VAMOS FALAR CABOVERDIANO língua e cultura Esta obra foi patrocinada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Ficha técnica Título: Vamos falar caboverdiano, língua e cultura Autor: Nicolas Quint Versão portuguesa: Mafalda Mendes Título original: Parlons capverdien, langue et culture Consultor para a língua caboverdiana: Aires Semedo © L'Harmattan, 2010 ISBN: 978-2-296-10360-3 EAN: 9782296103603 Nicolas Quint VAMOS FALAR CABOVERDIANO língua e cultura Adaptação para o português Mafalda Mendes L’Harmattan OBRAS DE NICOLAS QUINT SOBRE A LÍNGUA CABOVERDIANA Em português (ou bilingue com versão portuguesa): Dicionário de Caboverdiano-Português, Lisboa, Verbalis, 1998 (CDrom/ papel). [com Mafalda Mendes, Fátima Ragageles & Aires Semedo], Dicionário Prático Caboverdiano-Português, Lisboa, Verbalis, 2002. L’élément africain dans la langue capverdienne/ Africanismos na língua caboverdiana, Paris, L’Harmattan, 2008. O Caboverdiano de Bolso, Chennevières-sur-Marne, Assimil, 2009. Em francês: Lexique créole de Santiago - français, Praia/ Paris, Edição de autor 1996. Dictionnaire français - cap-verdien, Paris, L'Harmattan, 1997. Dictionnaire cap-verdien - français, Paris, L'Harmattan, 1999. Grammaire de la langue cap-verdienne, Paris, L'Harmattan, 2000. Le capverdien: origines et devenir d'une langue métisse, Paris, L'Harmattan, 2000. Parlons capverdien, langue et culture, Paris, L'Harmattan, 2003 (livro + CD). Le créole capverdien de poche, Chennevières-sur-Marne, Assimil, 2005. Em alemão: Kapverdisch (Kiriolu) Wort für Wort, Bielefeld, Éditions Reise KnowHow, 2.007, 192 p. Traduções: Semedo Aires (traduzido por Nicolas Quint), Lobu ku Xibinhu ku Nhordés/ Compère loup, Compère lièvre et le Bon Dieu, Paris, L'Harmattan, 2005 (livro + CD). Semedo Aires (traduzido por Nicolas Quint), Lobu, Xibinhu ku Nha Tiâ Gánga/ Le loup, le lièvre et la sorcière Tia Ganga, Paris, L'Harmattan, 2005 (livro + CD). Semedo Aires (traduzido por Nicolas Quint e Fátima Ragageles), Gó ki pórka dja torsi rábu/ Le cochon qui tord la queue/ Agora é que a porca torce o rabo, Paris, L'Harmattan, 2007 (livro + CD). Aux soirs de grande sécheresse sur la terre, lorsque les hommes en voyage disputent des choses de l’esprit adossés à de très grandes jarres, j’ai entendu parler de toi de ce côté du monde. Saint-John Perse, La gloire des Rois. Nas noites de grande seca sobre a terra, quando os homens em viagem discutiam as coisas do espírito recostados em cântaros enormes ouvi falar de ti desse lado do mundo. Saint-John Perse, La gloire des Rois. A Paul Teyssier, meu mestre e amigo, que nos deixou há já quase nove anos. Ele amava o português e o crioulo, mas acima de tudo amava o saber e a ciência, que serviu com rigor, honestidade e humanidade. Tenho a ousadia de acreditar que esta obra lhe teria agradado. Agradecimentos Agradeço a todos os que me ajudaram a elaborar este manual. Muito em particular a: - Fundação Calouste Gulbenkian, que apoiou a tradução e subsequente publicação da versão portuguesa do meu livro; - Mafalda Mendes, minha colaboradora e amiga, que sempre me incentivou a prosseguir na minha investigação sobre o crioulo de Cabo Verde e que se encarregou da versão portuguesa deste manual; - Aires Semedo, meu colaborador e amigo, que releu todo o texto caboverdiano e de cuja competência em caboverdiano, sua língua materna, a revisão final da obra beneficiou; - François Post das edições Africa Nostra, que muito amavelmente autorizou a reprodução dos textos das canções Sodade e Petit Pays nas duas versões do livro: a francesa e agora a portuguesa; - Martine Vanhove e Pierre Nougayrol, que sabiamente me aconselharam na redacção do texto original em francês; - Jeanne Zerner e Danielle Bonardelle, que compuseram a capa da versão portuguesa deste livro; - Guillaume Segerer, que produziu os mapas incluídos na obra; - Henry Tourneux pela sua ajuda bibliográfica; - Mic Dax, pelas suas preciosas referências discográficas. - Christian Chanard, Jeanne Zerner e Benoît Legouy, sempre prontos a me socorrer quando o meu computador não se comportava com a docilidade desejada; - Grupo de estudantes de espanhol da Universidade de Caen que frequentou assiduamente a disciplina opcional de Língua Caboverdiana, no ano lectivo de 1998-1999, e experimentou as dez primeiras lições deste manual. As suas observações e comentários contribuíram significativamente para o aperfeiçoamento deste livro. *** Este trabalho beneficiou também do apoio e encorajamento de: - Mari Paz e Élise-Marie, como de toda a minha família; - Adérito Semedo, que foi o meu primeiro professor de crioulo; - Gaby, o amigo que, nos momentos em que a saudade das ilhas era mais premente, sempre me acolheu no seu ambiente crioulo; - Todos os caboverdianos que há mais de quinze anos me recebem nas suas casas, especialmente aqueles que permanecem nas ilhas e que revejo com alegria cada vez que regresso ao seu país. Uma menção especial para a Mimita e a sua família. *** Quanto aos erros e às imperfeições que inevitavelmente persistirão nesta obra, desde já agradeço aos meus leitores que deles me dêem notícia. Desse modo poderão contribuir para o aperfeiçoamento de uma eventual segunda edição. INTRODUÇÃO À VERSÃO PORTUGUESA PORQUÊ UM MANUAL DE APRENDIZAGEM DE CABOVERDIANO PARA LUSÓFONOS? Algumas pessoas talvez se surpreendam ao ver aparecer este primeiro manual de aprendizagem de caboverdiano como língua estrangeira destinado ao público lusófono. Com efeito, desde que entrou para a história, Cabo Verde foi e continua a ser um país de língua oficial portuguesa. A língua que se aprende na escola em Cabo Verde é o português, os grandes autores caboverdianos escrevem a maior parte da sua obra na língua de Camões, que dominam com mestria. Se bem que Cabo Verde pertença à comunidade lusófona, os caboverdianos dispõem também de uma língua própria, o caboverdiano ou crioulo de Cabo Verde. Os documentos administrativos, os livros e os media expressam-se em português. Mas os caboverdianos, em família, na rua ou no local de trabalho, falam, amam, choram, gritam, cantam, divertem-se e pensam em caboverdiano. A grande maioria dos caboverdianos está ligada ao português, mas na intimidade fala crioulo, a maior e a mais nobre criação de todos os tempos do Povo Caboverdiano, nas palavras de António Manuel Mascarenhas Monteiro, ex-presidente da república de Cabo Verde. De modo geral, é possível comunicar em Cabo Verde usando o português, mas só com o crioulo se torna possível compreender verdadeiramente a alma dos ilhéus. Este manual propõe-se abrir-lhe as portas para a língua caboverdiana moderna, tal como é falada hoje por cerca de um milhão de pessoas, das quais 500.000 vivem nas ilhas de Cabo Verde e mais de 100.000 na região de Lisboa, onde a população caboverdiana quase iguala a população da Praia, capital de Cabo Verde. Este manual é também como uma mão estendida, uma ponte entre Cabo Verde e a lusofonia. O charme e a riqueza de Cabo Verde residem em grande parte nessa dupla identidade, lusófona e crioula – essa dimensão crioula do arquipélago tantas vezes menosprezada, ou mesmo desprezada pelos restantes lusófonos. Para muita gente, ainda nos nossos dias, o crioulo não passa de um português mal falado, um dialecto lusitano em que os verbos não são conjugados. No entanto, a realidade não é bem essa, e falar bem crioulo não é fácil. O caboverdiano, tal como o povo que o engendrou, teve uma génese mestiça, do português ficou a maior parte do material lexical, das línguas africanas alguns princípios de organização gramatical. Falar crioulo com os seus amigos caboverdianos é uma demonstração de respeito pela sua língua e pela sua cultura, semelhante ao respeito por eles demonstrado quando falam consigo em português, não sendo esta a sua língua materna. As relações entre os países são, afinal, como as relações entre pessoas: a amizade duradoira e verdadeira pressupõe reciprocidade, a todos os níveis, muito particularmente no que toca às questões linguísticas. Resta-nos apenas desejar-lhe sorte na sua aventura pelos meandros da gramática do caboverdiano. Aprenda crioulo e sobretudo fale-o com os caboverdianos: os seus sorrisos, os seus risos e a sua amizade recompensá-lo-ão de todos os esforços. Nicolas QUINT, Villejuif, 16 de Março de 2010 2 INTRODUÇÃO PORQUÊ, PARA QUEM, UM MANUAL DE CABOVERDIANO? Térra póbr, xei d'amor "Terra pobre, cheia de amor" (canção caboverdiana dedicada a Cabo Verde) Quer aprender caboverdiano? Há para isso muitas e boas razões. O caboverdiano, ou crioulo de Cabo Verde, é a chave para uma cultura com mais de quinhentos anos, a da república de Cabo Verde. Conhecendo o caboverdiano, poderá apreciar melhor as canções de Cesária Évora, compreender as histórias das batucadeiras, os textos do funaná e das coladeiras, as inúmeras e variadíssimas canções e músicas que os caboverdianos exportam para todos os cantos do mundo. Esta língua permite-lhe comunicar com mais de um milhão de caboverdianos, que, nas ilhas ou na diáspora, cultivam o caboverdiano como língua materna e quotidiana. Trata-se de um falar mestiço, românico e africano, umas vezes fascinantemente familiar, outras tremendamente (ou melhor, saborosamente) exótico. Em suma, uma língua que merece ser aprendida. Este manual dirige-se a três grandes públicos: - Principiantes lusófonos que queiram aprender o caboverdiano. Este manual fornece-lhes sólidas bases de língua, bem como elementos de cultura. - Caboverdianos ou descendentes de caboverdianos em países lusófonos que apenas conhecem a modalidade oral da língua. Estas lições oferecem-lhes os conhecimentos indispensáveis para o domínio da gramática e da escrita da língua caboverdiana moderna. - Meros curiosos que desejam conhecer alguma coisa da cultura de Cabo Verde, mas sem investimento excessivo. As rubricas de cultura e o léxico temático proporcionam uma primeira aproximação à língua e deixam, assim o espero, a vontade de ir mais além na respectiva aprendizagem. O léxico caboverdiano é maioritariamente de origem portuguesa. Por esse motivo, a aprendizagem desta língua não é difícil para os falantes lusófonos, que, regra geral, conseguem atingir um razoável nível de fluência com alguma rapidez. Este manual vai ajudá-lo a atingir esse objectivo. Para o conseguir, o segredo é simples: regularidade. Se praticar diariamente durante quinze minutos, aprenderá mais facilmente do que se trabalhar três horas seguidas de quinze em quinze dias (isto aplica-se à aprendizagem de qualquer língua). E claro que irá aprender ainda mais depressa se tentar aplicar os seus conhecimentos conversando com os seus amigos caboverdianos. Resta-me apenas desejar-lhe boa sorte e esperar que muito em breve possa falar caboverdiano sima pó di téra, como um caboverdiano de gema, ou mais literalmente "como as árvores da terra ". MAPA 1. O ARQUIPÉLAGO DE CABO VERDE 4 AS ORIGENS DE CABO VERDE E DA LÍNGUA CABOVERDIANA Kuándu mundu novu kunkí na portom di nós ilia, "quando o mundo novo bateu à porta das nossas ilhas...", assim reza um poema caboverdiano, musicado pelo grupo Os tubarões, que alude à entrada de Cabo Verde na história. No final do século XV, os navegadores portugueses, à descoberta dos oceanos, encontraram um arquipélago, ao largo do cabo da península de Dacar (África Ocidental), denominado Cabo Verde, e baptizaram-no com o nome desse promontório. As ilhas eram áridas e virgens, sem rasto de presença humana. Ao sul, as ilhas do Sotavento: Santiago, Maio, Fogo, Brava. Ao norte, as ilhas do Barlavento: Santo Antão, São Vincente, Santa Lúzia, São Nicolau, Sal e Boavista. Cedo os descobridores compreenderam o partido que podiam tirar daquele arquipélago inóspito, situado junto ao continente africano, mas suficientemente longe da costa para ficar ao abrigo dos ataques das populações autóctones. Cabo Verde torna-se uma base estratégica para a frota portuguesa, que ali ancorava antes de partir para a Índia. Santiago, a maior das ilhas, foi a primeira a ser povoada. Os portugueses instalaram-se ali e não tardaram a trazer escravos negros para os servir. Quando os portugueses chegam ao Brasil, a escravatura em Cabo Verde assume proporções industriais. Santiago, tal como a ilha de Goreia no Senegal e outros lugares ao longo da costa africana, torna-se uma espécie de reserva para os escravos que os portugueses capturavam ou compravam nas costas africanas para enviar para as plantações da América do Sul, no outro lado do Atlântico. Os cativos passavam alguns meses nas ilhas: eram baptizados, aprendiam ofícios (oleiros, lavradores, ferreiros...) e aprendiam um português rudimentar. Os negros assim formados foram chamados ladinos (porque compreendiam a língua latina, ou seja, o português). Eram depois revendidos a preços mais elevados nos mercados da América do Sul e das Antilhas. No século XVII vive-se o apogeu da Capitania de Cabo Verde: a capital das ilhas, Ribeira Grande (a actual Cidade Velha, na costa oeste de Santiago), tinha mais de 10.000 habitantes, e os panos azuis de Cabo Verde serviam de moeda de troca (na aquisição de escravos) em todas as costas da África Ocidental. Dá-se, em seguida, a decadência: por volta de 1650, os privilégios comerciais dos mercadores portugueses de Santiago são reduzidos pela coroa portuguesa. No século seguinte, os piratas ingleses e franceses 5 vandalizam a Ribeira Grande. No último assalto, os corsários franceses arrasam a cidade e incendeiam a catedral, da qual hoje apenas restam ruínas. Entretanto, um novo povo se tinha formado, o povo caboverdiano. Os escravos escaparam-se das cidades controladas pelos portugueses e colonizaram o interior da ilha. Os fugitivos eram designados vadios e é desse termo que deriva o nome crioulo dado aos santiaguenses, badiu. Nas cidades, os senhores brancos tinham concubinas negras e muitos filhos mulatos nasceram dessas uniões. A população tornou-se cada vez mais mestiça e o mesmo aconteceu à língua. O português dos senhores misturava-se com as línguas africanas dos escravos (principalmente o uólofe, o mandinga e o timené). Tinha nascido o crioulo, uma língua nova, com o vocabulário enraizado no português e a gramática nas línguas africanas. Esta língua mestiça torna-se muito rapidamente a língua materna de quase toda a população. A partir de Santiago, faz-se o progressivo povoamento de todo o arquipélago: primeiro o Fogo, logo no século XVI, por último o Sal, apenas no século XIX. As repetidas secas provocavam terríveis mortandades nas populações. Em 1880 a escravatura foi abolida. A população caboverdiana continuava a crescer e a terra não produzia o suficiente para alimentar toda a gente. Os ilhéus emigravam cada vez mais, especialmente para os Estados Unidos da América. Outros tornaram-se funcionários da administração colonial portuguesa. O filho de um destes funcionários, um professor instalado na Guiné-Bissau, deveria conhecer um destino fora do comum. Com efeito, Amílcar Cabral, nascido em 1924 em Bafatá (Guiné-Bissau), funda com alguns companheiros o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné [Bissau] e de Cabo Verde), de que se torna dirigente máximo. A partir de 1963, o PAIGC trava no continente uma luta armada contra as forças portuguesas. Em 1973 Amílcar Cabral é assassinado em Conacri (provavelmente a mando do governo português). Cabo Verde e a GuinéBissau tornam-se, apesar disso, um país independente a 5 de Julho de 1975 e o PAIGC assume o papel de partido único. No novo país, porém, o equilíbrio entre caboverdianos e guineenses é frágil. Os caboverdianos, mais ocidentalizados, têm acesso privilegiado aos postos de maior responsabilidade, o que desperta rancores e invejas nos meios guineenses. Em 1980, um golpe de estado na Guiné-Bissau põe fim à união dos guineenses e dos caboverdianos. Em Cabo Verde, o PAIGC, passa a designar-se PAICV (Partido Africano para a Independência de Cabo Verde). Em1991, as primeiras eleições livres em Cabo Verde dão a vitória ao MPD (Movimento para a Democracia, de tendência liberal) e o PAICV é afastado do poder. No mesmo ano, António Mascarenhas Monteiro (do 6 MPD) é eleito presidente da república. Nas eleições de 1996, Mascarenhas Monteiro é reconduzido no cargo e o MPD mantém a maioria na Assembleia Nacional. Em 2001, o PAICV torna a ganhar as eleições legislativas e também as presidenciais. Pedro Pires, membro de um PAICV renovado, preside desde então ao destino da república de Cabo Verde. GEOGRAFIA FÍSICA E HUMANA Cabo Verde é um país independente, constituído por dez ilhas, nove delas habitadas, situadas a cerca de quinhentos quilómetros ao largo da península de Dacar1. É um país da zona sub-sahariana do continente africano. Tem uma superfície de cerca de 4.000 km2 e a sua população ronda os 500.000 habitantes. O arquipélago de Cabo Verde divide-se em dois grandes grupos de ilhas: - As ilhas do Sotavento, a sul: Maio, Santiago, Fogo, Brava. A principal cidade do Sotavento é a Praia (120.000 habitantes), capital do país, situada na ilha de Santiago. - As ilhas do Barlavento, a norte: Boavista, Sal, São Nicolau, Santa Luzia (deserta), São Vicente e Santo Antão. A principal cidade do Barlavento é o Mindelo (70.000 habitantes), na ilha de São Vicente. Actualmente, Cabo Verde enfrenta diversas dificuldades de sobrevivência. As secas crónicas que afligem o território condicionam a autonomia alimentar do país, que é forçado a importar quase 90% do seu consumo alimentar. À escassez de recursos minerais e energéticos somase a hostilidade das condições climáticas. As cidades, onde o emprego escasseia, têm vindo a ser alvo de um êxodo rural de proporções massivas (mais de um terço da população de Cabo Verde concentra-se na Praia e no Mindelo). A pesca e o turismo parecem ser as actividades com maior viabilidade económica. Muitos caboverdianos continuam a procurar a sorte no exílio, nos Estados Unidos da América (mais de 200.000 pessoas), em Portugal (mais de 100.000), em França e nos Países Baixos (entre 40.000 e 50.000 em cada país). Há ainda importantes comunidades de caboverdianos no Senegal, em Angola e em muitos outros países. Pensa-se que para cada caboverdiano a viver no arquipélago existam dois a viver no estrangeiro. 1 O extremo da península de Dacar chama-se Cabo Verde, e é a este promontório que se deve o nome das ilhas. 7 A população caboverdiana, diáspora incluída, ultrapassa largamente o milhão de pessoas (talvez 1.200.000 indivíduos). A língua portuguesa é a língua oficial de Cabo Verde. No entanto, o caboverdiano é a língua materna da quase totalidade (mais de 95%) da população. Grande parte dos caboverdianos na diáspora continua a usar a sua língua no contexto familiar, usando a língua do país de acolhimento em contextos laborais e escolares. Se excluirmos os caboverdianos linguisticamente assimilados, pode dizer-se que cerca de um milhão de pessoas têm o caboverdiano como língua materna. O caboverdiano é uma língua crioula, ou seja, uma língua que resulta do encontro de diversas línguas, neste caso o português e as principais línguas africanas faladas na África Ocidental: o mandinga, o uólofe e o temné. Cerca de 95% das palavras do caboverdiano são de origem portuguesa. No entanto, importantes padrões da morfologia da língua seguem os esquemas do pensamento africano. Muito particularmente, a estrutura do sistema verbal é muito marcada pelos substratos mandinga e uólofe. Hoje em dia, em Cabo Verde, 90% das crianças são escolarizadas. O português é ainda a única língua de ensino. O facto de a língua materna dos alunos não coincidir com a língua da escola levanta graves problemas de escolarização. O francês e o inglês são línguas estrangeiras de aprendizagem obrigatória. Em Cabo Verde, muitas pessoas são capazes de se expressar em português, principalmente nas maiores cidades. No campo, o português é, pelo menos, parcialmente compreendido, mas a maioria das pessoas tem grande dificuldade em comunicar nesta língua. Por todo o lado, é possível encontrar quem compreenda o inglês ou o francês, em especial nas cidades e nas ilhas mais turísticas (Sal e Boavista). No Fogo e na Brava, muitas pessoas falam inglês devido à longa tradição de emigração para os Estados Unidos. Mas em qualquer que seja a ilha, o conhecimento do crioulo de Cabo Verde (ou pelo menos das bases da língua) facilita o contacto mais directo com a população. 8 A ESCOLHA DA LÍNGUA Ao contrário do que acontece com o português, o caboverdiano não dispõe de uma norma unanimemente reconhecida. Cada uma das ilhas habitadas do arquipélago (nove ao todo) tem a sua própria variedade linguística. Além disso, dentro de cada uma das ilhas, o crioulo falado no interior apresenta diferenças relativamente ao crioulo falado nas cidades. A maioria destas variedades são, no entanto, intercompreensíveis. Esta diversidade, que faz lembrar um pouco a dos dialectos do árabe ou os falares de Miranda e de Barrancos, tem certamente um encanto especial. No entanto, ela constitui uma dificuldade tangível para um nãocaboverdiano. Neste manual, optou-se pela variedade falada na ilha de Santiago. Isto não significa que esta seja considerada melhor do que as outras. No entanto, o crioulo falado na ilha de Santiago apresenta algumas vantagens pedagógicas e práticas que justificam esta escolha: - Trata-se da língua materna de cerca de metade da população das ilhas de Cabo Verde. - O santiaguense é compreendido por mais de 90% da população caboverdiana. É a variedade do crioulo mais frequente na rádio e na televisão caboverdianas. - Quando se fala o crioulo de Santiago, pode compreender-se sem grande dificuldade a maioria dos crioulos caboverdianos, à excepção dos crioulos rurais da ilha de Santo Antão. - O crioulo de Santiago está muito próximo dos crioulos falados nas outras ilhas do Sotavento: Maio, Fogo, Brava. Se à população de Santiago juntarmos a população dessas ilhas, podemos dizer que o conhecimento do Santiaguense permite comunicar com cerca de 70% dos caboverdianos. O crioulo de santiago apresenta ele mesmo duas grandes variedades: a urbana, falada na Praia, a capital, e a rural, falada no resto da ilha. Estas duas variedades seguem, no essencial, as mesmas regras gramaticais, mas o crioulo urbano apresenta numerosas influências do português moderno, a língua oficial do país. Neste manual privilegia-se sistematicamente o santiaguense rural fundamentalmente por dois motivos: - Nele são menos frequentes as interferências entre o português e o crioulo; - Muitos intelectuais caboverdianos consideram o santiaguense do interior um símbolo da identidade caboverdiana, na medida em que esta é a variedade que preserva mais vocábulos e expressões de origem africana e apresenta menos decalques do português. 9 Este manual propõe assim uma aprendizagem metódica do santiaguense rural, não deixando, porém, de fazer as indispensáveis pontes com as outras variedades do crioulo faladas no resto do arquipélago. MAPA 2. A ILHA DE SANTIAGO 10 ORGANIZAÇÃO DO MANUAL Vamos Falar Caboverdiano divide-se em quatro grandes partes: 1. As lições e a correcção dos exercícios propostos Este manual inclui 23 lições organizadas do seguinte modo: - A lição 0 visa proporcionar uma familiarização com as bases da pronúncia das palavras e da ortografia da língua. - As lições 1 a 20 têm por objectivo apresentar as bases da morfologia do caboverdiano moderno. Cada lição inclui um texto breve (normalmente em forma de diálogo), traduzido para português, seguido de um léxico bilingue composto pelas palavras novas, de um comentário gramatical, de exercícios de aplicação e de apontamentos sobre a cultura caboverdiana. - Nas lições 21 e 22, são propostos dois textos literários: o primeiro da autoria de um dos melhores autores da língua caboverdiana, Eugénio Tavares, e o segundo constituído por duas canções, uma composta por Nando da Cruz, a outra, por Luís Morais e Amândio Cabral, ambas interpretadas por Cesária Évora. O conjunto dos textos das lições e dos exercícios pode ser acedido a partir do registo áudio da respectiva locução por locutores nativos. No caso de trabalhar sozinho, ou se não se encontrar num contexto de imersão linguística, é indispensável trabalhar com base nestas gravações. Escute-as e repita por diversas vezes o texto de cada lição. Não hesite em voltar atrás para tornar a ouvir e repita a leitura as vezes que forem necessárias. O pleno domínio da língua oral é fundamental para uma língua que, como a caboverdiana, praticamente não é utilizada na escrita. A correcção dos exercícios é apresentada no final do manual. É aconselhável resolver estes exercícios por escrito antes de consultar as respectivas correcções. Após estudar seriamente o conjunto das lições deste manual, estará apto a participar activamente numa conversa comum em caboverdiano moderno. Além disso, graças à formação gramatical que terá recebido, no momento em que entrar em contacto directo com um meio caboverdianófono, ser-lhe-á muito mais fácil a aprendizagem de novas palavras e expressões. Finalmente, os apontamentos de cultura caboverdiana proporcionam uma primeira abordagem à especificidade da cultura deste povo, por contraste com as tradições portuguesa e europeia, permitindolhe compreender melhor a maneira de pensar e de ser dos seus amigos caboverdianos. 11 2. Os comentários gramaticais No seguimento das lições, irá encontrar duas secções de conteúdo gramatical: - A primeira, intitulada Elementos de gramática do caboverdiano moderno, recapitula sinteticamente as principais regras gramaticais abordadas ao longo das lições, mas também desenvolve alguns aspectos considerados de utilidade (por exemplo no que toca à formação dos diminutivos e dos aumentativos); - A segunda, intitulada Algumas notas acerca do mindelense, apresenta um apanhado das características do mindelense, variedade utilizada e compreendida nas ilhas do Barlavento. 3. Os léxicos Três léxicos distintos completam esta obra: - O léxico caboverdiano-português colige o conjunto dos termos caboverdianos usado nas lições 1 a 22, com a respectiva tradução para português e a indicação do número da lição em que cada termo ocorreu pela primeira vez. - A lista das palavras portuguesas usadas nos textos das lições permite a pesquisa inversa. Partindo das traduções portuguesas das palavras caboverdianas utilizadas nas lições 1 a 22, poderá encontrar o número da lição em que é introduzido o termo caboverdiano que procura. - O léxico temático caboverdiano-português é um miniguia de conversação. Será particularmente útil para os utilizadores que, ao chegar a Cabo Verde, não tenham tido tempo de aprender a língua previamente e tenham de começar a apanhá-la no contacto directo com os caboverdianos. 4. Índices Um índice gramatical, um índice dos apontamentos de cultura e um índice de mapas facilitam o acesso aos conteúdos do manual. 12