanticamente aberta, cognoscente, uma vez que o significado dos signos é dialógico. No âmbito semântico, por sua vez, teríamos os aspectos ligados à 23 “A contribuição dos linguistas à teoria geral do conhecimento é precisamente na independência de sua abordagem, e deste modo, por sua própria conta, eles tentam elaborar este conjunto que representa a língua com sua complicação sempre crescente, a variedade de seus níveis, etc. Trata-se então de saber se a dicotomia que eu apresento é ou não conciliável (e se ela não o é, por que?) com a tripartição que os lógicos instituíram. Se não estou enganado, a noção de sintaxe, a noção de semântica e a noção de pragmática são três ordens de noções a que os lógicos geralmente aderem. Estas três noções constituem um conjunto que é articulado de modo totalmente outro que aquele que a língua em si mesma permite conceber. Em conjunto ou separadamente, elas pertencem exclusivamente ao domínio que é, na minha terminologia, aquele do semântico. (...) O linguista, eu creio, não vê necessidade para a distinção admitida em lógica entre a pragmática e a semântica. É importante para o lógico distinguir de um lado a relação entre a língua e as coisas, que é da ordem do semântico; e de outro lado a relação entre a língua e aqueles que a língua implica em seu jogo, aqueles que se servem da língua, que é da ordem do pragmático. Mas para um linguista, se lhe pode ser útil recorrer a esta subdivisão em um momento de seu estudo, em princípio uma distinção semelhante não é de imediato necessária. A partir do momento em que a língua é considerada como ação, como realização, ela supõe necessariamente um locutor e ela supõe a situação deste locutor no mundo. Estas relações são dadas em conjunto no que eu defino como semântica”. BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral. Vol.II, p. 239. 24 Leia-se a respeito as observações de Miguel Reale, ao referir-se à Semântica Jurídica: “(...) a norma jurídica pode sofrer profundas alterações semânticas, não obstante a inalterabilidade formal de seu enunciado, ou a permanência intocável de sua roupagem verbal: a Semântica Jurídica, ou seja, o estudo das mutações de sentido temporal das regras de direito, é a demonstração cabal de sua natureza integrante e dialética, constituindo uma pesquisa do mais alto alcance”. O direito como experiência. p. 210. Ou ainda: “A semântica jurídica, em suma como teoria das mudanças dos conteúdos significativos das normas de direito, independentemente da inalterabilidade de seu enunciado formal, não se explica apenas em função do caráter expansivo ou elástico próprio dos modelos jurídicos, mas sobretudo em virtude das variações operadas ao nível da Lebenswelt, no qual o direito afunda suas raízes. Verdade e conjectura. p.101. No mesmo sentido, VIEHEG, Theodor. Tópica y filosofia del derecho. p. 58. 25 CARVALHO. Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. p. 9. 12 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO vigência das normas no tempo e no espaço. A semântica trata da relação dos signos com os objetos que representam. Quando o direito se propõe a regular as condutas, é evidente que pretende apanhar as ações humanas e as relações intersubjetivas concretas, localizadas historicamente. A confirmação desta dimensão semântica de uma ordem jurídica positiva está refletida nos princípios gerais de direito, notadamente os princípios da irretroatividade das leis, do respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada. 2.3. A Pragmática Na terminologia adotada por Morris a pragmática seria o aspecto semiótico em que são considerados a origem, o uso e os efeitos dos signos; dimensão em que se verifica a relação dos signos com seus intérpretes26 ou aquilo que os signos expressam. O ambiente em que ocorre a comunicação também se revela como fator importante para a definição dos sistemas interativos. Neste sentido, o contexto constitui “o conjunto de todos os objetos em cujos atributos uma mudança afeta o sistema e também daqueles objetos cujos atributos são mudados pelo comportamento do sistema”.27 Para os juristas, a pragmática compreende a utilização, pelos sujeitos, da linguagem do direito na motivação da conduta para a realização de certos valores prestigiados pela ordem vigente, ou funciona como um “modelo operacional” decorrente de um “princípio da interação” que relaciona emissor e receptor dos signos linguísticos.28 Os sistemas normativos encarados como discursos ou fatos linguísticos possibilitam um resgate produtivo das noções de competência e desempenho utilizados por Noam Chomsky para os níveis organizacionais do próprio direito. O nível de competência refere-se ao domínio técnico de suas estruturas. O nível de desempenho é aquele em que o usuário cria apoiado no nível de competência dos sistemas normativos. 26 MORRIS, Charles. Fundamentos de da teoria de los signos. p. 31; Signification and significance. a study of the relations of signs and values. p. 44. 27 WATZLAWICK, Paul. BEAVIN, Janet Helmick. JACKSON, Don D. Pragmática da comunicação humana: um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação. p. 110. Importante salientar que estes autores empregam as subdivisões de Charles Morris adotadas por Rudolf Carnap. 28 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. p. 4. 13 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO Ou seja, a linguagem do Direito Positivo não é neutra, não é desinteressada, mesmo porque não é linguagem descritiva, como a do conhecimento, mas tem um caráter imperativo, contrafático, possui uma natureza intermediária: não possui a plurivocidade e a informalidade que são próprias do vernáculo largamente utilizado nas diversas modalidades de interações sociais; mas também não possui a univocidade construída para e elaboração de um discurso científico. Esta univocidade é pretendida pela dogmática, pela ciência do Direito, mas não é qualidade do Direito Positivo, objeto daquela ciência.. 3. SEMIÓTICA JURÍDICA NA PROPOSTA DE CHARLES SANDERS PIERCE A semiótica como ciência dos signos concebida pelo lógico e filósofo americano Charles Sanders Peirce revela-se como uma proposta pansemiótica29 segundo a qual os signos não são uma classe de objetos e nem se referem apenas à linguagem, mas permeiam todo o universo. A semiótica de Peirce não se assenta exclusivamente sobre a língua como um sistema se signos, a sua estrutura observa uma concepção fenomenológica em que todo e qualquer fenômeno do mundo, interno ou externo à mente, pode ser concebido como um signo e classificado como integrante de apenas três categorias universais cenopitagóricas’. ontológicas, denominadas por Peirce de ‘categorias As categorias fenomenológicas de Peirce são denominadas Primeiridade (Firstness), Secundidade (Secondness) e Terceiridade (Thirdness).30 Isso porque as categorias se degeneram, perdem generalidade, mas não se excluem. A terceiridade, na condição de categoria de máxima generalidade, inclui a secundidade e a primeiridade; e a secundidade contém a primeiridade. A análise dos fenômenos que aparecem à mente que os interpreta, na condição de uma investigação fenomenológica, não procura estabelecer a pertinência do fenômeno exclusivamente a uma categoria, o que se busca é a identificação da categoria 29 NOTH, Winfried. Panorama da semiótica: De Platão a Peirce. p. 64. “A primeiridade aparece em tudo que estiver relacionado com acaso, possibilidade, qualidade, sentimento, originalidade, liberdade, mônada. A secundidade está ligada às idéias de dependência, determinação, dualidade, ação e reação, aqui e agora, conflito, surpresa, dúvida. A terceiridade diz respeito à generalidade, continuidade, crescimento, inteligência. A forma mais simples de terceiridade, segundo Peirce, manifesta-se no signo, visto que o signo é um primeiro (algo que se apresenta à mente), ligando um segundo (aquilo que o signo indica, se refere ou representa) a um terceiro (o efeito que o signo irá provocar em um possível intérprete). ” SANTAELLA, Lúcia. Semiótica aplicada. p. 7. 30 14 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO predominante. A terceiridade se apresenta como a categoria mais geral. Assim, se houver a predominância da categoria da terceiridade também estarão presentes a segundidade e a primeiridade. Ali onde se encontrar a secundidade predominante, a primeiridade também estará implicada.Na medida em que se revela como cultura, o Direito possui a natureza de um objeto semiótico e a categoria fenomenológica na qual se insere é a categoria da terceiridade. Ser um objeto da cultura significa que o Direito é o produto de um modo de ser, de viver e de pensar cultivado pela civilização. A cultura, que inclui o Direito entre as suas formas de manifestação, significa um conjunto de modos de vida criados, adquiridos e transmitidos entre gerações e membros de cada sociedade.31 Uma importante inovação que se agrega à adoção desta proposta semiótica como método de investigação do universo jurídico decorre da base fenomenológica proporcionada pelas categorias cenopitagóricas concebidas por Peirce. A consequência significativa é a não separação absoluta entre ser e dever ser, ou entre conduta e pensamento. Para Peirce, “o pensamento é uma espécie de conduta que se acha em larga escala submetido ao autocontole” (CP 5.419).32 Com efeito, Peirce é absolutamente peremptório quanto a essa continuidade, conforme a seguir se revela: “104. Terceiridade é a característica de um objeto que encarna em si – o-serentre ou Mediação em sua forma mais simples e rudimentar (...). 105. Terceiridade é para mim apenas um sinônimo de Representação; prefiroo porque suas sugestões são menos estreitas. Pode-se agora dizer que um princípio geral operatório no mundo real tem natureza de Representação e Símbolo porque o seu modus operandi é o mesmo pelo qual as palavras produzem efeitos físicos. (...) 106. As palavras provocam mesmo efeitos físicos. É tolice negá-lo. A própria negação envolve crença nesses efeitos (...). Mas como é que produzem esses efeitos? Não atuam diretamente na matéria. Como símbolos, sua ação é meramente lógica. Não é sequer psicológica”.33 “431. Não apenas os gerais podem ser reais como também podem ser fisicamente eficientes, não em todo sentido metafísico, mas na acepção do senso comum na qual os propósitos humanos são fisicamente eficientes. 31 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução colhida em BACHA, Maria de Lourdes. A teoria da investigação em C. S. Peirce. p. 39. 33 Tradução colhida em PEIRCE, Charles Sanders. Escritos coligidos. p. 37. 32 15 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO Agora o absurdo metafísico, nenhum homem sadio duvida que se estou sentindo que o ar em meu escritório está abafado, esse pensamento pode fazer com que a janela seja aberta. Meu pensamento, aceitemo-lo, foi um evento individual. Mas aquilo que o levou a assumir a determinação particular que assumiu foi em parte o fato geral de que o ar abafado é prejudicial. (...) Destarte, quando minha janela foi aberta, em virtude da verdade de que o ar abafado não é sadio, um esforço físico foi criado pela eficiência de uma verdade geral e não-existente”.34 Quando Peirce concebe as leis inseridas na categoria da terceiridade, mencionando as leis naturais, a sua concepção fenomenológica não discrepa da acepção de lei como as leis jurídicas, conforme explica SANTAELLA: “O que é uma lei? Uma lei é uma abstração, mas uma abstração que é operativa. Ela opera tão logo encontre um caso singular sobre o qual agir. A ação da lei é fazer com que o singular se conforme, se amolde à sua generalidade. É fazer com que, surgindo uma determinada situação, as coisas ocorram de acordo com aquilo que a lei prescreve. Se não fosse pela lei, as ocorrências seriam brutas e cegas. É por isso que também falamos em leis da natureza. Quando algo tem a propriedade da lei, recebe na semiótica o nome de legi-signo e o caso singular que se conforma à generalidade da lei é chamado de réplica. Assim funcionam as palavras, assim funcionam todas as convenções sócio-culturais, assim também funcionam as leis do direito”.35 A evolução do direito reflete a mútua evolução das condutas sociais e das normas legais, numa crescente busca de ajustamento recíproco. O direito, em sua evolução, criou também instituições que indubitavelmente existem e são reais. Neste sentido, a adoção na semiótica como uma metodologia de investigação para o problema do conceito de direito revelará a sua adequação para a solução do problema de referência aos diferentes níveis das relações investigadas – níveis de primeiridade (qualidades), secundidade (relações) e terceiridade (mediações) - uma vez que a natureza semiótica pode ser perfeitamente atribuída ao modo de manifestação ontológica do direito, enquanto fenômeno investigado e denominado por um conceito. A conveniência da fenomenologia e da semiótica de 34 35 Tradução colhida em PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. p. 370. SANTAELLA, Lúcia. Semiótica aplicada. p. 13 16 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO Peirce como métodos de investigação do direito se justifica na medida em que não se estabelece a separação absoluta entre o sujeito e o objeto e também entre ser e dever-ser.36 Os símbolos são signos, legissignos, que representam os objetos em virtude de uma convenção. O reconhecimento da associação simbólica que remete do signo ao objeto é o efeito pretendido na qualidade de seu interpretante. Nas democracias, o caráter convencional da imperatividade jurídica reside justamente no teor do correlato princípio democrático, o qual prescreve que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos. O respeito às eleições legitima e confere caráter imperativo para as leis produzidas e aprovadas pelo Poder Legislativo. A convenção pretende conseguir dos destinatários uma obediência voluntária e consciente. O que não retira do Direito o seu caráter coercitivo. A coercibilidade jurídica decorre da delegação que o povo faz ao Estado. O monopólio do exercício da força é outra convenção que marca as leis jurídicas como signos simbólicos. Este é o seu interpretante energético37 genuinamente jurídico, que não encontramos nem nos signos morais e nem nos éticos. A manifestação da força bruta contra os cidadãos, salvo expressas exceções, somente pode ser exercida após autorização proveniente do Poder Judiciário, decorridos os trâmites legais que asseguram aos destinatários da ordem legal todos os meios de defesa previstos pelo ordenamento vigente. Há ainda uma terceira convenção deflagrada pelos signos jurídicos em sua condição de símbolos: é a proibição da ignorância. A ninguém é permitido desobedecer às leis alegando que não as conhecem. São convenções operacionais para o exercício da coercibilidade. A interpretação dos signos jurídicos, seja potencial (interpretante imediato) ou efetiva (interpretante dinâmico), passa necessariamente por tais associações. A questão dos interpretantes produzidos pelos signos jurídicos é mais complexa, pois um signo está apto a produzir diversos tipos de interpretantes que se apresentam de forma complementar e não mutuamente excludente, sendo relevante a questão da predominância de um interpretante sobre outros para o efeito especificamente pretendido no ato de aplicação da lei ao caso concreto. A aptidão para produzir interpretantes, aliás, 36 Neste sentido vide KAUFMAN, Arthur. Filosofia do direito, cit., p. 423: “Uma separação geral e abstrata, dentro do espírito do esquema sujeito/objeto não pode existir no domínio do não substancial, isto é, no âmbito do relacional e pessoal”. 37 Esforços físicos e mentais envolvidos na manifestação dos efeitos de um signo. 17 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO já se constitui um tipo de interpretante (interpretante imediato, de primeiridade). Aqueles efetivamente produzidos (interpretantes de secundidade) são interpretantes dinâmicos e são conhecidos; pois a comunicação é intersubjetiva e sem comunicação não há conhecimento. Os signos são também capazes de pretender atingir uma finalidade (interpretante final), provocar sentimentos, juízos axiológicos (interpretantes emocionais, de primeiridade), esforços físicos ou mentais (interpretantes energéticos, de secundidade), conceitos lógicos e princípios de interpretação (interpretantes lógicos, de terceiridade). O Direito, em sua condição semiótica é capaz de produzir todos esses tipos de interpretantes. A semiótica de viés peirceano adota três diferentes modalidades de signo, os ícones, índices e símbolos, com as correspondências que a fundação na fenomenologia e nas três categorias cenopitagóricas exerceram por todas as áreas sobre as quais se estenderam as teorias de Peirce. Assim, esta semiótica não trata apenas de lidar com os signos verbais e suas formas de constituição e ação. Não há um conceito de signo que se refira a uma qualidade essencial, trata-se de um conceito relacional, o signo é uma função triádica. Segundo Peirce: “Ora a função representativa de um signo não reside em sua qualidade material, nem em sua aplicação demonstrativa pura, porque é algo que o signo é, não em si mesmo ou numa relação real com seu objeto, mas é para um pensamento, enquanto que ambos os caracteres recém definidos pertencem ao signo independentemente de se dirigirem a qualquer pensamento”.38 A expectativa das novidades proporcionadas pela adoção de metodologia que assuma os parâmetros peirceanos de investigação é prestigiada por Arthur Kaufman ao combater uma metafísica jurídica substancialista, conforme se depreende do exame do seguinte trecho de sua Filosofia do Direito: “Em primeiro lugar, deve ficar assente que os discursos normativos não têm um objeto substancial. É, no entanto, errado inferir daí que tais discursos não se refiram, ainda, que de modo apenas fragmentário, a algo existente fora do discurso. (...) O objecto das ciências normativas – ética, teoria das normas, ciência jurídica – nunca são substâncias, mas sim situações, relações. O grande passo que Peirce deu para a lógica dos predicados de relação – superando assim a lógica aristotélica e kantiana que apenas conheciam os 38 Semiótica, cit., p. 271. 18 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO predicados de qualidade – está ainda por dar na teoria e na filosofia do direito”.39 Neste sentido, a conduta humana que está em vista quando se trata de definir um conceito de direito é aquela conduta que busque adequar-se a um conceito de justiça socialmente compartilhado. Esta dialogia e compartilhamento que se estabelece para a legitimação dos conceitos é uma possibilidade virtual e poderá ser sempre questionada, o que faz com que o conceito de Direito tenha que se comprometer também com o de ordem, segurança e previsibilidade. As qualidades ou predicados historicamente considerados na definição de um conceito de direito nem sempre foram os mesmos. O conceito de direito, e sua condição altamente simbólica e cultural, não escapa dos processos de evolução da sociedade. Na cultura a história se faz presente, contaminando um determinado interpretante, que passa a revelar o objeto do signo (o objeto do signo ou objeto imediato é apenas uma parcela da multiplicidade de aspectos do objeto real ou objeto dinâmico). A complexidade de um conjunto de interpretantes nunca nega a diversidade do objeto; este se instala numa dimensão de alteridade. Apresentando-se como um objeto cultural o direito positivo se constitui como um sistema simbólico. Na medida em que o significado dos símbolos cresce, conforme evolui o direito e a cultura em seu entorno, a interpretação das normas, a construção de suas significações e a própria concepção que se tem do Direito não pode supor nenhum método de análise que se sustente em premissas unicamente deterministas. A fenomenologia, a semiótica e o pragmaticismo peirceano não negam as regularidades e os aspectos lógicos dos sistemas de signos; mas acrescentam a esta dimensão uma outra, que confere espaço a uma margem de erro, acaso e imprevisibilidade nas interações. Roberta Kevelson foi uma importante expoente da semiótica jurídica americana. Em suas investigações, esta autora explora o longo alcance da força retórica proporcionada pela semiótica de Peirce e suas consequências para o pensamento jurídico. A matriz peirceana, metodologia que não se assenta sobre premissas mecanicistas, se ajusta ao fato de que o direito deve se alterar em razão das mudanças sociais, o que realiza pela interpretação jurisprudencial dos textos de lei. Ao invés de recorrer às subsunções e 39 KAUFMAN, Arthur. Op. cit., p. 431 e 432. 19 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO aos silogismos dedutivos, o método é o de um raciocínio hipotético que não se assenta sobre fundamentos causais, mas teleológicos. Não se trata de estabelecer conexões entre causas e efeitos, mas de buscar hipóteses razoáveis a fim de perseguir consequências e objetivos socialmente valiosos. Na concepção de Peirce, ser e dever-ser estão relacionados de forma análoga às relações por ele estabelecidas entre a ética e a estética, conforme a sua classificação das ciências normativas, na qual a estética é tida como uma ciência de valores. Desde 1868 Peirce afirmava que todas as proposições são hipotéticas. Assumia que todo juízo seria condicional e que o desenvolvimento de um argumento deveria requerer não apenas um modo de raciocínio, mas três: abdução, dedução e indução. Esta forma de pensamento não estaria fundamentada somente no silogismo, mas também naquilo que Peirce denominou dialogismo, caracterizando uma forma de raciocínio que compreende uma estrutura lógica aberta e um método retórico que evolui de premissas a conclusões alternativas, reveladoras do crescimento da informação. 4. CONCLUSÃO Os investigadores da semiótica jurídica cruzam e comparam os estudos entre as perspectivas peirceanas e greimasianas no exame dos problemas que afetam os estudos de filosofia do direito, teoria geral do direito, metodologia jurídica, direito comparado, direito internacional, direitos humanos, direito civil e, mais recentemente, direito procesual civil. Na crítica ao positivismo e ao formalismo jurídico ocorrem também correlações interdisciplinares entre a área de semiótica jurídica e pragmatismo, direito e economia, direito e literatura, direito e psicanálise, direito e justiça, estudos críticos do direito, instrumentalismo, pós-modernidade. O que se considera comum entre os diversos investigadores na área da semiótica jurídica, apesar das suas diferentes origens matriciais é (1) o Direito representa um protótipo de instituições sociais que relacionam valores normativos as práticas atuais, uma vez que o Direito é um sistema de signos; (2) os ordenamentos jurídicos são sistemas abertos que crescem e se desenvolvem de forma dinâmica mediante as interpretações, estratégias retóricas, construções dialógicas do discurso, e (3) a teoria e a prática jurídicas não refletem um conjunto a priori de valores eternos, mas sim uma experiência 20 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO progressiva na determinação de um equilíbrio contingente entre a liberdade e a regulação das condutas . 21 ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUC-SP TEORIA GERAL E FILOSOFIA DO DIREITO REFERÊNCIAS AARNIO, Aulis. Mi investigacíón personal en filosofia del derecho. 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