POR UMA ECONOMIA POLÍTICA INSTITUCIONALISTA, REALISTA E RELACIONAL: CONVERSAS ENTRE O REALISMO CRÍTICO E O INSTITUCIONALISMO VEBLENIANO Renato Ferreira Pontes* XII Conferência Anual - IACR, Julho de 2009 RESUMO: O artigo buscará sugerir uma apropriação do pensamento institucionalista de tipo Vebleniano, tal como desenvolvido por Geoffrey Hodgson, sobre bases crítico-realistas. Tal apelo justifica-se, por um lado, pelas conquistas do realismo crítico no campo da filosofia da ciência e seus impactos sobre as ciências sociais - sobretudo seus argumentos em favor de um naturalismo não-positivista - e, por outro, pela urgente necessidade de reconstrução dos fundamentos da teoria econômica. O (velho) institucionalismo partilha de uma preocupação ontológica da vida social que culmina nos esforços de construção de um arcabouço teórico não reducionista da conexão entre sujeitos e estruturas sociais (instituições), enfatizando a precedência das últimas em relação aos primeiros e as mútuas e constantes influências entre eles. Nesse sentido, a ontologia realista transcendental (sua reivindicação por uma realidade estratificada em níveis para além do empírico) e a concepção relacional dos objetos sociais podem (e devem) ter lugar central nos fundamentos epistemológicos da economia política. Ademais, ao nível do método, a orientação realista reforça a adoção, já presente nos textos de Veblen, da retrodução ou método retrodutivo. Acredita-se, com isso, fomentar as discussões acerca das contribuições crítico-realistas para as ciências sociais como um todo e para a heterodoxia da ciência econômica em particular, bem como do atual resgate e restabelecimento do pensamento institucionalista inaugurado por Thorstein Veblen. ABSTRACT: The paper suggests an appropriation of the institutionalist thought of veblenian type, as it has been recently developed by Geoffrey Hodgson, on critical-realistic bases. This appeal is justified, on the one hand, by the achievements of critical realism in the field of philosophy of science and its impacts on the social sciences - especially its arguments in favor of a non-positivist naturalism - and, on the other hand, by the urgent need for reconstruction of the foundations of economic theory. The (old) institutionalism share an ontologic concern of the social life that ends up in the efforts to build a non-reductionist theoretical connection between the subjects and social structures (institutions), emphasizing the precedence of the last upon the first and the mutual and constant influences between them. In this sense, the transcendental realist ontology (its claim for a stratified reality beyond the empirical level) and the relational conception of social objects can (and must) take a central place in the epistemological foundations of the institutional political economy. Moreover, at the level of the method, the realistic approach reinforces the adoption, already present in the writings of Veblen, of the retroduction or retroductive method. It is intented, thus, to encourage the discussions about the critical-realistic contributions to the social sciences as a whole and the heterodoxy of economic science in particular, and the current rescue and restoration of institutionalist thought inaugurated by Thorstein Veblen. PALAVRAS-CHAVE: Institucionalismo vebleniano, Realismo Crítico, Filosofia da Ciência, Metodologia, Conexão agência-estrutura. * Mestre em Desenvolvimento Econômico pelo Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e aluno do Programa de Pós-Graduação em Filosofia Moderna e Contemporânea da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Email: [email protected] Apresentação: Ação Individual e Estruturas Sociais na Teoria Social Este texto tem como objetivo geral fomentar as discussões em torno do desenvolvimento do projeto institucionalista da ciência econômica conectado com as idéias de seu principal fundador, Thorstein Veblen. Mais pontualmente, busca articular as contribuições oferecidas às ciências humanas pelo realismo crítico, sobretudo a partir de Bhaskar e Lawson, com os recentes trabalhos do moderno institucionalismo, principalmente sob a assinatura de Geoffrey Hodgson. Aos primeiros se devem os argumentos em defesa da elaboração teórica explicitamente ontológica da realidade social, abrindo assim a possibilidade de um naturalismo não-positivista neste domínio, enquanto aos últimos são atribuídas as pesquisas acerca da reapropiação (qualificada) do conceito de hábitos de pensamento como instância de mediação entre as formas sociais e a as ações dos sujeitos. O elemento comum de tais abordagens é natureza ontológica da crítica ao mainstream da ciência econômica (Wilson, 2005). De fato, dentre os questionamentos mais importantes englobados pelo projeto institucionalista, desde Veblen até Hodgson, destaca-se o relacionamento da agência individual com as formas estruturais da sociedade em um ambiente intrinsecamente dinâmico e não teleológico (sem um fim pré-determinado) de causação cumulativa, como informa a concepção evolucionária de ciência defendida por Veblen. É longa a lista da literatura em filosofia e teoria social que trata do tema; clara, também, é a polaridade dicotômica impressa nesta discussão: de um lado, autores que tudo explicam em termos da ação humana individual e, de outro, as estruturas (diversamente conceituadas) são os únicos elementos necessários no explanans. Tal discussão é conhecida e não há espaço aqui para reconstruí-la em seus pormenores. É suficiente que se destaque, contudo, que as posições polares impõem obstáculos ao desafio de entender e explicar a mudança na vida social. Alternativamente, pretendo localizar as contribuições da moderna teoria social realista e do institucionalismo vebleniano no seio desta disputa, apontando para a possibilidade de sua superação em uma articulação não reducionista da interação agência-estrutura. Mesmo no interior do institucionalismo fundando por Veblen - penso, sobretudo, em Ayres e Hamilton - uma determinada forma de reducionismo se fez presente no esforço de um afastamento da caracterização hedonista das motivações humanas: a adoção de uma psicologia behaviorista e a identificação de estruturas sociais e instituições com os padrões de comportamento que eles determinam (Lawson, 2003; Dugger, 1994). Dentro deste arcabouço, só existe a conduta humana enquanto determinada pela cultura, uma espécie de downward conflation. O mainstream econômico, por sua vez, tende para lado oposto ao buscar o entendimento da ação no indivíduo em si, naturalizado, fixo e asocial, recorrendo a uma upward conflation. A literatura em teoria social inclui ainda uma terceira forma de reducionismo, embora mais sofisticada, a saber, central conflation, onde as práticas sociais aparecem como unidades centrais da análise, como, por exemplo, na Teoria da Estruturação de Giddens (Archer, 2003; Hodgson, 2007). Em todos esses casos os elementos estruturais e os sujeitos são vistos, na melhor das hipóteses, como “dois lados da mesma moeda”, tendo, por assim dizer, a mesma constituição. O desafio lançado é o de recorrer a uma releitura/crítica realista - no sentido transcendental do realismo crítico - do pensamento institucionalista de cunho vebleniano de 2 maneira a evitar qualquer uma das posições acima mencionadas, bem como seus obstáculos ao entendimento da dinâmica social. Em outros termos, acredita-se que a articulação adequada dessas instâncias categoriais pressupõe uma elaboração explicitamente ontológica da vida social. Pela caracterização ontológica da vida social: o realismo crítico Como, então, tratar do dinamismo social, da continuidade, estabilidade e da mudança - principal tarefa da economia evolucionária de Veblen, como veremos a seguir -, sem recair nos tipos reducionistas de explicação da interação agência-estrutura acima expostos? A resposta dos realistas críticos remete à necessidade de elaboração explicitamente ontológica das categorias de apreensão da vida social. No centro das considerações ontológicas está o reconhecimento de que a realidade social (aquela que depende, pelo menos em parte, das ações humanas) é, da mesma forma que a realidade natural, estratificada nas esferas empírica (experiência e impressões), efetiva (eventos efetivos e estados de coisas em adição ao empírico) e real (estruturas, poderes, mecanismos e tendências, em adição aos eventos efetivos e experiências) (Lawson, 1997, p.21) 1. Assim, o mundo social possuiria mais de um nível ontológico, não sendo passível de redução nem aos indivíduos em si, nem às propriedades estruturais da cultura, tampouco aos padrões de comportamentos (práticas efetivas) observáveis: de fato, ele consiste também, para além dos indivíduos, de elementos como regras sociais, relações, posições, processos, sistemas, valores, significados, etc.; todos esses elementos são ontologicamente distintos entre si e do comportamento em geral. Segundo Lawson (2003), essas distinções são necessárias para a inteligibilidade do gap entre as normas culturais e os padrões de comportamento observáveis, i.e., da condição de abertura do mundo social. Contudo, não são somente as formas sociais que se apreendem como estratificadas, os seres humanos também o são em um sentido similar: agentes individuais possuem capacidades e disposições, inclinações e desejos, etc., que não podem ser reduzidas a sua conduta efetiva. É possível, por exemplo, que uma pessoa tenha capacidades e desejos nunca efetivados na prática social e, portanto, nunca observados. Em suma, a posição aqui defendida é a da irredutibilidade ontológica (e também epistemológica) das estruturas sociais e da subjetividade humana às práticas dos sujeitos no mundo social. Para os realistas críticos a inteligibilidade desse posicionamento ontológico pressupõe o reconhecimento do fenômeno da emergência (Bhaskar, 1998; Lawson, 1997, 2003). Segundo essa perspectiva, para que um determinado estrato da realidade possa ser entendido como emergente, ou como possuidor de propriedades emergentes, ele deve (i) ter origem em algum estrato inferior, sendo constituído por princípios operativos nesse estrato, (ii) permanecer dependente do estrato inferior do qual emergiu para sua existência e (iii) conter poderes causais próprios, sui generis, irredutíveis àqueles do estrato que o 1 Admite-se que essa estratificação ontológica é condição de inteligibilidade para o sucesso a posteriori das ciências naturais, bem como fornece o fundamento para existência das ciências sociais. Ver Bhaskar (1997, 1998). 3 fundamenta, bem como (possivelmente) ser dotado de eficácia causal sobre o estrato inferior que o sustenta. É neste sentido que as formas sociais representam um estrato emergente das (inter-)ações humanas, possuidor de propriedades irredutíveis as mesmas, sendo capazes de afetar causalmente tais interações. Nesse ponto é possível esboçar o modelo crítico-realista da conexão sociedadepessoa como caracterizado pelo modelo transformacional da atividade social desenvolvido por Bhaskar (1998). O modelo transformacional busca, explicitamente, contrapor-se tanto ao voluntarismo (caricaturalmente associado a Weber) quanto à reificação (ilustrada pelo pensamento de Durkheim). O ponto de partida do modelo é o reconhecimento, com Durkheim, da preexistência das formas sociais sobre os indivíduos e suas práticas, de forma que, contra o voluntarismo, não se pode afirmar que a ação humana cria a sociedade, uma vez que ela preexiste à ação. Ao nascermos, encontramos uma sociedade “pronta” (mas nunca acabada) por meio da qual nos constituímos subjetivamente enquanto indivíduos singulares e agimos – reproduzindo e/ou transformando a sociedade. A sociedade é, portanto, condição (tipicamente não reconhecida) da conduta intencional humana. Por outro lado, entende-se, contra Durkheim e sua concepção reificadora, que a sociedade não pode existir senão por meio das práticas intencionais dos sujeitos, ela é, portanto, resultado (tipicamente não intencionado) dessas ações teleológicas. As estruturas sociais, no modelo transformacional, existem enquanto processos contínuos de reprodução e transformação, vale dizer, sem um fim pré-definido ou mesmo previsível. Dessa maneira, por um lado, as categorias de criação e determinismo são eliminadas do arcabouço conceitual e, por outro, a mudança e a continuidade/estabilidade sociais são tomadas como ontologicamente equivalentes, sem que haja primazia de qualquer uma delas. Essa concepção, ao afirmar a autonomia do social, mas também do sujeito, e com isso sua irredutibilidade ontológica, impede que figure qualquer forma de explicação estritamente reducionista, seja em termos de indivíduos, de estruturas sociais ou práticas efetivas. Com isso, abre-se a possibilidade, segundo Bhaskar (1998), para um naturalismo não-positivista (ontologicamente limitado) aplicável às ciências sociais, garantindo, assim, a objetividade do conhecimento científico social. A tarefa das ciências sociais seria então, através do método retrodutivo2, buscar o delineamento das condições estruturais de possibilidade das práticas humanas intencionais em busca, não de previsibilidade, mas de poder explanatório. Por fim, desde a concepção dos realistas críticos, o mundo social é entendido em termos de totalidade: “systems of (or which include) internally related elements or aspects, i.e. systems wherein some aspects constitute conditions for the existence or essence (characteristics features and ways of acting) of others” (Lawson, 1997, p. 64). A relacionalidade interna é fortemente disseminada no domínio social, a exemplo das relações entre proprietário-arrendatário, empregador-empregado, professor-estudante, nas quais as partes, por assim dizer, definem-se mutuamente. Dessa maneira, os poderes que indivíduos 2 “(...) parte-se de um objeto ou regularidade para a tentativa de imaginar um conjunto de condições que, se puder ser considerado verdadeiro ex posteriori, explica a ocorrência do objeto ou regularidade – o método de inferência abdutiva (ou retrodutiva) de Peirce” (FUCIDJI, 2006, p.5-6). 4 que ocupam certas posições podem reivindicar dependem de algum modo das relações entre tais posições. Totalidades são ubíquas. Em suma o quadro da ontologia crítico-realista nos mostra um mundo complexamente estruturado, aberto, intrinsecamente dinâmico, caracterizado pela emergência e, portanto, pela novidade (Lawson, 1997). O projeto do Institucionalismo vebleniano Não se trata aqui, é bom que se diga à saída, de coletar argumentos ou evidencias textuais que, em algum sentido, apontariam para uma suposta afiliação de Veblen a algum tipo de geral realismo ou ao realismo crítico em particular. Antes, busca-se sustentar uma postura construtivista para o projeto do institucionalismo a partir de uma releitura desse projeto em bases realistas. Throstein Veblen foi fortemente afetado, de um lado, pelas teorias Darwinistas acerca da evolução das espécies e pelo reflexo dessas teorias nas ciências sociais no que concerne ao estudo da “cultura” e, de outro lado, pelas intensas transformações pelas quais passava o mundo ocidental, na virada do século XIX para o XX, implicadas no acelerado processo de industrialização da economia em diversos países, notadamente os EUA (Mayhew, 1987). Neste contexto, duas concepções são fundamentais ao entendimento do esquema de pensamento de Veblen, a saber: (i) a formação da cultura como um processo evolutivo, incessante e não teleológico, o que explicaria a variedade de idéias e práticas humanas observáveis, e (ii) o poder de influência dos processos pelos quais o homem manipula a natureza sobre sua forma de pensar o mundo em que vivem, seus hábitos de pensamento, e, em conseqüência, suas práticas efetivas. Veblen havia notado como os “processos mecânicos” da indústria exerceram sua influência sobre os hábitos de pensamento dos agentes econômicos. Assim, podemos destacar a ontologia implícita ao projeto evolucionário de Veblen presente em seu famoso texto Why is economics not an evolutionary science?: um mundo social intrinsecamente dinâmico e processual, permeado por cadeias de causação cumulativa sem fins predeterminados, aliás, sem qualquer fim previsível. Contrapondo seu esquema evolucionário ao pensamento econômico de sua época3, o qual, segundo ele, ainda não raciocinava em termos de processos, Veblen (1919, p.60) escreveu: “The difference is a difference of spiritual attitude or point of view in the two contrasted generations of scientists. To put the matter in other words, it is a difference in the basis or valuation of the 3 A maior parte de suas críticas dirigiram-se a três escolas do pensamento econômico que são identificadas com o pensamento não evolucionário: (i) a Escola Histórica Alemã; (ii) a Escola (neo) Clássica, entendida por Veblen simplesmente como um desenvolvimento do utilitarismo de Bentham; e (iii) a Escola Austríaca. A essas linhas de pensamento estão associados, segundo Veblen, um ou mais de três aspectos fundamentais que distinguem a dita economia não evolucionária; são eles: (i) a utilização dos métodos indutivo ou dedutivo; (ii) a concepção animista e teleológica dos fenômenos econômicos, que resulta em uma ciência de caráter taxonômico; e (iii) a concepção hedonista da motivação das ações humanas (BACKHOUSE, 1985, p. 227) 5 facts for the scientific puporse, or in the interest from which the facts are apreciated”. Desde sua perspectiva evolucionária, o autor enfatiza o caráter cumulativo de causa e efeito de tal forma que: any evolutionary science (...) is a close-knit body of theory. It is a theory of a process, of an unfolding sequence. (...) The great deserts of the evolutionist leaders (...) lie, on the one hand, in their refusal to go back of the colorless sequence of phenomena and seek higher ground for their ultimate syntheses, and, on the other hand, in their having shown how this colorless impersonal sequence of cause and effect can be made use of for theory proper, by virtue of its cumulative character (VEBLEN, 1919, 58-61). Partindo desta fundamentação darwiniana, o projeto do institucionalismo evolucionário fundado por Veblen tem como objetivo central lidar com a mudança e com a continuidade - ontologicamente em par e causalmente relacionadas - da vida social em oposição às condições de partida e de chegada dos eventos. Nas palavras de Veblen (1919, p.37): “(...) is an new distribution of emphasis, whereby the process of causation, the interval of instability and transition between initial cause and definitive effect, has come to take the first place in inquiry. Nos termos da literatura crítico-realista podemos falar nos processos de reprodução e transformação das formas sociais. No escopo da epistemologia evolucionária justifica-se a importância atribuída à categoria instituição por meio de sua identificação como a principal fonte de estabilidade das formas de vida social, formando as condições de possibilidade para a ação humana intencional. Com isso em mente, é interessante a definição dessa categoria cunhada por Lawson (2003) para quem as instituições devem ser entendidas “como sistemas ou processos estruturados (ontologicamente irredutíveis) de interação (envolvendo regras, relações e posições, bem como hábitos e outras práticas) que são relativamente duráveis e reconhecidos como tal”. No entanto, grande parte da literatura voltada ao tema aceita a famosa definição de instituições como “settled habits of thought commom to the generality of men” (Veblen, 1919, p.239). Nesta definição a noção de hábitos de pensamento é a responsável por capturar o mecanismo psicológico que fornece estabilidade às interações sociais. Como Veblen destaca em The theory of the leisure class (1989) os homens tendem a manter seus hábitos de pensamento indeterminadamente enquanto a situação de sua aplicação for semelhante àquela de sua constituição. Para Geoffrey Hodgson, talvez o principal continuador contemporâneo do projeto vebleniano, as instituições, consideradas o tipo de estrutura mais importante no domínio social devido à sua natureza relativamente duradoura, são entendidas como “(...) systems of established and prevalent social rules that structure social interactions” (Hodgson, 2006, p.2). Essa relativa durabilidade advém do fato de que as instituições, ao possibilitarem e restringirem comportamentos, criam expectativas mais ou menos estáveis acerca das ações dos sujeitos, impondo forma e consistência à atividade humana (Hodgson, 2004). No entanto, instituições não influenciam diretamente os comportamentos individuais. Antes, impõem seu poder causal de influência sobre os hábitos de pensamento e ação que, por sua vez, fundamentam os propósitos, preferências e crenças das pessoas. Em outras palavras, os hábitos estão na base mesma de todo o aparato conceitual com o qual cada indivíduo 6 interpreta e age sobre o mundo. Dessa forma, mudanças institucionais podem levar a mudanças nos hábitos individuais e, então, a mudanças nas preferências e razões dos agentes. Os esforços teóricos de Hodgson concentram-se, em grande medida, na reabilitação da categoria de hábitos de pensamento e ação, que constituem, em seu esquema conceitual, o mecanismo causal e psicológico por meio do qual os agentes individuais são moldados pelas instituições. Nessa perspectiva, os hábitos representariam a instância de mediação entre as influências estruturais das instituições e as ações efetivas dos agentes individuais. O entendimento desse mecanismo de mediação é necessário a uma concepção nãoreducionista desta interação devido à distinção ontológica entre indivíduos e instituições (Hodgson, 2001, 2004). É fundamental destacar que Hodgson afasta-se de outros autores institucionalistas, como Ayres, Hamilton e Dugger, em sua concepção não behaviorista do conceito de hábitos. Esses autores acabaram por confundir hábitos de pensamento e ação com padrões de comportamentos observáveis. Sua leitura dessa categoria aproxima-se daquela de Veblen e dos filósofos e psicólogos pragmatistas, como John Dewey e William James, para quem os hábitos são conceitualizados em termos de disposições adquiridas a certas linhas de ação e não como comportamentos em si mesmos: “(...) habit as an acquired proclivity or capacity, which may not be actually expressed in current behaviour. (...) Habits are submerged repertories of potential thought or behaviour, to be triggered by an appropriate stimulus or context” (Hodgson, 2007, p. 106). Desde esse ponto de vista, a própria deliberação racional é entendida como sendo dependente dos hábitos de pensamento dos sujeitos, que funcionariam como filtros das experiências e como fundamento das intuições e interpretações. No entanto, a formação de hábitos pode envolver a repetição de comportamentos e a propensão a imitar os outros em condições sociais restritivas. O aparato institucional, como o estruturador de interações (habilitando e restringindo), tende a criar hábitos e preferências consistentes com sua reprodução. Para Hodgson, “Habits are the constitutive material of institutions, providing them with enhanced durability, power and normative authority. In turn, by reproducing shared habits of thought, institutions create strong mechanisms of conformism and normative agreement” (p. 107). Tendo em vista a evolução da espécie humana, argumenta-se que desenvolvemos a capacidade de formar hábitos para lidar com a incerteza, complexidade e variabilidade de circunstâncias. Calcado pelas pesquisas em psicologia cognitiva, Hodgson (1994) considera que o processo de habituação situa-se em uma “dimensão social, cultural e institucional”, pois praticamente todo nosso aparelho conceitual, desde a linguagem até os valores, é socialmente aprendido. A esse poder causal de influência das instituições, via hábitos de pensamento e ação, sobre as preferências, disposições, esquemas conceituais, enfim, sobre o aparato cognitivo dos agentes humanos, Hodgson denominou causação reconstitutiva descendente (reconstitutive downward causation). No entanto, afirma o autor, isso não implica em determinismo, senão apenas que as instituições podem apresentar seus efeitos sobre os hábitos dos indivíduos que, por sua vez, podem levar a comportamentos que sustentem a estrutura institucional (self-reinforcing and self-perpetuating characteristics). “Actor and institutional structure, although distinct, are thus connected in a circle of mutual 7 interaction and interpendence ” (p. 108). Dessa interdependência deduzimos o caráter relacional do pensamento institucionalista – contraposto ao individualismo, por um lado e, por outro, ao coletivismo. O mundo social é uma totalidade estruturada de relações sociais, bem como de sujeitos e artefatos materiais. Esse posicionamento teórico-ontológico conta, portanto, contra as concepções atomísticas sustentadas por uma ontologia de sistemas fechados que tendem, por exemplo, a tomar o agente individual como um “dado”, algo de natureza imutável, sem qualquer influência do mundo que o cerca. Realismo Crítico e Institucionalismo Evolucionário: possíveis conexões Neste ponto, pretendo chamar a atenção para alguns possíveis pontos de conexão entre as abordagens acima expostas. Em primeiro lugar, temos que ambas as perspectivas direcionam-se por uma orientação realista. Em sua acepção mais básica, o realismo sustenta a existência dos objetos da investigação científica independentemente da mesma. O realismo filosófico reconhece a existência de entidades não empíricas, como relações sociais, buracos negros, etc. Em particular, o tipo de realismo sob o qual sustentam-se os trabalhos de Bhaskar, Lawson e Hodgson tem como característica central a preocupação com a ontologia, ou seja, com a natureza, estrutura e constituição da realidade investigada. Isto implica o reconhecimento da primazia da ontologia sobre a epistemologia: é a natureza dos objetos de estudo que delimitam as possibilidades e limites de seu conhecimento (Bhaskar, 1997, 1998). O posicionamento de Hodgson (1994) mostra-se consistente com tais argumentos quando, ao empreender sua crítica ao mainstream da ciência econômica, afirma que uma ciência não se define por seus métodos e instrumentos de análise, mas por seu objeto de estudo característico. Ambas as abordagens partilham de uma forma de ontologia holista – contraposta à individualista – cuja implicação maior está no reconhecimento de que as estruturas sociais são ontologicamente precedentes em relação aos indivíduos. Estes seriam o resultado de um complexo de relações causais. No entanto, se se pretende apreender a complexidade da realidade social e sua dinâmica de forma não reducionista é necessário enfatizar a distinção ontológica entre indivíduos e formas sociais. Para tanto as teorias devem adotar uma ontologia de sistemas abertos (onde os eventos observáveis não são os únicos possíveis) e uma concepção relacional da interação entre a ação humana intencional e as estruturas sociais (especialmente instituições). Parece claro que esta é a intenção do modelo transformacional da atividade social, no caso de Lawson e Bhaskar, e do modelo de causação reconstitutiva descendente de Hodgson. Talvez seja possível apontar para a complementaridade entre esses modelos: o modelo transformacional volta-se mais precisamente para os processos de mudança estrutural, enquanto que o modelo reconstitutivo do sujeito explicaria a mudança e estruturação dos agentes advindas da mudança institucional. Um terceiro ponto a ser explorado localiza-se ao nível do método. A adoção de uma ontologia estratificada da realidade nos domínios do empírico, efetivo e real, implica um método científico distinto daqueles do indutivismo e do dedutivismo, a saber, o método retrodutivo. Como visto acima, a retrodução, abdução ou método retrodutivo, cujas origens remontam à filosofia pragmatista de Charles Peirce, é entendida como o movimento que 8 parte dos eventos regulares nos níveis empírico e efetivo em busca dos mecanismos causais responsáveis pela geração de tais eventos observáveis. Tantos os autores crítico-realistas, Bhaskar e Lawson, quanto os institucionalistas, Veblen e Hodgson, trabalham explicitamente com a concepção metodológica da retrodução. Por fim, como resultado do até então descrito, procurarei localizar as categorias centrais do institucionalismo de cunho vebleniano com o qual tenho trabalhado nos três níveis de realidade sugeridos pelos autores do realismo crítico. As práticas efetivas, observáveis, dos sujeitos estão, obviamente, no estrato empírico da realidade. Os hábitos de pensamento e ação dos indivíduos, entendidos como estoques de disposições e esquemas conceituais com os quais os agentes lidam com o mundo, situam-se no nível efetivo ou atual da realidade. As instituições, por sua vez, compondo os elementos estruturais mais fundamentais da análise, estão no domínio real, dos mecanismos causais generativos dos eventos e estados de mundo. A utilidade maior desse esquema está na sua demanda por reconhecimento de que os níveis ou estratos da realidade são, além de irredutíveis entre si, dessincronizados: as instituições (mecanismos causais generativos do nível real) não se reduzem nem aos hábitos de pensamento e ação (disposições e tendências à certos comportamentos no nível efetivo), tampouco aos comportamento efetivamente observáveis do nível empírico. Pode-se observar comportamentos não associados a determinados hábitos de pensamentos e/ou instituições, bem como identificar a existência de hábitos que não se efetivam em comportamentos. Em suma, admite-se que há a possibilidade de adoção frutífera de uma postura construtivista para o pensamento institucionalista na linha inaugurada por Throstein Veblen fundamentada pela filosofia para a ciência proposta pelo realismo crítico de forma que se caminhe em direção a uma Economia Política institucionalista, Realista e Relacional. No entanto, muito trabalho teórico é necessário para a construção de uma teoria consistente da ação em Economia e sua interação com as formas estruturais que leve em consideração a irredutibilidade ontológica de tais níveis e que tenha como objeto a relação entre os mesmos. 9 Referências: ARCHER, M. (2003) Structure, agency and the internal conversation. Cambridge, UK: Cambridge University Press. BACKHOUSE, R. (1985) A history of modern economic analysis, Oxford: Basil Blakwell. BHASKAR, R. (1997) A Realist Theory of Science. London: Verso [1975]. BHASKAR, R. (1998) Societes. In: ARCHER, M. et al(ed.). Critical Realism: essential readings. 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