A promessa do lugar para onde Jesus está indo (14-1-4) 1. É Jesus quem está se dirigindo para a agonia da cruz; é Jesus quem está profundamente ‘perturbado’ no coração (12.27) e no espírito (13.21). Todavia, nessa noite das noites, o momento crucial de todos os tempos que seria apropriado para os seguidores de Jesus lhe darem apoio emocional e espiritual, ele ainda é o único que se doa, que conforta e que instrui. Pois eles também estão perturbados (mesmo verbo que nos versículos citados acima) — não por estarem se apressando em direção à dor, ignomínia, vergonha e crucificação, e sim porque estão confusos e incertos quanto ao que Jesus quer dizer, e em perigo por causa de suas referências à iminência de sua partida. Por mais apropriado que possa ser citar as palavras nãose perturbe o coração de vocês em funerais cristãos, elas foram dirigidas primeiramente a discípulos que, sob forte pressão emocional, estavam às margens de um fracasso catastrófico. Dessa forma, os elos com o capítulo anterior são dois. Primeiro, há uma ligação implícita com Pedro: se a fé dele está para ser abalada, os outros discípulos se mostrarão mais estáveis em sua fé? Não é surpreendente que os Onze estejam profundamente agitados. Segundo, e de forma mais ampla, devido ao tumulto dos discípulos, Jesus revela em alguma extensão as implicações da partida iminente (13.33,36). A maneira como os discípulos devem acalmar seus corações é mencionada na segunda parte do versículo: Creiam em Deus; creiam também em mim. Os dois verbos traduzidos por ‘crer’ {pisteuô; cf. notas sobre 1.12) poderiam estar no modo indicativo ou no imperativo, levando às seguintes traduções principais: (a) indicativo/indicativo: ‘Vocês confiam em Deus e confiam também em mim’ - o que em um âmbito marginal pode ser verdadeiro, porém obviamente inapropriado neste contexto, visto que o problema central da perturbação sentida pelos discípulos é ausência de fé; (b) indicativo/imperativo: ‘Vocês crêem em Deus; creiam também em mim’ (ou a variação de Bultmann [p. 600], ‘Vocês crêem em Deus? Então, creiam também em mim’) — que faz sentido como um convite a estender o objeto de sua fé para além de Deus, como eles o conheceram no passado, isto é, estender a fé a Jesus também, porém não fica claro, em razão do coração perturbado deles, que a confiança desses homens em Deus esteja muito segura em relação a esse ponto; (c) imperativo/imperativo: “Creiam em Deus; creiam também em mim” (NVI). Essa é a forma que os verbos foram entendidos em quase todos os manuscritos da Vetus Latina, e a que mais leva em conta o contexto.33 Embora a última opinião seja a melhor, todas as três assumem uma cristologia formidavelmente elevada, pois relacionam Jesus com o Pai como um objeto apropriado de fé. Para leitores sérios deste evangelho, porém, o elo é quase inevitável. Se Jesus invariavelmente fala as palavras de Deus e realiza os atos de Deus (5.19ss.), não se deveria crer que ele é Deus? Se ele diz a seus seguidores para que não se turbe o coração, não será por que ele tem ampla e justificada razão? 2,3. A razão é agora declarada: a partida de Jesus é para o bem dos discípulos. E verdade que ele está indo embora, mas está indo para preparar um lugar para eles, e ele virá e os levará para que eles possam estar onde ele está. O que mais eles poderiam pedir? Até esse ponto todos os comentadores concordam. No entanto, a linguagem usada para a ‘volta de Jesus e seu ‘estar com’ seus discípulos se refere a coisas diferentes em várias passagens desses capítulos: algumas vezes, ao retorno de Jesus para seus discípulos após sua ressurreição, algumas vezes, à ‘vinda’ para eles pelo Espírito após ele ser exaltado à glória do Pai, e outras vezes a sua ‘vinda’ no fim dos 33 A quarta possibilidade, imperativo/indicativo, embora seja sintaticamente possível, é incoerente: ‘Creiam em Deus; vocês crêem também em mim’. 489 João 14.1-4 tempos (nesse capítulo, cf. notas sobre w. 18-20 e 22,23). Na realidade, no entendimento de alguns comentadores, a linguagem ambígua dos versículos 2,3 é proposital para se referir simultaneamente a mais de uma vinda (assim, por exemplo, Westcott, 2. 168; Lagrange, pp. 373-374; Strachan, p. 280; Barrett, p. 457). Interpretações mais idiossincrásicas dos versículos 2,3 também são apresentadas. Alguns pensam que o que está em vista é a morte e partida dos cristãos para estar com Jesus (Lightfoot, pp. 275-276; Bultmann, p. 602). À primeira vista, entretanto, a única morte no contexto é a de Jesus, enquanto que o quadro coletivo da promessa (Voltarei e os [plural] levarei para mim’) não pode ser combinado facilmente com tal interpretação (cf. Fischer, pp. 310-311). Gundry34 afirma que os versículos 2,3 se referem à comunhão que os discípulos desfrutarão com Jesus através do Espírito, mas isto, como veremos, depende em grande parte de uma versão improvável da palavra traduzida por aposentos. Os detalhes do texto demonstram que estes dois versículos se referem ao segundo advento de Jesus, quando ele vem para levar seus seguidores para estarem com ele para sempre. A palavra grega monê, cognata do verbo menô (‘permanecer’, ‘ficar’, ‘habitar’), significa exatamente uma ‘habitação’. Porque a Vulgata latina a traduziu como mansiones, a ARC, seguida pela ARA, usou ‘moradas’. Entretanto, como o céu é retratado nesse ponto como a casa do Pai, é mais natural pensar em aposentos (NVI), suítes ou algo do tipo para se referir a ‘habitações’ de uma casa. A única outra passagem em que a palavra ocorre no Novo Testamento é em 14.23: “Meu Pai [...] nós viremos a ele e faremos morada nele” - isto é, o crente, habitado pelo Espírito, torna-se, assim, a ‘habitação’ e, conseqüentemente, a ‘morada do Deus Trino. E a partir da leitura desse referente da palavra do versículo 23, referindo-se ao versículo 2, que Gundry encontra apoio para sua tese de que a vinda de Jesus nos versículos 2,3 é a concessão do Espírito. Permanece o fato de que a palavra monê significa simplesmente ‘habitação’; não há mais motivo para ler o referente daquela palavra (isto é, a que habitação a palavra se refere) do versículo 23 no versículo 2 que para entender o inverso: em ambos os casos é o contexto que deve decidir. E mais, não há um bom motivo para retratar estas habitações do versículo 2 como estações intermediárias, alojamentos temporários, mesmo que as mansiones do latim possam ter este sentido. Contra Orígenes e aqueles que o seguiram (e.g. Temple, p. 226), o céu não é retratado nesse ponto como uma série de estados progressivos e temporários, os quais se avança até atingir finalmente a perfeição. A palavra em si não tem estas implicações, e não há sugestões no contexto para apoiar esta tese. Nem a casa de meu Pai se refere, nesse ponto, à igreja como a casa espiritual ou templo de Deus (cf. ICo 3.16,17; E f 2.20-22; IPe 2.5): esta metáfora não é encontrada no quarto evangelho. Além disso, mesmo nas passagens em que a metáfora é destacada, faz referência à igreja como a casa de Deus, mas nunca como ‘a casa do Pai’ ou ‘a casa de meu Pai’. A explicação mais simples é a melhor: casa de meu Pai refere-se ao céu, e no céu há muitos aposentos, muitas habitações. A questão não é a prodigalidade de 34 R. H. Gundry, ZNW58, 1967, pp. 68-72. João 14.1-4 490 cada aposento, e sim o fato de que foi feita uma provisão tão ampla que não há mais que o espaço necessário para todos os discípulos de Jesus se juntarem a ele na casa de seu Pai. Além disso, eles não acabam de ser encorajados a crer nele (v. 1), e sempre encontraram forte motivo para crer? Não podem, portanto, estarem seguros de que caso o céu fosse diferente daquilo que Jesus descreve, ele lhes teria dito (cf. nota adicional)? Vou preparar-lhes lugar, as palavras pressupõem que o ‘lugar’ existe antes de Jesus chegar lá. Não se trata dele entrar em cena e, depois, começar a preparar o terreno; ao contrário, no contexto da teologia joanina, é o próprio ato de ir, via cruz e ressurreição, que prepara o lugar para os discípulos de Jesus. E se ele assume este trabalho, tudo para preparar um lugar para os seus, é inconcebível que o descanso não se seguisse: voltarei e os levarei para mim, para que vocês estejam onde eu estiver. Diferentemente de algumas outras passagens que apontam para a parúsia, esse texto focaliza o conforto a ser desfrutado pelos crentes na presença de Deus {cf. lTs 4.15-18) — e não os elementos apocalípticos e o recolhimento do cosmos que se enrola como se fosse um pergaminho {cf. Mc 13.24-27; 2Ts 2) — o que é ainda diferente daquelas passagens que oferecem consolo para os crentes na morte deles (e.g. 2Co 5.8; Fp 1.23). 4. Embora Jesus diga a seus discípulos: Vocês conhecem o caminho para onde vou {cf. nota adicional), o versículo seguinte demonstra que, em algum aspecto, eles não sabiam nada sobre isto. O que João está dizendo não é que Jesus cometeu algum erro terrível ao avaliar seus discípulos, e sim que, precisamente porque eles o conhecem, eles sem dúvida conhecem o caminho para o lugar que Jesus acaba de descrever. Mais uma vez é na continuação da leitura e na releitura do texto que encontramos a antecipação que Jesus faz de sua franca e iminente declaração de que ele mesmo é o caminho (v. 6). Notas adicionais 2. Alguns manuscritos inserem hoti (nesse ponto significando ‘que’) antes da última frase, gerando uma declaração ou uma pergunta: ‘se não fosse assim, eu teria dito que vou preparar-lhes lugar’, uma tradução pouco provável; ou ‘se não fosse assim, eu teria dito que vou prepara-lhes lugar?’, uma pergunta um pouco estranha visto que até agora Jesus não fez um anúncio desse tipo. Alternativamente, o hoti poderia significar ‘porque’ ou ‘pois’ e estar relacionado com a primeira parte do versículo 2: ‘Na casa de meu Pai há muitos aposentos (se não fosse assim eu teria dito a vocês), pois vou preparar-lhes lugar’. A lógica dessa última é um pouco sofisticada, e o comentário parentético um pouco desajeitado. Embora a NVI apresente o texto mais curto (isto é, a omissão de hoti), é marginalmente mais provável que hoti seja original. Se for assim, talvez a segunda opção, a forma de pergunta, seja menos criticável, entendendo que o relato de João pretende ser tão condensado que ele escolheu não registrar o fato de que Jesus está indo preparar um lugar para seus discípulos por outro meio que não a pergunta retórica em si. O sentido de tal tradução está, do ponto de vista do significado, muito próximo da NVI. 491 João 14.5-14 4. Alguns manuscritos preservam uma leitura mais longa: ‘Vocês conhecem o lugar para onde vou, e sabem o caminho’. Isto representa uma transição um pouco mais suave para o versículo 5. Mesmo que a leitura mais longa seja de autenticidade duvidosa, a leitura mais curta deve ser entendida da mesma forma. 3. Jesus, o caminho para o Pai (14.5-14) 5. Tomé (cf. notas sobre 11.16; 20.24) aparece no quarto evangelho não só como um discípulo leal e até mesmo, corajoso, mas também como alguém liberalmente dotado de equívocos e dúvidas. Sua pergunta soa como se ele interpretasse as palavras de Jesus no sentido mais crasso e natural: ele quer um destino claro, pois sem isso, como alguém pode falar de forma relevante do caminho para lá? Dodd (IFG, p. 412, n. 1) vai além da evidência ao afirmar que a seqüência seria assim: Jesus: “Vocês conhecem o caminho; vocês não precisam saber aonde ele leva”. Tomé: “Se não sabemos o destino, como podemos saber o caminho?” Na realidade, Jesus acaba de explicar-lhes o destino (w. 2,3) e os avisou que eles também conhecem o caminho (v. 4). Tomé replica, com efeito, que ele (e os outros discípulos) ainda não entendeu o que Jesus disse sobre destino, e portanto, como poderia ter qualquer significado coerente a insistência de Jesus de que eles conhecem o caminho? 6. A segunda metade deste versículo mostra que o versículo inteiro deve ser entendido como a resposta à pergunta de Tomé. Isto significa que caminho é um pouco mais enfatizado que verdade e vida. O que significa que o versículo 6a deva ser interpretado como um semitismo; o primeiro substantivo rege os outros dois (‘Eu sou o caminho da verdade e vida’, e conseqüentemente “Eu sou o caminho verdadeiro e vivo”); os três termos são sintaticamente coordenados, e o grego tem outras forma de expressar subordinação. Ainda, se a pergunta de Tomé e a passagem 6a demonstram que caminho é o tema principal, segue-se que verdade e vida têm uma função de apoio: Jesus é o caminho para Deus, precisamente porque ele é a verdade de Deus {cf. notas sobre 1.14) e a vida de Deus (cf. notas sobre 1.4; 3.15; 11.25). Jesus é a verdade, porque ele incorpora a suprema revelação de Deus - ele próprio ‘narra’ Deus (1.18), diz e faz exclusivamente o que o Pai lhe concede dizer e fazer (5.19ss.; 8.29), de fato, ele é corretamente chamado de “Deus” (1.1,18; 20.28). Ele é a graciosa auto-revelação de Deus, sua “Palavra”, posta em carne (1.14). Jesus é a vida (1.4), aquele que tem “vida em si mesmo’ (5.26), “a ressurreição e a vida” (11.25), “o verdadeiro Deus e a vida eterna” (ljo 5.20). Somente por ele ser a verdade e a vida, que ele pode ser o caminho para outros chegarem a Deus, o caminho para seus discípulos chegarem às muitas habitações na casa do Pai (w. 2,3), e, portanto, a resposta para a pergunta de Tomé (v. 5). Nesse contexto, Jesus não só abre o caminho, ordenando que outros tomem o caminho que ele mesmo toma; ao contrário, ele é o caminho. Nem mesmo é adequado dizer que Jesus “é o Caminho, no sentido de que ele é todo o pano de fundo contra o qual a ação deve ser realizada, a atmosfera na qual a vida deve ser vivida” (Sidebottom, p. 146): isto atribui a Jesus uma função muito passiva. Ele próprio é o Salvador (4.42), o Cordeiro de Deus (1.29,34), aquele que fala de um jeito que os que estão nos túmulos ouvem sua voz e saem (5.28,29). Ele de tal forma media a João 14.5-14 492 verdade de Deus e a vida de Deus que ele é o próprio caminho para Deus (cf. de la Potterie, p. 938), o único que pode dizer: Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim. No esquema deste evangelho, este exclusivismo dirige-se para, pelo menos, duas direções. Primeiramente, ele é restringido pela consciência histórico-salvífica do evangelista: isto é, agora que Jesus veio como a revelação culminante do Pai, torna-se totalmente inadequado reivindicar que alguém conheça a Deus, na base da revelação antecedente de épocas passadas, enquanto rejeita Jesus Cristo. Na verdade, o teste para saber se os judeus nos dias de Jesus, e nos dias de João, realmente conheciam ou não a Deus através da revelação que já havia ocorrido, encontra-se em sua resposta à suprema revelação do Pai, o próprio Jesus Cristo, para quem as Escrituras, corretamente entendidas, apontam invariavelmente {cf. notas sobre 5.39-46). Em segundo lugar, mesmo que a linguagem de João utilize metáforas e figuras comuns entre as religiões do mundo romano e bem atestadas no judaísmo da Diáspora, ele não quer sugerir, em nenhum momento, que o cristianismo é meramente mais uma religião entre muitas. Elas não são eficazes para levar pessoas ao verdadeiro Deus. Ninguém, Jesus insiste, vem ao Pai, a não ser por mim. Esta é a atitude necessária presente em todo evangelismo fervoroso {cf. notas sobre 20.30,31).35 A meditação de Tomás à Kempis é freqüentemente citada: Siga-me. Eu sou o caminho a verdade e a vida. Sem o caminho não há como ir; sem a verdade não há saber; sem a vida não há viver. Eu sou o caminho que você deve seguir; a verdade que você deve crer; a vida pela qual você deve esperar. Eu sou o caminho inviolável; a verdade infalível, a vida sem fim. Eu sou o caminho mais reto; a verdade soberana; vida verdadeira, vida abençoada, vida incriada.36 Ou, poeticamente: Eu sou o caminho para Deus: eu não vim Para iluminar um caminho, abrir uma trilha para que você Possa simplesmente seguir meus passos, perseguir Minha sombra como um prêmio que se conquista facilmente. Minha vida revela a vida de Deus, a soma 35 De fato, é um estranho julgamento afirmar que “a declaração de Jesus, entendida à luz do Prólogo, é inclusiva, e não exclusiva” (Bruce, pp. 298-299; citado por BeasleyMurray, p. 253). Pois embora a Palavra, antes de sua encarnação, estivesse presente em toda a criação, aquela ‘inclusividade’ é imediatamente abalada pela profunda rejeição que ele enfrenta por parte do “mundo”, por parte daqueles que eram “os seus” (1.10,11). Somente àqueles que “o receberam” e “creram em seu nome” foi dado “o direito de se tornarem filhos de Deus” (1.12). Em suma, o Prólogo é tão exclusivo quanto 14.6, e oferece escasso apoio para a teoria de Karl Rahner do cristão anônimo’. 36 The Imitation of Christ, 56. 1. 493 João 14.5-14 De tudo que ele é e faz. Como podem vocês, Os filhos da noite, encarar-me e entender Meu caminho como simples estrada? Meu caminho passa pelo Getsêmani, a cruz, E forte rejeição acortinada em agonia. Meu caminho para Deus abarca a maior perda: Seu caminho para Deus não é meu caminho, mas eu mesmo. Qualquer outro caminho é um atoleiro, ou fraude. Eu estou só: eu sou o caminho para Deus. Eu sou a verdade de Deus: eu não reivindico Eu simplesmente falo a verdade, como se eu fosse Um profeta (mas não mais), um canal, movido Pelo poder do Espírito, de estrutura puramente humana. Nem digo que quando tomo esse nome Em meus lábios, meu ensino não pode errar (Embora isso seja verdade). Um mero intérprete Eu não sou, uma voz profética afamada. Nas intermináveis esferas da eternidade O Deus trino decidiu que a Palavra, A auto-expressão da divindade, Assumiria carne e sangue — e assim seria ouvida. A declaração de falar a verdade, os homens de bem aplaudem. Eu declaro muito mais: Eu sou a verdade de Deus. Eu sou a vida da ressurreição. Não sou Meramente uma bebida que dá vida, Um elixir mágico que (como os homens poderiam pensar) E barato porque embora abundante não se compra. O preço da vida foi plenamente pago: eu lutei Com a morte e o negro desespero; porque eu sou a bebida Da vida. A manhã da ressurreição é o elo Entre minha morte e a vida sem-fim há muito procurada. Eu sou o primogênito dos ressuscitados; e por Meu triunfo, eu deixo a morte para as luxúrias e ódios. Minha vida eu agora estendo às pessoas, e as satisfaço Com a torrente q-ue sempre sacia. A página da religião com vazias ostentações é abundante: Mas eu sou a ressurreição e a vida 7. O significado da primeira parte do versículo 7 depende de uma variante textual. A variante presente no texto da NVI é basicamente negativa: Se vocês realmente me conhecessem [e vocês não me conhecem], conheceriam também o meu Pai. Embora esta leitura seja fortemente atestada, ela parece ser influenciada pelo versículo 8, no qual Filipe revela a profundidade de sua ignorância, e por 8.19. A leitura de um papiro do século II, P66, do uncial Sinaiticus (x), da primeira mão do Codex Bezae (D) e de alguns outros testemunhos é mais ou menos preservada na nota de rodapé da NVI, e tem boas reivindicações à autenticidade: Se vocês me têm conhecido, conhecerão também o meu Pai. Em outras palavras, a pressuposição é de que os discípulos, pelo menos, chegaram a conhecer a Jesus (‘realmente’, na nota da NVI lança dúvidas sobre isto, e não é textualmente garantido); o que eles devem entender é que este conhecimento de Jesus é a entrada no verdadeiro conhecimento do Pai. De agora em diante, Jesus insiste, vocês o conhecem e o têm visto. O par de palavras contraído traduzido por De agora em diante {ap’arti), poderia ser lido como uma palavra apenas (geralmente não havia espaços entre as palavras nos antigos manuscritos unciais) com o significado de ‘certamente’. E tentador pensar que tratase do que Jesus quer dizer nesse ponto: “e certamente vocês o conhecem e o vêem”.38 Se mantivermos De agora em diante, a referência é ao tempo em que os discípulos conheceram Jesus durante seu ministério, e especialmente até a hora de sua morte e ressurreição, nesse momento imediatamente colocada sobre eles. 8. Em algum âmbito, Filipe (cf. notas sobre 1.44; 11.21,22) e os outros conhecem verdadeiramente a Jesus e, portanto, eles vêem no Filho o Pai. Mas eles ainda não reconhecem isto. Por mais elevada que seja a maneira em que pensam em Jesus, eles ainda não entendem que em Jesus, Deus se fez conhecido. À medida que isto ainda está além deles, eles não conhecem o próprio Jesus muito bem. Assim, Filipe pede um acesso direto, por assim dizer, pede uma exposição imediata do próprio Deus. Ele junta-se, assim, a uma série de seres humanos que, através dos tempos, entendem corretamente que não pode haver experiência mais elevada, nenhum bem maior, que ver Deus como ele é, em inimaginável esplendor e glória transcendente. Nós fomos feitos à sua imagem e, por mais que tenhamos apagado esta imagem, ainda ansiamos pela visto Dei, a visão de Deus. Moisés implorou: “Agora me mostre a tua glória” (Ex 33.18; na LXX, “Mostre-se a mim”). No entanto, o máximo que lhe foi permitido vislumbrar foi “as costas” de Deus e sua glória, embora não lhe tenha sido permitido ver a face do Senhor. O evangelista já deixou claro em seu Prólogo que por mais mitigada que tenha sido a graciosa auto-revelação de Deus nos tempos antigos, em Jesus que ele se fez conhecido definitivamente, gloriosamente, visivelmente (cf. notas sobre 1.14, 18; cf. 12.45). 9. A pergunta de Jesus (v. 9) é marcada pela tristeza. Se seus oponentes não reconhecem quem ele é, isto ocorre porque não foram ensinados por Deus, eles não ouviram o Pai (6.45). Se aqueles que estão mais próximos dele ainda revelam uma ignorância semelhante de quem ele é, apesar da lealdade a ele, eles acabam por confirmar sua profunda cegueira espiritual. Mesmo o fato de estar com Jesus durante tanto tempo — a referência é à duração do ministério de Jesus - não garante a compreensão mais profunda, a compreensão da verdade que todas as ações e palavras de Jesus sustentam, e que ele articula nesse ponto: quem me vê, vê o Pai. 10. A pergunta de Jesus: Você não crê...?, pressupõe que todos os discípulos devem crer que Jesus está no Pai e o Pai nele. Esta habitação mútua (cf. notas sobre 10.38) é “uma forma lingüística de descrever [...] a completa unidade entre Jesus e o Pai” (Schnackenburg, 3. 69), articulada em outra passagem em uma declaração do tipo “eu e o Pai somos um” (10.30). Isso não elimina todas as distinções entre eles: as palavras e obras de Jesus são concedidas a ele pelo Pai (5.19ss.; 8.28; 12.49), embora o inverso não seja correspondente. De fato, é precisamente este grau de unidade que garante que Jesus nos revela Deus (cf. notas sobre 5.19-30). É por isso que se torna inadequado, apesar da popularidade da teoria, entender, a partir dos versículos 9-11, tão somente do princípio rabínico de que “o agente de um homem é como ele mesmo” (Mishná Berakoth 5.5). Este tipo de modelo é adequado para explicar a linguagem de, digamos, 13.20, e até mesmo reivindicar que as palavras e obras de Jesus são as daquele que o enviou. Mas, no quarto evangelho, este modelo do ‘enviado’ é repentinamente ultrapassado no momento em que se diz que tudo que Jesus faz é o que o Pai lhe concede que faça, e que ele faz tudo que o Pai faz: nesse ponto estamos tratando com uma linguagem exclusiva de ‘filiação’ (cf. notas sobre 5.19ss.). Ninguém que fosse apenas um simples enviado se referiria àquele que o enviou como seu Pai, nem afirmaria que qualquer um que o tenha visto, também viu o Pai, nem mesmo declararia ser um com aquele que o enviou. No contexto do quarto evangelho como um todo, o evento supremamente revelador no momento em que Deus se manifesta em Jesus com a mais surpreendente glória, o momento que o Pai é mais intensamente glorificado em seu Filho, encontrase na glorificação de Jesus, em sua morte/exaltação, que, nesse ponto, estão bem próximas. E é a conseqüência daquele evento, isto é, o dom do Espírito, que finalmente capacitará os discípulos de Jesus a entender a verdade daquilo que eles ainda estão apenas levemente conscientes. 11. Creiam em mim, nesse contexto, não significa simplesmente ‘Confiem em mim’, mas também ‘Creiam que o que eu acabei de dizer [resumido na próxima frase] é verdade’. Se eles ainda acham difícil adentrar no significado de suas palavras, no mínimo eles deveriam crer por causa das mesmas obras (gr. erga, ‘obras’, porém os milagres estão em primeiro plano). Um apelo semelhante é feito duas vezes em outra passagem (cf. notas sobre 5.36; 10.37,38), mas o contexto desta passagem faz deste apelo o mais vigoroso de todos. O que Jesus está dizendo não é simplesmente que manifestações de poder sobrenatural são muitas vezes convincentes, mas também que os próprios milagres são sinais {cf. notas sobre 2.11). Uma meditação séria sobre, digamos, a transformação da água em vinho, a multiplicação dos pães, ou a ressurreição de Lázaro revelarão o que estes milagres significam: isto é, que o reino salvador de Deus está operando no ministério de Jesus, e isto através de formas relacionadas a sua própria pessoa. Os milagres são sinalizadores cristológicos não-verbais. 12. Jesus está apelando à fé. O apelo prossegue nos versículos 12-14 através do enfoque na frutificação que aquele que crê em Jesus desfrutará (ho pisteuôn eis eme — uma expressão que abarca todos os crentes, não só os apóstolos). A promessa João 14.5-14 496 é magnífica: a pessoa que tiver essa fé, Jesus diz, fará também as obras que tenho realizado. De fato, fará coisas ainda maiores do que estas — não porque ele é maior, e sim porque eu estou indo para o Pai. As coisas (erga, obras’, cf. v. 11) que Jesus realizava, e as coisas maiores que se seguirão, não podem legitimamente restringir-se a feitos de humildade (13.15), ou à atos de amor (13.34,35), menos ainda à proclamação das ‘palavras’ de Jesus (v. 10). As ‘obras’ de Jesus podem incluir mais do que seus milagres; mas elas nunca os excluem. No entanto, mesmo assim, obras maiores não é uma expressão clara. Ela não pode significar simplesmente mais obras — isto é, a igreja fará mais coisas do que Jesus fez, uma vez que ela abarca tantas pessoas sobre um período tão longo de tempo - considerando-se que há perfeitamente, em grego, alguns bons meios de dizer ‘mais’, e visto que, portanto, em qualquer caso o significado seria insuportavelmente banal. Nem pode obras maiores significar obras ‘mais espetaculares’ ou ‘mais sobrenaturais’: é difícil imaginar obras que sejam mais espetaculares ou mais sobrenaturais que a ressurreição de Lázaro dos mortos, a multiplicação dos pães e a transformação da água em vinho. As chaves para o significado da expressão são duas: a primeira é a frase final porque eu estou indo para o Pai, e a segunda, o paralelo em 5.20: “Pois o Pai ama ao Filho e lhe mostra tudo o que faz. Sim, para admiração de vocês, ele lhe mostrará obras ainda maiores do que estas ’ (meizona toutô, como em 14.12). As duas pistas apontam para a mesma direção. Os discípulos de Jesus realizarão obras maiores porque ele está indo para o Pai: isto não deve significar que eles terão um escopo maior para sua atividade porque Jesus sairá de cena e deixará o espaço para eles, e sim que a própria base para suas obras maiores é sua ida para o Pai. As obras deles se tornarão maiores exatamente por causa da nova ordem que surgiu em conseqüência de sua ida para o Pai. Da mesma forma, o contexto de 5.20 demonstra que as obras maiores que o Pai mostrará ao Filho, e que, portanto, o Filho manifestará a seus seguidores, são demonstrações de ressurreição e julgamento (cf. 5.17,24-26). Esse poder que o Filho tem de dar vida depende, por sua vez, de sua morte, ressurreição e exaltação. Em suma, as obras que os discípulos realizam após a ressurreição são maiores que aquelas feitas por Jesus antes de sua morte, na medida em que aquelas pertencem a uma era de clareza e poder introduzidos pelo sacrifício e exaltação de Jesus. As palavras de Jesus e suas obras eram, de alguma forma, veladas durante os dias de sua carne; mesmo seus mais próximos seguidores, como os versículos anteriores deixam claro, entenderam somente uma parte do que ele estava dizendo. Mas Jesus está para retornar a seu Pai, ele está para ser glorificado, e, sob a influência de sua glorificação, seus seguidores saberão e tornarão conhecido tudo que Jesus é e faz, e todos os feitos e palavras dele pertencerão à nova era escatológica que, assim, nascerá. Os ‘sinais’ e ‘obras’ que Jesus realizou durante seu ministério não podiam atingir plenamente seu verdadeiro fim até o momento após Jesus ressuscitar dos mortos e ser exaltado. Somente naquele ponto, elas podiam ser vistas pelo que realmente eram. Em contraste, as obras concedidas aos crentes para realizarem por meio do poder do Espírito escatológico, após a glorificação de Jesus, serão colocadas no quadro 497 João 14.5-14 da morte e triunfo de Jesus e, portanto, revelarão imediatamente e mais verdadeiramente o Filho. Assim, coisas maiores torna-se restrito devido às realidades históricosalvíficas. 39 Conseqüentemente, serão reunidos muito mais convertidos na comunidade messiânica, a igreja nascente, do que os que foram atraídos durante o ministério de Jesus (cf. 15.26,27; 17.20; 20.21,29). O contraste em si, entretanto, não depende somente de números, mas também do poder e clareza que se proliferam após a dobradiça escatológica girar e o novo dia raiar. O contraste entre a grandeza de João Batista e a grandeza do menor no reino não é completamente diferente {cf. Carson, Matt, pp. 262-269, sobre Mt 11.7-15). 13,14. O motivo pelo qual as “coisas maiores” são feitas como conseqüência da partida de Jesus para o Pai (v. 12), nesse momento, se torna mais claro: a conduta frutífera dos discípulos é o produto de suas orações, orações feitas em nome de Jesus. Se esta oração dirige-se ao Pai ou a Jesus (cf. “O que vocês pedirem a mim em meu nome”, v. 4 - porém cf. nota adicional, abaixo), ela é feita em nome de Jesus, e é ele quem atende ao pedido (eu farei, v. 14). Isto demonstra, finalmente, que o contraste no versículo 12 não é entre as obras de Jesus e as obras de seus discípulos, e sim entre as obras de Jesus que ele mesmo realizou durante os dias de sua carne, e as obras que ele realiza através de seus discípulos, após sua morte e exaltação. Glorificado com a glória que ele tinha com o Pai antes do mundo existir (17.5), o Filho não está mais limitado pela humanidade pré-morte que caracterizou seu ministério. Naquele ponto, ganha-se a redenção, o reino de Deus está triunfantemente invadindo as nações com o poder salvador e transformador, o local da comunidade da aliança estende-se de suas limitações judaicas para abarcar o mundo, e os próprios discípulos são equipados para enfrentar um ministério de longo alcance. Este último depende do dom do Espírito Santo, dom que está para ser colocado em discussão (w. 15ss.). Na situação pós-Páscoa, a função mediadora do Filho estende-se às orações de seus seguidores. Orações em seu nome são orações feitas em total acordo com tudo que seu nome representa (isto é, seu nome não é usado como um encantamento mágico: cf. ljo 5.14), e em reconhecimento de que a única abordagem de Deus que aqueles que oram desfrutam, seu único caminho para Deus (cf. w. 4-6), é o próprio Jesus (cf. H. Bietenhard, TD N T 5. 258-261, 276). Esta oração nunca é abstraída do Pai; pois o propósito do Filho, mesmo quando ele responde as orações de seus 39 Cf. Christian Dietzfelbinger, NTS 35, 1989, pp. 27-47, cuja análise é muito útil até o ponto em que ele começa a especular sobre a natureza da comunidade joanina para quem essa passagem poderia ser relevante. Essas ênfases teológicas, sem dúvida, se mostrariam igualmente poderosas na evangelização daqueles que tivessem uma experiência judaica ou que fossem prosélitos, e que precisavam ser convencidos sobre o que era a vida cristã. Dietzfelbinger também exagera a singularidade dessa contribuição joanina para a teologia do Novo Testamento. Quando ela é contrastada com o pano de fiindo histórico salvífico esquematizado acima, seus análogos no restante do Novo Testamento devem ser encontrados não nesse ou naquele feito, e sim na transformação de perspectiva de Lucas para Atos. seguidores, é para que o Pai seja glorificado (v. 13). Durante seu ministério sobre a terra, o objetivo consistente do Filho, e sua realização, foi trazer glória para seu Pai (5.41; 7.18; 8.50,54). Este era, não menos, o propósito do Filho ao completar sua missão indo para a cruz (12.28) — que era, simultaneamente, o meio pelo qual o Filho seria supremamente glorificado (12.23). Nesse momento, no esplendor de sua exaltação, o propósito do Filho não muda: ele capacita os seus a fazer “coisas maiores” para que ele possa trazer glória ao Pai.