O MANEJO CLÍNICO E AS POLÍTICAS PÚBLICA EM UM CAPS III Maria Fernanda Furlam de Macedo Soares1 Cristiane Maretti Marangoni Valli2 Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Puc-Campinas) Brasil. RESUMO O trabalho se sustentou na Reforma Psiquiátrica que foi capaz de romper com o modelo manicomial de tratamento à pessoa em sofrimento psíquico. Os serviços de saúde mental que substituíram os manicômios foram os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que são compostos, por equipes multiprofissionais, nas quais os profissionais trabalham articulados com a rede do município em que se localizam. Foi a partir desta perspectiva, que esta ação se desenvolveu e visou elaborar um material informativo (cartilha) que instrumentalizasse a equipe multidisciplinar de um Caps, acerca do manejo clínico, assim como versasse sobre as políticas públicas que se entrelaçam com a saúde. A cartilha foi elaborada durantes as oficinas que se pautaram por uma relação dialógica, isto é, os conhecimentos científicos, provindos da Universidade, foram ao encontro dos saberes da equipe multiprofissional – comunidade - em uma ação que se caracterizou pela troca de saberes. Como resultado, temos que a construção da cartilha que proporcionou a instrumentalização da equipe multidisciplinar do serviço de saúde, fato este que se traduziu em melhoria do cuidado à pessoa em sofrimento mental. Palavras-chaves: Manejo clínico/ políticas públicas/ Caps/ cartilha. 1. Introdução A concepção de loucura atravessa a história do homem com particularidades de conceituação a cada época em questão. Na antiguidade grega e romana, a concepção de loucura estava intimamente vinculada às práticas mitológicas, manifestações sobrenaturais motivadas por deuses e demônios. Desta forma, teve-se a loucura conceituada pela influência da ideologia religiosa (MILLANI e VALENTE, 2008). Na época da inquisição, a loucura vinculada aos preceitos religiosos fora concebida como manifestação do sobrenatural, do demoníaco e até do satânico. Sendo assim, a loucura apresentava-se como a expressão de bruxaria, cujo tratamento caracterizou-se pela perseguição aos seus portadores. Sendo assim, neste período histórico a loucura, esteve intimamente relacionada aos papéis dos 1 Bolsista de extensão universitária da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCampinas). Aluna do curso de Psicologia. 2 Docente extensionista da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC- Campinas). feiticeiros. No entanto, a mudança desta concepção ocorreu decorrente do abalo do poder eclesiástico, permitindo, portanto, um novo olhar sobre a doença e ao portador de transtorno mental (MILLANI e VALENTE, 2008). Somente a partir do século XV que a loucura se insere num universo moral, isto é, momento em que as ideias e imagens culturais da loucura se revelaram de várias formas, as fraquezas humanas e os seus excessos penalizaram os homens, que foram confrontados com a sua verdade moral e com as regras próprias à sua natureza (MILLANI e VALENTE, 2008). Com o decorrer da história, em meados do século XVII, a loucura, que até então era exaltada como marca do divino, constitui-se em um modo de exclusão, devido às mudanças ocorridas em decorrência do crescimento das cidades, com o poder das relações políticas e com o desenvolvimento da industrialização. É neste cenário que emergem os primeiros estabelecimentos para a internação dos considerados loucos. Estes espaços de internação caracterizavam-se como cárceres que aprisionavam os indivíduos portadores de doenças venéreas, mendigos, bandidos. Assim, os considerados loucos foram submetidos a um processo de exclusão social, pois de alguma forma feriam a ordem da razão e da moral da sociedade emergente daquela época (MILLANI e VALENTE, 2008). Portanto, até o final do século XVIII, a loucura esteve vinculada a exclusão social daqueles considerados loucos, promovendo a ausência de liberdade àqueles marginalizados socialmente. No entanto, as práticas de isolamento social foram questionadas e entendidas como fontes potencializadoras da loucura. Sendo assim, os espaços de internação mudaram suas premissas de funcionamento, almejando-se o afastamento da repressão para a busca pela libertação (MILLANI e VALENTE, 2008). No final do século XVIII e início do século XIX se extingue a fase das “Grandes Internações” e inicia-se o período da Psiquiatria. Porém, vale ressaltar que as internações não deixaram de ocorrer nesta época, mas apenas adquiriram um status científico, conferido pela nascente Psiquiatria. Já no final de 1960 e início da década de 1970 na Itália, mais precisamente em Goriza e Trieste, ocorreu o movimento da desinstitucionalização da Psiquiatria, liderado pelo psiquiatra Franco Basaglia. Tal movimento denunciou a violência dos manicômios, o tratamento desumano e centrado em intermináveis períodos de internação, a mercantilização da loucura e a hegemonia do modelo médico/psiquiátrico (AMARANTE, 1994). A desinstitucionalização, liderada por Basaglia, promoveu uma série de radicais mudanças na forma de se compreender a doença mental, principalmente na maneira pela qual se passou a cuidar da pessoa em sofrimento psíquico. Estes movimentos buscaram romper com o modelo manicomial de tratamento da pessoa com transtorno mental propondo um modelo substitutivo à internação psiquiátrica (AMARANTE, 1994). Ao se afirmar os direitos de cidadania dos doentes mentais, no contexto da Reforma Psiquiátrica, mudou-se a conduta profissional no que se refere ao manejo dos indivíduos com transtornos mentais, isto é, à necessidade de incorporar às práticas mediante novos equipamentos e dispositivos de assistência. Nesse sentido, a reforma não se restringe à criação de serviços, mas se estende e crítica o saber médico-psiquiátrico que vigorava até então (MILLANI e VALENTE, 2008). Nesse novo paradigma da reforma psiquiátrica, tem-se a cidadania como instrumento central de abordagem terapêutica, isto é, a cidadania e a autonomia se configuram como a meta a ser atingida pelos cuidados psiquiátricos. Para tanto, fezse indispensável uma nova formação e conscientização dos profissionais, uma vez que a mudança do paradigma da loucura careceu de uma prática profissional crítica a partir da reestruturação dos conceitos vinculados a doença mental, buscando contemplar a humanização, a singularidade do sujeito e de seu sofrimento (MILLANI e VALENTE, 2008). Fruto destas mudanças, como nova fonte de manejo dos doentes mentais, novos equipamentos e dispositivos de assistência emergiram, isto é, os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). No final da década de 1980, no Brasil, estes serviços de saúde se apresentaram como modelos substitutivos aos manicômios e com a finalidade de assegurarem a reabilitação psicossocial da pessoa em sofrimento mental. Esses equipamentos de saúde almejam garantir a reabilitação psicossocial da pessoa em sofrimento psíquico, através da elaboração e execução dos Projetos Terapêuticos Singulares (PTS). Esses projetos devem ir ao encontro das reais necessidades do sujeito em sofrimento psíquico e têm como finalidade a reabilitação psicossocial – esta, entendida pela Organização Mundial da Saúde, como o processo que objetiva minimizar os efeitos incapacitantes decorrentes da doença mental, buscando integrar tal sujeito aos âmbitos familiar e comunitário (SARACENO, 1998). Os Caps são compostos, por equipes multiprofissionais, que devem trabalhar de forma articulada e integrada, com a rede de cuidados do município em que se localizam lançando mão de estratégias diversificas, a fim de enfrentarem os múltiplos efeitos do adoecimento mental - fruto de um fenômeno complexo e multifatorial que envolve aspectos biológicos, psicológicos e sociais (SARACENO, 1998). É a partir dos postulados da Reforma Psiquiátrica e do movimento de desospitalização que este trabalho extensionista se alicerçou e se desenvolveu. A Extensão Universitária é entendida como uma atividade-fim que possibilita o intercâmbio e o compartilhamento de conhecimentos, competências e habilidades, entre uma determinada comunidade e a academia. Este partilhar de saberes é capaz de oxigenar os conhecimentos desenvolvidos no âmbito do ensino e da pesquisa, e ainda, produz a democratização deste mesmo saber. Assim, a experiência extensionista tem como objetivo o desenvolvimento de ações compartilhadas, que proporcionem trocas de saberes, com a finalidade de enfrentar as reais dificuldades, demandas e problemas da comunidade envolvida (MENEZES & SÍVERES, 2011). 2. Objetivos O plano da extensionista visou a elaboração de um material informativo (cartilha) que instrumentalizou a equipe multidisciplinar do CAPS Sul acerca do manejo clínico de pacientes neuróticos graves e psicóticos, assim como versou sobre as políticas públicas que se entrelaçam com a assistência à saúde. 3. Procedimento 3.1Método É importante destacar, que este trabalho foi solicitado pela equipe do Caps à professora extensionista, sendo portanto uma demanda cujo o objetivo foi o enfrentamento de uma dificuldade real da comunidade, isto é, da equipe multiprofissional do Serviço de Saúde – Caps- acerca do manejo clínico e das Políticas Públicas que cercam as atividades cotidianas desses trabalhadores. A ferramenta elegida para responder a esta demanda da comunidade foi a construção de um saber compartilhado e dialógico entre a Universidade e os profissionais do Caps, que foram traduzidas e sistematizadas em uma cartilha informativa. O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é um serviço de saúde aberto e comunitário do Sistema Único de Saúde (SUS). Ele é um lugar de referência e tratamento para pessoas que sofrem de transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e demais quadros, cuja severidade e/ou persistência justifiquem sua permanência num dispositivo de cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor de vida. O objetivo dos CAPS é oferecer atendimento à população de sua área de abrangência, realizando o acompanhamento psíquico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. É um serviço de atendimento de saúde mental criado para ser alternativo às internações em hospitais psiquiátricos composto fundamentalmente por uma equipe multiprofissional que deve possuir, minimamente: médicos, enfermeiro, profissionais de nível superior (psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, pedagogo ou outros) e profissionais de nível médio (técnico e/ou auxiliar de enfermagem, técnico administrativo, técnico educacional e artesão). Estes profissionais tem como missão a elaboração de Projeto Terapêutico Individual ou Singular (PTI ou PTS), isto é, diretrizes traçadas pela equipe multiprofissional junto a cada paciente que visam promover o acompanhamento psíquico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos e fortalecimento dos laços familiares, sociais e afetivos. O Caps que esta proposta de trabalho se efetivou é um serviço de saúde da rede de saúde mental do município de Campinas, que referência uma das regiões mais populosas da cidade e é conhecida tanto pela precariedade urbana (saneamento básico, moradia e alto índice de violência) como pela vulnerabilidade social (baixo poder aquisitivo e baixa escolaridade) de seus habitantes. Trata-se ainda de um Caps III, isto é, aquele serviço que referencia um território com uma população de mais de duzentos mil habitantes, que opera 24 horas por dia, durante 07 dias por semana, inclusive domingos e feriados, e ainda oferece 08 leitos de internação destinados a pacientes que se encontram em crise. A equipe de profissionais de saúde mental do Caps em questão, ou mais precisamente, a equipe multidisciplinar técnica 3 (composta por profissionais que possuem alguma graduação, ou ainda, um curso técnico na área da saúde), é composta da seguinte maneira: 03 médicos psiquiatras - que cumprem 20 horas semanais cada; 05 psicólogos - que cumprem 32 horas semanais cada; 03 terapeutas ocupacionais – que cumprem 30 horas semanais cada; 07 enfermeiros – que cumprem 35 horas semanais cada; 01 assistente social – que cumpre 04 horas semanais; 01 farmacêutico - que cumpre 20 horas semanais cada; 20 técnicos/auxiliares de enfermagem – que cumprem 36 horas semanais cada; 03 auxiliares de farmácia – que cumprem 36 horas semanais cada. Esses 43 profissionais são divididos em três miniequipes 4 (que referenciam uma sub-região de um distrito de Campinas) e são responsáveis pelo acolhimento, inserção, acompanhamento, e encaminhamentos dos usuários que chegam ao serviço. Metodologicamente, conforme já apontado, a construção da cartilha se deu a partir de uma relação dialógica entre os conhecimentos científicos sistematizados pela equipe universitária (dos itens norteadores que comporiam a cartilha) e os conhecimentos da equipe multiprofissional. Para o cumprimento desta tarefa os profissionais do Caps foram divididos em dois grupos que compuseram duas oficinas. As atividades ocorreram no Ateliê do serviço de saúde, com uma frequência semanal e duravam 2 horas cada encontro. 3 É importante justificar que as atividades de extensão não foram estendias à equipe inteira do Caps, pois como o objetivo desse trabalho era instrumentalizar os profissionais acerca do manejo clínico dos pacientes, não coube incluir aqueles que não tinham, entre as suas atribuição, pretensões terapêuticas com os usuários. 4 Exceto a assistente social e o farmacêutico, pois existe apenas um profissional dessas especialidades no Caps. A assistente social e o farmacêutico são volantes, pois participam das atividades das três miniequipes. A dinâmica para a construção do material informativo pode ser descrita por etapas, sendo a primeira o levantamento bibliográfico que era realizado pela equipe universitária5, por meio de artigos, livros, dissertações e teses. Em seguida, era construída uma síntese do conhecimento científico provindo do levantamento bibliográfico. Tal material era compartilhado com os profissionais do Caps, nas oficinas, e esse era capaz de promover uma profícua discussão, em que o saber dos trabalhados ganhava relevância. O debate disparado pela síntese do material científico era redigido pela bolsista e no encontro seguinte os participantes das oficinas procuraram chegar a uma versão final que pudesse ser inserida na cartilha. Assim, temos que as oficinas obedeciam a seguinte lógica: a equipe universitária apresentava o conteúdo científico sistematizado como fonte disparadora de discussões, após a discussão oral (que incorporava os saberes dos técnicos do Caps) havia a produção escrita em conjunto, definindo algum item da cartilha. Tal definição era reelaborada pela equipe universitária ao longo da semana para que na semana seguinte fosse retomada e finalizada, mais uma vez em conjunto. Desse modo, é fácil compreender que se tratou da construção de um saber compartilhado, com a finalidade de enfrentar uma demanda real (manejo clínico de pacientes neuróticos graves e psicóticos e políticas públicas) do serviço de saúde mental. 4. Resultados e Discussão A cartilha abarcou os seguintes itens: 1-) O que são os Caps. 2-) Objetivo dos Caps, missão - projeto terapêutico singular ou individual- PTI ou PTS. 3-) O que é um Caps III - funcionamento, crise (leito), quando usar a internação e como usar, demandas do serviço, profissionais (equipe mínima), miniequipes, apoio matricial, porque uma equipe de referências, atuação da equipe de referência, profissionais durante a semana e final de semana e perfil dos usuários. 4-) Reabilitação psicossocial. 5 Composta pela docente e duas bolsistas. 5-) Serviço residencial terapêutico. 6-) Transferências do cuidado (alta). 7-) Participação na gestão - conselhos de saúde, colegiado gestor e assembleia. 8-) Interface com outros serviços e outras políticas públicas - ministério público, defensoria pública, assistência social (SUAS), Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), Centro de Referências Especializado de Assistência Social (CREAS), Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC-LOAS), Políticas de Educação, Habitação, Esporte, Cultura. 9-) Benefício “De Volta para Casa”. 10-) Núcleo de Oficinas de Trabalho. 11-) Fluxuograma, mapas e telefones dos distritos de saúde, contatos e referências. Tais itens foram constantemente revisados e discutidos nas oficinas semanais, proporcionando não somente o refinamento da escrita da cartilha, mas também a abertura de um espaço em que os profissionais puderam rever criticamente suas condutas, na medida em que refletiram sobre a distância entre aquilo que estava descrito na cartilha (como um ideal a ser perseguido) e a atuação que ocorre no cotidiano de trabalho. Desta forma, o objetivo de instrumentalizar a equipe técnica através da elaboração da cartilha foi cumprido a contento. Portanto, como resultado temos que a construção do material informativo (cartilha), se traduziu como uma ação que produziu a autonomia dos profissionais, em relação a Universidade, já que todas as discussões sobre manejo clínico e articulação com outros serviços e outras políticas foram documentadas. Esse registro permitiu não somente a perpetuação do conhecimento construído, como também a disseminação dele para além do público-alvo, já que a cartilha será distribuída a outros serviços de saúde de natureza semelhante ao Caps. Não obstante, as discussões nas oficinas referentes a articulação do CAPS com outras políticas pública provocou uma grande reflexão por parte dos profissionais, isto é, eles identificaram o quanto é problemática a promoção de tais articulações, por dificuldades de acesso a alguns serviços, assim como por desconhecimento de alguma das políticas supracitadas. Este espaço crítico permitiu que os profissionais revessem sua postura de absorção de demandas que muitas vezes eram de competências de outros serviços, porém tais demandas eram capazes de atravessarem o cotidiano do trabalho do CAPS. Diante desta reflexão, os técnicos chegaram a conclusão que deveriam se ater mais as suas funções, aos objetivos e a missão do serviço de saúde, a fim de qualificar o cuidado prestado a pessoa em sofrimento mental. Bibliografia AMARANTE, P. Uma aventura no manicômio: a trajetória de Franco Basaglia. História, Ciências e Saúde: Manguinhos, v.1, p.61-77, 1994. MENEZES, A. L. T. & SÍVERES, L. Transcendendo fronteiras a contribuição da extensão das instituições comunitárias de ensino superior (ICES). Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011. MILLANI, H, F, B.; VALENTE, M, L, L. O caminho da loucura e a transformação da assistência aos portadores de sofrimento mental. SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.), Ribeirão Preto, v. 4, n. 2, ago. 2008. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S180669762008000200 009&lng=pt&nrm=iso>. acesso em 25 nov. 2015. SARACENO, B. A concepção de reabilitação psicossocial como referencial para as intervenções terapêuticas em saúde mental. Universidade de São Paulo. v.9, n.1, p.26-31, 1998. Revista Terapia Ocupacional