1 A PROMOÇÃO DA PARTICIPAÇÃO E DO DEBATE POLÍTICO NA ESFERA PÚBLICA – UMA PROPOSTA NORMATIVA DE INTEPRETAÇÃO DO TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL NOS CONSELHOS E INSTITUIÇÕES PARTICIPATIVAS Ludson Rocha Martins1 RESUMO A presente comunicação tem por finalidade realizar uma abordagem sumária acerca das práticas de mobilização social efetivadas pelo Serviço Social. Seu principal intuito é analisar o trabalho profissional nesse âmbito, sob um viés teórico-normativo, com base na atuação desenvolvida nos conselhos de políticas públicas, lócus compreendido como um campo que requisita os assistentes sociais enquanto profissionais assalariados de suporte e apoio técnico. No decorrer da exposição em tela, são enfatizadas a importância e o caráter de “novidade” que os espaços ocupacionais como os conselhos têm para o Serviço Social (sobretudo no âmbito da teorização), além das competências exigidas para o trabalho do assistente social em tais instâncias. A estratégia metodológica utilizada na elaboração de nossas considerações foi à pesquisa e análise bibliográfica, o que nos fez recorrer às produções de maior envergadura do Serviço Social sobre o tema. Procuramos ainda travar um breve diálogo com a teoria democrática contemporânea – realizando uma sucinta exposição do pensamento marxista e da teoria deliberativa. Finalizando nossas discussões, apresentamos um quadro normativo, que reúne as principais tendências da prática profissional nos conselhos e demais instituições participativas apontadas pela literatura especializada. Palavras-chave: Serviço Social; trabalho do assistente social e mobilização social; teoria democrática contemporânea. 1 Bacharel em Serviço Social pelo Centro Universitário Una, Mestrando em Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). 2 INTRODUÇÃO Há no mínimo três décadas a vanguarda do Movimento de Renovação do Serviço Social Brasileiro – o qual não será tema dessa breve comunicação – colocou para o conjunto da categoria a necessidade de superação dos marcos tradicionais e conservadores (formulados com base na tradição funcional-positivista e no confessionalismo religioso) que norteavam a prática dos assistentes sociais desde o início da profissão no Brasil (IAMAMOTO; 2009). Em uma nítida resposta a erosão do Serviço Social Tradicional, era objetivo dos renovadores mais críticos alargar o campo de atuação dos assistentes sociais com novos espaços e funções capazes de enriquecer o acervo teórico-metodológico, ético-político e técnico-operativo da profissão. O alvo da referida empreitada constituía a ampliação da base de legitimação profissional a partir das classes populares, inscrevendo a atuação do Serviço Social no seio dos movimentos sociais, na gestão e formulação de políticas públicas e nas ações de mobilização social e educação popular (BRAVO, 2009). O mencionado intento, diga-se de passagem, estava profundamente conectado com as transformações do ambiente socioeconômico nacional, mediado pelo esgotamento da autocracia burguesa e pela redemocratização brasileira, bem como pelo agravamento da questão social decorrente da crise econômica vivida pelo país (PAULO NETTO, 2007). Cabe dizer que os vetores sociopolíticos acima descritos abriram espaço para que os assistentes sociais se conformassem como uma categoria protagonista no campo das atividades de mobilização social (a exceção parece ser o trabalho nos movimentos sociais), inserindo-se com proeminência nas Secretárias Executivas dos conselhos de políticas públicas, nos cargos de mediação pública das instituições da sociedade civil, bem como nas equipes multiprofissionais de suporte as atividades das conferências, orçamentos participativos e fóruns temáticos governamentais (SARAIVA, 2010). Destarte esse fato, diversos estudiosos tem salientado a falta de bibliografia profissional especializada no campo da mobilização social (ABREU & CARDOSO, 2009; FALEIROS, 2011; DURIGUETO, 1996). Existe entre nós uma forte carência de estudos, 3 pesquisas e revisão bibliográfica na área, sobretudo naquilo que se refere às indicações técnico-operativas e ao diálogo do Serviço Social com a teoria democrática contemporânea. Por essas razões a presente comunicação concentra seus esforços na problematização das práticas de mobilização social efetivadas pelo Serviço Social. Seu principal intuito é abordar o trabalho profissional nesse âmbito sob um viés teóriconormativo, com base na atuação desenvolvida nos conselhos de políticas públicas, lócus compreendido como um campo que requisita os assistentes sociais enquanto profissionais assalariados de suporte e apoio técnico. Feita esta delimitação temática, cumpre dizer que a estratégia metodológica utilizada na elaboração de nossas considerações foi à pesquisa e análise bibliográfica – de cunho heurístico-qualitativo – acerca dos assuntos desenvolvidos. Para tanto recorremos às produções de maior envergadura do Serviço Social sobre o tema (ABREU, 2002; FALEIROS, 2011; MIOTO & LIMA, 2009; BRAVO, 2001). Procuramos também travar um sintético e modesto diálogo com a teoria democrática contemporânea – especificamente no que se refere à exposição do pensamento marxista e da teoria deliberativa, vinculando-a a operatividade do trabalho profissional. 1 Mobilização social e serviço social – alguns conceitos básicos Em um sentido amplo pode-se dizer que as práticas de mobilização social, consubstanciam-se enquanto expressões diversas de um determinado vetor das atividades políticas formuladas e implementadas pelas instituições, grupos, movimentos sociais, e, sobretudo, pelas classes fundamentais que polarizam o sistema produtivo (ABREU, 2002) – trabalhadores e detentores dos meios de produção. Nessa ótica, a mobilização social caracteriza uma ampla gama de estratégias de construção e luta pela hegemonia na sociedade. Ela ocorre por meio da persuasão, da difusão de símbolos, de informações e esquemas perceptivos voltados a arregimentação dos sujeitos (individuais e coletivos) em torno de uma mesma causa ou discurso (TORO & WERNECK, 2007). Por isso cabe frisar que as práticas educativas e de mobilização social não são um campo exclusivo do Serviço Social, mas uma atividade disseminada no agir político das classes, grupos e instituições sociais. Essa afirmação, no entanto, não desfaz o fato de que a 4 profissão, enquanto atividade formadora de cultura e sociabilidade carrega potencial intrínseco para a formulação e concretização de tais ações, uma vez que, A função pedagógica do assistente social em suas diversidades é determinada pelos vínculos que a profissão estabelece com as classes sociais e se materializa, fundamentalmente, por meio dos efeitos da ação profissional na maneira de pensar e agir dos sujeitos envolvidos nos processos da prática. Tal função é mediatizada pelas relações entre o Estado e a sociedade civil no enfrentamento da questão social, integrada a estratégias de racionalização da produção e reprodução das relações sociais e do exercício do controle social (ABREU, 2002, p. 170). É, portanto, no terreno da vida cotidiana, no campo da materialidade da atuação profissional que os assistentes sociais imprimem (consciente ou inconscientemente, de forma positiva ou negativa) uma face educativa as suas ações. No trabalho com os sujeitos sociais (usuários), grupos e demais setores da sociedade, o profissional difunde valores, ideias e envolve os personagens com os quais se defronta em processos de ação determinados (SANTOS, 2011). Nessa ótica Cardoso & Abreu (2009), assinalam a existência de duas tendências históricas assumidas pelo Serviço Social no tocante a mobilização social e as práticas educativas – a “ajuda” e a “participação”. A primeira se refere a um perfil interventivo baseado em uma pedagogia subalternizante que reflete os determinantes conservadores da profissão, ligados à necessidade de reprodução das relações de dominação e exploração do capital sobre o trabalho, além das relações semi-coercitivas entre poder, saber e instituições (FALEIROS, 2001). A ação profissional nesses termos se pauta pelo atendimento psicossocial individualizado, pelo uso monocrático das ferramentas da administração e gestão no trabalho com comunidades e grupos. O que culmina por conformar o assistente social, tão somente, como um trabalhador focado no cumprimento da missão institucional, no desenvolvimento das metas e objetivos das instituições empregadoras, utilizando a mobilização social em uma atuação de “tipo terminal”, voltada para redução de conflitos e para a adequação ideológica do “público externo” (PAULO NETTO, 2007). Já no que concerne a “participação” tem-se a tentativa dos assistentes sociais de reconfigurar seu trabalho, deslocando o foco de suas ações para os interesses das classes e grupos populares, utilizando os diferentes espaços deixados pelas instituições e contradições macrossociais nesse processo (CARDOSO & ABREU, 2009). 5 Em tal perspectiva, acentua-se o caráter político-intelectual da ação profissional, bem como sua vinculação com os valores democráticos e projetos societários existentes. O assistente social, nessa visão, é o agente que deve ser reconhecido na esfera pública por utilizar diversos instrumentos para difundir informações, saberes, compreender e decifrar a realidade, de forma a intervir no real deslocando a correlação de forças existente entre poder, conhecimento e recursos para o atendimento das demandas dos seus usuários (FALEIROS, 2011). A prática profissional ganha, assim, uma ligação intrínseca com a defesa dos diretos sociais e com a chamada questão democrática, uma vez que dados os objetivos do projeto profissional hoje hegemônico, não se pode pensar o trabalho profissional desconectado do mundo político, do enfrentamento ao cerco das conquistas das classes subalternas e de valores republicanos como transparência, respeito mútuo e não coerção (IAMAMOTO, 2011). Nesse contexto deve-se salientar o fato dos assistentes sociais serem, atualmente, protagonistas no trabalho nas instituições participativas – sobretudo nos conselhos de políticas públicas, espaços onde os referidos agentes tem desempenhado funções estratégicas no apoio e assessoria aos sujeitos e grupos populares (ABREU, 2002; IAMAMOTO, 2011). Feitas essas considerações, faremos na próxima seção desta comunicação uma breve abordagem sobre a teoria democrática e os conselhos de políticas públicas. Após isso, prosseguiremos discorrendo sobre a atuação dos assistentes sociais nos conselhos, abordando as práticas de mobilização social desenvolvidas nesses espaços. 2 Alguns apontamentos sobre os conselhos de políticas públicas e o problema da democracia A partir da redemocratização brasileira consolidada com a promulgação da Constituição Federal de 1988, gestou-se um conjunto de experiências e espaços políticos que caracterizaram uma nova institucionalidade participativa, materializada, sobretudo, nos conselhos de políticas públicas, orçamentos participativos e planos diretores em todos os níveis de governo no país. A criação dessas instâncias se vinculou, historicamente, a um amplo leque de atores sociais, em um cenário de forte mobilização da sociedade civil em torno da democratização 6 do Estado e da derrocada do Regime Militar (AVRITZER, 2010). Tal conjuntura propiciou o surgimento de uma compreensão bastante peculiar acerca da expressão “controle social” e que diverge da acepção sociológica clássica segundo o qual este nada mais seria do que o conjunto de meios pelos quais uma dada sociedade conforma seus membros às regras estabelecidas (GARELLI, 1994). Diferentemente disso, o conceito brasileiro vislumbra o termo como, [...] sinônimo de controle da sociedade civil sobre as ações do Estado (por meio de um conjunto de instrumentos democráticos no qual há a participação dos cidadãos no exercício do poder), especificamente no campo das políticas sociais, desde o período da redemocratização dos anos 1980 (BRAVO; CORREIA, 2012, p. 127). A partir dessa noção pouco convencional, a materialização dos preceitos relativos ao controle social no Brasil procurou elaborar canais de superação das falhas e imperfeições do aparelho estatal, bem como da herança autoritária da política nacional, construindo uma série de novas arenas públicas e processos de ação democrática. No sentido aqui proposto, o caráter dessas novas instituições seria eminentemente inovador. Elas abririam caminho para a construção de um quadro político republicano, capaz de enfrentar as limitações estruturais do Estado Ocidental – a tendência à burocratização – e da democracia ocidental – a outorga de poder. Ao invés do poder concentrado, teríamos por meio desses novos espaços, poder desconcentrado. No lugar de um único processo decisório, múltiplos canais para decisão. Em substituição a ideia de poucos atores políticos, a pluralidade de atores e interesses sociais a eles vinculados. As instituições participativas, por tanto, seriam capazes de socializar o poder governamental, ampliando e vivificando o escopo das decisões públicas, além de desmistificar e simplificar os processos decisórios. É também em virtude disso que o surgimento dessas instituições está profundamente associado ao ideário que estabeleceu o princípio da descentralização e municipalização das políticas públicas brasileiras, procurando romper com o histórico de concentração de poder e fisiologismo das ações do Estado. Jaccoud (2009), afirma que a história recente da descentralização das políticas sociais no Brasil possui grande complexidade e está fortemente associada à implementação de instituições participativas. Ressaltando a importância desse processo a autora salienta que 7 tal trajetória organizativa foi iniciada pela Constituição de 1988, que redesenhando os complexos de políticas de bem-estar em favor dos estados e municípios, reconheceu estes últimos como entes federativos autônomos com o mesmo status legal dos demais níveis de governo. No entanto, em que pese o grande avanço representado pela descentralização das políticas sociais, há que se mencionar que no período Pós-Ditadura, várias dessas iniciativas foram capturadas durante a década de 1990, por uma nova conjuntura econômica e política baseada na reforma do Estado e em diretrizes neoliberais a partir da premissa do modelo de gestão pública gerencial (BRESSER-PEREIRA, 1996). Esse contexto preconizava a transferência das responsabilidades do poder público para iniciativa privada (publicização), constituindo-se como “[...] fator determinante para que o Estado brasileiro relutasse em implantar as novas determinações legais oriundas da Constituição de 1988, e mesmo as desconsiderasse em muitas das decisões tomadas então” (CUNHA, 2009, p. 156). Segundo Avritzer (2010), esse panorama só começou a se modificar nos anos 2000, com a ascensão de forças políticas ligadas aos setores de esquerda, promovendo novas formas de participação e generalizando, sobretudo como condicionante da administração municipal, a implantação de instituições como os conselhos. Deve-se dizer que os conselhos, enquanto instituições democrático-participativas podem ser definidos como dispositivos vinculados à determinada ação do Estado, tendo por objetivo vocalizar os interesses que compõem diversos grupos da sociedade (AVRITZER, 2010). Tratam-se, de acordo com Simões (2010), de órgãos de gestão participativa compostos de representantes dos governos e da sociedade civil, com a finalidade de auxiliar na formulação, avaliação e implementação das políticas sociais. Cabe frisar que o estabelecimento dessas instituições surge em um contexto de amplas mudanças societárias, crise do Estado e dos dispositivos democráticos tradicionais. Na contemporaneidade a esfera pública tem se fragilizado devido a demandas provenientes das novas estruturas de sociabilidade, das mudanças culturais, da reestruturação produtiva, além das políticas econômico-financeiras de orientação neoclássica (NOGUEIRA, 2011). Ressalte-se que as sociedades ficaram mais diversificadas e individualizadas, caracterizando-se por um amplo conjunto de novos sujeitos, erigidos em torno das mudanças nos padrões de agregação de classe. Os fatores econômicos e as identidades 8 sociais ganharam maior densidade e autonomia, fato que gera uma reorganização dos interesses da sociedade civil (NOGUEIRA, 2011). Todo esse ambiente tem pressionado o Estado e a esfera pública que foram enfraquecidos por uma perspectiva reformadora que se focou no ajuste e na redução do tamanho da máquina governamental e na ampliação da intervenção da sociedade civil. Assim as instâncias governamentais são incentivadas a atuar de forma minimalista, no curto prazo e sem horizontes largos. Há que se perguntar, dentro desta visão, quais as características e possibilidades das relações democráticas em um cenário tão complexo e tensionado como o anteriormente descrito. Um passo importante para isso é precisar a natureza do debate democrático. Para Cunningham (2009), existem ao menos quatro grandes tradições teóricas que abordam o problema da democracia: a escola liberal, a escola republicana, a escola deliberativa e a escola marxista. Na tradição liberal vislumbra-se o processo democrático como o conjunto de atos e instituições normativas que tem por finalidade garantir que as atividades do Estado ocorram de forma legítima atendendo os interesses da sociedade. Nesse ponto de vista, democracia seria o sistema de pesos e contrapesos que impede a concentração excessiva do poder e garante a representação dos interesses privados majoritários e minoritários, por meio de um processo de agregação de atores e opiniões (preferências). Já na concepção republicana, a democracia não se limita a essas funções. Um de seus papéis essenciais, é a garantia da integração e autonomia social dos cidadãos por meio de uma distribuição mais ou menos horizontalizada do poder e do progresso social. Para Schumpter (1995) os fatores ideais para a eficiência dos Estados democráticos são: 1) a existência de lideres políticos qualificados; 2) a segurança de que os especialistas tomem as decisões relativas aquilo que requeira conhecimento técnico e; 3) a existência de uma burocracia bem treinada, bem como uma sociedade civil com membros tolerantes e com capacidade para permitir aos políticos uma relativa liberdade de ação no governo. Já no que se refere à teoria deliberativa, pode-se dizer que esta se consolida ao tratar a noção de democracia como um problema complexo, dotado de historicidade, e, portanto, variabilidade, tanto no tempo, quanto no espaço. Estudiosos como Habermas (1995) e Rawls (2002), sinalizam o caráter comunicacional da democracia. Nela, do ponto de vista normativo, os indivíduos estabeleceriam uma conversação cívica essencialmente racional, a 9 partir da esfera pública e das instâncias do Estado, onde diversos interesses e visões de mundo se interpelam na construção do bem estar coletivo. A teoria deliberativa, nesses termos, dirige fortes críticas às correntes liberais e republicanas, que descrevem a vida política como um processo de agregação de preferências fixas (junção de ideias, opiniões e interesses socializáveis) realizado por meio das instituições democráticas (CUNNINGHAM, 2009). Ao contrário disso, na visão deliberativa a formação de preferências ocorre também dentro do processo político, sendo completamente possível a construção de novos valores e mudanças de postura dos sujeitos. Dessa forma seriam de grande valia os espaços de ampliação dos momentos deliberativos como a mídia, sindicatos e os conselhos de políticas públicas. Os teóricos marxistas, por sua vez, abordam o problema da democracia em pelo menos três níveis complementares e distintos. Em um primeiro plano, desde Marx (1977), diversos investigadores indicam a indissociabilidade entre a produção material e a qualidade e a efetividade da democracia (COUTINHO, 2008; TOGLIATTI, 1978; POULANTZAS, 2000). Em outros termos: a democracia implica, necessariamente, a socialização da riqueza coletiva e de seu suporte fundamental – os meios de produção. Um segundo nível de análise presente nas intepretações marxistas salienta o caráter dicotômico da cidadania moderna. O cidadão ocidental seria, antes de tudo, um sujeito cindido que oscila entre a vida pública e a vida privada. De acordo com Coutinho (2008) tal fato explicita o caráter formal e particularista da igualdade nas democracias capitalistas, uma vez que a análise empírica aponta para subordinação estrutural do interesse público pelo interesse privado. Já o terceiro nível de análise utilizado nos textos clássicos dessa vertente identifica uma contradição elementar na democracia burguesa – a socialização do poder. Tal observação segue a hipótese de Lenin (1978, p. 126) que advoga que, [...] se todos os homens participarem efetivamente da gestão do Estado o capitalismo não mais poderá se manter. E o desenvolvimento do capitalismo cria os pressupostos necessários para que “todos” possam efetivamente participar da gestão do Estado. Ocorre, dessa forma, um choque antagônico entre a crescente participação (formal) das massas na vida política e a apropriação classista da máquina estatal para fins privados – 10 sobretudo aqueles de natureza econômica. Coutinho (2008, p. 78) sinaliza que o fato supramencionado possui uma razão clara, dado que, [...] quanto mais pessoas lutarem (e de modo consciente e organizado) pelos seus próprios interesses, tanto mais a dominação burguesa correrá perigo. Tal afirmação se consolida na ideia de que apenas um novo esquema societário seria capaz de efetivar todas as potencialidades da democracia, elencando a distribuição e redistribuição da riqueza, do poder e da propriedade como eixos fundamentais da vida pública. Antes de dar sequencia a argumentação aqui proferida – abordando o trabalho do assistente social nos conselhos de políticas públicas e a questão da mobilização social – deve-se salientar a defesa de uma concepção ampliada de democracia. Esta deve ser vista como algo superior à mera realização de procedimentos decisórios e eleitorais, sendo constituída por uma dimensão histórico-social e uma dimensão normativa. Com isso enfatiza-se a pertinência das leituras baseadas na teoria deliberativa e nas correntes marxistas, já que estas lidam com a questão democrática sob um prisma flexível e histórico, seja por meio da abordagem normativo-comunicacional, seja por meio da análise sócio-estrutural da vida política. 3. O trabalho do assiste social nos conselhos de políticas públicas e a questão da mobilização social A análise (tanto normativa, quanto empírica) do trabalho dos assistentes sociais nos conselhos é um tema relativamente novo, de grande importância e difícil abordagem no universo profissional. De acordo com Bravo (2001) o assistente social tem sido cada vez mais requisitado para desempenhar funções de apoio técnico e assessoria nesses espaços, no entanto, poucos são os profissionais que teorizam sobre tal atividade. Não obstante esse fato podem-se identificar claramente na literatura pertinente três eixos que vêm conformando a atuação dos assistentes sociais nessa área (MIOTO & LIMA, 2009, CARDOSO & ABREU, 2009). Existem, num plano mais imediato, as práticas que podem ser inseridas naquilo que Mioto (2003) denomina de processos de gestão. Tratam-se de ações como a, 11 [...] elaboração da pauta e de relatórios da reunião, convocação das reuniões, organização da documentação, além da coordenação de equipes multiprofissionais e da fiscalização e inscrição das organizações da sociedade civil - incluindo a formulação e apresentação de laudos e pareceres técnicos (BRAVO, 2009, p. 403). Como se percebe, tais atividades compõem um leque de tarefas administrativas que caracterizam, do ponto de vista da vida cotidiana, a rotina institucional dos assistentes sociais dentro das instituições participativas. Segundo Bravo (2009), tal trabalho deve sempre passar pelo crivo da reflexão, da crítica e do debate interdisciplinar, uma vez que existe entre os profissionais a forte tendência de limitar essas tarefas a sua dimensão burocrática e administrativo-instrumental, abdicando das atividades mobilização social propriamente ditas. Outro vetor que consolida o trabalho dos profissionais do Serviço Social nos conselhos são as ações de assessoria e difusão de informações. Por meio delas os profissionais exercem atividades cotidianas ou sistematizadas em longo prazo no apoio aos conselheiros. Tratam-se de um conjunto de práticas de grande importância que, [...] envolvem a formulação de propostas de regulação e regulamentação das políticas públicas, a realização de pesquisas, ação socioeducativa, o estímulo à participação social, capacitação de conselheiros, suporte aos conselhos (contribuição [programática] nas pautas, atas, apoio as comissões internas, organização de conferências), socialização de informações (divulgação de documentos, cartilhas, boletins) e elaboração de Planos (BRAVO, 2009, p. 404). Em termos gerais, compreende-se que essas ações visam estruturar atividades que potencializem a capacidade da sociedade civil de intervir de forma republicana na vida das instituições participativas contribuindo para minimização e superação das assimetrias de poder e participação na esfera pública. Dessa forma, esse tipo de trabalho lida com um fenômeno que a teoria deliberativa nomina de déficit deliberativo. Tal noção foi muito bem desenvolvida por Cohen (2012) e consiste na existência de uma situação onde os atores não são capazes de se vocalizar adequadamente, além de não possuírem elementos institucionais, materiais e discursivos que lhes permitam construir preferências políticas sobre os temas em debate. Deve-se salientar que diversos estudiosos indicam a existência de um grande leque de princípios não excludentes que garantem a legitimidade e a simetria do processo de deliberação pública. Marques (2012) assinala oito princípios fundamentais, que se violados, 12 podem gerar situações de desequilíbrio e déficit deliberativo. São eles: a) igualdade, b) publicidade, c) reciprocidade, d) reflexividade, e) accountability (prestação de contas), f) autonomia, g) ausência de coerção e h) respeito mútuo. Conforme Marques (2012) a transgressão desses princípios implica na existência de estruturas de desigualdade política que atingem os agentes durante o processo participativo, podendo, inclusive, inviabilizar a legitimidade e a eficácia das decisões tomadas nos espaços democráticos. Transpondo tais apontamentos para o universo do Serviço Social, podem-se localizar ao menos quatro esquemas de desigualdade política que devem se situar como polos centrais para intervenção profissional: 1) a desigualdade relativa à socialização política (caracterizada pela existência de atores pouco experientes); 2) a desigualdade de compreensão e acesso ao conhecimento técnico; 3) a desigualdade de vocalização (distribuição pouco equitativa do uso da fala entre os agentes) e, por fim; 4) a desigualdade de representação (isto é, a sub-representação de determinados segmentos políticos nas instituições participativas). Conexa a estas questões existe o terceiro vetor que caracteriza o trabalho dos assistentes sociais nos conselhos de políticas públicas, isto é, as ações de natureza políticoorganizativa. Conforme Mioto & Lima (2009, p. 41), estas são atividades que conformam um espectro de, [...] ações articuladas que privilegiam e incrementam discussões e as encaminham para a esfera pública. Seu foco principal consiste em dinamizar e instrumentalizar a participação dos sujeitos, sempre respeitando o potencial político e o tempo dos envolvidos. As ações [político-organizativas] consideram sempre as necessidades imediatas, mas prospectam, a médio e a longo prazos, a construção de novos padrões de sociabilidade entre os sujeitos [...] a mobilização e a organização constituem-se nos seus principais objetivos [...] O traço distintivo dessa dimensão no fazer profissional nas instituições participativas é o fato dela se direcionar de maneira privilegiada para os agentes que não integram, stricto sensu, os espaços políticos como os conselhos. Dessa forma a atuação profissional se concentra na consolidação e no acionamento dos movimentos sociais, das redes de atores e organizações da sociedade civil, no sentido de provocar, ampliar e intensificar os processos de participação dos sujeitos na esfera pública, conectando-os as instituições participativas. 13 Nessa ótica Saraiva (2010) destaca a organização de fóruns, debates, encontros, audiências públicas, ações de divulgação dos conselhos e orçamentos participativos, palestras e cursos como atividades privilegiadas do assistente social naquilo que se refere à promoção da participação política no âmbito das redes. Para estudiosa supramencionada esse tipo de trabalho parte das capacidades e potencialidades acumuladas pela sociedade civil, objetivando a ampliação e a construção de canais efetivos e ramificados de controle social de forma a estimular a socialização política do maior número de atores possível. Cabe ressaltar, por fim, a forte articulação entre os três eixos que estruturam o trabalho dos assistentes sociais nos conselhos. Na realidade sua vinculação é tão íntima que não se pode demarcá-los de maneira estanque, a não ser para fins de exposição e análise. CONSIDERAÇÕES FINAIS Finalizando e condensando nossa breve exposição, apresentamos abaixo um quadro síntese acerca do trabalho dos assistentes sociais nos conselhos de políticas e públicas e demais instituições participativas. Salientamos que nossas considerações não esgotam a riqueza e a complexidade da intervenção profissional nesses espaços. Apenas procuramos apontar as principais tendências da atuação profissional identificadas pela literatura especializada, apresentando sumariamente uma espécie de estrutura normativa da atuação dos assistentes sociais nos conselhos e demais instituições participativas. Tabela 1 – Estrutura normativa do trabalho dos assistentes sociais nos conselhos de políticas públicas e instituições participativas Características: Compõem um leque de tarefas administrativas que caracterizam a rotina institucional dos assistentes sociais dentro das instituições como os conselhos. Processos de gestão Eixos do trabalho profissional nas instituições participativas Características: Ações de assessoria e socialização de informações Visam estruturar atividades que potencializem a capacidade da sociedade civil de intervir de forma republicana na vida das instituições participativas contribuindo para minimização e superação das assimetrias participação na esfera pública. Ocorre a partir do mapeamento e da intervenção do assistente social em ao menos quatro formas de desigualdade política nas instituições democráticas: 1) a desigualdade de socialização política; 2) desigualdade de compreensão e acesso ao conhecimento técnico; 3) Marco operacional: São caracterizados por ações como elaboração de relatórios da reunião, convocação das reuniões, organização da documentação, coordenação das equipes multiprofissionais e da fiscalização e inscrição das organizações da sociedade civil, formulação e apresentação de laudos e pareceres técnicos. Marco operacional: Compreendem propostas de regulação e regulamentação das políticas públicas, a realização de investigações, o trabalho socioeducativo, a capacitação de conselheiros, suporte na elaboração de pautas, atas, apoio as comissões e conferências, a formulação e divulgação de documentos, 14 a desigualdade de vocalização entre os agentes políticos e: 4) desigualdade de representação entre os segmentos políticos institucionalizados. Características: Processos políticoorganizativos Direcionam-se de maneira privilegiada para os agentes que não integram os espaços políticos como os conselhos, centrando-se na consolidação e no acionamento dos movimentos sociais, das redes de atores e organizações da sociedade civil, no sentido de provocar, ampliar e intensificar os processos de participação dos sujeitos na esfera pública, conectando-os as instituições participativas. cartilhas, boletins e ações de planejamento de atividades institucionais. Marco operacional: Organização de fóruns, debates, encontros, audiências públicas, ações de divulgação dos conselhos, palestras e ministração de cursos. Fonte: elaboração própria a partir de Marques (2012), Faleiros (2011), Saraiva (2010), Bravo (2009), Abreu & Cardoso (2009) e Mioto & Lima (2009). 15 REFERÊNCIAS ABREU, Marina Maciel. Serviço Social e a organização da cultura: perfis pedagógicos da prática profissional. São Paulo: Cortez, 2002. ABREU, M. M.; CARDOSO, F. G. Mobilização social e práticas educativas. In: ABEPSS; CFESS (Org.). Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, UnB, 2009, p. 593-608. AVRITZER, L.. A dinâmica da participação local no Brasil. São Paul: Cortez, 2010. BRAVO, Maria Inês Souza; CORREIA, Maria Valéria Costa. Desafios do controle social na atualidade. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, mar. 2012. BRAVO, Maria Inês. O trabalho do assistente social nas instâncias públicas de controle social. 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