ROBERTO BRAGA DE ANDRADE OFERTA CONTRATUAL AO PÚBLICO E INTEGRAÇÃO PUBLICITÁRIA DO CONTRATO Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Teresa Ancona Lopez, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO SÃO PAULO 2006 II 3ª versão corrigida e ampliada – julho de 2007. © Roberto Braga de Andrade – [email protected] III Em memória de Rubens de Andrade e Quirino Carlos Ruscigno Florio À minha diletíssima trindade, Ana Maria, Ana Beatriz, e João Pedro IV RESUMO A oferta ao público, recentemente positivada pelo art. 429 do Código Civil brasileiro de 2002, e o princípio da integração publicitária do contrato, insculpido no art. 30 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), são os principais temas desta tese. O primeiro é analisado nos planos estrutural e eficacial, não sem prévia recapitulação construtiva da disciplina da proposta de contrato nestes mesmos planos: (1) estrutural: (a) determinação do destinatário, (b) recepticiedade da proposta, (c) intenção do proponente de vincular-se juridicamente, (d) conteúdo suficiente ou mínimo da proposta; (2) eficacial: (a) vinculatividade mínima da proposta (= estado de sujeição [proponente] versus direito potestativo [oblato]), (b) vinculatividade máxima (= vinculatividade mínima + irrevogabilidade da proposta), (c) retirada versus revogação da proposta. Revisitados com espírito positivamente crítico estes temas ligados à proposta de contrato, passa-se a cotejá-los com a figura da oferta ao público, visando extrair desta as particularidades e, em última instância, o regime jurídico. Quanto ao princípio da integração publicitária do contrato, busca-se na experiência normativo-jurisprudencial-dogmática dos direitos (a) espanhol (Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuários, art. 8.1), (b) argentino (Ley de Protección y Defensa de los Consumidores, art. 8º), (c) bem como na construção jurisprudencial francesa acerca do valor contratual dos documentos publicitários, subsídios para iluminar e aprofundar na compreensão do sentido e alcance desse revolucionário princípio contratual. V ABSTRACT This paper examines the main aspects of the law in connection with commercial offers, such as governed by Article 429 of the recently enacted brazilian Civil Code (2002) and the principle of integration of advertisements with contracts, as stemming from article 30 of the Código de Defesa do Consumidor (CDC). We analyze commercial offers from the standpoints of structure and efficacy, but not before having made a constructive review of the doctrine of proposal also from the standpoints of (1) structure: (a) establishing the proposal addressee, (b) receivability of the proposal, (c) proponent’s legally binding intent, (d) sufficient contents; and of (2) efficacy: (a) minimum bindingness of the proposal (state of subjection [proponent] x potestative right [addressee of the offer]), (b) maximum bindingness of the proposal (= minimum bindingness + irrevocability), (c) offer withdrawal x proposal revocation. Upon revisiting such doctrines and legal concepts from an approach of positive criticism, we proceeded to analyze them vis-à-vis commercial offers, with a view to establishing their peculiarities and, ultimately, also the legal regimen applying to such offers. On analyzing the principle of integration of advertisements with contracts, we sought the assistance of the spanish law (Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuários, art. 8.1) and of the Argentinean law (Ley de Protección y Defensa de los Consumidores, art. 8º), having found support in the experience of these countries in matters involving the making, application and interpretation of legal rules, as well as in the French experience on constructive case law involving the contractual value of publicity documents, all in our pursuit of an enlightened and deep understanding of the meaning and reach of this very relevant contractual principle, first conveyed by CDC. VI ZUSAMMENFASSUNG Das öffentliche Angebot – kürzlich positiviert durch Art. 429 des Brasilianischen Bürgerlichen Gesetzbuches – und das Prinzip des Einschlusses der kommerziellen Werbungsmitteilung in den Vertrag (Código de Defesa do Consumidor [CD], Art. 30) sind die Hauptthemen dieser Dissertation. Ersteres wird auf struktureller und wirksamkeitsbezogener Ebene analysiert, nicht ohne vorherige konstruktive Rekapitulierung der Disziplin des Vertragsangebots auf den selben Ebenen: (1) strukturell: (a) Bestimmung des Empfängers, (b) Empfang des Angebots, (c) Absicht des Anbieters, sich rechtlich zu binden, (d) hinreichender Angebotsinhalt; (2) wirksamkeitsbezogen: (a) minimale Verbindlichkeit des Angebots (Zustand der Unterwerfung [Anbieter] x Ermessensrecht [Angebotsempfänger]), (b) maximale Verbindlichkeit des Angebots (= minimale Verbindlichkeit + Unwiderruflichkeit), (c) Rücknahme x Widerruf des Angebots. Nach Bearbeitung dieser Themata mit positiv kritischem Geist werden sie mit der Figur des öffentlichen Angebots verglichen mit dem Ziel, die Besonderheiten und nicht zuletzt die Einordnung in das Rechtssystem herauszuarbeiten. Hinsichtlich des Prinzips des Einschlusses der kommerziellen Werbungsmitteilung in den Vertrag, kommt der dogmatisch-juristisch-normative Erfahrungsschatz des spanischen (Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuários, art. 8.1) und argentinischen (Ley de Protección y Defensa de los Consumidores, art. 8º) Rechts zuhilfe sowie die französiche Rechtskonstruktion hinsichtlich des Vertragswertes von Werbedokumenten, um zur Verständnis des Sinns und der Reichweite dieses durch den CDC positivierten äußerst relevanten Vertragsprinzips verständlich zu machen beizutragen. 7 SUMÁRIO PARTE I: INTRODUZINDO O TEMA ..........................................................................12 Capítulo 1: Esclarecimentos necessários ......................................................................................................13 1. Os dispositivos legais e suas fontes.........................................................................................................13 2. A oferta contratual nos planos da existência e da eficácia......................................................................17 3. Breve questão terminológica...................................................................................................................18 Capítulo 2: Os procedimentos de formação do contrato..............................................................................20 1. Formação instantânea x formação progressiva do contrato .................................................................20 2. Formação progressiva: as tratativas contratuais......................................................................................25 2.1. Gênese.............................................................................................................................................25 2.2. Limites ............................................................................................................................................27 3. Formação instantânea: o intercâmbio entre proposta e aceitação de contrato........................................32 Capítulo 3: Origens do princípio da irrevogabilidade da proposta ..............................................................37 1. A Alemanha na contramão do Direito Comum Europeu........................................................................37 2. A irrevogabilidade da proposta nos Motive do BGB ..............................................................................40 PARTE II: OFERTA CONTRATUAL NO PLANO DA EXISTÊNCIA .....................44 SEÇÃO A: ESTRUTURA DA PROPOSTA DE CONTRATO .................................................................45 Capítulo 4: Requisitos da proposta de contrato ..........................................................................................46 1. Requisitos extrínsecos.............................................................................................................................46 1.1. Determinação do destinatário..........................................................................................................46 1.2. Recepção da proposta .....................................................................................................................47 2. Requisitos intrínsecos .............................................................................................................................52 2.1. Intenção de vincular-se ...................................................................................................................52 2.2. Conteúdo mínimo ou suficiente ......................................................................................................56 Capítulo 5: Figuras afins à proposta de contrato ........................................................................................59 1. Promessa unilateral .................................................................................................................................59 2. Minuta de contrato ..................................................................................................................................63 3. Carta de intenções ...................................................................................................................................64 4. Contrato preliminar .................................................................................................................................65 5. Opção ......................................................................................................................................................68 6. Preferência, prelação e preempção..........................................................................................................70 8 SEÇÃO B: ESTRUTURA DA OFERTA AO PÚBLICO...............................................75 Capítulo 6: A expansão da oferta ao público ...............................................................................................76 Capítulo 7: Requisitos da oferta ao público .................................................................................................81 1. Requisitos extrínsecos.............................................................................................................................81 1.1. Indeterminação dos destinatários ....................................................................................................81 1.2. Não-recepticiedade .........................................................................................................................84 2. Requisitos intrínsecos .............................................................................................................................86 2.1. Intenção de vincular-se ...................................................................................................................86 2.2. Conteúdo mínimo ou suficiente ......................................................................................................86 Capítulo 8: Interfaces da oferta ao público..................................................................................................88 1. Invitatio ad offerendum...........................................................................................................................88 1.1. A amplitude do invitatio ad offerendum no direito alemão.............................................................88 1.2. A refutação de KÖNDGEN ................................................................................................................90 1.3. A retratação parcial da doutrina alemã ..........................................................................................92 1.3.1. A disponibilização de “Verkaufsautomaten” ao público........................................................92 1.3.2. A oferta de serviços públicos essenciais .................................................................................93 1.4. Catálogos virtuais: oferta ao público ou invitatio ad offerendum?.................................................93 1.4.1. Colocando o problema ............................................................................................................93 1.4.2. O risco da oferta ao público....................................................................................................97 1.4.3. A neutralidade da Diretiva 2000/31/CE (comércio eletrônico) ..............................................98 1.4.4. A previsível opção do direito alemão .....................................................................................99 1.4.5. A opção dos direitos latinos..................................................................................................101 1.4.6. A solução dos PDCE-LANDO ................................................................................................102 2. Promessa de recompensa ......................................................................................................................103 9 PARTE III: OFERTA CONTRATUAL NO PLANO DA EFICÁCIA.......................107 SEÇÃO A: EFEITOS DA PROPOSTA DE CONTRATO ..........................................108 Capítulo 9: Vinculação mínima e máxima da proposta.............................................................................109 1. Distinções preliminares.........................................................................................................................109 2. A vinculação mínima ............................................................................................................................112 2.1. Direito potestativo versus estado de sujeição................................................................................112 3. A vinculação máxima............................................................................................................................115 3.1. O significado da irrevogabilidade da proposta no direito alemão ................................................115 3.2. Efeito da irrevogabilidade: obrigação de fazer?............................................................................116 3.3. A ineficácia da revogação de proposta irrevogável ......................................................................121 3.4. O caso do direito português ..........................................................................................................123 SEÇÃO B: EFEITOS DA OFERTA AO PÚBLICO ....................................................126 Capítulo 10: Art. 30 do CDC – um novo conceito de oferta? ...................................................................127 Capítulo 11: Limites eficaciais da oferta ao público .................................................................................133 1. A revogabilidade natural da oferta ao público......................................................................................133 2. Limites implícitos à eficácia da oferta ao público.................................................................................135 2.1. Ofertas ao público de contratos intuitu personae..........................................................................136 2.2. Ofertas ao público singulares e múltiplas.....................................................................................137 PARTE IV: O PRINCÍPIO DA INTEGRAÇÃO PUBLICITÁRIA DO CONTRATO ............................................................................................................................................139 Capítulo 12: França – O valor contratual dos documentos publicitários .................................................140 1. Publicidade comercial e formação do contrato .....................................................................................140 2. A noção de documento contratual ........................................................................................................141 3. A noção de documento publicitário ......................................................................................................142 4. O valor contratual dos documentos publicitários..................................................................................143 5. A jurisprudência da Corte de Cassação.................................................................................................144 5.1. Incorporação imobiliária: promessa quanto a materiais empregados na construção.....................144 5.2. Incorporação imobiliária II: desatendimento à característica construtiva .....................................145 5.3. Incorporação imobiliária III: promessa de manter área verde.......................................................145 5.4. Compra-e-venda de máquina de preenchimento de cheques: promessa de resultado ...................147 5.5. Distribuição de software infectado por vírus, como brinde pela compra de revista......................147 10 Capítulo 13: Espanha – O art. 8.1 da LGDCU ..........................................................................................149 1. Prevenir e remediar ...............................................................................................................................149 2. Precedentes do Tribunal Supremo ........................................................................................................152 2.1. Compra-e-venda de máquina industrial: promessa de resultado...................................................152 2.2. Incorporação imobiliária: promessa de instalações nas unidades autônomas e áreas comuns ......155 2.3. Incorporação imobiliária II: promessa de instalação de piscinas e áreas verdes...........................157 2.4. Síntese evolutiva: a tutela da confiança ........................................................................................158 3. O sentido e alcance do art. 8.1 da LGDCU ...........................................................................................160 4. A jurisprudência em torno do art. 8.1 da LGDCU ................................................................................162 4.1. Sentenças do Tribunal Supremo ...................................................................................................162 4.1.1. Desconformidade entre publicidade e objeto contratado: indispensabilidade da prova........162 4.1.2. Incorporação imobiliária: promessa quanto a armários embutidos.......................................163 4.1.3. Incorporação imobiliária II: promessa quanto a área de lazer...............................................165 4.1.4. Incorporação imobiliária III: promessa de quadras de tênis .................................................166 4.2. Sentenças das Audiências Provinciais ..........................................................................................167 4.2.1. Compra-e-venda de veículo: promessa quanto a equipamentos acessórios ..........................168 4.2.2. Caderneta de poupança: promessa de seguro de vida vinculado...........................................169 4.2.3. Prestação de serviços: falso tratamento médico contra calvície ...........................................170 4.2.4. Contrato de prestação de serviços: promessa de “depilação definitiva” ..............................171 Capítulo 14: Brasil – O art. 30 do CDC.....................................................................................................174 1. Julgados de vanguarda ..........................................................................................................................174 1.1. Contrato de seguro de vida “sem exame médico prévio” ............................................................174 1.2. Contrato de hospedagem em camping: promessa de “seguro total”............................................177 2. A jurisprudência em torno do art. 30 do CDC ......................................................................................179 2.1. Decisões do Superior Tribunal de Justiça .....................................................................................179 2.1.1. Compra-e-venda de veículo em concessionária: garantia de entrega pela montadora ..........179 2.1.2. Incorporação imobiliária: promessa de financiamento .........................................................183 2.1.3. Serviço de entrega rápida: promessa de pontualidade ..........................................................187 2.2. Decisões dos Tribunais Estaduais .................................................................................................188 2.2.1. Oferta ao público de equipamentos de som: desatendimento ao preço anunciado ...............188 2.2.2. Oferta ao público de forno microondas: erro quanto à indicação do preço?.........................190 2.2.3. Incorporação imobiliária: promessa de financiamento .........................................................195 Capítulo 15: Argentina – O art. 8 da LPDC .............................................................................................202 Capítulo 17: União Européia – Os arts. 2º e 6º da Diretiva 1999/44/CE.................................................205 11 EPÍLOGO: SÍNTESE DAS TESES APRESENTADAS ..............................................208 Capítulo 16 – Conclusões sobre a Proposta de Contrato ..........................................................................209 1. Princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato ..........................................................................209 2. Vinculação mínima e máxima da proposta de contrato .........................................................................210 3. A irrevogabilidade da proposta no Código Civil e no Código Comercial.............................................211 Capítulo 17: Conclusões sobre a Oferta ao Público ..................................................................................212 1. A oferta ao público é constituída de declaração de vontade não-receptícia .........................................212 2. A oferta ao público, em princípio, é revogável .....................................................................................212 3. Limites eficaciais implícitos à oferta ao público...................................................................................213 4. Ofertas ao público singulares e múltiplas .............................................................................................214 5. Oferta ao público e o art. 30 do CDC....................................................................................................214 6. Oferta ao público e o art. 35 do CDC....................................................................................................215 Capítulo 18: Conclusões sobre o Princípio da Integração Publicitária do Contrato..............................216 1. A fonte de inspiração do art. 30 do CDC..............................................................................................216 3. Função e fundamentos do princípio ......................................................................................................216 4. Publicidade comercial x oferta ao público x integração publicitária do contrato..................................217 ABREVIATURAS............................................................................................................218 BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................221 JURISPRUDÊNCIA ........................................................................................................232 12 PARTE I: INTRODUZINDO O TEMA 13 CAPÍTULO 1: ESCLARECIMENTOS NECESSÁRIOS 1. Os dispositivos legais e suas fontes O Código Civil de 2002 (CCbr-2002) cuida da “proposta de contrato” nos artigos 427 e 428, estabelecendo naquele primeiro que a proposta “obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso”. Até aqui, nada de novo. Trata-se da reprodução exata e integral do art. 1080 do Código Civil de 1916 (CCbr-1916), o qual, por sua vez, teve por fonte – conforme anotou CLOVIS BEVILAQUA1 – o § 145 do Bürgeliches Gesetzbuch (BGB)2. A novidade ficou por conta da norma do art. 429, que tratou expressamente da “oferta ao público”, estabelecendo que esta “equivale a proposta quando encerra os requisitos essenciais ao contrato, salvo se o contrário resultar das circunstâncias ou dos 3 usos” , dispondo, ainda, no parágrafo único, que “pode revogar-se a oferta pela mesma via 4 de sua divulgação, desde que ressalvada esta faculdade na oferta realizada” . Novidade relativa. A uma porque, na vigência do Código Civil de 1916, a doutrina dominante já entendia que o então art. 1080 não exigia, para a sua aplicabilidade, fosse o destinatário da proposta pessoa determinada, bastando ser determinável para que a vinculação própria do ato se propagasse. A duas porque o art. 429 é fiel tradução ao 1 BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado.[Comentário ao art. 1080]. Ed. hist. , 3. tir. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1979. v. 4, p. 195. 2 BGB, § 145: “Quem propõe a outro a conclusão de um contrato fica vinculado à proposta, a não ser que tenha excluído tal vinculação”. 3 CCbr-2002, art. 429 (destaquei). 4 Id., loc. cit. 14 português do art. 1336 do Código Civil italiano (CCit)5 – o que não significa, de nenhum modo, que a positivação da oferta ao público pelo legislador de 2002 não deva ser aplaudida, e muito. Na verdade, a doutrina nacional está em débito com a oferta ao público, figura que ocupa lugar proeminente na economia de massa e globalizada de nossos dias. Com efeito, não se vêem estudos específicos e profundos sobre a matéria. Os poucos comentários publicados até o momento limitam-se a discorrer sobre o art. 30 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) que, conforme procurarei demonstrar mais adiante, não versa sobre a oferta ao público, tampouco sobre a proposta de contrato a pessoa determinada, e sim sobre o revolucionário princípio da integração publicitária: “Toda informação ou publicidade suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação, com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o 6 contrato que vier a ser celebrado” . Segundo ANTÔNIO HERMAN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN, um dos redatores do anteprojeto do CDC, o art. 30 ter-se-ia inspirado no art. 95 do “Projet de Code de la Consommation” francês, redigido sob a presidência de JEAN CALAIS-AULOY7, de seguinte teor: “Toda informação ou publicidade suficientemente precisa vincula o profissional que a fornece ou que a utiliza” 8. 5 CCit, art. 1336: “A oferta ao público, quando contém os elementos essenciais do contrato à cuja conclusão se dirige, vale como proposta, salvo se resultar diversamente das circunstâncias ou dos usos”. 6 CDC, art. 30 (destaquei). 7 O Projet Calais-Auloy, todavia, acabou não entrando em vigor na França, que optou por promover uma compilação de textos legislativos e regulamentos administrativos dispersos, reunidos, respectivamente, pela “Loi n. 93-949 du 26 Juillet 1993” (parte legislativa) e “Décret n. 97-298 du 27 mars 1997” (parte administrativa), compilação essa que recebeu o nome oficial de “Code de la Consommation”. 8 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos e. [Comentários aos artigos 29 a 45 (Capítulo V – “Das práticas comerciais”)]. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 256. 15 Ocorre que o elemento verdadeiramente inovador do art. 30 – qual seja a disposição 9 pela qual a publicidade comercial “integra o contrato que vier a ser celebrado” – não está presente neste artigo do Projeto CALAIS-AULOY. Onde, pois, teriam os redatores do CDC se inspirado para introduzir em nosso ordenamento jurídico inovação de tamanha envergadura? Penso que a inspiração veio da Espanha, concretamente da “Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuários” – Ley 26/1984 (LGDCU), cujo art. 8.1 estabelece que “a oferta, promoção e publicidade dos produtos, atividades ou serviços, ajustar-se-ão à sua natureza, característica, condições, utilidade ou finalidade [...]. Seu conteúdo, as prestações próprias de cada produto ou serviço, e as condições e garantias oferecidas, serão exigíveis pelos consumidores ou usuários, ainda quando não figurem expressamente no contrato celebrado ou no documento ou comprovante recebido” 10 . Com efeito, ADA PELLEGRINI GRINOVER, a quem coube coordenar os trabalhos de elaboração do anteprojeto do CDC, esclareceu que os seus redatores buscaram inspiração em modelos legislativos estrangeiros já vigentes, embora tenham tomado a precaução de evitarem a todo custo a transcrição pura e simples de textos alienígenas. E após afirmar que a principal fonte de inspiração fora o Projet CALAIS-AULOY, revelou que “também importantes no processo de elaboração foram as leis gerais da Espanha (Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios, Lei n. 26/1984)”11. Portanto, razoável supor que a idéia de incluir no CDC o princípio da integração publicitária do contrato – elemento inexistente no art. 95 do Projeto CALAIS-AULOY, repita-se – tenha nascido de um contato direto dos redatores do anteprojeto com o art. 8.1 da LGDCU. 9 CDC, art. 30 in fine. 10 LGDCU, art. 8.1 (destaquei). 11 GRINOVER, Ada Pellegrini. Introdução. IN: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 10 (destaquei). 16 Na esteira das legislações consumeiristas espanhola e brasileira, e talvez em decorrência do intercâmbio histórico-cultural, quanto à Espanha, e geográfico-econômico, quanto ao Brasil, a Argentina promulgou a “Ley de Protección y Defensa de los Consumidores” – Ley 24.240/1993 (LPDC), cujo art. 8º, intitulado “Efeitos da publicidade” também dispôs que “as especificações formuladas na publicidade ou em anúncios, prospectos, circulares ou outros meios de difusão obrigam ao ofertante e 12 consideram-se incluídas no contrato com o consumidor” . Ora, se os artigos 427 (proposta de contrato) e 429 (oferta ao público) do nosso Código Civil, bem assim o art. 30 do CDC (integração publicitária do contrato) são os principais objetos de análise deste trabalho, e se tais dispositivos tiveram por fonte de inspiração, respectivamente, o § 145 do BGB, o art. 1336 do Código Civil italiano e o art. 8.1 da LGDCU, é natural que procure buscar subsídios nos direitos alemão, italiano e espanhol, respectivamente, para poder contribuir, ainda que modestamente, à compreensão do atual regime jurídico da oferta ao público e da publicidade comercial no direito brasileiro. Por certo, tais direitos não serão os únicos a serem visitados neste trabalho. Além da indispensável referência ao direito francês, compulsar-se-á a doutrina e a jurisprudência relativa à aplicação do citado art. 8º da LPDC, que a exemplo do art. 8.1 da LGDCU espanhola também instituiu no ordenamento jurídico argentino o princípio da integração publicitária dos contratos para consumo. Em matéria de formação do contrato, não se pode deixar de recorrer à riquíssima experiência normativo-doutrinal daqueles organismos internacionais voltados à uniformização do direito privado, seja porque a figura do contrato sempre despertou especial atenção dessas instituições, seja porque os diplomas que vêm sendo apresentados à comunidade internacional são a resultante de um formidável trabalho de direito comparado, eis que visam servir de denominador comum capaz de disciplinar as relações comerciais entre os países-membros, aplainando, assim, as diferenças e peculiaridades dos respectivos direitos nacionais. 17 Assim, da United Nations Commission on International Trade Law (UNCITRAL), será examinado o documento resultante da Convenção Internacional de Viena de 1980, intitulado “United Nations Convention on Contracts for International Sale of Goods” (CISG-UNCITRAL). Do International Institute for the Unification of Private Law (UNIDROIT), indispensável será o exame da “Uniform Law on the Formation of Contracts for the International Sale of Goods” (FCISG- UNIDROIT), mas sobretudo a versão de 2004 dos “Principles of International Commercial Contracts” (PICC- UNIDROIT). Igualmente importante o exame do direito comunitário europeu tangente ao tema da formação do contrato. Além das Diretivas da União Européia relacionadas direta ou indiretamente ao tema desta tese, especial importância assumem os “Principes du Droit Européen du Contrat” (PDEC-LANDO) elaborados pela Commission pour le Droit Européen du Contrat presidida pelo jurista OLE LANDO. 2. A oferta contratual nos planos da existência e da eficácia Parte do método adotado neste trabalho consiste em seccionar o tema da oferta contratual nos planos da existência e da eficácia, tomadas essas expressões no sentido preconizado por ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO13, que secundando a semente lançada por FRANCISCO CAVALCANTI PONTES DE MIRANDA14, e trabalhando habilmente a densa literatura jurídica sobre a matéria, soube estabelecer um método de análise consistente e profícuo da figura do negócio jurídico. 12 LPDC, art. 8º (destaquei). 13 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. Vide especialmente cap. 2, p. 23-71. 14 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954. t. 3, § 254 e ss. 18 O plano da existência, segundo JUNQUEIRA DE AZEVEDO, corresponderia aos elementos que compõem a descrição explícita ou implícita contida em determinada norma jurídica, de um fato da vida social tido pelo legislador como relevante, motivo pelo qual este preestabelece naquela norma, ou em outras a ela conexas, determinados efeitos jurídicos. O plano da eficácia, por sua vez, corresponderia exatamente a esses efeitos preestabelecidos em normas jurídicas, que se deflagram quando o fato por estas abstratamente descrito concretiza-se na realidade. O Autor distingue ainda o plano da validade, que se interporia entre os planos da existência e eficácia, e compreenderia um conjunto de pressupostos legais – tais como a capacidade do agente, o objeto lícito, possível e determinado, a forma prescrita em lei, 15 etc. – para que o negócio jurídico seja apto a produzir os efeitos que lhe são próprios. Todavia, decidi não examinar a oferta contratual no plano da validade, pois a maioria de seus pressupostos são comuns à quase totalidade dos negócios jurídicos, de modo que uma incursão nesta seara poderia, quando muito, contribuir à evolução da teoria do negócio jurídico, mas não ao tema desta tese, de abrangência bem mais limitada. 3. Breve questão terminológica No âmbito específico deste trabalho, visando apenas conciliar concisão, clareza e precisão, utilizarei a locução “proposta de contrato” para designar somente a oferta de contrato dirigida a uma ou mais pessoas determinadas; a expressão “oferta ao público”, para me referir apenas à oferta de contrato dirigida a pessoas indeterminadas; por fim, utilizarei a locução “oferta contratual” como gênero do qual a proposta de contrato e a oferta ao público são espécies, de modo que utilizarei esta última locução sempre quando quiser me referir indistinta e simultaneamente à proposta de contrato ou à oferta ao público. 15 Cf. CCbr-2002, art. 104. 19 Esclareço, porém, que essa estipulação semântica não encontra guarida no direito positivo brasileiro, tampouco na doutrina nacional ou estrangeira, que às mais das vezes se servem do vocábulo “oferta” e “proposta” como se sinônimos fossem. 20 CAPÍTULO 2: OS PROCEDIMENTOS DE FORMAÇÃO DO CONTRATO 1. Formação instantânea x formação progressiva do contrato A concepção clássica segundo a qual o contrato se aperfeiçoaria pelo encontro de vontades, isto é, pela formação de uma vontade comum nascida da fusão das vontades individuais de cada parte16, há muito foi objeto de crítica de alguns autores italianos17, que viram no modelo da união de quereres uma explicação artificial do fenômeno contratual, não admitindo plausível a imagem da fusão das vontades individuais numa única vontade18. Tais autores acabaram construindo um modelo de corte mais objetivo, segundo o qual o acordo ou consenso contratual resultaria da manifestação ou declaração de vontade de dois ou mais sujeitos de direito, as quais, sobre serem congruentes, convergem para o mesmo fim, qual seja a realização conjunta de certa operação de natureza patrimonial ou econômica. 16 Cf., por todos: CARRARA, Giovanni. La formazione dei contratti. Milano: Vallardi, 1915. p. 43 e ss. 17 SCHLESINGER, Piero. Complessità del procedimento di formazione del consenso ed unità del negozio contrattuale. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, n. 3, p. 1345 e ss., sett. 1964; GORLA, Gino. La ‘logica-illogica’ del consensualismo o dell’incontro dei consensi e il suo tramonto. Rivista di Diritto Civile, Padova, p. 255 e ss., magg./giug. 1966. 21 Não obstante essa crítica, a voz autorizada de GIOVANNI B. FERRI defendeu a idéia de que não se pode prescindir completamente do acordo de vontades, constituindo, este, o fundamento necessário e lógico de toda operação contratual, o elemento através do qual o regulamento contratual se torna vinculativo para os contraentes19. Seguindo essa perspectiva, parte da doutrina salientou posteriormente que se é verdade que o que importa é o significado objetivo e socialmente reconhecível dos atos realizados pelas partes, não é menos verdade que os atos de formação do contrato têm o significado objetivo de manifestação de vontade, sendo portanto com base neste significado que se deve verificar se o acordo aperfeiçoou-se ou não20. Assim, a pesquisa da intenção comum das partes pode revelar, em determinado caso que o acordo efetivamente alcançado pelas partes difere do que parece expressar o texto das respectivas declarações de vontade (proposta e aceitação), não se podendo admitir, nesta hipótese, que o acordo tenha decorrido da congruência literal entre a proposta e a aceitação. Essa possibilidade sugere que não é suficiente a coincidência exterior das declarações de vontade das partes, mas, como assinala MASSIMO BIANCA, “é necessário também que o significado global do comportamento das partes, objetivamente considerado, exprima a sua concordância em constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica patrimonial” 21. 18 Cf. CAMERIERI, Fausto. La conclusione del contratto, pt. 1. In: ALPA, Guido; BESSONE, Mario (Dir.). Giurisprudenza sistematica di diritto civile e commerciale. Torino: UTET, 1992. v. 3, cap. 3 - I contratti in generale. p. 54 e ss. 19 Cf. FERRI, Giovanni B. Considerazioni sul problema della formazione del contratto. Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni, Milano, n. 5/6, pt. 2, p. 200 e ss., magg./giug. 1969. 20 BIANCA, C. Massimo. Diritto civile: il contratto. Ristampa. Milano: Giuffrè, 1987. t. 3, p. 209-211. 21 Id. Ibid., p. 211. 22 De toda forma, o contrato é uma composição voluntária de interesses diferentes das partes contratantes22 – e sob este aspecto não haveria sentido falar-se em “vontade comum” – as quais, do ponto-de-vista puramente fático, buscam através do contrato realizarem fins particulares e distintos, as mais das vezes de conteúdo econômico, que não podem ser por elas alcançados senão querendo o resultado global do contrato23. Bem se expressou GINO GORLA quando afirmou que o instituto do contrato, mais do que sobre a lógica do encontro das vontades, é “fundado sobre a tutela das expectativas de boa-fé e sobre a composição dos interesses, que nascem em uma balança que o direito pesa do modo mais conveniente ou menos imperfeito num dado ambiente historicamente determinado” 24. Ainda sobre a metodologia de análise das técnicas de formação do contrato, FAUSTO CAMERIERI assinala a tendência atual, na doutrina italiana, de se abandonar a perspectiva tradicional baseada sobre o conceito estático de “fattispecie” 25, em benefício de um enfoque fundado sobre a noção de procedimento, considerada mais adequada a abranger os aspectos dinâmicos do fenômeno da formação do contrato26. 22 Fala-se, com freqüência, de interesses “antagônicos”, “opostos” ou “contrapostos”. Todavia, não acredito serem adequados, tais adjetivos, para qualificarem corretamente os interessses das partes contratantes, eis que envolvem, pelo menos indiretamente, os significados de “contrariedade”, “contradição”, “conflituosidade” etc., que não se coadunam com a realidade jurídico-contratual. Os interesses de cada parte são, isto sim, diferentes, distintos, o que não quer dizer conflitantes, inconciliáveis. 23 Nesse sentido: OSTI, Giuseppe. Contratto. In: AZARA, Antonio; EULA, Ernesto (Coords.). Novissimo digesto italiano. Torino: UTET, 1957. v. 4, p. 470 e ss. 24 GORLA, Gino. op. cit., p. 273 (destaquei). 25 Vale dizer, as fattispecies próprias da fase pré-contratual: proposta de contrato, minuta, cartas de intenção, tratativas, contrato preliminar, opção, prelação etc. 26 Cf. CAMERIERI, Fausto. op. cit., p. 55. 23 Todavia, entre os juristas italianos há, de um lado, os que atribuem a tal procedimento um valor autônomo e distinto, identificando no iter formativo do contrato “uma seqüência de atos e situações jurídicas intrinsecamente correlatos” 27 e, de outro lado, os que, reconhecendo à noção de procedimento um significado genérico e uma relevância meramente empírica, preferem recorrer à noção de “formação sucessiva” da fattispecie ligada ao dado estrutural do acordo, no sentido de que toda fase do ciclo formativo é o mesmo contrato em determinado estágio de seu desenvolvimento, cujos efeitos adquirem relevo em função do resultado final28. De qualquer forma, em matéria de formação contratual – ainda que dizê-lo represente hoje um lugar-comum – fenômenos como a revolução industrial (sécs. XIXXX), a expansão do comércio internacional (séc. XX), a evolução dos meios de comunicação de massa (séc. XX) e a globalização da economia (sécs. XX-XI) induziram o surgimento de dois “procedimentos” formativos distintos e rigorosamente opostos. Refiro-me, em primeiro lugar, à formação instantânea daqueles contratos que dão origem e ao mesmo tempo caracterizam as relações “business-to-consumer” (B2C), muito embora também usuais nas relações “person-to-person” (P2P) e eventuais nas “businessto-business” (B2B)29. 27 BENEDETTI, Giuseppe. Dal contratto al negozio unilaterale. Milano: Giuffrè, 1969. p. 56; Vide também: RAVAZZONI, Alberto. La formazione del contratto. 2. ed. Milano: Giuffrè, 1973. t. 1 – le fasi del procedimento, p. 23 e ss.; bem assim VITUCCI, Paolo. I profili della conclusione del contratto. Milano: Giuffrè, 1968, que observou que o fato de os dois aspectos do fenômeno coexistirem e se sobreporem curso da mesma atividade, não impede um exame separado da perspectiva do procedimento e a da fattispecie (cf. p. 22). 28 Cf. BIANCA, C. Massimo. op. cit., t. 3, p. 230, nota 214: “A utilização da noção de procedimento constituiu sempre uma dificulade para a doutrina civilística, que se inspira nas definições publicísticas, mas tende a elaborar uma noção excessivamente genérica, à qual é estranho o rigor e a problemática dos intitutos do procedimento público”. 29 Utilizo tais siglas não apenas por razões de comodidade e concisão, mas também porque as considero muito precisas em seus respectivos sinificados, que são, ao mesmo tempo, econômicos e jurídicos. Segundo RICARDO FERREIRA, “usou-se o termo ‘business-to-business’ pela primeira vez por volta de 1985. Referia-se ao marketing de empresas do setor industrial. Depois passou a designar genericamente empresas que faziam negócios com empresas. O nome, então, assume uma forma mais simpática, ‘B-to-B’ [...]. Por volta de 1998, com o início da consolidação dos marketplaces na Internet, a sigla passou a ser conhecida como ‘B2B’; nome mais ‘internético’ hão ha!” (FERREIRA, Ricardo. Comunicação Business-toBusiness: como empresas que servem empresas podem tornar seus cliclos de vendas mais eficientes. Associação Brasileira de Marketing Direto [artigos on-line]. São Paulo, 28 de maio de 2002. Disponível 24 É sabido que o sistema de produção de bens e serviços em série auto-sustenta-se na medida em que corresponda a uma distribuição ágil e capilar. Do ponto-de-vista econômico, o escoamento de uma produção cada vez mais abundante e especializada desenvolve-se mediante requintados métodos de comercialização, amparados por técnicas não menos sofisticadas de marketing, cuja finalidade indisfarçável é incitar a massa ingente de consumidores a adquirir cada dia mais utilidades, garantindo, assim, o necessário dinamismo ao sistema. Em termos jurídicos, esse processo de distribuição em larga escala desdobra-se na celebração impessoal e massificada de inúmeros contratos padronizados, quer entre os integrantes da cadeia de fornecimento, quer entre estes e o público consumidor. Nesse contexto, não é difícil compreender que os contratos B2C reclamam uma formação instantânea, por vezes automática, visto não haver tempo para se discutir as condições de cada negócio em particular. Daí a proliferação dos contratos de adesão. Em posição diametralmente oposta situa-se o segundo procedimento formativo. Trata-se da formação progressiva daqueles contratos que se inserem no âmbito das relações B2B, que envolvem elevados valores econômicos e uma complexidade de conteúdo razoável, tais como a incorporação ou fusão de sociedades empresárias, a emissão de cédulas de crédito bancário em favor de instituição financeira com lastro na securitização dos recebíveis que serão gerados pelo próprio empreendimento no qual o empresário deve investir o capital que lhe foi adiantado pelo Banco, o consócio entre empreiteiras sob as mais variadas formatações contratuais para a construção de obras de infra-estrutura, tais como barragens hidrelétricas, plataformas de petróleo, ferrovias, etc. Enfim, todos os negócios que demandam demorada apuração de dados ou investigações técnicas. A conclusão de contratos deste porte é precedida via de regra por negociações complexas e onerosas, o que pode inclusive suscitar importantes questões jurídicas, como a responsabilidade pelo rompimento injustificado das tratativas. em: <http://www.abemd.com.br/materias_conteudo.asp?coddocumento=390>. Acesso em: 09 mar. 2006). Bastou pouco para a inventividade humana criar as irmãs “Business-to-Consumer” e “Person-to-Person”, com suas respectivas siglas “B2C” e “P2P”. 25 Pois bem. Visando delimitar o objeto de investigação desta tese, passo a fazer uma breve análise comparativa desses dois procedimentos de formação do contrato. 2. Formação progressiva: as tratativas contratuais 2.1. Gênese Um dos aspectos mais belos do fenômeno contratual reside na circunstância de que a maioria de suas figuras não são concebidas a priori pelo legislador ou pela mente de algum engenhoso jurista, e em seguida implantadas à força no seio de uma sociedade. Não. Ao direito contratual, muito mais que a qualquer outro capítulo do direito privado, aplica-se a assertiva de que a vida precede o direito, o fato precede a norma. Num primeiro momento, as espécies contratuais surgem naturalmente, como instrumentos práticos criados por pessoas comuns visando à satisfação de suas necessidades morais ou econômicas30. A regulamentação jurídica é posterior, tanto mais próxima à gênese desses instrumentos quanto maior o grau de relevância sócio-econômica de que se revestem. Admitida tal realidade, não é difícil compreender que as negociações que antecedem a celebração de um contrato – prática que se convencionou denominar “tratativas” ou “negociações preliminares” – participam também dessa peculiar característica. Nascem espontaneamente na trama cotidiana do relacionamento social, representando antes de tudo um fato: nem o legislador, nem a jurisprudência, tampouco a doutrina o idealizaram. 26 Na verdade, as tratativas decorrem da natureza racional do ser humano. A vontade do homem, quando verdadeiramente livre, somente se inclina a determinado objeto após a inteligência ponderar a sua razão de conveniência. Embora a literatura contratual seja rica em descrições acerca das tratativas, parece-me que esse fundamento antropológico tem sido pouco explorado pela doutrina, desperdiçando-se, desse modo, um importante elemento de interpretação do fenômeno. Ora, se o vínculo contratual nasce do encontro de pelo menos duas declarações de vontade congruentes, que convergem para o mesmo objeto, as tratativas correspondem justamente a essa ponderação racional sobre o objeto do contrato in fieri. Durante a fase das negociações preliminares, os interessados se aproximam, sondamse reciprocamente, manifestam as suas intenções, estudam e discutem o conteúdo da operação econômica que almejam estabelecer. Assim, as tratativas constituem um procedimento informal de troca de propostas e contrapropostas entre os interessados acerca dos elementos ou cláusulas do contrato que pretendem constituir, procedimento que pode ou não desaguar no consenso, conforme as partes verifiquem, ao final, que o contrato realmente lhes convém. Cumprem, desse modo, uma função preparatória do consentimento das partes à conclusão de um contrato. Sendo, as tratativas, uma instituição que brota naturalmente no seio da sociedade, um fato social, a pergunta que se impõe, desde logo, é a seguinte: até que ponto o ordenamento jurídico recepciona esse fato e o converte em jurídico, atribuindo-lhe determinados efeitos? Seriam, as tratativas, simples relação de fato, irrelevante para o direito, ou constituiriam verdadeira e própria relação jurídica, portadora de conseqüências específicas para as partes? 30 Cf. MESSINEO, Francesco. Dottrina generale del contratto. 3. ed. Milano: Giuffrè, 1948. p. 19-20. 27 2.2. Limites Costuma-se dizer que as tratativas se desenvolvem através de um iter tanto mais longo e trabalhoso quanto maior a complexidade do conteúdo contratual31. Essa fase preliminar inicia-se quando os interessados manifestam uma vontade firme de tratar e põem-se em relação de negociação tendente a desenhar o conteúdo e as condições do futuro contrato32. Embora não exista texto legal a estabelecer um critério capaz de determinar com precisão o início das tratativas, o direito se interessa indiretamente e a posteriori por esse momento, em função da necessidade de se apurar, em certos casos, a responsabilidade por comportamentos lesivos de uma parte em relação à outra verificados durante este período vestibular33. Com relação ao termo final das tratativas, as legislações de alguns países se esforçam por determinar o momento em que se verifica a passagem da fase pré para a contratual propriamente dita. Assim, o § 154 do BGB estabelece que “enquanto as partes não acordarem sobre todos os pontos de um contrato sobre os quais, segundo a declaração ainda que de uma só delas, deve haver acordo, o contrato, na dúvida, não se tem por concluído”. No mesmo sentido se orienta o art. 232 do Código Civil português de 1966 (CCpt1966) segundo o qual “o contrato não fica concluído enquanto as partes não houverem acordado em todas as cláusulas sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo”. Caminho diverso foi seguido pelo Código das Obrigações suíço (CSO), art. 2º, que assim estabeleceu: “Se as partes estão de acordo sobre todos os pontos essenciais, o contrato é reputado concluído, mesmo que haja reserva sobre os pontos secundários. Na 31 Cf. FERRI, Giovanni B. op. cit., p. 188. 32 Cf. SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de direito civil: fontes das obrigações: contratos. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1991. v. 4, p. 74. 33 Cf. MOUSSERON, Jean Marc. Technique contratuelle. Paris: Lefebvre, 1988. p. 28. 28 falta de acordo sobre os pontos secundários, o juiz os regulará, levando em conta a natureza do negócio”. Nos países em que não há texto de lei expresso sobre o assunto, como na Itália por exemplo, doutrina e jurisprudência inclinaram-se num primeiro momento para a orientação do art. 2º do CSO, de modo a entender que o contrato se aperfeiçoaria quando as partes atingem o acordo sobre os elementos essenciais da espécie contratual, devendo-se entender, como tais, não apenas os elementos abstratamente considerados pela doutrina (isto é, os relativos à fattispecie contratual), mas também aqueles que, sendo abstratamente acessórios” ou secundários, possuem no caso concreto, um valor e um alcance essenciais para as partes. Tal entendimento não passou incólume às criticas de alguns juristas, como GIUSEPPE OSTI34 e GIOVANNI FERRI35, defendendo, este último, a tese de que “em sede de formação do contrato, não se pode distinguir entre elementos essenciais, menos essenciais ou marginais. O acordo que dá vida ao contrato deve abranger todos os pontos trazidos à discussão entre as partes e deve ser necessariamente sustentado pela vontade de concluir o contrato; deve ser manifestação do animus contrahendi da partes. O acordo sobre cada ponto não é suficiente para realizar a formação do contrato, se não é expressão e manifestação desse animus”36. A partir dessas críticas, a jurisprudência da Corte di Cassazione, na Itália, passou a firmar o entendimento segundo o qual “um contrato pode se considerar validamente concluído somente quando as partes tenham atingido o acordo sobre todos os elementos que concorrem a formá-lo, sejam eles essenciais ou acidentais, principais ou 34 Cf. OSTI, Giuseppe. Contratto. In: AZARA, Antonio; EULA, Ernesto (Coords.). Novissimo digesto italiano, cit., 1959. v. 4, p. 513. 35 Cf. FERRI, Giovanni B. op. cit., p.188. 36 Id., Ibid., p. 203 (destaquei). 29 secundários, salvo o caso de as próprias partes terem inequivocamente negado valor a outros elementos do regulamento de interesses” 37. No Brasil, onde a lei também é omissa quanto ao critério de determinação do termo final das tratativas e início do contrato, a doutrina dominante vem seguindo a orientação do BGB, e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sufragou esse posicionamento, no célebre acórdão prolatado em 1979 perante o emblemático caso entre DISTRIBUIDORA DE COMESTÍVEIS DISCO S.A. e SUPERMERCADOS PÃO DE AÇÚCAR S.A. Com efeito, essas empresas travaram negociações preliminares com vistas à realização de um contrato de compra-e-venda de ações para a transferência do controle acionário da DISCO. As tratativas foram registradas por escrito num documento intitulado “contrato preliminar para a compra-e-venda de ações”. Fixou-se ali o prazo de 30 dias para a apuração da efetiva situação patrimonial líqüida da DISCO. No entanto, durante esse período, as partes se desentenderam quanto à concretização de algumas cláusulas constantes do referido documento, suscitando o debate em sede judicial sobre a natureza jurídica do ato praticado: simples tratativas, contrato preliminar ou contrato definitivo? 38 O relator do referido acórdão, o então ministro JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, resumiu a questão fundamental que se discutia nos autos da seguinte forma: “Se no curso das negociações as partes acordam sobre os elementos essenciais do contrato, deixando, porém, para momento posterior (o da celebração do contrato definitivo), a solução de questões relativas a elementos acidentais e reduzem tudo isso a escrito, esse documento caracteriza um contrato preliminar (e, portanto, obrigatório para ambas), ou não passa, mesmo no que diz respeito aos pontos principais já considerados irretratáveis, de mera 37 ITÁLIA. Corte di cassazione. Civ., sez. 3, 10 octt. 1975, n. 3252. In: DUBOLINO, Pietro; BARTOLINI, Francesco (Coords.). Il Codice Civile commentato con la giurisprudenza. Piacenza: La Tribuna, 1992. p. 1.138 (destaquei). 38 Ver excelente comentário sobre este acórdão em: FERNANDES, Wanderley. Formação de contrato preliminar suscetível de adjudicação compulsória. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 29, n. 80, p. 76-133, out./dez. 1990. 30 minuta (ou punctação), sem caráter vinculativo de contrato preliminar, e, conseqüentemente, insuscetível de adjudicação compulsória” 39. Depois de acurado estudo de direito comparado, MOREIRA ALVES concluiu que no direito brasileiro “só se forma o vínculo contratual (preliminar ou definitivo) quando as partes chegam a acordo sobre todas as cláusulas que devem constar no contrato, sejam elas relativas aos denominados elementos essenciais da espécie contratual a que se referem, sejam elas referentes aos chamados elementos acidentais do contrato, ambos objetivamente considerados. Se no curso das negociações as partes concordam quanto a certos pontos, mas deixam em aberto outros, ainda que em documento escrito, e estabelecem a irretratabilidade quanto aos pontos já acertados e declaram que os demais serão objeto de acordo posterior, o contrato preliminar ou definitivo somente surgirá no momento em que houver a concordância sobre estes [pontos], completando-se, assim, o acordo sobre o conteúdo global do contrato. Enquanto esse acordo posterior não ocorrer, continua-se no terreno das tratativas, não sendo permitido, porém, a qualquer das partes, isoladamente, se quiser vir a celebrar o contrato, desrespeitar o acordo sobre os pontos já acertados, sendo certo, por outro lado, que, no momento em que ocorrer a concordância sobre as cláusulas em discussão, o contrato, independentemente de ratificação do acordo parcial, se reputa aperfeiçoado, vinculando-se as partes ao seu adimplemento. Não se admite, em nosso sistema jurídico, ao contrário do que ocorre no direito suíço e no direito austríaco, por exemplo, que o juiz se substitua às partes para preencher os pontos em branco sobre os quais elas, apesar das negociações posteriores à minuta, não chegaram a acordo”40. Todavia, se do ponto-de-vista teórico e abstrato esse critério de verificação da existência de um acordo sobre todos os pontos trazidos à discussão pelas partes pode ser válido, não elimina, esse critério, as dificuldades práticas de determinação precisa do final das tratativas e início da fase contratual, em face de uma negociação concretamente considerada. 39 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário n. 88.716-RJ. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 80, p. 96, out./dez. 1990. 31 Assiste razão a FRANCESCO MESSINEO quando escreveu que “estabelecer se os interessados se encontram ainda na fase das tratativas, ou se já atingiram um acordo, como evento conclusivo do procedimento de formação do contrato, é mera ‘questão de fato’; não se podem dar, a respeito, critérios técnicos seguros, sendo necessário avaliar a vontade das partes e interpretar caso por caso”41. Nesse sentido, observa com propriedade JEAN MARC MOUSSERON que a expressão “encerramento das negociações” sugere o traçado de uma linha nítida, a designação de um momento preciso em que o tempo das negociações termina para dar lugar ou ao nada do rompimento das tratativas, ou ao tudo do acordo contratual. Na realidade, muitas vezes as coisas se passam de modo diferente. Encontramo-nos dentro de uma zona cinzenta, em que não é possível distinguir com clareza se estamos ou não na presença de um contrato42. Seguindo a mesma linha de raciocínio, RENATO SPECIALE observa que, em função da complexidade das novas técnicas de contratação, em matéria de formação progressiva do contrato há uma tendência a se atenuar a cisão entre a fase das tratativas e a conclusão do contrato em favor de uma espécie de continuum, que torna mais complexo o trabalho do intérprete. Desse modo, vai-se delineando na doutrina e na jurisprudência o abandono da colocação da temática relativa à formação do contrato excessivamente limitada às rígidas alternativas contrato/não-contrato, cedendo lugar a uma visão mais articulada do fenômeno43. Mas como a casuística contratual é muito mais vasta e rica que os critérios de classificação idealizados pela doutrina, não raro as partes – como há muito observou GIOVANNI CARRARA – “depois de haverem formulado por escrito os acordos sobrevindos no período das tratativas, sobre toda a matéria do contrato em formação, podem submeter 40 Cf. Id. Ibid., p. 103 (destaquei). 41 MESSINEO, Francesco. Contratto. Diritto privato. Teoria generale. In: Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, v. 9, p. 785-978, 1961. p. 846-847. 42 Cf. MOUSSERON, Jean Marc. op. cit., p. 83. 43 Cf. SPECIALE, Renato. Contratti preliminari e intese precontrattuali. Milano: Giuffrè, 1990. p. 218-219 e 261. 32 as suas vontades ao projeto formulado. Sob a iniciativa de uma das partes, a qual tornará próprio tal projeto e o proporá à aceitação da outra, constituir-se-á o consenso necessário para dar vida ao contrato” 44. Nesse sentido, escreveu ANTOINE VIALARD, muitos anos depois, que “ocorra, ou não, as negociações preliminares, sempre é uma das partes que toma a iniciativa de formular a outra, em determinado momento, a proposta de celebrar determinado contrato [...]. Se nem sempre as negociações preliminares existem, a oferta de contrato, ao contrário, é uma fase pré-contratual indispensável [...]. Na formação de todo contrato sempre um dos contratantes assume o papel de policitante (às vezes, cada um deles, alternativamente)” 45. Precisamente a oferta contratual – essa pequena e intrigante figura jurídica, que há muito despertou em mim inquietações e perplexidades – é que escolhi para tratar neste trabalho de doutoramento, sobretudo a oferta ao público e sua interface cada vez mais estreita com o fenômeno da publicidade comercial. Passo a tangenciá-la. 3. Formação instantânea: o intercâmbio entre proposta e aceitação de contrato A troca de propostas e aceitações entre pessoas predeterminadas é a mais tradicional das técnicas de formação do contrato, e talvez por isso mesmo seja objeto do direito positivo da quase totalidade dos países de direito codificado. Aliás, o conceito “proposta de contrato” e a identificação de quais sejam os seus elementos estruturais não é questão jurídica que ofereça hoje maiores dificuldades, reinando neste particular verdadeira harmonia entre os direitos da Família de Direito Romano-Germânica. 44 CARRARA, Giovanni. op. cit., p. 18-19. 33 Com efeito, na Itália, ainda permanece atual a sintética definição de MESSINEO segundo a qual a proposta de contrato é “manifestação de vontade proveniente de um sujeito (proponente ou ofertante) capaz de contratar, endereçada a um destinatário, igualmente capaz (oblato)” 46, bem assim a irretocável e exaustiva definição de GIUSEPPE TAMBURRINO, para quem a “proposta é a declaração de um contraente dirigida a outro, convidando-o a com ele concluir determinado contrato, devendo emitir-se, tal declaração, com a intenção de vincular-se pelo contrato proposto, e ser completa, no sentido de que deve conter todas as cláusulas essenciais ou fundamentais (principais e acessórias) que a parte quer inserida no futuro contrato, de tal modo que, se faltar qualquer cláusula, não se está diante de uma proposta em sentido técnico, mas de mero ato preparatório de um eventual contrato”47. Substancialmente coincidentes são as formulações conceituais da doutrina alemã, como a de WERNER FLUME por exemplo, para quem a proposta de contrato é “declaração de vontade unilateral e receptícia [...] direcionada à conclusão do contrato e à definição do regramento jurídico que regerá a atuação das partes” 48, o que por sua vez não destoa das definições elaboradas por juristas mais antigos como ANDREAS VON THUR49 e LUDWIG ENNECCERUS50. 45 VIALARD, Antoine. L’offre publique de contrat. Revue Trimestrielle de Droit Civil, Paris, n. 4, p. 750-791, oct./déc., 1971, p. 752 (destaquei). 46 MESSINEO, Francesco. Contratto. Diritto privato. Teoria generale, cit., p. 850-851. 47 TAMBURRINO, Giuseppe. I vincoli unilaterali nella formazione progressiva del contratto. 2. ed. Milano: Giuffrè, 1991. p. 15. 48 FLUME, Werner. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts. 4. Aufl. Berlin: Springer, 1992. Bd. 2. Das Rechtsgeschäft, § 35, I, 1, p. 635. 49 “A oferta é uma declaração de vontade pela qual uma pessoa propõe a outra a conclusão de um contrato, de tal sorte que a perfeição deste depende unicamente do consentimento desta” (THUR, Andreas von. Derecho civil. Teoria general del derecho civil aleman. [Trad. por Tito Ravà de “Allgemeine Teil des deutschen Bürgerlichen Rechts”]. Buenos Aires: Depalma, 1947. v. 2, t. 2, § 62, II, p. 139). 50 “A oferta é uma proposição unilateral que uma das partes dirige à outra para celebrar com ela um contrato. Não é um ato preparatório do contrato, mas uma das declarações contratuais. Assim, pois, só há oferta quando o contrato pode constituir-se só com a aceitação da outra parte, sem necessidade de uma ulterior declaração do que fez a oferta” (ENNECCERUS, Ludwig; NIPPERDEY, Hans Carl. Derecho civil: parte general [Trad. da 30. ed. de Lehrbuch des Bürgerlichen Rechts, por Blas Pérez Gonzáles e José Alguer, atualizada por Eduarto Valentí Fiol]. 3. ed. Barcelona: Bosch, 1981. § 161, I, p. 253: itálicos do original). 34 Com elegância, mas sem perder a precisão jurídica, JEAN-LUC AUBERT, na França, escreveu que a proposta de contrato é “uma prefiguração da situação contratual vindoura [...] feita pelo proponente, expondo tanto as obrigações que pretende assumir quanto as que ficariam a cargo de seu parceiro, indicando, assim, o contexto dentro do qual tem a firme vontade de se vincular”51, e JACQUES GHESTIN, mais objetivo, diz que a proposta é “manifestação de vontade unilateral através da qual uma pessoa dá a conhecer sua intenção de contratar e as condições essenciais do contrato” 52 . Entre nós, PONTES DE MIRANDA, após definir a oferta como “manifestação unilateral de vontade, destinada a composição de negócio jurídico bilateral” 53, acrescentou que sua função “é a de ser anterior à aceitação, dá a conhecer o que seria o conteúdo do negócio jurídico ou plurilateral [...]. A função da oferta é suscitar a composição do negócio jurídico bilateral” 54 . ORLANDO GOMES, por sua vez, consignou definição mais completa ao escrever que a “proposta é a firme declaração receptícia de vontade dirigida à pessoa com a qual pretende alguém celebrar um contrato, ou ao público. Para valer, é preciso ser formulada em termos que a aceitação do destinatário baste à conclusão do contrato. Não deve ficar na dependência de nova manifestação da vontade, pois a oferta, condicionada a ulterior declaração do proponente, proposta não é no sentido técnico da palavra. Exige-se que seja inequívoca, precisa e completa, isto é, determinada de tal sorte que, em virtude da aceitação, se possa obter o acordo sobre a totalidade do contrato. Deve conter, portanto, todas as cláusulas essenciais, de modo que o consentimento do oblato implique a formação do contrato” 55. 51 AUBERT, Jean-Luc. Notions et roles de l’offre e de l’acceptation dans la formation du contrat. Paris: LGDJ, 1970, p. 14. 52 GHESTIN, Jacques. Traité de droit civil – la formation du contrat. 3. éd. Paris: LGDJ, 1993. § 292, p. 260. 53 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, cit., 1954, t. 3, § 278, p. 138. 54 Id. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962. t. 38, § 4189, p. 27. 35 Digno de menção privilegiada é o insight de RICARDO LUIS LORENZETTI, na Argentina, ao propor uma reconstrução conceitual da oferta e da aceitação baseada nos conceitos de aparência e confiança, respectivamente. Segundo o Autor – e reproduzindo neste passo as suas palavras quase textualmente – o sistema informático, a rede global, a economia da informação são “sistemas especializados”56, qualificáveis como sistemas de execução técnica ou profissional que organizam grandes áreas do entorno material e social em que vivemos. O sistema é inextrincável porque a complexidade técnica que apresenta é esmagadora; é anônimo porque não se pode conhecer o dono nem o responsável. Diante desse fenômeno, as condutas de empresários e consumidores mudam substancialmente, afastando-se dos modelos tradicionais de eleição racional que inspiraram as legislações codificadas. Assim, por exemplo, o consumidor ou usuário atual poderia ser considerado negligente se lhe fosse aplicado o standard contratual clássico, porque os testes que realiza para comprovar a veracidade dos dados fornecidos antes de contratar são insignificantes, se é que chega a realizar efetivamente algum teste. O consumidor atua com base num conhecimento indutivo e débil. Não se trata de negligência de sua parte, mas de uma necessidade: se tivesse que analisar racionalmente cada ato, seria impossível viver e os custos de transação seriam altíssimos. A conduta individual tende à simplificação, reduzindo estes custos e o esgotamento psicológico que significaria pretender entender cada um dos sistemas com os quais nos relacionamos diariamente. Uma pessoa racionalmente orientada não poderia viver, porque deveria solicitar informações sobre cada sistema, conhecê-lo, para somente depois atuar. Nesse contexto, os modelos de comportamento racional e os standards de contratante médio obrigam a reformular noções: a conduta do indivíduo baseia-se na confiança, que por sua vez se forma sobre a aparência criada pelo sistema especializado. Nessas hipóteses, tanto o consentimento quanto a adesão resultam conceitos insuficientes, porque “há imputações de efeitos 55 GOMES, Orlando. Contratos. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987. § 37, p. 65. 56 LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos: parte general. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2004, p. 278. 36 jurídicos que não estão conectados a uma declaração de vontade, senão a comportamentos objetivos aos quais o ordenamento adjudica conseqüências”57. Todavia, penso que este pensamento de LORENZETTI não constitui uma ruptura da linha conceitual tradicional quanto à proposta de contrato, pelo menos no estágio em que se encontra desenvolvido. Com efeito, lendo o seu “Tratado de los Contratos”, tenho a impressão de que as idéias ali consignadas representam por enquanto apenas um ensaio, que certamente merecerá do Autor um desenvolvimento posterior. 57 Id. Ibid., p. 278-280. 37 CAPÍTULO 3: ORIGENS DO PRINCÍPIO DA IRREVOGABILIDADE DA PROPOSTA 1. A Alemanha na contramão do Direito Comum Europeu Contrariando a tradição do direito comum europeu, haurida ao longo de séculos de estudo do direito romano estratificado no Corpus Iuris Civilis de Justiniano, a Alemanha adotou o princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato em 1896, ao estabelecer no § 145 do BGB que “aquele que propõe a outro a conclusão de um contrato fica 58 vinculado à proposta, a não ser que tenha excluído a vinculação” . Deveras, em ampla pesquisa histórica, GIOVANNI CARRARA demonstrou que, segundo o direito romano e o direito comum europeu, até a perfeição do contrato, isto é, até o momento em que a declaração de aceitação chega ao proponente, este poderia revogar a proposta de contrato. A tradição européia era absolutamente contrária à irrevogabilidade da proposta de contrato, e a questão nem poderia ter nascido antes de que se reconhecesse força obrigatória aos simples pacta, destituídos das causae admitidas pelo 59 direito romano antigo . A vinculatividade dos nuda pacta 60 só veio a ser proclamada pela 61 Escola do Direito Natural e pela Escola Holandesa . 58 Destaquei. 59 Sobre o conceito jurídico de “causa” no direito romano, vide: D’ORS, J. A. Derecho privado romano. 8 ed. Pamplona: EUNSA, 1991, § 170, p. 222-225. Especificamente sobre a “causa do contrato”, escreveu o romanista: “[...] convem ter presente que o contrato não tem ‘uma’ causa, senão duas, pois o contrato se compõe de duas promessas interdependentes, cada uma das quais funciona como causa da outra. Quando se quer identificar uma causa única no ocntrato, incide-se inevitavelmente numa ‘causa’ que não é jurídica, senão social-econômica: o fim de cada contrato” (Id., ibid., § 460, nota 3, p. 516). Grosso modo, no direito romano primivito, as causae que atribuiam “força obrigacional” aos pacta (i) a prática das formalidades prescritas, nos “contrato formais” (“nexum” e “stipulatio”) e (ii) a entrega da res à contraparte, nos “contratos reais” (mútuo, depósito, comodado e penhor). 60 “Nuda pactio”: assim denominava-se no direito romano o pacto destituído de causa. 61 Cf. CARRARA, Giovanni. op. cit., p. 146-147. 38 A idéia de que uma vez excluída a vinculatividade dos pactos não se poderia admitir, por decorrência lógica, a vinculatividade da simples proposta de contrato foi bem 62 salientada por HUGO DONELLO . Mesmo depois de reconhecida a força obrigatória dos nuda pacta, a vinculatividade da proposta de contrato foi terminantemente negada no direito comum europeu. Pela 63 64 Escola Holandesa, CARRARA menciona VOET , e pela Escola do Direito Natural LESSIO , lembrando que os primeiros pandectistas alemães como PUCHTA, VANGEROW e REGELSBERGER mantiveram-se fiéis a esta doutrina65. O princípio da revogabilidade da proposta de contrato foi conservado pelos ordenamentos jurídicos de países como a Inglaterra, França e Itália, permanecendo em vigor até os dias de hoje. 62 “Nemo privatus pollicendo se quid privato praestiturum pollicitatione obligatur. Certi enim juris est ex pacto actionem nasci. Quanto minus ex pollicitatione; quae hoc minus continet quam pactum, quod pactum habet duorum consensum; pollicitatio unius tantum offerentis voluntatem?” [É coisa certa que dos pactos não nasce qualquer ação. Por maioria de razão, também não poderia derivar ação da simples proposta de contrato, que é menos que o pacto, pois enquanto este envolve o consenso das partes, aquela contém somente a vontade do proponente]. HUGONIS DONELLI, Opera omnia. Commentariorum de iure civili, tomus tertuis, Maceratae MDCCCXXIX, cap. V, n. III, p. 463. Apud CARRARA, Giovanni. op. cit., p. 147, nota 23. 63 “Pollicitatio est solius offerentis promissio; distans a pacto in eo, quod pactum sit duorum consensus atque conventio, nec inter praesentes tantum, sed et inter absentes per epistolam interponi possit. Cum ex adverso pollicitatio per espistolam facta, obligatoria non sit” [A proposta é somente uma promessa do proponente. Difere do pacto porque, enquanto este envolve o consenso entre duas pessoas, aquela contém apenas a vontade de uma pessoa] (VOET. Commentarius ad Pandectas, tomo II, lb. 50, ti. XII (De pollicitationibus), n. 1, p. 1177. Apud CARRARA, Giovanni. op. cit., p. 147, nota 23 bis). Depois de haver definido a “pollicitatio” como uma simples proposta – distinguindo-a do “pacto” –, VOET afirma que também os efeitos são diversos, porque enquanto o pacto pode se concluir entre ausentes por meio de correspondência – e uma vez assim concluído, constitui-se juridicamente, obrigando as partes – a simples policitação feita por meio de correspondência não produz nenhum vínculo para o seu autor (cf. Id., loc. cit.). 64 “Promissionem ante acceptationem ordinarie nullam parere obligationem naturalem aut civilem: es comunis sententia doctorum texte Gomezio, to.2, c. 2, n. 1; et patet L, 1 ff., de pollicit. – Idem dicendum est de donatione, ecc. unde sequitur ante nisi mutuo duorum consensu, quare priusquam alterius consensus accedta, prior potest penitere et suam oblationem revocare” [A proposta, antes da aceitação, não produz ordinariamente nenhuma obrigação natural, tampouco civil. O vínculo não surge senão por efeito do consenso das partes, e antes que a segunda vontade se una à primeira e dê vida à convenção, o autor da primeira tem a faculdade de se arrepender e retirar a sua proposta]. 65 Cf. CARRARA, Giovanni. op. cit., p. 147-148. 39 No final do século XIX, porém, consoante anotou FLUME, a Alemanha decidiu aderir às disposições dos parágrafos 90 e 103 do “Allgemeines Landrecht für die Preussischen Staaten” (ALR – Código Civil prussiano de 1794), do art. 319 do “Allgemeines Deutsches Handelsgesetzbuch” (ADHGB – Código de Comércio alemão de 1861), bem assim do § 862 do “Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch für Österreich” 66 (ABGB – Código Civil austríaco) . Essa decisão, de certa forma inusitada para a época, explica-se parcialmente pelo fato de que, a partir de meados do século XIX, a doutrina jurídica alemã começou a questionar o direito do proponente à livre revogação da proposta de contrato, às custas da frustração do legítimo “interesse de confiança” (Vertrauensinteresse) que esta geralmente desperta na pessoa do oblato67. A questão culminou por volta de 1888, quando a comissão dirigida por PAPE – então Presidente do Tribunal Superior do Comércio alemão – e integrada por juristas de calibre como BERNHARD WINDSCHEID e GOTTLIEB PLANCK, dentre outros, apresentou o primeiro anteprojeto de Código Civil para vigorar em todos os territórios germânicos, então recém-unificados pela constituição do Império alemão, anteprojeto que foi publicado em 1888 sob a forma de “Motive” 68. 66 Cf. FLUME, Werner. op. cit., § 35, p. 640, nota 64. 67 Cf. FLUME, Werner. op. cit., § 35, p. 640. 68 Antes disso, assistia-se na Alemanha a uma verdadeira fragmentação legislativa. Apenas o ADHGB de 1861 e uma lei sobre títulos de crédito eram comuns a todos os territórios. O direito civil não. Na Prussia, vigorava um código civil geral do Estado. Nos territórios à esquerda do rio Reno e em Baden tinha força de lei o Code Civil francês. Na Saxônia, havia um “código civil” desde 1865; a Bavária também tinha a sua própria codificação. Nos principados em que não havia um “código”, vigorava o chamado “direito comum”, fundado sobre o direito romano justinianeu, que a partir do século XV começou a ser “recepcionado” nestes territórios. Essa fragmentação legislativa, sobretudo após o advento da revolução industrial, prejudicava sensivelmente o comércio praticado entre as províncias alemãs por intermédio das ferrovias. Daí ganhar corpo, sobretudo após a unificação política, a idéia de um código comum para todo o Império da Alemanha. 40 No que tange especificamente à proposta de contrato, os Motive adotaram expressamente o princípio da irrevogabilidade, nos termos do citado § 145 do BGB, em vigor até os dias de hoje. 2. A irrevogabilidade da proposta nos Motive do BGB Constam expressamente dos Motive as razões que induziram a COMISSÃO PAPE a pender para o princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato. Em primeiro lugar, ponderou-se que a vinculatividade da proposta de contrato era uma exigência do comércio. Feita uma proposta a alguém, o oblato tem a necessidade de confiar em que, com a aceitação tempestiva, ele poderá dar nascimento ao contrato proposto. O oblato necessita de referências firmes e seguras para poder decidir. Dependendo das circunstâncias negociais, inclusive, tem de tomar certas providências rapidamente; com freqüência, o oblato deixa não apenas de aceitar outras propostas, como também de fazer, ele mesmo, as suas. Em muitos casos, se fosse permitido ao proponente revogar a sua proposta antes da aceitação, o oblato sofreria injustos prejuízos69. No âmbito do direito comum europeu, imaginava-se compensar satisfatoriamente o oblato do risco de ver revogada a proposta pelo proponente imputando-se a este o dever de indenizar eventuais prejuízos daquele. Todavia – lê-se nos Motive – “o comércio exige uma transação negocial rápida e eficiente; a experiência demonstra que a referência a uma obrigação indenizatória tem o condão de gerar processos judiciais nefastos e de resultados incertos, o que exerce um efeito paralisante sobre o comércio”70 . O segundo motivo que norteou a COMISSÃO PAPE foi a consideração de que a vinculatividade da proposta corresponde à intenção normal e presumível do proponente. Isso se evidencia naqueles casos em que ele próprio estabelece um prazo para o oblato 69 Cf. DEUTSCHES REICH. Motive zu dem Entwurfe eines Bürgerlichen Gesetzbuches für das Deutsche Reich. Amtliche Ausgabe. Berlin-Leipzig: J. Guttentag, 1888. Band I: Allgemeiner Teil, § 80, p. 165. 70 Id. Ibid., § 80, p. 166-167. 41 responder, o que tem não apenas o significado de uma limitação temporal, como também de que o próprio policitante “amarra suas mãos durante este período”71, isto é, vincula-se. Se isso é absolutamente claro nas hipóteses em que o proponente fixa expressamente um prazo à aceitação, também não deixa de sê-lo nos casos em que ele não o faz. É que a proposta, por definição, tem por escopo provocar a aceitação do oblato, de modo que o proponente deve necessariamente querer que a contraparte disponha de um tempo mínimo para refletir e eventualmente manifestar a aceitação72. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, argumenta-se, ainda, nos Motive, que as mesmas legislações que adotaram o princípio da revogabilidade da proposta estabelecem que, quando o proponente fixa um prazo para o oblato responder, a proposta não pode ser revogada enquanto o prazo não expirar. Se assim é, então por que não reconhecer a existência de um prazo implícito em qualquer proposta de contrato, de duração proporcional às circunstâncias negociais concretas, durante o qual o proponente não pode revogar a proposta? 73 Pondera-se, por fim, nos Motive, que certamente há razões que desaconselhariam a adoção do princípio da irrevogabilidade da proposta. Há ocasiões, por exemplo, em que o oblato, aproveitando-se de uma alteração das circunstâncias fáticas ocorrida no período que medeia a emissão da proposta e a expedição da aceitação, poderia especular às custas do proponente. Todavia, além de tal risco ser insignificante, o proponente poderia evitá-lo excluindo expressamente qualquer vinculação à sua proposta74. O fato é que até o momento da publicação dos Motive – e mesmo depois, quando um segundo projeto foi publicado por MUGDAN em 1895 – teceram-se ásperas críticas ao 71 Id. Ibid., § 80, p. 165. 72 Id. Ibid., § 80, p. 166. 73 Cf. Id., loc. cit. 74 Id. Ibid., § 80, p. 167. 42 princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato, tendo HOLDER se destacado dentre os principais opositores75. Malgrado a virulência das críticas, o princípio foi acolhido e definitivamente consagrado no citado § 145 do BGB. Pouco tempo depois, do outro lado do Oceano Atlântico, encontrava-se CLOVIS BEVILAQUA a redigir o seu “Projeto de Código Civil”, quando certamente lhe chegou essa importante notícia legislativa. Parece que a idéia o seduziu completamente, a ponto de adotá-la em termos muito semelhantes aos preconizados pelo legislador alemão, tanto que inseriu no seu Projeto a disposição que se veio a converter posteriormente no bemconhecido art. 1080 do Código Civil de 1916. * * * * * Com essa rápida incursão pelos direitos de alguns países de civil law, minha intenção foi demonstrar que, atualmente, em matéria de proposta de contrato, e no âmbito exclusivo do plano da existência, esta figura jurídica goza de certo consenso conceitual. Todavia, quando se passa à análise da proposta de contrato no plano da eficácia – haja vista a convivência, até os dias de hoje, de princípios diametralmente opostos, quais sejam o da revogabilidade (Itália e França, por exemplo) e o da irrevogabilidade da proposta de contrato (Alemanha, Brasil e Portugal) – e, mais ainda, quando se adentra a seara da oferta ao público, não se observa, infelizmente, a mesma harmonia entre os direitos desses mesmos países. 75 Cf. CARRARA, Giovanni. op. cit., p. 149. 43 Daí os desafios subjacentes a este trabalho: (i) no plano da existência, decompor a estrutura da oferta ao público a partir dos elementos constitutivos da proposta de contrato sedimentados pela doutrina; (ii) no plano da eficácia, e abrangendo ambas as modalidades de oferta contratual, confrontar as diferenças normativas entre os direitos dos países de civil law e, a partir desta comparação, identificar o seu regime jurídico no direito brasileiro; (iii) diferençar a oferta ao público do princípio da integração publicitária do contrato. Isto posto, creio ter não apenas introduzido o tema desta tese como também delimitado suficientemente o seu objeto. 44 PARTE II: OFERTA CONTRATUAL NO PLANO DA EXISTÊNCIA 45 SEÇÃO A: ESTRUTURA DA PROPOSTA DE CONTRATO 46 CAPÍTULO 4: REQUISITOS DA PROPOSTA DE CONTRATO 1. Requisitos extrínsecos Se por um lado o legislador alemão de 1896 teve audácia suficiente para adotar o princípio da irrevogabilidade da proposta – seguindo nesse passo, como visto, a contramão do direito comum europeu –, a doutrina posterior ao BGB, por outro lado, não faltou à responsabilidade de definir com precisão os requisitos que devem conter a proposta de contrato para que esta possa deflagrar os seus efeitos vincuntes. Aliás, ao se desincumbir desse mister com singular competência, a dogmática germânica acabou influenciando e servindo de referência segura até para a doutrina jurídica de países como a França e Itália por exemplo, que adotaram o princípio jurídico inverso (revogabilidade). Enumero a seguir, quase que esquematicamente, os requisitos extrínsecos e intrínsecos à declaração de vontade que integra a proposta de contrato, considerados indispensáveis até hoje, na Alemanha, para que esta surta os seus efeitos vinculantes. 1.1. Determinação do destinatário A doutrina da irrevogabilidade subjacente ao § 145 do BGB pautou-se na hipótese mais freqüente – à época da promulgação daquele Código, saliente-se –, em que a proposta de contrato era endereçada a pessoas predeterminadas. A indagação sobre a existência jurídica e a eficácia de propostas de contrato dirigidas ad incertam personam surgiu na Alemanha somente após a promulgação do BGB, indagação que recebeu uma resposta surpreendente da doutrina dominante naquele país – conforme se verá mais adiante. 47 Por ora, basta dizer que a indeterminação originária do destinatário de uma proposta de contrato transmuda esta em oferta ao público, dotada de efeitos jurídicos distintos, sobretudo quanto à sua revogabilidade intrínseca, consoante será oportunamente demonstrado. De qualquer forma, comparando-se os direitos dos países civilizados, incluídos os de common law, percebe-se que inexiste ainda uma uniformidade mínima quanto à admissibilidade da oferta ao público com caráter vinculante. Basta comparar alguns documentos do direito do comércio internacional para comprová-lo. Deveras, enquanto o art. 2:201, n. 2 dos PDEC-LANDO admite expressamente que “a oferta pode dirigir-se a uma ou várias pessoas determinadas ou ao público”, o art. 14, n. 2 da CISG-UNCITRAL estabelece que “toda proposta não dirigida a uma ou várias pessoas determinadas será considerada como um simples convite a fazer ofertas, a menos que a pessoa que faça a proposta indique claramente o contrário”. Já a FCISG-UNIDROIT e os PICC-UNIDROIT são omissos a respeito, o que não deixou de suscitar certo movimento de proposição de emendas ao texto atual76. 1.2. Recepção da proposta Há uma distinção fundamental no direito alemão, que afeta diretamente o regime jurídico da oferta contratual, a saber: (i) empfangsbedürftige Willenserklärungen – declarações de vontade que devem ser emitidas em face de outrem (cf. BGB, §§ 130, 143, al. 3 e 123, al. 2); e 76 Nesse sentido: PERALES VISCASILLAS, Pilar. Formación. In: ALVARADO HERRERA, Lucía et al. Comentario a los principios de UNIDROIT para los contratos del comercio internacional. 2. ed. Navarra: Aranzadi, 2003. p. 116: “Por razões expressas supra 1, quanto aos destinatários da oferta, deveria se incluir uma regra que determinasse qual é o valor das ofertas dirigidas ao público em geral [...]”. 48 (ii) nicht empfangsbedürftige Willenserklärungen – declarações de vontade que não precisam ser emitidas em face de outrem, o que equivale a dizer que são declarações que não exigem um destinatário determinado. Às primeiras, ZITELMANN chamou “declarações receptícias”77, porque o § 130 do BGB, que versa sobre a declaração de vontade endereçada a pessoa ausente, estabeleceu que os efeitos desta têm início com a sua “chegada” (Zugang) ao conhecimento destinatário78. Em contraposição, as declarações de vontade que não exigem o endereçamento a um destinatário determinado chamou-as “declarações não- 79 receptícias” . A crítica de VON THUR a essa terminologia de ZITELMANN, longe de representar uma discussão acadêmica estéril, auxilia a compreensão da ratio desta distinção legal. Segundo este Autor, o vocábulo “receptícia” adotado por ZITELMANN não é o mais adequado, pois a ênfase da expressão legal – “declaração de vontade que deve ser emitida em face de outrem” – está no ato de direcionamento da declaração, e não no recebimento desta. Lembrando exemplo gráfico de OERTMANN, explica VON THUR que não existiria declaração de vontade do autor se, contra a sua vontade – isto é, sem que ele a tenha direcionado ao destinatário – a carta que escreveu é entregue no endereço nela indicado. O termo “receptício” não expressa, pois, o elemento característico desta classe de declarações de vontade, que reside justamente no direcionamento da declaração promovido pelo declarante a um destinatário determinado. Mais apropriado seria dizer 77 Segundo VON THUR (op. cit., § 61, p. 104), a expressão teria sido cunhada por ZITELMANN. 78 BGB, § 130: “Se uma declaração de vontade que se deve dirigir a outrem for emitida na ausência deste, ela se tornará eficaz no momento em que for recebida. Não será eficaz se antes ou simultaneamente chegar ao destinatário a revogação”. 79 THUR, Andreas von. op. cit., § 61, p. 104-105. 49 “declarações que exigem ser direcionadas” 80, ou “declarações com destinatário” 81, ou ainda “declarações que exigem direcionamento”82. Observa, ainda, VON THUR, que em sua maioria, as declarações de vontade reclamam esse direcionamento, e do ponto-de-vista da política legislativa adotada pelo BGB, esta característica se justifica na medida em que, ordinariamente, as declarações de vontade produzem efeitos na esfera jurídica alheia, de modo que é conveniente que a pessoa por elas afetada as conheça, especialmente quando a declaração não produz apenas efeitos benéficos a quem afeta83. De qualquer forma, essa distinção legal foi logo acolhida na Itália, pelas mãos de LODOVICO BARASSI – que inclusive optou pela terminologia de ZITELMANN84 –, na França85 e, naturalmente, no Brasil. Na Alemanha, predomina o entendimento de que a proposta de contrato é declaração de vontade receptícia, de modo que quando endereçada a pessoa ausente gera efeitos somente após sua a “chegada” (Zugang) ao conhecimento do destinatário86. 80 Expressão de LEONHARD (cf. THUR, Andreas von. op. cit., § 61, p. 105, nota 155). 81 Expressão de BEKKER (cf. Id. Ibid., § 61, p. 105, nota 155). 82 Expressão de BREIT (cf. Id., loc. cit.). 83 Cf.f. THUR, Andreas von. op. cit., § 61, p. 105. 84 BARASSI, Lodovico. Notificazione necessaria nelle dichiarazioni stragiudiziali. Milano: Società Editrice Libraria, 1906. p. 1: “Devemos partir de uma constação de fato. As manifestações de nosso estado psíquico (vontade, intelecto), destinadas a produzir efeitos jurídicos e que constituem a alma do comércio jurídico, são, na prática, as mais das vezes, dirigidas a uma ou mais pessoas, de modo que estas chegam a conhecer aquelas manifestações. Mais raramente, são emitidas sem nenhuma comunicação exterior a uma determinada direção [...] Dentre essas manifestações ora invocadas, notamos que algumas, para serem eficazes, devem ser dirigidas, comunicadas a uma ou mais pessoas por ela mais diretamente interessadas [...]. Chamemos, doravante, receptícias as primeiras, não receptícias as segundas”. 85 Cf. MARTIN DE LA MOUTTE, Jacques. L’acte juridique unilatéral: essai sur sa notion e sa technique en droit civil. Paris: Bernard Frères – Sirey, 1951. n. 180 e ss. 86 Cf. THUR, Andreas von. op. cit., § 62, p. 140: entende-se por chegada ou recpeção da declaração de vontade, quano esta ingressa na esfera de influência do destinatário, de modo que este possa, em circunstâncias normais e segundo os usos e costumes do lugar, tomar conhecimento sem dificuldades do conteúdo da declaração. 50 Grosso modo, tanto a doutrina nacional87 quanto a francesa88 e a italiana89 seguem fundamentalmente a mesma trilha. Após comparar o direito contratual de vários países europeus, HEIN KÖTZ concluiu que, nesses países, a razão da receptividade da proposta reside na circunstância de que somente após a sua chegada ao destinatário é que este se torna apto, por meio da declaração de aceitação, a constituir o vínculo contratual90. O caráter receptício da proposta de contrato adquire especial relevância naqueles sistemas, como o alemão, o brasileiro e o português, em que vigora o princípio da irrevogabilidade. Deveras, se a proposta surte efeitos depois de recebida pelo oblato, a irrevogabilidade – efeito máximo da proposta – somente se deflagra neste momento. Não é por outra razão – observou KARL LARENZ, em obra continuada e atualizada por MANFRED WOLF – que “o § 130, alínea 1, parte 2, do BGB outorga ao proponente um direito de retratação até o momento em que a declaração de vontade receptícia chega ao oblato; isto se deve ao fato de que não houve até este momento a irradiação dos efeitos 87 Por todos: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, cit., 1954, t. 3, § 225, p. 424: “A oferta é manifestação receptícia de vontade. Dirige-se à pessoa com a qual se quer concluir o contrato, ou ao público, ou a algum círculo menor de pessoas [...]. A oferta começa de produzir efeitos ao chegar ao destinatário. Antes de chegar ao destinatário pode ser revogada”. 88 CHABAS, Jean. De la déclaration de volonté en droit civil français. Paris: Sirey, 1931, preferindo a nomenclatura “ativa” versus “passiva”, em vez de “receptícia” versus “não receptícia” (cf. p. 20): “A proposta de contrato assume um caráter jurídico desde o instante em que o destinatário dela toma conhecimento” (p. 207). 89 SACCO, Rodolfo. Il contratto. In: SACCO, Rodolfo (Dir.). Trattato di diritto civile. Torino: UTET, 1993. t. 1, p. 141: “No âmbito da declaração, costuma-se distinguir a classe das declarações receptícias [...]. As declarações contratuais (deixando de lado a peculiaridade da proposta ao público) são um típico exemplo de declarações receptícias”. 90 Cf. KÖTZ, Hein; FLESSNER, Axel. Europäisches Vertragsrecht. Tübingen: Mohr, 1996. Band 1: Abschluss, Gültigkeit und Inhalt des Vertrages: die Beteiligung Dritter am Vertrag, § 2, p. 30. No mesmo sentido: FLUME, Werner. op. cit., § 35, p. 635: “A proposta somente adquire eficácia jurídica a partir do momento em que possibilita ao oblato constituir o contrato por meio da aceitação”. 51 jurídicos da proposta, e por conseguinte, a necessidade de se proteger a confiança (Vertrauensschutz) do oblato” 91. No Brasil, o art. 428, inciso IV do Código atual, repetindo, neste passo, o art. 1081, inciso IV, do Código anterior, também estabelece que “deixa de ser obrigatória a proposta [...] se, antes dela, ou simultaneamente, chegar ao conhecimento da outra parte a 92 retratação do proponente” . Em Portugal, onde desde o advento do Código Civil de 1966 também vigoram os mesmos princípios93, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES explicou de forma precisa a conexão entre receptividade e irrevogabilidade da proposta de contrato, distinguindo duas fases: “a que vai até ao recebimento ou conhecimento da proposta pelo destinatário; a que se segue a esse recebimento ou conhecimento. Na primeira fase – prossegue o Autor – a proposta é revogável (sem qualquer responsabilidade para o proponente); só na segunda se torna irrevogável. Por conseguinte, se o proponente revogar a proposta e a revogação for recebida ou conhecida pelo destinatário antes de este receber ou conhecer a própria proposta, ou ao mesmo tempo, fica a proposta sem efeito. A revogação apenas será inoperante, mantendo-se a proposta de pé, no caso oposto, quando a recepção ou o conhecimento da proposta se der antes da recepção ou conhecimento da revogação” 94. Essas fases da proposta vinculativa podem ser representadas por este singelo esquema: 91 LARENZ, Karl; WOLF, Manfred. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts. 9. Aufl. München: Beck, 2004. § 39, p. 714-715. 92 Destaquei 93 CCpt-1966, art. 230: “1. Salvo declaração em contrário, a proposta de contrato é irrevogável depois de ser recebida pelo destina´tario ou de ser dele conhecida. 2. Se, porém, ao mesmo tempo que a proposta, ou antes dela, o destinatário receber a retratação do proponente ou tiver por outro meio conhecimento dela, fica a proposta sem efeito”. 94 GALVÃO TELLES, Inocêncio. Direito das obrigações. 4. ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 1982. p. 51-52. 52 Emissão ..... (revogável) ...... Recepção ..... (irrevogável) ..... Aceitação Contrato Resta dizer que a conexão entre receptividade e irrevogabilidade da proposta de contrato está bem presente nos seguintes diplomas do comércio internacional: CISG-UNCITRAL, art. 15 – “(1) A oferta produzirá efeito quando chegar ao destinatário. (2) A oferta, mesmo que seja irrevogável, poderá ser retirada se a retratação chegar ao destinatário antes ou ao mesmo tempo que a oferta”. FCISG-UNIDROIT, art. 5º – “(1) A oferta não vincula seu autor enquanto não chegar ao destinatário; ela perde a validade se a retirada chegar antes ou ao mesmo tempo que a oferta”. PICC-UNIDROIT, art. 2.3 (Retirada da Oferta) – “(1) A oferta surtirá efeito quando chegue ao destinatário. (2) A oferta, ainda quando seja irrevogável, poderá ser retirada se a notificação de retirada chegar ao destinatário antes ou ao mesmo tempo que a oferta”. 2. Requisitos intrínsecos 2.1. Intenção de vincular-se Em respeitado trabalho de direito contratual europeu comparado, HEIN KÖTZ recorda que “um contrato válido pressupõe que as partes tenham atuado, no momento de sua conclusão, com ‘intention of creating legal relation’ ou ‘en vue de produire des effets 53 juridiques’; enfim, que na declaração do proponente tenha havido a real vontade de que sua conduta adquirisse efeitos jurídicos e que o oblato a tenha acolhido como tal”95. Essas idéias, tão fundamentais quanto elementares, vêm muito a propósito neste passo, eis que ajudam a compreender e a sopesar o quão indispensável é para a eficácia da proposta de contrato – quiçá para a sua própria existência jurídica – que ela revele a inequívoca intenção de vincular-se do proponente. Os Motive do BGB já salientavam que para se poder considerar vinculante uma proposta de contrato ela deve expressar de tal modo esta intenção do proponente que a simples e pura aceitação do oblato já baste para dar vida ao contrato96. Diziam, também, os Motive, que inexiste intenção vinculativa quando, na proposta, seu autor se reserva a liberdade de firmar ou não o negócio, mesmo depois de lhe ter chegado a declaração de aceitação. Essa circunstância indica que, no fundo, a proposta não passa de um simples convite ao oblato para que faça, ele mesmo, uma proposta97. Desde então, esses critérios de aferição do que na Alemanha se chamou de “Rechtsbindungswillen” – vontade de vincular-se juridicamente – veio sendo invariavelmente reiterados pela doutrina ao longo dos anos98. 95 KÖTZ, Hein. Europäisches Vertragsrecht. op. cit., § 4, p. 108. 96 Cf. DEUTSCHES REICH. Motive BGB. op. cit., § 80, p. 167. 97 Cf. Id., loc. cit. 98 LARENZ, Karl; WOLF, Manfred. op. cit., § 29, p. 555: “somente existe proposta quando o proponente declara seu firme propósito de manter suas disposições, e por conseguinte suas conseqüências jurídicas, no caso de aceitação do oblato. Se o proponente se reserva o direito de aceitar a resposta do oblato ou não, então não estaremos diante de uma proposta, mas de um convite a apresentar propostas”; KÖTZ, Hein. Europäisches Vertragsrecht. op. cit., § 2, p. 34: “No entanto, o proponente pode se desobrigar dessa vinculatividade da proposta, ao apor a ela a reserva de vinculatividade “freibleibend”. Por esta ou outra expressão semelhante, o proponente se reserva o direito de revogar a proposta. Se a revogação deve ser permitida mesmo no caso de já ter ocorrido a aceitação do oblato, e, por conseguinte a formação da relação contratual, depende de uma interpretação da fórmula utilizada no aludido contrato. Nessa interpretação pode se extrair, eventualmente, que a proposta com reserva de vinculatividade (freibleibend) na verdade não se constitui proposta, mas sim um invitatio ad offerendum”. 54 Não obstante essa linearidade doutrinal, a jurisprudência do Bundesgerichtshof (BGH) vem descobrindo novos matizes da questão, de modo que se no passado deu-se ênfase à necessidade de se aferir, in concreto, se a declaração do proponente foi considerada, por ele próprio, uma proposta vinculativa, mais recentemente vem-se preconizando que não se deve analisar a vontade interna do proponente, e sim se o oblato – do ponto-de-vista de sua própria percepção sobre a conduta do proponente e sob a égide das circunstâncias do caso, da boa-fé e dos usos – deveria perceber a existência de uma intenção vinculativa nos termos da proposta99. Detendo-se sobre essa doutrina jurisprudencial, DIETER MEDICUS enfatizou que o interesse do oblato é protegido através da análise de como ele próprio entenderia a proposta. O conteúdo da declaração de vontade receptícia deveria ser interpretado conforme a capacidade de compreensão do destinatário (Verständnismöglichkeit des Empfängers) ou horizonte do destinatário (Empfängerhorizont)100. Todavia, o oblato também deve ter uma diligência interpretativa (Auslegungssorgfalt) para compreender a proposta de contrato em conformidade com o que o proponente realmente quis declarar. Nas declarações receptícias de vontade – conclui MEDICUS – não se deve procurar haurir a verdadeira vontade do declarante, mas a vontade normativa (normativertiver Willen), interpretando com todo o rigor o que o destinatário entendeu ou poderia ter entendido acerca dos termos da proposta, eis que se trata de traduzir em termos jurídicos o que foi efetivamente querido pelas partes101. LARENZ-WOLF, por sua vez, destacam o caráter bilateral ou recíproco deste modelo interpretativo, dizendo que as declarações receptícias de vontade reclamam a convergência de intelecções. Para se atingir o mútuo entendimento (gegenseitige Verständigung), tanto o declarante quanto o destinatário precisam se esforçar (bemühen). Em primeiro lugar, o declarante deve ter diligência de expressão (Ausdruckssorgfalt): como é livre para escolher os meios de expressar a sua vontade, tem o dever de fazê-lo 99 Cf. KÖTZ, Hein. Europäisches Vertragsrecht. op. cit., § 4, E, p. 108-109. 100 Cf. BGH NJW 1988, 2878, citado por MEDICUS, Dieter. Allgemeiner Teil des BGB. 8. Aufl. Heidelberg: Müller, 2002. § 25, p. 126. 101 Cf. Id. Ibid., § 25, p. 126. 55 com diligência. Por sua vez, o destinatário precisa se esforçar para compreender corretamente o conteúdo da declaração; deve ajustar o seu horizonte perceptivo (Empfängerhorizont) à diligência interpretativa (Auslegungssorgfalt): se se esforçou o bastante, atuando nesse mister com diligência, não se lhe poderá imputar o ônus de compreender, passando a merecer por isso mesmo a tutela da confiança (Vertrauensschutz) que lhe foi despertada pela declaração de vontade do proponente. Naturalmente, a aferição dessa diligência dependerá das circunstâncias do caso, tais como a clareza objetiva da declaração, o nível sócio-cultural das partes, o tipo de negócio, etc.102 De resto, pode-se dizer que a intenção de vincular-se é pressuposto universal, proclamado pela doutrina jurídica de países tanto de civil quanto de common law, o que se reflete perfeitamente nas disposições dos principais diplomas de direito do comércio internacional. Assim, lê-se nos PDEC-LANDO que “uma proposta constitui oferta quando indica a 103 vontade de concluir um contrato em caso de aceitação” ; na CISG-UNCITRAL, que “a proposta para celebrar um contrato dirigida a uma ou mais pessoas determinadas constituirá uma oferta se for suficientemente precisa e indicar a intenção do ofertante de ficar obrigado em caso de aceitação” 104 ; por fim, nos PICC-UNIDROIT, lê-se que “uma proposta para celebrar um contrato constitui uma oferta, se é suficientemente precisa e indica a intenção do ofertante de ficar vinculado em caso de aceitação” 102 Cf. LARENZ, Karl; WOLF, Manfred. op. cit., § 28, p. 513. 103 PDEC-LANDO , art. 2:201, 1 (destaquei). 104 CISG-UNCITRAL, art. 14.1 (destaquei). 105 PICC-UNIDROIT, art. 2.2 (destaquei). 105 . 56 2.2. Conteúdo mínimo ou suficiente A proposta de contrato, por definição, exige que o proposto seja, efetivamente, um contrato – com o perdão do truísmo. A proposta de meio-contrato ou de contrato indefinido não é fato da vida social tido como relevante, pelo legislador, a ponto de lhe dispensar alguma conseqüência jurídica. Quando muito, é mero convite a fazer proposta. Não mais. Em relação a este requisito, também se observa certa uniformidade conceitual no direito dos países pesquisados. As divergências, as mais das vezes, são aparentes, traduzindo-se em diferenças meramente terminológicas. A propósito, é curioso observar como os países têm as suas preferências nomenclaturais. Na Itália, a proposta deve ser “completa” 106, embora se fale às vezes em “conteúdo mínimo” 106 107 ; na França, “precisa” 108 ; na Alemanha, “determinada” 109 ou Cf. CAMERIERI, Fausto. op. cit., p. 60: “A proposta deve ser completa. Tal requisito não deve ser entendido no sentido de uma absoluta e necessária coincidência entre o conteúdo da proposta e o conteúdo do contrato, e sim na adequação daquela à determinação, por si própria (e com a adesão do oblato) o conteudo deste” (destaquei). BIANCA, C. Massimo. op. cit., t. 3, n. 100, p. 219: “A completude da proposta indica a suficiência de seu conteúdo para fins de formação do contrato. Concretamente, a proposta é completa quando contém a determinação dos elementos essenciais do contrato, ou quando os remete tal determinação a critérios legais ou convencionais. É incompleta quando a sua determinação requer um acordo ulterior das partes” (destaquei). 107 Cf. VITUCCI, Paolo. op. cit., p. 203 e ss. 108 Cf. SCHMIDT, Joanna. Négociation et conclusion de contras. Paris: Dalloz, 1982. § 61, p. 32: “A oferta exprime uma vontade precisa de contratar. A oferta constitui o primeiro elemento do consentimento: dela deve portanto comportar os elementos do contrato, de tal maneira que este possa ser formado pelo simples ‘sim’ pronunciado pelo aceitante, sem que seja necessário acrescentar outros precisões”; AUBERT, JeanLuc. op. cit. p. 77: “a oferta, ou policitação, aparece, portanto, como uma proposição precisa endereçada que a uma pessoa determinada, quer ao público, de um contrato cujos contornos essenciais são delineados. Esta precisão, necessária para que uma aceitação pura e simples possa formar imediatamente o contrato, serve, além disso, como prova da firmeza da vontade unilateral que a anima. Ela expressa as condições essenciais do contrato previsto”. 57 “determinável” 110. De qualquer forma, a despeito dessa pluralidade terminológica, há uma constante nas diversas abordagens, a qual me parece apta a servir de critério prático para a aferição, no caso concreto, da “completude”, “precisão”, “determinação” ou “suficiência” do conteúdo de uma proposta de contrato, em face da infinita casuística contratual: ela deve estar formulada de tal forma que, por meio da aceitação pura e simples do oblato, sem necessidade de qualquer declaração complementar das partes, o vínculo contratual efetivamente se constitua. Este requisito também é contemplado implícita ou expressamente nos principais diplomas de direito do comércio internacional. Nos PDEC-LANDO, a menção é expressa. Deveras, depois de dispor que “uma proposta constitui oferta quando [...] contém termos suficientemente precisos para constituir um contrato” 111 , esclarece-se mais à frente que “um acordo é suficiente se seus termos (a) foram definidos pelas partes de tal sorte que o contrato pode ser executado, (b) ou podem ser determinados em virtude dos presentes Princípios” 112 . 109 Cf. FLUME, Werner. op. cit., § 35, p. 635-636: “A proposta precisa estar, sob o ponto-de-vista do conteúdo, de tal maneira constituída, que por meio de sua correspondente aceitação o contrato possa ser concluído. Por esta razão, em relação aos essentialia negotii, a proposta precisa conter uma determinação (Bestimmung) ou transferir ao oblato ou a terceiro, aludida determinação Em relação aos demais pontos da proposta, ou seja, em relação aos acidentalia negotii, a proposta também precisa conter um regramento completo, conclusivo, ou poder ser completada pelo oblato ou terceiro. Via de regra, nos negócios comerciais, a proposta é de tal maneira disposta que sua aceitação pode ocorrer por mera declaração de acordo (Zustimmungserklärung), um sim ou um ‘de acordo’. Todavia, a proposta pode ser de tal maneira formulada que o oblato tenha a liberdade de escolha dentre várias possibilidade a ele oferecidas, ou que o oblato precise completar as disposições” (destaquei); LARENZ, Karl; WOLF, Manfred. op. cit., § 29, p. 554: “Há proposta de contrato quando o seu conteúdo está de tal forma certo e determinado que o oblato pode aceitá-lo sem qualquer reservas ou condicionamentos”. 110 Lembra, oportunamente, CLAUDE WITZ que “o conteúdo do contrato pode ser fixado com a ajuda das disposições supletivas da lei, ou pela via da interpretação da vontade das partes” (Droit privé allemand: 1. Actes juridiques, droits subjetifs: BGB, partie générale; Loi sur les conditions génerales d’affaires. Paris: Litec, 1992. n. 143, p. 132). 111 PDEC-LANDO, art. 2:201, 1 (destaquei). 112 PDEC-LANDO, art. 2:103, 1 (destaquei). 58 A CISG-UNCITRAL também se serve da expressão “suficientemente precisa”, esclarecendo que assim o é “se indica a mercadoria e, expressa ou tacitamente, fixa a quantidade e o preço ou prevê um meio para determiná-los” 113 CISG-UNCITRAL, art. 14.1 113 . 59 CAPÍTULO 5: FIGURAS AFINS À PROPOSTA DE CONTRATO 1. Promessa unilateral O senso comum entende por promessa uma declaração ou um ato pelo qual alguém se obriga a dar, fazer ou não fazer alguma coisa num futuro próximo. Prometer, portanto, significa vincular a própria conduta114. Apesar de sua unidade, a promessa desdobra-se em dois aspectos: a previsão do ato e a vinculação à sua prática. A previsão reside na descrição de um ato futuro e incerto. É futuro, o ato, porque prometer o que já aconteceu ou o que está acontecendo não faz qualquer sentido. É incerto porque, em função da liberdade do promitente e/ou de fatores a ele externos e aleatórios, o ato pode não se cumprir. A promessa implica também certa vinculação do promitente, isto é, a obrigação de praticar o ato prometido e favorável ao promissário. Daí distinguir-se do conselho, que consiste na recomendação de uma prática de um ato futuro pelo seu destinatário. Além disso, só existe promessa se a ação do promitente, por ele prevista e à qual se vincula, tiver efeito favorável para o promissário, caso contrário representaria uma ameaça115. Pois bem. Todo o problema da promessa unilateral consiste em determinar a natureza da vinculação por ela criada: se constitui obrigação de prestar em sentido técnicojurídico, ou mero dever moral de honrar a palavra dada. 114 Cf. DI MAJO, Adolfo. Promessa unilaterale. Diritto privato. In: Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, v. 37, p. 33-70, 1988. p. 33. 60 Nos países da Família de Direito Romano-Germânica, a doutrina civilista permanece ancorada em grande medida no princípio do consenso, de origem romana, pelo qual a promessa unilateral, antes da aceitação do promissário, não gera obligatio, a não ser em casos excepcionais (ex nuda pollicitatione nulla actio nascitur)116. Na esteira da doutrina, a legislação moderna adotou o velho princípio. É assim, por exemplo, que o art. 1370 do Código Civil francês (CCfr), ao enumerar as diferentes fontes das obrigações, não faz menção à promessa unilateral, sendo que o art. 1108 do mesmo Código exige para a validade da convenções “o consentimento da parte que se obriga”. De forma mais expressa, o § 305 do BGB dispõe que “para a constituição de uma relação obrigacional por negócio jurídico, assim como para a modificação do conteúdo de uma relação obrigacional, é necessário um contrato entre os interessados, a não ser que a lei prescreva outra coisa”. Mais claro ainda é o art. 1987 do Código Civil italiano: “A promessa unilateral de uma prestação não produz efeitos obrigatórios fora dos casos admitidos pela lei”. Os principais argumentos em favor do sistema da tipicidade das promessas unilaterais são os seguintes: (i) a independência dos indivíduos, uns em relação aos outros, justificaria que a lei não imponha a ninguém a aquisição de um crédito fundado sobre uma promessa unilateral de outrem117; (ii) do ponto-de-vista prático, a adoção generalizada da vinculação unilateral, além de trazer insegurança ao comércio jurídico, seria inútil, pois as hipóteses em que se pretende aplicável já seriam satisfatoriamente cobertas pela figura do contrato; sendo inútil, não se justificaria pagar o preço de seus 115 Cf. ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico. Coimbra: Almedina, 1992. v. 1, p. 464-469. 116 Cf. STIZIA, Francesco. Promessa unilaterale: Storia. In: Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, v. 37, 1988. p. 31. 117 Cf. RIEG, Alfred. Le role de la volonté dans l'acte juridique en droit civil français et allemand. Paris: LGDJ, 1961. p. 533. 61 riscos118; (iii) permitir à promessa unilateral operar ilimitadamente, acarretaria a desarticulação do campo de aplicação do contrato e a atomização dos elementos constitutivos deste119. O Código Civil brasileiro de 1916 não continha uma disposição geral acerca da eficácia vinculativa da promessa unilateral. No entanto, ao disciplinar as “obrigações por declaração unilateral de vontade”, tratou da emissão dos “títulos ao portador” (arts. 1505 a 1511) e da “promessa de recompensa” (arts. 1512 a 1517), o que parece indicar tenha aquele Código conferido eficácia obrigacional apenas a um numerus clausus de promessas unilaterais, o que, aliás, foi substancialmente mantido pelo Código Civil em vigor. Tal entendimento, no entanto, não é isento de contestações. Tendo sido o único autor brasileiro que tratou extensa e profundamente do tema, PONTES DE MIRANDA parece ter defendido tese oposta quando escreveu que “a promessa unilateral de prestação, de regra, cria dever e obriga [...]. Auto-regramento da vontade, dito autonomia da vontade, tanto há de haver para negócios jurídicos bilaterais quanto para negócios jurídicos unilaterais. É inadmissível o argumento de que a eficácia dos negócios jurídicos unilaterais influi normalmente no patrimônio de terceiro e a lei tem de cogitar de regramento estrito e salvaguardar os interesses dos terceiros. Os negócios jurídicos unilaterais, em princípio, de modo nenhum atingem a esfera jurídica de terceiro, salvo para lhes dar direito, pretensão, ação ou exceção”120. De qualquer forma, é muito oportuna a observação de ADOLFO DI MAJO segundo a qual o problema da aceitação da promessa unilateral como fonte de obrigações ao promitente é muito mais teórico do que prático. A teoria certamente complicou-o, enquanto que a prática tende a simplificá-lo. Do ponto-de-vista prático, é natural afirmar que a promessa, para ter efeitos práticos (induzir, por exemplo, o destinatário a pedir o 118 Cf. Id. Ibid., p. 454. 119 Cf. DI MAJO, Adolfo. op. cit., p. 38. 120 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1961, t. 31, p. 6-7 (destaquei). 62 adimplemento) deve ser conhecida e apropriada (aceitação) pelo destinatário. Se a promessa não é conhecida pelo destinatário, tamquam non esset121. A promessa unilateral, na verdade, é gênero muito amplo. Pode-se dizer, com DI MAJO, que “todo o comércio jurídico se realiza através da promessa, recíproca ou não, pouco importa. Promessas de prestação ou de manutenção da palavra dada movimentam o comércio jurídico. Obrigações de execução concreta ou de abstenção de fazer o que de outra forma se poderia fazer é expressão jurídica do seu ser vinculativo” 122. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, por sua vez, afirma que “os efeitos obrigacionais dos negócios jurídicos derivam de promessas ou, dito de outro modo, a promessa é o paradigma da função eficiente dos negócios jurídicos obrigacionais” 123. Dentro desse amplo universo, insere-se a proposta ou oferta de contrato como espécie do gênero promessa unilateral. A oferta é portadora de promessa; esta é continente, aquela conteúdo. A oferta é a promessa de celebrar contrato nos moldes dos elementos essenciais que ela veicula124. Como ato unilateral que é, não cria ao emitente, por si mesma, qualquer obrigação stricto sensu, e sim efeitos jurídicos de outra natureza, os quais procurarei abordar na Parte III deste trabalho. 121 Cf. DI MAJO, Adolfo. op. cit., p. 36. 122 Id. Ibid., p. 34. 123 ALMEIDA, Carlos Ferreira de. op. cit., p. 457. 124 Cf. DI MAJO, Adolfo. op. cit., p. 39. 63 2. Minuta de contrato Os atos que compõem o procedimento das tratativas podem se revestir da forma verbal ou escrita. Quanto maior a complexidade do contrato, maior a conveniência de se adotar esta última forma de negociação. Ora, a minuta é uma das modalidades de forma escrita das tratativas. Por certo, a mais tradicional delas. Durante as negociações preliminares, à medida que se vão estabelecendo certas bases do futuro contrato, fixando certos pontos, concretizando os acordos parciais, costuma-se reduzir a escrito esses pontos – muitas vezes com a assinatura dos interessados – para não se regressar mais à sua discussão. A minuta consiste, pois, num documento escrito que registra o andamento das tratativas, fixando desde logo algumas cláusulas e condições acertadas pelas partes, do contrato que estão inclinadas a concluir. Uma vez ultimadas as negociações e registradas todas elas na minuta, esta ainda não representa uma proposta de contrato, mesmo que incorpore um projeto completo e acabado de contrato, mesmo que seja assinada pelas partes, como sói acontecer125. Pode se converter, porém, em proposta, na medida em que uma das partes negociantes toma a iniciativa e a leva à aceitação da contraparte126. Antes disso, porém, não possui nenhum efeito vinculante, quer a vinculação específica e mais restrita da proposta de contrato, quer a vinculação mais forte do acordo contratual. É o entendimento que prevalece na doutrina nacional e estrangeira127. 125 Cf. SACCO, Rodolfo. op. cit., t. 2, p. 225. 126 Cf. CARRARA, Giovanni. op. cit., p. 18-19. 127 Cf., entre tantos: GOMES, Orlando. op. cit., p. 60. SERPA LOPES, Miguel Maria. op. cit., p. 75. CARRARA, Giovanni. op. cit., p. 18. TAMBURRINO, Giuseppe. op. cit., p. 12. SACCO, Rodolfo. op. cit., t. 2, p. 225. MESSINEO, Francesco. Contratto. Diritto privato. Teoria generale, cit., p. 847. RAVAZZONI, Alberto. op. cit., p. 78. No direito alemão, há disposição expressa a respeito. É o § 154 do BGB: “Enquanto as partes não acordarem sobre todos os pontos de um contrato, sobre os quais, segundo a declaração ainda que de uma só delas, deve haver acordo, o contrato, na dúvida, não se tem por concluído. O acordo sobre pontos particulares não é vinculativo, ainda quando tenha sido redigida uma minuta [...]” (destaquei). 64 3. Carta de intenções Além da minuta, a práxis negocial criou outra forma escrita de tratativas, denominada pela expressão – ainda um tanto vaga – “carta de intenções”. Essa forma de negociação é muito utilizada no campo definido por RENATO SPECIALE como “setor de contratações avançadas” 128 , de elevado teor econômico, onde transferências de riquezas ocorrem – tais como a troca de informações tecnológicas, segredos industriais, know-how, além do custo por vezes elevado que as tratativas acarretam às partes – sem a imediata formação de um consenso contratual definitivo. A crescente complexidade das relações empresarias induz os agentes econômicos a premunirem-se de documentos escritos antes de empreenderem negociações contratuais particularmente prolongadas e onerosas, os quais visam estabelecer as regras ou procedimento das próprias negociações. Na verdade, a carta de intenções é utilizada para atingir objetivos muito variados. Às vezes, cumpre a função de verdadeira minuta, registrando o estado das tratativas em curso entre as partes, registro que serve de prova documental, por exemplo, para se obter a devida autorização (para concluir o contrato) do órgão diretivo da sociedade empresária, ou para eventualmente se pleitear ressarcimentos de danos decorrentes do rompimento injustificado das tratativas. Outras vezes, a carta de intenções satisfaz à necessidade de isolar certos pontos do acordo in fieri, suscetíveis de execução autônoma e antecipada, tais como os critérios de repartição de despesas durante as tratativas, deveres de segredo quanto à determinadas informações, execução antecipada de certas prestações objeto do contrato em estipulação, etc.129 128 Cf. SPECIALE, Renato. op. cit., p. 218. 129 Cf. Id. Ibid., p. 216-217. 65 A variedade de conteúdo que a carta de intenções pode assumir impede a formação de um juízo generalizante sobre os seus efeitos vinculantes. De qualquer forma, confrontando a carta de intenções com a oferta de contrato, convém lembrar, com MICHEL PÉDAMON, que “a doutrina alemã recusa-se a considerar que uma carta dessa natureza represente uma oferta – ainda que condicional – de concluir o contrato principal (Hauptvertrag), em razão de os pontos essenciais estarem ainda em suspenso, não existindo uma ‘vontade de acordo’ sobre certas prestações a serem realizadas [...]. A doutrina alemã a vê muito mais como ‘fonte’ de um acordo preliminar específico, que chama de Vorfeldvertrag, destinado a estabelecer os direitos e obrigações de cada parceiro no curso das negociações” 130. 4. Contrato preliminar Por contrato preliminar entende-se o ajuste pelo qual uma ou ambas as partes se obrigam a celebrar outro contrato no futuro, dito, em contraposição, definitivo131. O contrato preliminar pode ser unilateral ou bilateral. Se ambas as partes se obrigam a prestar a declaração de vontade constitutiva do contrato definitivo, é bilateral132. Ao contrário, se somente uma das partes se obriga a tanto, é unilateral133. Todavia, distintas são as funções prático-econômicas de cada modalidade. Pelo preliminar bilateral, além de travarem negociações preparatórias até colmatarem por completo o conteúdo do contrato in fieri, as partes se obrigam a concluir oportunamente o próprio contrato projetado, já em sua formatação definitiva. Sua peculiaridade é esta: as partes já definiram de antemão os termos essenciais do contrato 130 PÉDAMON, Michael. Le contrat en droit allemand. Paris: L.G.D.J., 1993. p. 43. 131 Cf. SACCO, Rodolfo. op. cit., t. 2, p. 262; TAMBURRINO, Giuseppe. op. cit., p. 203; MESSINEO, Francesco. Contratto preliminare, contratto preparatorio e contratto di coordinamento. In: Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, v. 10, 1962. p. 199; PÉDAMON, Michael. op. cit., p. 44. 132 TAMBURRINO, Giuseppe. op. cit., p. 205. 133 Cf. SACCO, Rodolfo. op. cit., t. 2, p. 271. 66 que tencionam celebrar, todavia, por razões de ordem prática, não querem ou não podem executar de imediato o contrato definitivo. Tais razões são muito diversas. Às vezes, se por um lado as partes não querem deixar escapar das mãos a oportunidade de um negócio que se lhes afigura vantajoso, por outro lado querem refletir melhor sobre as condições da operação econômica subjacente ao contrato, até alcançarem a fórmula definitiva. Nesse contexto, encontram no preliminar bilateral a solução ideal, pois mantém-se vinculados provisoriamente, mas ao mesmo tempo conservam certa margem de liberdade para modelar o conteúdo do contrato definitivo. Outras vezes, recorre-se ao preliminar bilateral porque uma das partes, ou ambas, não dispõem, de pronto, dos recursos financeiros ou das condições jurídicas necessárias à celebração válida do contrato definitivo. Essa é a razão, aliás, que geralmente norteia os que celebram compromisso de compra-e-venda de imóvel em prestações, contrato preliminar de notável relevância econômico-social no Brasil. Por ele, as partes diferem para o futuro a celebração da escritura definitiva de compra-e-venda do imóvel, seja porque o comprador ainda não dispõe de capital suficiente, seja porque falta ao imóvel alienando ou a seu proprietário alguma condição jurídica indispensável à celebração válida ou segura do contrato e à eficácia do translado dominial. O preliminar unilateral, por sua vez, tem funções prático-econômicas análogas às da proposta de contrato irrevogável e da opção, o que se afigura evidente sobretudo no direito italiano, onde os artigos 1329134 e 1331135 do Código Civil tratam especifica e respectivamente dessas últimas duas figuras. 134 CCit, art. 1329 (Proposta irrevogável): “Se o proponente se obrigou a manter firme a proposta por certo tempo, eventual revogação não terá efeito (1328, 1331, 133) [...]”. 135 CCit, art. 1331 (Opção): “Quando as partes convierem que uma delas permaneça vinculada à própria declaração e a outra tenha a faculdade de aceitá-la ou não, a declaração da primeira considerar-se-á com proposta irrevogável quanto aos efeitos previstos no art. 1329 (1355)”. 67 Após lembrar que esses três negócios contratuais outorgam à parte não-vinculada o poder de especular sobre as flutuações do mercado até o último dia do prazo avençado, RODOLFO SACCO observa que nem sempre a parte vinculada é movida por espírito de mera liberalidade. Na maioria dos casos, a pessoa que se submete livremente à vinculação (na proposta irrevogável, o proponente; na opção, a parte que outorgou a opção; no preliminar unilateral, a parte que se obrigou a celebrar o definitivo), tem um interesse econômico subjacente: “o interesse publicitário ou promocional; o interesse de induzir a contraparte a refletir com calma sobre a proposta que lhe foi feita” 136. Mas embora análogas as funções, deve-se destacar as diferenças específicas entre o preliminar unilateral e a oferta contratual irrevogável, posto que se não confundem. Nesse sentido, MESSINEO parece ter diferençado bem as duas figuras quando escreveu que “a oferta não é um contrato; é um ato unilateral que pode dar origem a um contrato (e será, de regra, o contrato definitivo); mas pode ser também seguido de recusa ou ausência de resposta à oferta” 137. É nesse mesmo sentido que também entende GIUSEPPE MIRABELLI, para quem a diferença entre o preliminar unilateral e a proposta irrevogável somente se torna clara na medida em que se pense que, neste último, embora o sujeito se vincule a não revogar a proposta, não constitui nenhum contrato: este virá à existência somente se e quando o oblato manifestar a sua aceitação. Ademais, a diferença se torna mais patente quando se pensa que é plenamente possível haver proposta irrevogável para a celebração de contrato preliminar138. 136 SACCO, Rodolfo. op. cit., t. 2, p. 271. 137 MESSINEO, Francesco. Contratto preliminare, contratto preparatorio e contratto di coordinamento, cit., p. 193 (destaquei). 138 Cf. MIRABELLI, Giuseppe. Delle obbligazioni: dei contratti in generale. 3. ed. Torino: UTET, 1980. p. 209-210. 68 5. Opção No direito italiano, afigura-se palpável a diferença entre proposta de contrato irrevogável e opção, eis que o Código Civil italiano as contemplou pontual e expressamente nos artigos 1329 e 1331, respectivamente. Este último dispositivo, intitulado “opzione”, estabelece que “quando as partes convierem que uma delas permaneça vinculada à própria declaração e a outra tenha a faculdade de aceitá-la ou não, a declaração da primeira considera-se proposta irrevogável para os efeitos previstos pelo art. 1329” 139 . Que efeitos seriam esses? O art. 1329 esclarece: “se o proponente se obrigou a manter firme a proposta por certo tempo, eventual revogação será ineficaz ”. A opção, portanto, é o contrato pelo qual uma parte assume a obrigação de manter firme, por certo tempo, a sua proposta de contrato, enquanto a contraparte permanece livre para aceita-la ou não, só podendo ser revogada, pois, a proposta, após expirar o prazo convencionado pelas partes ou fixado pela lei. Assim, a opção confere a uma das partes, em face da proposta de contrato da outra, o poder de determinar a conclusão do contrato principal mediante a própria aceitação, sem necessidade de ulterior declaração do proponente. Conseqüentemente, a opção – assim como a proposta de contrato, seja ela revogável ou irrevogável – deve necessariamente conter um regulamento negocial completo, auto-suficiente, que não necessita ser integrado por declarações posteriores de quaisquer dos interessados140, bastando a aceitação pura e simples do optante. 139 Destaquei. 140 Nesse sentido, Cass. 28 aprile 1983, n. 2908, in Mass. Foro it., 1983, 607, que excluiu a natureza de pacto de opção a uma proposta que continha somente alguns elementos do contrato e não o inteiro regulamento negocial, porque em tal caso, o aperfeiçoar-se do contrato não pode ocorrer com a aceitação pura e simples, mas requer a formação do consenso sobre os ulteriores elementos não contemplados pela proposta mesma. 69 Salienta FRANCESCO GALGANO que o efeito da opção é substancialmente idêntico ao da proposta irrevogável de contrato, qual seja a irrevogabilidade das respectivas declarações de vontade no tempo aprazado141, efeito que, no dizer de TAMBURRINO, consubstancia-se numa “renúncia convencional ao poder de revogar” 142 , observando, o mesmo Autor, que se por um lado a lei permite à autonomia privada excepcionar o princípio da revogabilidade da oferta contratual143, tornando irrevogável e firme uma proposta de contrato por determinado período de tempo, por outro lado estabelece os instrumentos aptos ao exercício dessa renúncia: a opção e a proposta de contrato (temporariamente) irrevogável144. Não obstante a identidade de efeitos, as duas figuras divergem profundamente quanto à gênese e estrutura. Deveras, enquanto a proposta de contrato é ato unilateral, constituído apenas pela declaração de vontade do proponente, a opção é contrato, o que significa dizer que sua constituição demanda a congruência das declarações de vontade do optável (proponente) e do optante (oblato)145. Note-se, ainda, que a opção é contrato autônomo e instrumental, pois insere-se justamente no procedimento de formação do contrato proposto pelo optável, dito “principal”. 141 GALGANO, Francesco. Il negocio giuridico. In: CICU, Antonio; MESSINEO, Francesco; MENGONI, Luigi (Dir.) Trattato di diritto civile e commerciale. Milano: Giuffrè, 1987. v. 3, t. 1, p. 81. 142 TAMBURRINO, Giuseppe. op. cit., p. 84. 143 Princípio esse que, no caso do direito italiano – ao contrário do direito brasileiro, alemão e português, como visto – vigora por força de disposição expressa, qual seja a norma do art. 1328 do Código Civil, in verbis: “[...] enquanto o contrato não se concluir, a proposta pode ser rovogada [...]”. Note-se que o contrato “conclui-se” pela aceitação da proposta; portanto, após a aceitação, não há mais falar em “proposta de contrato” (ou “aceitação”), tampouco em revogabilidade ou irrevogabilidade, mas em “contrato”, que só pode ser desconstituído por ato igualmente bilateral denominado distrato, ou por uma das vias litigiososas de dissolução do vínculo contratual (rescisão, resilição ou resolução). 144 TAMBURRINO, Giuseppe. op. cit., p. 84. 145 Cf. VIALE, Mirella. La conclusione del contratto, pt. 2. In: ALPA, Guido; BESSONE, Mario (Dir.). op. cit., v. 3, cap. 4 - I contratti in generale, p. 178-179. 70 Quanto à posição subjetiva do optável, pacífico que é de “sujeição”, que se contrapõe à de “direito potestativo” do optante: concluído o contrato de opção, o optável nada pode fazer senão sujeitar-se ao comportamento do optante, que poderá livremente rejeitar ou aceitar o contrato proposto no prazo avençado, o que implicará a sua automática conclusão, independentemente de nova declaração de vontade do optável146. Não que o optável “não deva” revogar a proposta, e sim que “não pode” fazê-lo, de tal modo que eventual revogação “é senza effetto”, na dicção do art. 1329 do Código Civil italiano147. Na verdade, grande parte da doutrina italiana – consoante o registro de MIRELLA VIALE – afirma que a ineficácia da revogação da proposta pelo optável decorre da natureza contratual da opção, de modo que se a declaração de vontade permanece firme, não é em razão de um particular compromisso do optável – como ocorre na proposta irrevogável de contrato –, e sim pelo princípio geral da vinculação do contrato148. 6. Preferência, prelação e preempção Na linguagem jurídica, os vocábulos “preferência”, “prelação” e “preempção” guardam relação de sinonímia entre si, pois são utilizados pela lei ou pela práxis negocial com o significado de posição jurídico-subjetiva de prioridade em relação a determinado objeto. 146 Nesse sentido, há forte paralelismo entre a opção e o contrato preliminar, já que ambos têm por escopo a conclusão de outro contrato: o contrato “principal”, em relação à opção, e o “definitivo”, em relação ao preliminar. A diferença entre esses contratos “preparatórios”, porém, sobretudo entre a opção e o preliminar unilateral, está em que a conclusão do contrato principal não requer uma segunda declaração de vontade do optável, bastando, para tanto, a declaração de aceitação do optante; ao contrário, a conclusão do contrato definitivo, demanda nova declaração das partes, estejam ambas ou apenas uma delas (preliminar unilateral) vinculadas à concluir o contrato defintivo. 147 Cf. TAMBURRINO, Giuseppe. op. cit., p. 94. 148 Cf. VIALE, Mirella. op. cit., p. 180. 71 O nosso Código Civil cuida de pelo menos duas categorias de prioridade subjetiva. A primeira delas tem a natureza de garantia creditícia, significando a prioridade que certo credor tem, em relação aos demais, quanto à satisfação de seu crédito pelos bens do devedor comum. Com efeito, depois de assentar o princípio de que “não havendo título legal à preferência, terão os credores igual direito sobre os bens do devedor comum” esclarecer que “os títulos legais de preferência são os privilégios e os direitos reais” 149 150 e ,o Código Civil estabelece que “o crédito real prefere ao pessoal de qualquer espécie; o crédito pessoal privilegiado, ao simples; e o privilégio especial, ao geral” 151 . Nesse contexto, portanto, prelação, preempção ou preferência é a prioridade atribuída a certo credor, relativamente aos demais, que também concorrem com este na repartição do valor resultante da expropriação dos bens do devedor comum. Posição subjetiva de prioridade, portanto. A segunda categoria é a preferência na formação do contrato, quando então os termos “preferência, “prelação” ou “preempção” têm a natureza de limitação à liberdade de escolher a pessoa do outro contratante, o que ocorre quando alguém, decidindo celebrar determinado contrato, vincula-se por disposição legal ou convencional a dirigir sua proposta de contrato primeiramente a certa pessoa. Tem-se, pois, também nesse contexto, uma posição subjetiva de prioridade em relação a outros sujeitos. Assim, a preempção ou preferência é tratada pelo Código Civil como cláusula especial do contrato de compra-e-venda, pois “impõe ao comprador a obrigação de oferecer ao vendedor a coisa que aquele vai vender, ou dar em pagamento, para que este use de seu direito de prelação na compra, tanto por tanto” 149 CCbr-2002, art. 957. 150 CCbr-2002, art. 958. 151 CCbr-2002, 961. 152 CCbr-2002, art. 513. 152 . 72 Vê-se, pois, que a preferência pode ser estabelecida tanto convencionalmente – quando se fala, então, em preferência convencional ou pacto de preferência – como ser fixada diretamente pela lei, caso em que se denomina preferência legal. E essa duplicidade de fontes se verifica tanto na preferência-garantia quanto na preferência-contrato. Assim, a preempção prevista no citado art. 513 do Código Civil é hipótese típica de preferência convencional, sendo certo que é pacto passível de integrar outros contratos, além da compra-e-venda. Já o chamado direito de preferência estabelecido no art. 27 de nossa Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, que versa sobre as locações de imóveis urbanos, é preferência legal, eis que impõe ao locador que deseja alienar o imóvel locado dirigir a proposta de venda primeiramente ao locatário153, que poderá exercer tal direito em 30 dias, manifestando sua aceitação integral à proposta, sob pena de extinção154. Ora, sendo, o objetivo deste capítulo, promover uma análise comparativa entre a proposta de contrato e outras figuras semelhantes inseridas na fase pré-contratual, visando com isso progredir no conhecimento vertical do tema-alvo desta tese, é evidente que somente interessa abordar neste passo a preferência atinente à formação do contrato, sobretudo na modalidade convencional. 153 Art. 27: “No caso de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de direitos ou dação em pagamento, o locatário tem preferência para adquirir o imóvel locado, em igualdade de condições, com terceiros, devendo o locador dar-lhe conhecimento do negócio mediante notificação judicial, extrajudicial ou outro meio de ciência inequívoca”. 154 Art. 28: “O direito de preferência do locatário caducará se não manifestada, de maneira inequívoca, sua aceitação integral à proposta, no prazo de trinta dias”. O descumprimento do dever de preferência pelo locador acarreta-lhe as sações do art. 33, que dispõe: “O locatário preterido no seu direito de preferência poderá reclamar do alienante as perdas e danos ou, depositando o preço e demais despesas do ato de transferência, haver para si o imóvel locado, se o requerer no prazo de seis meses, a contar do registro do ato no Cartório de Imóveis, desde que o contrato de locação esteja averbado pelo menos trinta dias antes da alienação junto à matrícula do imóvel”. 73 Isto posto, parece-me que TAMBURRINO155 soube identificar muito bem a natureza jurídica do pacto de “prelazione” – chamado por nosso legislador civil de “preempção” – distinguindo, quanto à sua estrutura, os seguintes elementos: (a) obrigação do promitente de preferir o promissário ou um terceiro por este indicado, se decidir celebrar determinado contrato; (b) especificação das condições pelas quais a preferência deve ser atendida pelo promitente, normalmente em paridade de condições da proposta de contrato do promitente ou de terceiro alheio às partes, a qual o promitente pretende aceitar; (c) liberdade, para o promitente, de concluir ou não o futuro contrato, no sentido de que a obrigação de preferir o promissário somente nasce se o promitente decidir concluir o contrato; (d) conseqüente obrigação do promitente de comunicar o promissário de que ele pretende concluir o contrato; (e) necessidade de fixação de um prazo para a validade do pacto; (f) liberdade do promissário de exercer ou não o direito de preferência. À luz dessas distinções, TAMBURRINO vê no pacto de preempção ou preferência a natureza de contrato preparatório de um futuro contrato, que se distingue dos demais contratos e atos preparatórios (tratativas, minuta, carta de intenções, proposta de contrato, opção e contrato preliminar) por suas características de (i) não contribuir com a determinação do conteúdo (fixação de cláusulas) do contrato definitivo e (ii) não implicar uma obrigação, para o promitente e/ou promissário, de concluir o contrato definitivo, tal como ocorre com a opção, a proposta irrevogável e o contrato preliminar, seja este unilateral ou bilateral. 74 Na verdade, a função do pacto de preempção é exclusivamente a de preferir certo sujeito na conclusão de um provável e futuro contrato. É, em síntese, um vínculo inserido na formação de um futuro contrato, auxiliando-o mediante (i) a preferência na escolha da contraparte e (ii) a limitação da liberdade em referência a essa escolha156. 155 Cf. TAMBURRINO, Giuseppe. op. cit., p. 108-111. 156 Cf. Id., Ibid., p. 114-115. 75 SEÇÃO B: ESTRUTURA DA OFERTA AO PÚBLICO 76 CAPÍTULO 6: A EXPANSÃO DA OFERTA AO PÚBLICO No Brasil, muito antes do advento do Código Civil de 2002, a doutrina já admitia a existência jurídica da oferta contratual ao público em nosso ordenamento, valendo citar, a título de exemplo, JOSÉ XAVIER CARVALHO DE MENDONÇA, que em 1934 já escrevera que “oferecem-se propostas a pessoas indeterminadas se o proponente, fixando os elementos objetivos do futuro contrato, se dirige a um círculo mais ou menos vasto de pessoas, com a intenção de se obrigar para com aquela que, conhecendo esta oferta, declara aceitá-la. Deste modo, a pessoa, na conclusão do contrato, vem a ser determinada” 157. No mesmo sentido PONTES DE MIRANDA, para quem “a oferta pode ser a pessoa determinada e conhecida do vendedor, ou a toda pessoa que venha a conhecê-la e queira aceitá-la. Dos automáticos são o exemplo mais característicos. ‘Quando se observam as realidades da vida moderna, logo se nos apresenta’ escrevíamos em 1927 (Da promessa de recompensa, p. 20), ‘uma porção de fatos, cada um com precisos caracteres próprios, mas pertencentes, por traços comuns, à mesma categoria: exposição de mercadorias em mostruários, anúncios públicos, locação de aparelhos automáticos, que fornecem mercadorias, ou prestam serviços, avisos públicos, promessas públicas de recompensa ou de doação [...], subscrição para monumentos, festas, comemorações, exposições, garden party, empréstimos públicos, e muitíssimos outros fatos de socialização da vontade considerada geradora e constitutiva dos vínculos jurídicos” 158. Surpreendentemente, a Argentina, até hoje, tanto no âmbito das relações P2P quanto B2B não empresta existência jurídica à oferta ao público, por expressa disposição do art. 1148 de seu Código Civil (CCar), in verbis: “para que haja promessa, esta deve ser a 157 CARVALHO DE MENDONÇA, José Xavier. Tratado de direito comercial brasileiro: das obrigações, dos contratos e da prescrição em matéria comercial. Parte 1 – das obrigações em matéria comercial. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1934. v. 6, Livro 4, p. 469 (destaquei). 158 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1977. t. 13, § 1432, p. 28 (destaquei). 77 pessoa ou pessoas determinadas sobre um contrato especial, com todos os pressupostos constitutivos dos contratos” 159 . É certo que um projeto de Código Civil datado de 1987 chegou a estabelecer a hipótese de a oferta contratual poder se dirigir a “pessoa determinada ou indeterminada” 160 . Todavia, embora aprovado pelo Senado de la Nación, tal projeto foi integralmente vetado pelo então Presidente CARLOS MENEM. Novos movimentos de reforma do direito privado surgiram na Argentina, desta vez trilhando caminhos paralelos. Assim, o Poder Executivo, mediante o Decreto n. 462 de 1992, apresentou ao Congreso de la Nación um projeto de unificação do direito privado, que ao reproduzir o texto do art. 1148 do Código Civil até hoje em vigor, substituiu o vocábulo “determinada” por “determinável”, o que abriria uma brecha para se reconhecer efeitos vinculativos à oferta ao público. No ano seguinte, a Comisión de Legislación General de la Cámara de Diputados de la Nación também apresentou um novo projeto de unificação, que dando um passo atrás em relação ao Projeto de 1992, voltou a impor à oferta contratual a exigência da predeterminação da pessoa do destinatário. Dois anos depois, o Poder Executivo, por meio do Decreto n. 685 de 1995, nomeou uma “Comisión de Estudios de las Reformas al Código Civil”, integrada pelos juristas HÉCTOR ALEGRÍA, ATILIO A. ALTERINI, JORGE H. ALTERINI, AUGUSTO CÉSAR BELLUSCIO, ANTONIO BOGGIANO, AÍDA KEMELMAJER DE CARLUCCI, MARÍA JOSEFA MÉNDEZ COSTA, JULIO CÉSAR RIVERA y HORACIO ROITMAN, e presidida por LUIS LEIVA FERNÁNDEZ. Todavia, este projeto limitou sobremaneira a vinculatividade da oferta ao público, pois seu art. 923 estabeleceu que “a oferta dirigida a pessoas indeterminadas é considerada como convite para que façam ofertas, salvo se de seus termos ou das circunstâncias de sua 159 Destaquei. 160 Proyecto de la Cámara de la Nacion para la reforma e unificación de código civil y comercial, art. 1147 (destaquei). 78 emissão resulte a intenção de contratar do oferente. Em todo caso, considera-se que ela foi emitida pelo tempo e segundo as condições dos usos” 161. JORGE MOSSET ITURRASPE, dentre outros162, vem denunciando com veemência o enorme descompasso entre este velho preceito do Código Civil argentino e a realidade atual do mercado, onde a maioria das ofertas de contrato se dirigem ao público, e não a pessoas determinadas163: “Parece-nos forçado sustentar – diz o ilustre jurista argentino – que quem oferece um produto ou serviço, por qualquer meio que seja, não faz outra coisa que ‘convidar a ofertar’. O destinatário da publicidade comercial tem a clara sensação de receber uma oferta, verdadeira, simples, direta, e não outra situação. A qualificação de ‘oferta’ respeita a aparência, a confiança do destinatário; a qualificação que interpreta existir só um convite, para que a partir dele se façam ofertas, cria insegurança e defrauda as legítimas expectativas. O ‘convite a ofertar’ pode existir, mas com esse nome, claramente identificado como tal; não encoberta como oferta a pessoa determinada ou ao grande público. Não se pode aceitar que uma oferta se converta em convite a ofertar por mandado legal, quando se pretende tutelar consumidores, destinatários de tais ofertas, e se prega que o ofertante ‘está obrigado, conforme a regra da boa-fé e segundo as circunstâncias, a pôr ao alcance do destinatário da oferta informação adequada sobre fatos relativos ao contrato que possam ter amplitude para influir sobre sua decisão de aceitar’ (Projeto de Código Civil de 161 Destaquei. É bem verdade que no item 164 dos “Fundamentos del proyecto de código civil” (ALEGRÍA, Hector et al. Proyecto de código civil unificado con el código de comercio. Buenos Aires: Ed. Estudio, 2001. p. 236), os Autores deste projeto afirmam que “quanto ao destinatário da oferta, admite-se que seja dirigida a pessoa, não apenas determinada, como também determinável (oferta ao público), desde que indique, de acordo com os usos e as circunstâncias do caso, a intenção de contratar do emissor, e contenha as especificações necessárias para estabelecer os efeitos que produzirá o contrato, se chegar a ser aceita”. Todavia, há muita diferença entre (i) estabelecer como princípio a vinculativiade da oferta ao público, ainda que prevendo meia dúzia de exceções e (ii) estabelecer o contrário, que o “invitatio ad offerendum” é o princípio, e a “oferta ao público” a exceção. 162 STIGLITZ, Gabriel A. Gestación del consentimiento. Oferta y aceptación. In: STIGLITZ, Rubén S. (Dir.). Contratos: teoría general. Buenos Aires: Depalma, 1993. t. 2, p. 117: “As ofertas a pessoas indeterminadas ou ao público em geral (emitidas por meio de circulares, prospectos, catálogos, listas de preços, envios de tarifas ou avisos análogos, publicidade comercial ou outros meios), carecem, em nosso direito (cf. CC, art. 1148 e CCo, art. 454) de validade como proposta de contrato. Todavia, as exigências do tráfico moderno e de proteção da boa-fé e dos direitos dos consumidores, abrem uma tendência para a consagração do caráter vinculante das ofertas ao público” (destaquei). 163 Cf. MOSSET ITURRASPE, Jorge. [Comentários a los artículos 1137 a 1204]. In: MOSSET ITURRASPE, Jorge; PIEDECASAS, Miguel A. Código Civil comentado: doctrina, jurisprudencia, bibliografía: contratos: parte general – artículos 1137 a 1216. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2004. p. 104. 79 1998, art. 927). Só por exceção e diante de menção expressa poder-se-á interpretar a ‘oferta ao público’ como mero ‘convite a ofertar” 164. Em 1993, porém, certamente pressionado pela realidade inelutável do mercado, o legislador argentino retratou-se pelo menos parcialmente de seu conservantismo, e introduziu a oferta ao público no âmbito das relações B2C, por intermédio do art. 7º da LPDC, de seguinte teor: “A oferta dirigida a consumidores potenciais indeterminados obriga a quem a emite durante o tempo em que se realize, devendo conter a data precisa de começo e finalização, assim como também as modalidades, condições ou limitações. A revogação da oferta feita pública é eficaz, uma vez que tenha sido difundida por meios 165 similares aos empregados para fazê-la conhecer” . Aliás, o legislador argentino foi mais além: a exemplo do art. 8.1 da LGDCU e do art. 30 do CDC, também adotou o princípio da integração publicitária do contrato, estabelecendo no art. 8º da mesma Lei, sob forma inclusive mais técnica, clara e precisa que as normas espanhola e brasileira, que “as especificações formuladas na publicidade ou nos anúncios, prospectos, circulares ou outros meios de difusão obrigam o ofertante e consideram-se incluídas no contrato com o consumidor”, o que será analisado oportunamente neste trabalho. Mas voltando ao tema da oferta contratual, é notória a tendência atual à consagração da vinculatividade oferta ao público. Como registrou oportunamente VINCENZO GIUFFRÈ, “o mundo jurídico antigo ignorava as formas de contratação estranhas ao mecanismo da proposta individualizada, em que havia sempre a possibilidade, pelo menos abstrata, de 166 se discutir o conteúdo do acordo” . Hoje, com o predomínio das relações econômicas de massa, a oferta ao público e a celebração em série de contratos de adesão são técnicas de comercialização indispensáveis. 164 Id. Ibid., p. 106. 165 Destaquei. 166 GIUFFRÈ, Vincenzo. Offerta al pubblico: storia. In: Enciclopedia del diritto. Milano: Giuffrè, v. 23, p. 754761, 1961. p. 755. 80 Sinal dessa tendência é a evolução da disciplina da oferta ao público no âmbito do direito do comércio internacional. Deveras, enquanto a CISG-UNCITRAL, datada de 1980, adotou o que se poderia chamar de “princípio do invitatio ad offerendum” – eis que seu art. 14.2 estabeleceu que “a proposta não dirigida a uma ou várias pessoas determinadas será considerada como um simples convite a fazer ofertas, a menos que a pessoa que faça a proposta indique claramente o contrário” –, os PDEC-LANDO, mais jovens que aquele diploma, já contemplam princípio inverso, qual seja a vinculatividade da oferta ao público. Confirase as seguintes alíneas do art. 2:201: “(2) A oferta pode dirigir-se a uma ou várias pessoas determinadas ou ao público; (2) A proposta feita por um profissional, em anúncios, por catálogo ou mediante a exposição de mercadorias, de fornecer bens ou serviços a um preço determinado, é considerada como oferta de vender ou de fornecer, pelo preço indicado, até que se esgotem as mercadorias estocadas ou a capacidade do profissional de prestar o serviço” 167 . 81 CAPÍTULO 7: REQUISITOS DA OFERTA AO PÚBLICO 1. Requisitos extrínsecos 1.1. Indeterminação dos destinatários Até hoje a doutrina jurídica alemã é renitente em reconhecer vinculatividade às declarações de vontade dirigidas ad incertam personam, particularmente às ofertas ao público. O princípio da especificação do destinatário da declaração de vontade reinou inconteste no Direito Comum Europeu, tendo sido neste ambiente que, em 1861, o ADHGB estabeleceu que “a oferta que se dirige manifestamente a várias pessoas, em particular, mediante comunicação de listas de preços, catálogos, provas, amostras, não 168 constitui uma oferta de venda vinculante” . Embora o BGB, em 1896, não tenha reproduzido esta norma, tampouco o HGB de 1897, não se pode dizer que o princípio da especificação do destinatário tenha sido abolido do ordenamento jurídico alemão. Muito pelo contrário. Segundo FLUME, “o legislador do BGB conscientemente não dispôs uma regra expressa sobre o convite a fazer proposta (Aufforderung zur Offerte), pois julgou-o desnecessário” 169, o que parece indicar que estaria tão arraigado na consciência jurídica da época que os anúncios em jornais, o envio de catálogos com indicação de preço dos produtos, a exposição de produtos em vitrinas também com indicação de preços, não eram reputadas vinculantes, a ponto de o legislador julgar despiciendo introduzir no BGB disposição expressa a respeito. 167 PDEC-LANDO, art. 2:201, 2 e 3 (destaquei). 168 ADHGB, art. 337 (destaquei). 169 FLUME, Werner. op. cit., § 35, I, 1, p. 636 (destaquei). 82 Para JOHANNES KÖNDGEN170, esse medo às declarações ad incertam personam deve-se em grande parte à autoridade e prestígio de FRIEDRICH KARL VON SAVIGNY. Com efeito, após lembrar que o direito romano (i) vetava as disposições de última vontade a pessoas indeterminadas171 e (ii) negava validade ao contrato em favor de terceiro que não tivesse outorgado a algum dos contratantes mandato específico para tal efeito, SAVIGNY sustentou em seu “Obligationenrecht” o entendimento de que as ofertas de contrato dirigidas a pessoas indeterminadas eram, em princípio, “impossíveis” 172 no direito alemão, porque “as obrigações, vistas como limitações à liberdade natural (Beschränkungen der natürlichen Freiheit), não foram concebidas para essa finalidade, de modo que admitir ofertas a pessoas indeterminadas equivaleria a deturpar a figura jurídica da ‘obrigação’”173. Seguindo essa linha de raciocínio, SAVIGNY chegou a sustentar – naturalmente, antes do advento do BGB – , que pela promessa de recompensa anunciada publicamente, o promitente não se obriga a pagar a quantia anunciada a quem logrou alcançar o resultado almejado, não havendo ação, portanto, no Direito Comum, para se reclamar a soma prometida. O que não significa – pondera SAVIGNY – que a promessa seja destituída de conseqüências, já que quase sempre a soma prometida é paga espontaneamente, como acontece na maioria dos débitos de jogo, que são ordinariamente saldados com mais regularidade que muitos outros débitos”174. Ainda sob essa mesma ótica, SAVIGNY não reconhecia na venda em hasta pública ou leilão uma oferta de contrato ad incertam personam, pois independentemente da discussão sobre qual o momento em que esse tipo de contrato se aperfeiçoa, o adquirente, 170 Cf. KÖNDGEN, Johannes. Selbstbindung ohne Vertrag. Tübingen: Mohr, 1981. p. 284. 171 Cf. SAVIGNY, Friedrich Karl von. Le obbligazioni. Milano: UTET, 1915. v. 2, § 61, p. 83, nota “(a), muito embora esclareça na mesma nota que a proibição foi posteriormente abolida por Justiniano (J. de legatis: 2, 20). 172 Id. Ibid., § 61, p. 84. 173 Id., loc. cit. 174 Id. Ibid., § 61, p. 85. 83 tão logo se opera a conclusão do contrato, já é pessoa determinada e visível, de modo que toda a indeterminação que se apresentava era relativa apenas ao tempo em que o contrato ainda estava em formação, e não mas à fase posterior à sua constituição175. Parece-me, no entanto, que, com este raciocínio, SAVIGNY confunde indeterminação de parte contratual com indeterminação de destinatário de proposta de contrato. São realidades complemente diferentes. Por definição, uma vez concluído um contrato, não há como uma das partes permanecer indeterminada 176 , ainda que a proposta para a celebração deste contrato se tenha direcionado originariamente ad incertam personam. SAVIGNY transplanta à fase pré-contratual, uma exigência exclusiva relação jurídica contratual, qual seja a determinação dos sujeitos. Na oferta contratual ao público, a indeterminação subjetiva do oblato é apenas transitória, pois no exato momento em que uno ex publico – para usar uma expressão cara a PONTES DE MIRANDA – vier a aceitar a oferta, a pessoa do destinatário vem a se determinar, e a relação jurídica contratual exsurge entre partes determinadas. Bem escreveu GEORGES PIERI, ao discorrer sobre a evolução histórica do conceito de obligatio, que “os pandectistas interpretaram os textos romanos a partir das categorias do pensamento jurídico moderno, considerando o vínculo jurídico como relação fundada sobre a vontade de dois sujeitos, na qual se baseia o direito do credor em face da vinculação do devedor, tendo, no centro, a prestação como objeto da obrigação. A definição moderna de obrigação, conservando inteiramente a linguagem do direito romano, deturpou o seu espírito, sobretudo por introduzir os pressupostos subjetivistas e morais da filosofia do direito natural, acarretando um conceito de relação fundada sobre o encontro voluntário de dois sujeitos iguais em obrigação jurídica, desiguais em 175 176 Cf. Id., loc. cit. Mesmo no caso do "contrato com pessoa a declarar" previsto nos artigos 467 e seguintes do nosso Código Civil, a parte à qual se reserva o direito de nomear o terceiro ao qual cederá a sua posição contratal, já é determinada, embora transitória, enquando parte. 84 obrigação moral ou política, mas em ambos os casos estabelecidos sobre a noção de dever” 177. O fato é que, graças à autoridade de SAVIGNY, essa postura individualista calou fundo no pensamento dogmático alemão, de tal modo que até hoje, naquele país, vê-se com reservas a existência jurídica de ofertas de contrato dirigidas ao público, conforme se verá melhor adiante. 1.2. Não-recepticiedade Em Capítulo anterior, ao discorrer sobre o caráter receptício da proposta de contrato, procurei salientar duas idéias: (i) na sistemática do BGB, o momento da chegada da declaração (Zugang der Erklärung) à esfera de conhecimento do destinatário é pressuposto legal da geração dos efeitos jurídicos (Wirksamweden) que lhe são 178 próprios ; (ii) esse pressuposto (recepção pelo destinatário) não se aplica, por definição, às declarações de vontade não-receptícias179. Pois bem. À luz desses conceitos legais, KÖNDGEN observou com argúcia que a oferta ao público, não sendo endereçada, por definição, a pessoas individuadas ou prédeterminadas – o que significa dizer que é constituída de declaração de vontade nãoreceptícia – surte seus efeitos jurídicos no momento da sua publicização ou divulgação 177 PIERI, Georges. Obligation. Archives de Philosophie du Droit, Paris, t. 35, p. 231, 1990. Vocabulaire fondamental du droit. 178 Cf. BGB, § 130. 179 Cf. SALEILLES, Raymond. [Comentários ao § 130]. In: BUFNOIR, C. et. al. Code Civil Allemand: (§§ 1 a 432). Paris: Imprimerie Nationale, 1904. t. 1, p. 143: “Se a emissão confere à declaração um valor jurídico, tendo desde já, pelo mesmo fato, uma existência independente, a recepção apenas lhe dá a perfeição, tornando-a irrevogável: somente a recepção a torna um produto jurídico definitivo e doravante acabado. Mas isso somente é verdade em relação às declarações à parte [receptícias]; aquelas que não se endereçam a ninguém, não têm necessidade de recepção [...]. Elas são definitivas desde que se encontre acabado o ato pelo qual elas devem se manifestar, salvo revogabilidade particular, como no caso do § 658” (destaquei). 85 ao público, sendo de todo irrelevante o fato de o conteúdo da oferta ter efetivamente chegado ou não ao conhecimento de alguém “do público”180. A ilustração de KÖNDGEN a respeito não poderia ser mais esclarecedora: “a oferta feita por meio de anúncio em jornal gera efeitos vinculativos no momento em que o jornal é publicado, e não quando um exemplar do jornal chega à caixa de correio do assinante”181. Na Itália, embora parte da doutrina vislumbre um caráter receptício na oferta ao público182, entendo que a razão esteja com MIRABELLI, para quem “a oferta ao público, assim como a promessa de recompensa, não pode ser considerada declaração receptícia em sentido próprio (cf. CC, art. 1334), pois não se dirige a pessoa determinada; todavia, como declaração, adquire eficácia no momento em que se torna perceptível à coletividade ou ao grupo ao qual se dirige” 183. No mesmo sentido BIANCA: “Diferentemente dos atos receptícios, a eficácia jurídica da oferta ao público não se subordina à recepção do ato por um determinado sujeito, mas basta que o proponente a tenha emitido sua oferta de modo a torná-la cognoscível” 184. Não deixa de ser interessante, também, a observação de RODOLFO SACCO, segundo a qual “na oferta ao público há alguma coisa menos que a recepção (e, neste sentido, a declaração pode se dizer não-receptícia); todavia há também algo mais que a simples emissão, porque há a publicação; este requisito ulterior não é um fato que se agrega a declaração, mas um requisito constitutivo da mesma” 185. 180 Cf. KÖNDGEN, Johannes. op. cit., p. 289-291. 181 Id. Ibid., p. 289-291. 182 Cf. CAMERIERI, Fausto. op. cit., p. 115: menciona FORCHIELLI, SCOGNAMIGLIO, DI MAJO e MESSINEO. 183 MIRABELLI, Giuseppe. op. cit., p. 110 (destaquei). 184 BIANCA, C. Massimo. op. cit., t. 3, n. 113, p. 251-252. 185 SACCO, Rodolfo. op. cit., p. 80. T. 2. 86 2. Requisitos intrínsecos 2.1. Intenção de vincular-se Assim como a proposta de contrato, a oferta ao público tem como requisito sine qua non a intenção, do ofertante, de vincular-se juridicamente. O bom senso indica que o próprio ato de propor ao público a celebração de um contrato determinado e completo já denota, por si só, uma clara intenção do proponente de vincular-se perante os eventuais aceitantes. Pensar diferente significaria contrariar o princípio lógico do non venire contra factum proprium. Na verdade, as dificuldades quanto a este ponto não reside tanto em aceitar, em abstrato, que o ato de propor ao público a celebração de certo contrato já pressuponha a intenção vinculativa do anunciante, e sim em discernir quais práticas comerciais ou sociais devem ser consideradas como oferecimento de contrato ao público. Acredito que a revisitação da velha polêmica “oferta ao público x invitatio ad offerendum” – a qual procuro promover no próximo Capítulo – poderá trazer luzes novas a respeito. 2.2. Conteúdo mínimo ou suficiente Para que uma declaração negocial dirigida ad incertam personam tenha a eficácia de oferta ao público, ela deve descrever os elementos mínimos da modalidade contratual a que se refere, de tal modo que a conclusão deste não demande outra declaração complementar além da própria aceitação de um interessado186. 87 Com efeito, por mais precisas que possam ser as informações ou condições negociais veiculadas por mensagens publicitárias, se elas não forem suficientes para delinearem a figura de um contrato determinado – ainda que em sua estrutura mínima –, tais mensagens não constituem ofertas ao público nos termos do art. 429 do Código Civil. Portanto, na oferta ao público, assim como na proposta de contrato a pessoa determinada, a auto-suficiência ou o conteúdo mínimo da declaração também é requisito essencial. Isso não obstante, desde o advento do art. 30 do CDC, um anúncio publicitário, assim, incompleto ou insuficiente ao delineamento do conteúdo de um contrato, não é ato destituído de eficácia jurídica, pois se dotado de elementos “suficientemente precisos” 187 , tais elementos integrarão necessariamente e a posteriori o contrato que vier a ser celebrado em função da publicidade em questão, como se cláusulas contratuais fossem. Eis o tema que, ao lado da oferta ao público, ocupa lugar primordial neste trabalho, ao qual reservei a Parte IV. 186 Cf. DÍEZ-PICAZO, Luis. Fundamentos del derecho civil patrimonial. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1998. p. 208209. 187 CDC, art. 30. 88 CAPÍTULO 8: INTERFACES DA OFERTA AO PÚBLICO 1. Invitatio ad offerendum 1.1. A amplitude do invitatio ad offerendum no direito alemão Até hoje predomina na doutrina alemã o entendimento de que os anúncios de contratos, assim, completos, acabados, veiculados nos meios de comunicação de massa, tais como a distribuição ampla e aleatória de folders, prospectos e catálogos de produtos ou serviços com indicação de preços, a exposição de mercadorias em vitrinas, enfim, todas as práticas comerciais a estas assemelhadas, não constituem ofertas vinculantes de contrato nos termos preconizados pelo § 145 do BGB, mas somente estímulos, incentivos ou convites a contratar com o anunciante. A justificativa – segundo KÖNDGEN – residiria em não se aceitar que o ofertante possa submeter-se a uma obrigação de contratar (Kontrahierungszwang) contrária à sua legítima liberdade de decisão (Entscheidungsfreiheit). Por outro lado, receia-se que a aceitação de um número ilimitado de pessoas possa gerar a conclusão de um volume de contratos que supere os estoques do proponente, quanto aos bens, ou a sua capacidade de prestar, quanto aos serviços188. Assim, por exemplo, na opinião de KÖTZ, nos casos em que é perceptível ao destinatário que não só a ele foi dirigida uma proposta, mas também a uma infinidade de outras pessoas, a oferta não poderia ser interpretada, do ponto-de-vista jurídico, como proposta de contrato propriamente dita, pois a declaração de aceitação de todos os destinatários teria o condão de criar tantas relações contratuais, que o proponente não teria 188 Cf. KÖNDGEN, Johannes. op. cit., p. 291. 89 como atender a todos em virtude da ausência de produtos ou da capacidade de executar os contratos ao mesmo tempo, vindo a responder por perdas e danos189. WERNER FLUME – depois de observar que (i) o critério que diferencia a proposta de contrato do mero incentivo a fazer ofertas (Aufforderung zur Offerte) residiria na íntima vontade contida na declaração, e que (ii) deveria ser analisado em cada caso se o proponente, com a proposta, visava a celebração do contrato, ou somente tinha o fito de mostrar-se disposto a celebrá-lo –, afirma categoricamente que “o convite à apresentação de propostas está sempre presente quando a declaração é direcionada a um número incerto de pessoas, restando claro, em virtude da limitação do produto ofertado ou do serviço oferecido, não poder o proponente cumprir a oferta se todos os destinatário incertos vierem aceitar a proposta” 190. Para LARENZ-WOLF, práticas como o envio de catálogos de mercadorias, o anúncio de produtos/serviços em jornal, a colocação do cardápio à porta do restaurante, a exposição de artigos na vitrina da loja, enfim, todos os métodos de divulgação de produtos/serviços ao público em geral, mesmo que acompanhados dos respectivos preços, não constituem propostas de venda, mas incentivos ou convites à apresentação de propostas de compra (Aufforderungen zur Abgabe von Kaufangeboten), pois (i) por um lado, se o bem anunciado é infungível, sempre resta ao comprador o poder de escolhê-lo, e se fungível, a quantidade a ser vendida permanece incerta até que este se manifeste a respeito; (ii) por outro lado, o ofertante não quer deixar ao livre arbítrio do comprador o direito de concluir o contrato, e sim reservar para si a possibilidade de, antes de dá-lo por concluído, checar seu crédito na praça, ou seu poder de compra, etc. A proposta, portanto, surgiria no momento em que o comprador declara sua vontade de adquirir o produto pelo preço indicado. Somente quando o vendedor aceita a proposta de compra do interessado é que se considera concluído o contrato 191. 189 KÖTZ, Hein. Europäisches Vertragsrecht. op. cit., § 2, p. 28. 190 FLUME, Werner. op. cit., § 35, p. 637. 90 1.2. A refutação de KÖNDGEN Em crítica contundente à doutrina alemã do invitatio ad offerendum, KÖNDGEN afirmou que ela “é tão divorciada da vida quanto insustentáveis são os seus argumentos. Dizer que a prática de expor mercadorias em vitrinas de lojas com a indicação dos preços representa mero convite aos transeuntes para fazerem ofertas ao comerciante equivaleria a equipará-la às vendas de mão-em-mão do comércio oriental, quando ainda havia tempo e disposição para se negociar, e onde a prefixação de preço nunca fez parte das ‘regras do jogo’ negocial. O consumidor ocidental tem pressa. Suas necessidades diárias reclamam rápida cobertura, e ele não tem disposição para travar onerosas negociações contratuais”192. Ainda segundo o Autor, o argumento de que o proponente, antes de se vincular, gostaria de checar a solvabilidade do comprador perde todo o valor diante das compras à vista em dinheiro. O mesmo vale para o argumento de que o proponente quereria se proteger contra a eventualidade de ocorrerem mais aceitações do que sua capacidade de fornecer: as ofertas especiais do comércio (Sonderangebot) são exemplos clássicos de obrigação de vender condicionada ao estoque (Vorratsschuld)193, de modo que sem precisar fazer uso de qualquer ficção jurídica, o vendedor não tem a obrigação de fornecer bens (Beschaffungspflicht) se o estoque se esgotou194. 191 Cf. LARENZ, Karl; WOLF, Manfred. op. cit., § 29, p. 555. 192 KÖNDGEN, Johannes. op. cit., p. 292-293. 193 Prática que no Brasil, como sabido, recebe o sugestivo nome de liquidação: ninguém do público consumidor duvida que a intenção do comerciante é efetivamente “liquidar” o seu estoque e que, portanto, os produtos ofertados têm grande possibilidade de se esgotarem rapidamente. 194 Cf. KÖNDGEN, Johannes. op. cit., p. 292-293. Neste mesmo passo, afirma que o BGH (BundesgerichtshofI) , tem adotado uma postura desconcertante, no sentido de não conferir vinculatividade a propostas de contrato em jornal, mesmo quando a hipótese é tecnicamente subsumível ao § 145 do BGB. 91 Reforçando ainda mais sua crítica, KÖNDGEN resgata um antigo estudo de VICTOR EHRENBEG195, em que partindo da análise da publicidade dos registros do comércio (Handelsregister), aponta os efeitos jurídicos das declarações de vontade dirigidas ao público. Para KÖNDGEN, além de pioneiro, tal estudo se afigura extremamente atual nos dias de hoje, em que a sociedade se depara com um sem-número de fenômenos contratuais de massa196. Deveras, compulsando sua obra, vê-se que EHRENBERG sustenta que uma declaração de vontade endereçada a certa generalidade de pessoas (Allgemeinheit) tem significação jurídica própria: quem o faz no contexto de uma atividade comercial habitual deve presumir que os terceiros, do público, sempre a considerarão correta e veraz. É por esta razão que se pode considerar certo um fato inscrito no órgão de registro do comércio: os efeitos de uma declaração emitida nestes moldes consiste em vincular o declarante em relação a seu conteúdo, esteja este certo ou errado. Os terceiros consideram o conteúdo da declaração certo, verdadeiro. O declarante fica a ele de tal modo vinculado que não pode opor validamente, contra terceiros, fatos contrários ao registrado, ainda que alegue ter havido erro, dolo ou coação. Naturalmente, judicialmente a declaração se as poderá anular causas anulatórias invocadas pelo autor se comprovarem197. Ora, se se admite vinculatividade às declarações que se tornam públicas pelo ato de registro do comércio, porque não admiti-lo também às ofertas contratuais publicitadas pelos modernos meios de comunicação de massa? 195 EHRENBEG, Victor. Personen des Handelsrechts. Im allgemeinen. In: EHRENBERG, Victor (Her.). Handbuch des gesamten Handelsrechts. Leipzig: O. R. Reisland, 1913. Erster Band. 196 Cf. KÖNDGEN, Johannes. op. cit., p. 285. 197 Cf. EHRENBEG, Victor. op. cit., § 61, p. 645-650. 92 1.3. A retratação parcial da doutrina alemã 1.3.1. A disponibilização de “Verkaufsautomaten” ao público Muitos anos depois daquelas velhas lições de SAVIGNY, a doutrina jurídica alemã, em meados do século passado, retratou-se parcialmente dessa concepção individualista das declarações de vontade ad incertam personam. Digo parcialmente porque fez pequena concessão à vinculatividade das ofertas ao público, considerando como tal a disponibilização de aparelhos automáticos que fornecem bens para consumo imediato. Reportando-se a autores mais antigos como LUDWIG ENNECCERUS, HANS NIPPERDEY, ANDREAS VON THUR, dentre outros, FLUME aceita que a disponibilização de produtos ou serviços para imediata utilização (Inanspruchnahme) é oferta ao público vinculante, em face da qual o contrato nasce com a imediata utilização do bem entregue pela máquina. Seria oferta a qualquer pessoa, que por meio do correto procedimento e da entrega da mercadoria (Übereignung) pela máquina adquire um produto ou serviço198. LARENZ-WOLF são da mesma opinião: “É verdadeira proposta, e não mero convite para a apresentação de propostas, a disposição e o funcionamento de uma máquina automática (Verkaufsautomat). A oferta tem sua duração condicionada à exata quantidade de produtos que se encontram dentro do aparelho. A aceitação ocorre nos moldes do § 151 do BGB, por meio de determinada atuação da vontade (Willensbetätigung), que se reflete no procedimento para extrair o produto da máquina”199. 198 Cf. FLUME, Werner. op. cit., § 35, p. 636. 199 LARENZ, Karl; WOLF, Manfred. op. cit., § 29, p. 556. 93 Para KÖNDGEN, porém, essa pequena concessão ao princípio da vinculatividade da oferta ao público não tem muito valor, pois a disponibilização ao público de uma fornecedora automática de bens e serviços por meio da inserção de moedas em orifício apropriado não é oferta ad incertam personam, mas verdadeira compra-evenda real (schlichter Realkauf), no sentido em que tradicionalmente se atribui, tal natureza, aos contratos de mútuo, depósito e comodato200. 1.3.2. A oferta de serviços públicos essenciais Os mesmos autores também admitem como vinculantes as ofertas de serviços públicos essenciais, como eletricidade, gás, água, telefonia, etc., as quais não poderiam ser qualificadas de convite a apresentação de ofertas, e sim verdadeiras propostas de contrato, visto que o oferecimento destes serviços para a população está sob a égide de uma obrigatoriedade vinculativa (Kontrahierungszwang). Também em outros casos de comércio em massa, em que o proponente renuncia à escolha de determinado cliente, a oferta ao público deve ser considerada proposta e não invitatio ad offerendum 201 . 1.4. Catálogos virtuais: oferta ao público ou invitatio ad offerendum? 1.4.1. Colocando o problema No âmbito da legislação comunitária européia, pode-se dizer que “mercado eletrônico” é aquele em que os agentes econômicos – produtores, distribuidores e consumidores – interagem por meios eletrônicos, e “comércio eletrônico” o que se baseia no tratamento eletrônico de dados, inclusive textos, imagens e vídeos. 200 Cf. KÖNDGEN, Johannes. op. cit., p. 285. 201 Cf. Id., loc. cit. 94 O comércio eletrônico abarca um leque amplo de operações, não só de troca de bens e serviços entre empresas e consumidores, como também de empresas entre si e entre estas e a Administração Pública, tais como transferência eletrônica de fundos, pagamento eletrônico de tributos, bens e tributos, remessa de documentos (orçamentos, fatura, ordens de transporte, documentos aduaneiros, etc.). Segundo observou MARIO CLEMENTE MEORO, na Espanha, o comércio eletrônico oferece muitas vantagens em relação aos mercados tradicionais, pois ao propiciar uma gestão mais racional das transações comerciais, (i) incrementa a eficiência empresarial, (ii) melhora os procedimentos de prestação de contas, (iii) reduz custos, (iv) diminui as barreiras de entrada, (v) amplia os mercados existentes, (vi) cria áreas de atividade empresarial inteiramente novas e (vii) permite aos consumidores gozarem de maior liberdade de eleição202. Lembra também, o mesmo Autor, que o comércio eletrônico é fenômeno anterior ao surgimento da “World Wide Web”, ou “Internet”, pois, antes dela, as empresas já intercambiavam dados e transações mediante redes de comunicação mais restritas, como a que se estabelece por exemplo entre a empresa administradora de cartões de crédito, o consumidor titular do cartão, o estabelecimento comercial que o aceita como meio de pagamento e as instituições bancárias do titular do cartão e do estabelecimento comercial203. Outro exemplo significativo registrado oportunamente por ANA PAULA CARVALHO GAMBOBI é o “Bildschirmtext (Btx), na Alemanha, semelhante, ao “Minitel” da França, que são sistemas de comunicação de dados comerciais que possibilitam a transmissão de mensagens individuais204. 202 Cf. MEORO, Mario E. Clemente. Algunas consideraciones sobre la contratación electrónica. Revista de Derecho Patrimonial, Pamplona, n. 4, p. 59-86, 2000, p. 60. 203 Cf. Id., loc. cit. 204 Cf. CARVALHO, Ana Paula Gambogi. Contratos via Internet segundo os ordenamentos jurídicos alemão e brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 37, nota 30. 95 Todavia, é cediço que a expansão vertiginosa do comércio eletrônico deu-se nas teias da Internet. Ainda na opinião de CLEMENTE MEORO, duas características explicam o sucesso deste em relação aos demais meios de comércio eletrônico. A primeira delas reside na circunstância de que a Internet propicia uma comunicação em mão dupla entre os atores do mercado, ao contrário dos demais meios de comunicação de massa, como a imprensa, a radiodifusão, a televisão tradicional, etc., que funcionam num único sentido, não permitindo a interoperabilidade entre as partes: para manifestarem a aceitação à determinada oferta veiculada ao público, os destinatários têm de recorrer a meios complementares de comunicação, como o telefone, o correio, não raro até à presença física no estabelecimento comercial do próprio ofertante. Ademais, além de propiciar ao produtor/distribuidor a identificação dos receptores que se interessaram por sua oferta, a Internet permite que estes travem por seu intermédio o indispensável diálogo que conduz à celebração do negócio205. Em segundo lugar, a Internet desenvolve-se a partir de estândares abertos, o que proporciona aos agentes econômicos a possibilidade de participarem de mercados bem mais amplos, as mais das vezes transnacionais206. A “Iniciativa Européia de Comércio Eletrônico” – comunicação ao Parlamento Europeu, Conselho, Comitê Econômico e Social e Comitê das Regiões, de 12 de abril de 1997 –, já resumia a relação entre comércio eletrônico tradicional e comércio eletrônico via Internet no seguinte quadro207: 205 Cf. Id., loc. cit. 206 Cf. Id., loc. cit. 207 COM (97) 157, final, artigo 6: v. http://www.ispo.cec.be/Ecommerce/initiat.htm 96 COMÉRCIO ELETRÔNICO TRADICIONAL COMÉRCIO ELETRÔNICO NA INTERNET só entre empresas empresas-consumidores empresas-empresas empresas-administrações públicas cidadãos-cidadãos círculos fechados, freqüentemente específicos de um setor número limitado de participantes empresariais redes fechadas próprias participantes conhecidos e dignos de confiança a segurança forma parte do desenho da rede O MERCADO É UM CÍRCULO mercado mundial aberto número ilimitado de participantes redes abertas, não protegidas participantes conhecidos e desconhecidos são necessárias segurança e autenticação A REDE É O MERCADO Pois bem. Dentre as inúmeras práticas de comércio eletrônico na Internet, vem ganhando importância crescente em nível nacional e mundial a compra-e-venda de produtos/serviços por intermédio de websites que apresentam um catálogo de itens, acompanhados da indicação dos respectivos preços, ao mesmo tempo que disponibilizam recursos técnicos que propiciam aos internautas não apenas fazerem os seus pedidos, mas também adquirirem direta e imediatamente – “on-line”, como se diz – os itens desejados. São verdadeiras lojas virtuais, que não diferem essencialmente das lojas tradicionais. No parágrafo anterior, utilizei intencionalmente os verbos “apresentar” e “pedir”, em lugar de “ofertar” e “aceitar”, com o propósito de tentar introduzir, de forma a mais imparcial possível, uma questão cujo debate vem ganhando corpo em diversos direitos estrangeiros: a exposição de catálogos de produtos/serviços em websites, acompanhados da indicação dos respectivos preços – as mais das vezes, inclusive, com fotografias de qualidade digital e descrições técnicas completíssimas – teriam a natureza jurídica de ofertas de venda ao público, ou seriam apenas invitatios ad offerendum? E os pedidos dos internautas? Constituiriam, eles, aceitação de oferta de venda ao público, ou seriam apenas propostas de compra endereçadas ao vendedor por intermédio do website ? 97 1.4.2. O risco da oferta ao público A questão tem inegável relevância prática, pois a resposta num ou noutro sentido revelará se o ordenamento jurídico sub examen confere maior proteção ao internauta-consumidor ou ao website-fornecedor. Com efeito, na percepção do civilista espanhol SANTIAGO CAVANILLAS MÚGICA, a posição do proponente, enquanto a proposta de contrato está de pé e não foi ainda aceita, é pior, em termos jurídicos e econômicos, que a posição do oblato. Este carece de qualquer limitação, e pode eleger livremente entre concluir o contrato ou não. O proponente, ao contrário, além de sujeitar-se a certas limitações quanto à liberdade de revogar a proposta (prazo mínimo de irrevogabilidade, boa-fé e confiança do destinatário, etc.), responde, em princípio, por eventuais prejuízos sofridos pelo oblato em razão de uma revogação rápida da proposta. Sob esse prisma, pode-se dizer, portanto, que há um “risco de propor contrato”208. Se tal é a condição do policitante a pessoa determinada, mais ainda seria a posição de quem emite uma oferta de contrato ao público, sobretudo porque, aparentemente, correria o risco de receber uma quantidade de aceitações superior às suas previsões ou ao que efetivamente é capaz de fornecer e, por conseguinte, sofrer as conseqüências jurídicas negativas eventualmente previstas para situações como esta209. 208 209 Cf. MÚGICA, Santiago Cavanillas. La conclusión del contrato en Internet. In: MÚGICA, Santiago Cavanillas; MEORO, Mario E. Clemente. Responsabilidad civil y contratos en internet: su regulación en la Ley de Servicios de la Sociedad de la Información y de Comercio Electrónico. Granada: Comares, p. 117-201, 2003, p. 181. Cf. Id., loc. cit. 98 1.4.3. A neutralidade da Diretiva 2000/31/CE (comércio eletrônico) Embora sem dizê-lo expressamente, a primeira versão da Diretiva 31 da Comunidade Européia, de 8 de junho de 2000 (2000/31/CE), relativa a “certos aspectos jurídicos dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrônico”, pressupunha que os catálogos de produtos ou serviços de lojas virtuais constituiriam ofertas de venda ao público. Segundo CAVANILLAS MÚGICA, teria sido pela influência anglo-germânica que se modificou a primeira redação dessa Diretiva, para eliminar qualquer referência direta ou indireta a uma aceitação do internauta, de uma oferta de produtos ou serviços pelo website comercial210. Com efeito, na “Proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa a determinados aspectos jurídicos do comércio eletrônico e no mercado interno”, apresentada em 23 de dezembro de 1998 pela Comissão encarregada, o art. 11, então intitulado “Momento de celebração do contrato”, estabelecia que o contrato resultaria concluído quando o destinatário do serviço “receber por via eletrônica uma notificação do prestador de serviços acusando o recibo da aceitação do destinatário do serviço [...]” 211. Todavia, na versão final da Diretiva, além de o título do art. 11 ter sido alterado para a “Realização de um pedido”, substituiu-se o vocábulo ‘‘aceitação” por “pedido”. Confira-se: “o prestador de serviços deve acusar o recibo do pedido do destinatário sem demora indevida e por via eletrônica”212. Como visto anteriormente, o direito alemão sempre foi avesso a considerar que um catálogo de produtos ou a exposição de produtos numa prateleira constituam verdadeira e própria oferta contratual. Tais práticas seriam meros convites a receber ofertas, e no âmbito do comércio eletrônico, o internauta que faz um pedido de um item do catálogo é considerado ofertante, enquanto que o dono da loja virtual oblato. 210 Cf. Id. Ibid., p. 183 e 186. 211 UNIÃO EUROPÉIA. Diário Oficial das Comunidades Européias, 5 fev. 1999, p. C 30/11 (destaquei). 212 UNIÃO EUROPÉIA. Diário Oficial das Comunidades Européias, 17 jul. 2000, p. L 178/12 (destaquei). 99 Tudo parece indicar que o que preocupa os empresários alemães não é a perda da liberdade de negar-se a contratar com determinadas pessoas, mas o risco de terem que fazer frente a uma demanda que supere suas expectativas, à qual não possam satisfazer ou deixe de ser rentável fazê-lo” 213. O resultado dessa política legislativa estampa-se no texto final da Diretiva, onde se encontram apenas expressões neutras, como “pedido”, “ordem de encomenda”, “comanda”, etc., dando liberdade, desse modo, a cada direito nacional, decidir se o pedido do internauta à loja virtual deva ser considerado proposta de contrato ou aceitação de oferta de venda ao público214. 1.4.4. A previsível opção do direito alemão O vocábulo “Bestellung” (pedido, encomenda) utilizado no § 312e do BGB215, ao transpor ao direito interno a Diretiva 2000/31/CE, não deixa dúvidas de que o legislador alemão decidiu negar aos catálogos de lojas virtuais a condição de oferta ao público, e tratar, por conseguinte, os pedidos dos internautas como propostas de contrato. Com efeito, para NINA DETHLOFF – uma das maiores autoridades atuais, na Alemanha, em matéria de direito do comércio eletrônico –, as ofertas feitas num website equivalem à exposição de artigos numa vitrina ou a um catálogo de produtos, situações em que o proponente quer reservar para si uma liberdade de disposição (Dispositionsfreiheit): “antes de vincular-se, ele pretende testar tanto a sua capacidade de entrega quanto a idoneidade do cliente. Por esta razão, na maioria dos casos, inexiste uma ‘vontade jurídica 213 Cf. Id. Ibid., p. 183 e 186. 214 Assim, por exemplo, o art. 11 da Diretiva 2000/31/CE , intitulado “ordem de encomenda”, na tradução ao português de Portugal, reza que “os Estados-Membros assegurarão [...] que, nos casos em que o destinatário de um serviço efetua a sua encomenda exclusivamente por meios electrónicos, se apliquem os seguintes princípios: [...]”. 215 BGB, § 312e (Obrigações no comércio eletrônico): “(1) Se para concluir um contrato de fornecimento de bens ou prestação de serviços, um empresário utilizar um teleserviço ou um serviço informático (contrato no comércio eletrônico), ele deve: (a) pôr à disposição do cliente meios técnicos adequados, eficientes e acessíveis, pelos quais o cliente possa reconhecer e corrigir, antes da transmissão do seu pedido [ou encomenda] , erros refentes à inserção de seus dados [...]” (destaquei). 100 vinculativa’ (Rechtsbindungswillen); normalmente, uma apresentação on-line de produtos e serviços não é oferta, mas invitatio ad offerendum” 216. Em estudo comparativo entre os direitos brasileiro e alemão sobre os “contratos via Internet”, ANA PAULA CARVALHO soube captar bem a ratio dessa postura alemã conservadora: “Como uma homepage pode ser acessada por um número ilimitado de pessoas, o fornecedor de produtos e serviços na Internet expõe-se ao risco de receber mais pedidos do que pode atender. Partindo da premissa de que o risco de um número excessivo de demandas não é controlável pelo fornecedor na Internet, o direito alemão presume que este não tem a intenção de obrigar-se ao cumprimento da sua oferta, pretendendo, na verdade, verificar primeiramente o seu estoque. Por essa razão, a doutrina alemã dominante esposa o entendimento segundo o qual a apresentação de produtos e serviços na Internet não deve ser tratada como oferta contratual, e sim como mera invitatio ad offerendum [...]. Com isso, há uma inversão de papéis: a posição mais gravosa é reservada ao usuário da Internet, que ao efetuar o pedido de um produto mediante a introdução de seus dados pessoais em um formulário e/ou através de um ‘clique’ em um determinado campo da homepage, atua como proponente, cuja oferta pode ser ou não aceita pelo fornecedor” 217. Todavia, mesmo entre os que são cautelosos quanto à vinculatividade das ofertas contratuais ad incertam personam, há quem admita que, na hipótese de leilão via Internet, haveria verdadeira oferta ao público. Assim LARENZ-WOLF: “se em uma oferta publicada em página da Internet é declarado que o ofertante aceita, desde logo, o maior preço oferecido pelo produto, então não estaremos diante de um convite à apresentação de propostas, e sim da própria proposta ou de uma aceitação antecipada para conclusão do contrato”218. 216 DETHLOFF, Nina. Vertragsschluss, Widerrufs – und Rückgaberecht im E-Commerce. Iura Heft, n. 11, 2003, p. 730 217 CARVALHO, Ana Paula Gambogi. Contratos via Internet, op. cit., p. 37-38 (destaquei). 218 LARENZ, Karl; WOLF, Manfred. op. cit., § 29, p. 555. 101 1.4.5. A opção dos direitos latinos Já os direitos de corte latino assumem a posição diametralmente oposta. É o caso da França. Ao transpor a Diretiva 2000/31/CE para o direito interno, o legislador francês não poderia ter sido mais explícito em atribuir aos catálogos de lojas virtuais o status de ofertas de venda ao público, e aos pedidos dos internautas a natureza de aceitação. Confira-se o teor do art. 1369-1 do Código Civil francês: “Quem propõe por via eletrônica, a título profissional, fornecer bens ou prestar serviços, deve disponibilizar as condições contratuais aplicáveis de maneira a permitir a sua conservação e reprodução. Sem prejuízo das condições de validade mencionadas na oferta, seu autor fica vinculado enquanto esta permanecer, de fato, acessível por via eletrônica”. O art. 3369-2, caput do mesmo Código arremata essa evidência: “Para que o contrato seja validamente concluído, o destinatário da oferta deve ter a possibilidade de verificar os dados de sua comanda e o preço total, e de corrigir eventuais erros antes de confirmá-la para exprimir sua aceitação”219. A mesma trilha foi seguida pela Espanha. Segundo o testemunho de CLEMENTE MEORO, “quando o empresário descreve em sua página web o produto ou serviço, fixa seu preço e condições de pagamento e entrega, e dota a página dos requisitos técnicos para que quem se conecte a ela possa ‘aceitar’ (v. gr., pulsando um ‘botão’ ou ‘ícone’ em que se inclui a expressão ‘aceitar’ ou ‘OK’ ou outra similar’, previa determinação pelo visitante da página do produto ou serviço que deseja), não estamos diante de uma simples comunicação publicitária, senão em face de uma oferta ao público. A criação e incorporação à Internet de página web em que se dêem as características assinaladas supõe 219 Destaquei. 102 sua vontade de ficar vinculado, e que o contrato resulte formado para ele, sem mais requisitos que a aceitação emitida por via eletrônica”220. Quanto ao direito brasileiro, tenho que à luz do novo art. 429 do Código Civil não resta qualquer dúvida de que os catálogos de lojas virtuais constituem verdadeira e própria oferta de venda ao público – mesmo que o website não disponha de meios técnicos para a aquisição on-line pelo internauta-consumidor. Naturalmente, inexistindo indicação de preços, o catálogo não representará uma oferta ao público. Isso não obstante, se o catálogo ou o website que o divulga contiver especificações “suficientemente precisas” sobre a qualidade e/ou quantidade dos produtos/serviços, bem assim sobre certas condições de contratação, tais especificações ou informações, a teor do art. 30 do CDC, integrarão o contrato que o internauta, instigado pelo conteúdo publicitário do website, vier eventualmente a celebrar com o fornecedor, como se cláusulas contratuais fossem, as quais inclusive prevalecem sobre cláusulas ou condições escritas no instrumento contratual que lhe sejam contrárias ou inconciliáveis. 1.4.6. A solução dos PDCE-LANDO É absolutamente infundado o temor da doutrina alemã à impossibilidade de o ofertante controlar a intensidade da demanda ex populo, temor que a leva a ser excessivamente cautelosa em reconhecer a natureza de oferta ao público a práticas comerciais tão consagradas como as fartamente exemplificadas anteriormente. É que a oferta ao público, por natureza, é dotada de certas reservas implícitas quanto à quantidade (produtos), capacidade (serviços), duração, etc. 220 MEORO, Mario E. Clemente. Algunas consideraciones sobre la contratación electrónica, op. cit., p. 78 (destaquei). 103 Nesse sentido, aliás, os PDCE-LANDO deram um importante passo à frente em relação à CISG-UNCITRAL de 1980, pois enquanto para esta “toda proposta não dirigida a uma ou várias pessoas determinadas será considerada como um simples convite a fazer ofertas”221, aquela, depois de estabelecer que “a oferta pode se dirigir a uma ou várias pessoas determinadas ou ao público”222, e que “a proposta feita por um profissional em anúncios, por catálogo ou mediante a exposição de mercadorias, de fornecer bens ou serviços a um preço determinado, é considerada como oferta de vender ou de fornecer, pelo preço indicado”223, encerra a disposição com a seguinte ressalva: “até que se esgotem as mercadorias estocadas ou a capacidade do profissional de prestar o serviço”224. Nada mais sensato e equilibrado! A meu ver, a postura do direito alemão é anacrônica, contrastando melancolicamente com aquela atitude ousada e pioneira de 1896, quando se introduziu na Alemanha o princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato, contra toda a acomodada tradição do direito comum europeu. 2. Promessa de recompensa O Código Civil distingue expressamente a “oferta ao público” da “promessa de recompensa” ao dispor no art. 854 que “aquele que, por anúncios públicos, se comprometer a recompensar ou a gratificar, a quem preencha certa condição ou desempenhe certo serviço, contrai obrigação de cumprir o prometido” 225, esclarecendo, no artigo seguinte, que “quem quer que, nos termos do artigo antecedente, fizer o serviço ou satisfizer a condição, ainda que não pelo interesse da promessa, poderá exigir a recompensa estipulada”. 221 CISG-UNCITRAL, art. 14, 2. 222 PDCE-LANDO, art. 2:201, 2 223 PDCE-LANDO, art. 2:201, 3 (destaquei). 224 PDCE-LANDO, art. 2:201, 3, in fine (destaquei). 225 Destaquei. 104 A primeira nota distintiva refere-se à natureza jurídica de cada figura, pois enquanto o Código Civil incluiu a “oferta ao público” no título que trata “dos contratos em geral”, atribuindo-lhe claramente a natureza de proposta de contrato, a “promessa de recompensa” inseriu-a no título que cuida “dos atos unilaterais” geradores de obrigações. Sob esse aspecto topológico, há grande semelhança entre os Códigos brasileiro e italiano, divergindo este último apenas quanto à nomenclatura atribuída à promessa de recompensa, eis que a chama de “promessa ao público” 226. Muito embora as duas figuras tenham em comum serem declarações de vontade ad incertam personam, a promessa de recompensa se diferencia nitidamente da oferta ao público porque gera ao promitente a obrigação (stricto sensu) de prestar o prometido, tão logo a promessa é divulgada ao público, e independentemente da aceitação de quisque de populo227. Portanto, a segunda nota distintiva refere-se ao momento em que nasce a obrigação para o declarante. No dizer de MASSIMO BIANCA, “a promessa de recompensa é fonte de obrigação, diretamente produtora do vínculo obrigacional a cargo do promitente, enquanto que a oferta ao público é uma proposta de contrato que requer a aceitação para gerar o consenso. É o contrato, portanto, que é propriamente fonte de obrigação”228. MIRABELLI, porém, entende que essa distinção evidencia apenas uma diferença de efeitos e não de estrutura. Partindo do pressuposto de que para todo ato unilateral o comportamento de terceiros é irrelevante à geração da obrigação prevista em lei, sugere a utilização da recusa dos destinatários da declaração de vontade como elemento idôneo a distinguir as duas fattispecie. Desse modo, a declaração deve ser qualificada como oferta ao público se a recusa do destinatário a faça caducar e, inversamente, como promessa de 226 CCit., art. 1989 (promessa ao público): “Aquele que, dirigindo-se ao público, promete uma prestação em favor de quem se encontre em determinada situação ou realize determinada ação, fica vinculada à promessa tão logo esta se torne pública”. 227 Cf. MESSINEO, Francesco. Contratto preliminare, contratto preparatorio e contratto di coordinamento. Enciclopedia del diritto, v. 10. Milano: Giuffrè, 1962, p. 858. 228 Cf. BIANCA, C. Massimo. Diritto civile: il contratto. op. cit., p. 256. 105 recompensa se o destinatário, não obstante a recusa, possa mesmo assim, posteriormente, exigir a prestação prometida229. Igualmente peculiar é posição de RODOLFO SACCO, que compara a promessa ao público à oferta ao público de contrato com prestação apenas do proponente, chegando à conclusão de que a disciplina dos artigos 1987 e seguintes do Código Civil italiano é supérflua, na medida em que a fattispecie estaria suficientemente disciplinada pelos artigos 1333 e 1336. Tal entendimento, porém, conduz à lógica conseqüência de que, em caso de recusa do destinatário, a promessa resulta privada de toda eficácia230. A tese de SACCO, todavia, não resistiu ao exame crítico de ADOLFO DI MAJO, que demonstrou subsistir uma diferença estrutural entre a oferta ao público e a promessa de recompensa231, podendo-se dizer, com CAMERIERI, que esta é a posição que predomina na doutrina italiana.232. De qualquer forma, constitui questão de fato, embora muitas vezes sutil, discernir, in concreto, se determinada declaração dirigida ad incertam personam é oferta ao público ou promessa de recompensa. Digno de nota, nesse sentido, é o entendimento da Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que nos autos da ação civil pública movida pelo Ministério Público gaúcho contra a COMPANHIA REAL DE DISTRIBUIÇÃO – SUPERMERCADO BIG SHOP, então em fase de apelação, considerou tratar-se de promessa de recompensa, e não oferta ao público, uma peça publicitária veiculada por aquele supermercado em jornais de grande circulação de Porto Alegre, a qual dizia: “você ganha 229 Cf. MIRABELLI, Giuseppe. Delle obbligazioni: dei contratti in generale. 3ª ed., Torino: UTET, 1980, p. 105-105. 230 Cf. SACCO, Rodolfo. Il contratto. IN: SACCO, Rodolfo (Dir.). Trattato di diritto civile. Torino: UTET, 1993, p. 37 e ss. e 185 e ss 231 Cf. DI MAJO, Adolfo. Promessa unilaterale. Diritto privato. Enciclopedia del diritto, v. 37. Milano: Giuffrè (33:70), 1988, p. 765. 232 Cf. CAMERIERI, Fausto. op. cit., p. 117. 106 grátis o produto anunciado pelo concorrente se o preço praticado no Big não for o mais baixo” 233. Com efeito, segundo o desembargador IRINEU MARIANI, relator da apelação, “o anunciante fez um desafio, uma porfia, uma provocação, elegendo como fiscais todas as pessoas. Veja-se que não há necessidade de a pessoa comprar o produto. Basta demonstrar que o concorrente tem o mesmo produto mais barato. Aliás, a rigor, não há gratuidade, pois o desafiado tem uma tarefa a cumprir, um serviço a prestar ao anunciante, qual seja encontrar o mesmo produto por preço mais baixo. O art. 30 do CDC é expresso. Toda informação ou publicidade obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado. No caso, para fazer jus [ao produto, gratuitamente] nem era preciso invocar o CDC, pois tratava-se de promessa de recompensa prevista no art. 1512 do Código Civil vigente à época [...]. Este preceito está exatamente com a mesma redação no art. 854 do CC/2002” 234. 233 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, 1ª Câmara Cível, Apelação n. 70003821626, Acórdão de 5 nov. 2003, Relator: Irineu Mariani, fls. 426. 234 Id., loc. cit.: destaques do original. 107 PARTE III: OFERTA CONTRATUAL NO PLANO DA EFICÁCIA 108 SEÇÃO A: EFEITOS DA PROPOSTA DE CONTRATO 109 CAPÍTULO 9: VINCULAÇÃO MÍNIMA E MÁXIMA DA PROPOSTA 1. Distinções preliminares A proposta de contrato dirigida a pessoa presente não suscita maiores dificuldades quanto à determinação de sua eficácia235, pois o direito da maioria dos países de civil law adotou para tal hipótese o princípio aceitação imediata, sob pena de caducidade da 236 proposta . O mesmo não ocorre com a proposta endereçada a pessoa ausente, eis que entre a sua emissão e a eventual aceitação do destinatário fatos podem ocorrer que acabam interferindo decisivamente no procedimento formativo do contrato. Todavia, antes de analisar esses fatos, convém recordar dois esclarecimentos promovidos pela doutrina alemã. O primeiro deles é de RAYMOND SALEILLES, um dos primígenos comentadores do BGB, que em sua época já observara que o critério que determina a ausência ou a presença do destinatário da declaração de vontade, para efeitos de incidência do § 130 do BGB, não é tanto a distância física que separa as partes quanto o tempo que medeia entre a emissão da declaração de vontade e a sua recepção pelo destinatário. 235 Nesse sentido: THUR, Andreas von. op. cit., § 62, p. 145: “A vinculação do proponente tem importância prática unicamente quando a proposta de contrato se dirige a pessoa ausente, porque só em tal caso tem certa duração (BGB, § 147, II)” (destaquei). 236 Assim o CCbr-2002, art. 428: “Deixa de ser obrigatória a proposta: I - se, feita sem prazo a pessoa presente, não foi imediatamente aceita. Considera-se também presente a pessoa que contrata por telefone ou por meio de comunicação semelhante”. 110 Assim, entre presentes, “não há nenhum intervalo de tempo apreciável, e as palavras emitidas chegam àquele a quem se endereçam sem nenhum intermediário”237. Já entre ausentes dá-se exatamente o contrário. Daí a razão de o § 147, in fine, do BGB, que após estabelecer que “a proposta feita a pessoa presente somente pode ser aceita imediatamente”, ressalvou que “isto vale também para a proposta feita por meio de telefone” 238 : típica hipótese em que há distância física entre as partes, mas rapidez no intercâmbio das respectivas declarações de vontade. O segundo esclarecimento partiu de VON THUR, para quem a eficácia vinculnte da proposta descansa na lei, não sendo necessário que o ofertante a queira ou conheça239. Algo parecido escreveu PONTES DE MIRANDA: “as declarações de vontade, em si, são revogáveis; só a regra jurídica, incidindo sobre elas, as pode tornar irrevogáveis” 240 . Pois bem. Nos próximos dois capítulos, pretendo demonstrar que a vinculação da proposta de contrato pode assumir as intensidades mínima e máxima. Aquela consiste na particularidade de que toda proposta atribui ao oblato o poder de constituir o vínculo contratual entre ele e o proponente por meio da aceitação pura e simples da proposta. Trata-se de efeito jurídico necessário, existente em toda proposta de contrato, independentemente de vigorar, no ordenamento jurídico considerado, o princípio da revogabilidade ou irrevogabilidade: enquanto tiver vida, a proposta sempre surtirá este efeito mínimo. No dizer de LARENZ-WOLF: “mesmo que a vinculatividade da proposta seja ressalvada pelo proponente, ela é uma declaração passível de ser aceita (annahmefähiges Vertragsangebot), muito embora possa ser revogada a qualquer momento”241. 237 SALEILLES, Raymond. op. cit., p. 146. 238 Seguindo, também neste ponto, o BGB, CCbr-2002, art. 428, I, in fine. 239 Cf. THUR, Andreas von. op. cit., § 62, p. 146-147. 240 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, cit., 1954, t. 3, § 251, p. 26 (destaquei). 241 LARENZ, Karl; WOLF, Manfred. op. cit., § 29, p. 556-557 (destaquei). 111 Por outro lado, a proposta de contrato atinge a vinculação máxima quando ao efeito mínimo a lei ou a vontade do proponente agregam a condição de irrevogabilidade durante certo período de tempo. No direito brasileiro, até a revogação da “Primeira Parte” do Código Comercial brasileiro de 1850242, conviviam dois regimes diametralmente opostos quanto à revogabilidade da oferta contratual: a proposta de contrato comercial era livremente revogável se a declaração revocatória do proponente chegasse à esfera de conhecimento do oblato antes de este expedir a sua eventual aceitação243; ao contrário, se civil o contrato, a proposta, embora passível de ser retirada no período compreendido entre a sua emissão e a recepção pelo oblato, não podia, após este momento, e até caducar pelo decurso do prazo de eficácia implícito ou expresso, ser revogada de forma eficaz pelo proponente244. Ora, mantendo, os artigos 427 e 428 do Código Civil a redação dos artigos 1080 e 1081 do Código de 1916, e não tendo ressalvado os contratos empresariais, não resta dúvida de que, hoje, todos os contratos de direito privado sujeitam-se ao princípio da irrevogabilidade da proposta. Princípio controvertido, mesmo no direito brasileiro, conforme se verá em seguida. 242 243 244 Cf. CCbr-2002, art. 2045. CCObr, art. 127: “Os contratos tratados por correspondência epistolar reputam-se concluídos e obrigatórios desde que o que recebe a proposição expede carta de resposta, aceitando o contrato proposto sem condição nem reserva; até este ponto é livre para retratar a proposta; salvo se o que a fez se houver comprometido a esperar resposta, e a não dispor do objeto do contrato senão depois de rejeitada a sua proposição, ou até que decorra o prazo determinado.Se a aceitação for condicional, tornar-se-á obrigatória desde que o primeiro proponente avisar que se conforma com a condição” (destaquei). Cf. CCbr-1916, art. 1081, IV. 112 2. A vinculação mínima 2.1. Direito potestativo versus estado de sujeição Se no tocante à irrevogabilidade da proposta de contrato, efeito máximo desta, a doutrina brasileira dominante distancia-se sobremaneira das raízes germânicas do instituto – consoante se verá mais adiante –, na abordagem do efeito mínimo segue passo a passo a dogmática alemã segundo a qual, na dicção de VON THUR, “à vinculação do proponente corresponde um direito do destinatário; é um direito de conformação: o destinatário tem a faculdade, que não se lhe pode tirar, de dar vida, mediante sua declaração, ao contrato, cujo conteúdo resulta da proposta”245. Essa faculdade do oblato seria modalidade de direito potestativo ou formativo, enquanto que a vinculação do proponente, estado de sujeição. Assim PONTES DE MIRANDA, ao sustentar que “a favor do destinatário da oferta revogável ou irrevogável nasce direito formativo gerador: mediante o seu exercício, compõe-se o negócio jurídico bilateral” 246. Assim também JUNQUEIRA DE AZEVEDO, quando diz que “o ofertante, por ato unilateral, cria, no patrimônio do oblato, um direito expectativo, ou potestativo, de concluir o contrato” 247. Discorrendo sobre o conceito de direito potestativo, com forte apoio na doutrina germânica, MANUEL DOMINGUES DE ANDRADE parte da consideração de que, no direito subjetivo, a posição do titular se traduz no poder de exigir ou pretender de outra pessoa determinado comportamento positivo ou negativo, isto é, uma ação (facere) ou certa 245 THUR, Andreas von. op. cit., § 62, p. 147 (destaquei). 246 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, cit., 1983, t. 5, § 566, p. 242 (destaquei). 247 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. A boa-fé na formação dos contratos, cit., p. 83. 113 abstenção (non facere). O direito subjetivo, portanto, consistiria apenas no poder de exigir de outrem determinado comportamento248. No direito potestativo, todavia, o poder conferido ao titular tende à produção de um efeito jurídico, as mais das vezes mediante declaração de vontade do titular. No caso específico da proposta de contrato, a declaração de aceitação produz a constituição do vínculo contratual, de modo que o direito potestativo do oblato seria um “direito à criação, modificação ou extinção de uma relação jurídica” 249. No que se refere ao proponente, ele se submete inexoravelmente ao exercício do direito potestativo do oblato, com todas as conseqüências jurídicas que isso implica. Daí designar-se, sua posição jurídica, de estado de sujeição, pois sujeita-se à condição de suportar as conseqüências do eventual exercício do direito potestativo pelo oblato, mediante a aceitação formadora do contrato. Condição “fatal” – no dizer de MANUEL DOMINGUES DE ANDRADE – “pois a produção destes efeitos verifica-se de modo inelutável. O sujeito nada pode fazer contra isso. Poderá infringir depois os efeitos produzidos, mas então estaremos já no domínio dos direitos subjetivos stricto sensu” 250. Aplicando o conceito de direito potestativo à proposta de contrato, PONTES DE MIRANDA o vê como “mais um efeito do negócio jurídico da oferta; efeito mínimo é o de poder ser aceita, antes de revogada, se revogável”251. Com isso deixa claro que toda proposta de contrato sempre surte esse efeito mínimo, independentemente de o ordenamento jurídico no qual se insere ter esposado ou não o princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato. 248 Cf. ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria da relação jurídica: sujeitos e objeto. Coimbra: Almedina, 1983. v. 1, p. 10-11. 249 Id. Ibid., p. 12. 250 Id. Ibid. (destaquei). 251 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, cit., 1954. t. 2, § 223, p.413-414. 114 Ainda nas palavras de PONTES DE MIRADA, o direito potestativo decorrente da proposta de contrato seria a vinculação mínima252 que toda oferta contratual enseja: “Muito se perdeu – aduz o mesmo Autor – em não se ver cedo que a revogabilidade podia coexistir com a vinculação, pois enquanto não se revoga, a oferta permanece de pé e pode ser aceita”253. E em outra passagem de seu “Tratado”, observa que “demasiado atentos às categorias de obrigação, de posição passiva na ação e de posição passiva na exceção, os juristas descuraram o estudo do efeito mínimo, isto é, o efeito que seria o único. Se algum ato jurídico tem um efeito, já não é ele totalmente ineficaz. A vinculação aparece, como o efeito mínimo, tratando-se de ato humano que entra no mundo jurídico e é eficaz, mas a oferta revogável é eficaz enquanto não se revoga e se teria de dilatar o conceito de vinculação”254. 252 Cf. Id. Tratado de direito privado, cit., 1954, t. 3, § 278, p. 145 (destaquei). 253 Id., loc. cit. (destaquei). 254 Id. Tratado de direito privado, cit., 1983, t. 5, § 507, p. 7-8 (destaquei). 115 3. A vinculação máxima 3.1. O significado da irrevogabilidade da proposta no direito alemão Que no direito alemão, por força do § 145 do BGB, vigora o princípio da irrevogabilidade da proposta não paira qualquer dúvida: “Fundamentalmente – afirmam LARENZ-WOLF – o proponente vincula-se à proposta feita, que passa a ser irrevogável, salvo se houver declaração expressa de exclusão dessa vinculação, nos moldes do § 145 do BGB”255. Em seu trabalho de direito contratual comparado, HEIN KÖTZ pôde afirmar que “a mais forte eficácia jurídica da proposta se encontra nos direitos alemão, suíço e austríaco. Tão logo a proposta tenha chegado a seu destinatário, o proponente resta vinculado. Isso significa que, no caso de ter sido estabelecido prazo para resposta, ou no caso de ausência de prazo, durante período de tempo razoável, não pode haver revogação da proposta”256. Também não paira dúvidas de que, no direito alemão, sendo irrevogável a proposta, qualquer ato em sentido contrário, isto é, qualquer declaração do proponente com intuito revocatório é absolutamente ineficaz, conforme a opinião da esmagadora maioria dos juristas, dentre eles VON THUR257 e FLUME258. 255 LARENZ, Karl; WOLF, Manfred. op. cit., § 29, p. 556. No mesmo sentido: ENNECCERUS, Ludwig; NIPPERDEY, Hans Carl. op. cit., p. 259: “O Código Civil declarou que a oferta é vinculativa, isto é, irrevogável, a menos que o ofertante tenha excluído essa força vinculativa” (destaquei). 256 KÖTZ, Hein. Europäisches Vertragsrecht. op. cit., § 2, p. 34 (destaquei). 257 THUR, Andreas von. op. cit., § 61, p. 126: “A possibilidade de revogação extingue-se no momento de chegar a declaração [ao oblato], ainda que esta ocorra antes do que se supunha. Para a eficácia da revogação, é decisiva a cronologia de chegada de ambas as declarações, e não o seu conhecimento pelo destinatário. Se a revogação chegar depois da declaração a que se refere, carece de eficácia, ainda que o destinatário tome conhecimento dela antes que da declaração, ou simultaneamente” (destaquei). 258 FLUME, Werner. op. cit., § 35, p. 642: “O efeito vinculativo da oferta significa, nos termos do § 147, que o proponente não pode revogar a oferta, ou seja, não pode obstar o oblato a concluir o contrato e considerá-lo celebrado por meio de simples aceitação” (destaquei). 116 Surpreendentemente, no Brasil, não obstante o art. 1080 do Código Civil de 1916, como visto, tenha deitado raízes nos §§ 130 e 145 do BGB, e a doutrina reconhecia que em princípio a proposta era irrevogável, nasceu e se desenvolveu, logo nos albores da vigência daquele Código, uma interpretação que, se não se pode qualificar “contra legem”, é no mínimo deturpadora do sentido objetivo do art. 1080. Senão veja-se. 3.2. Efeito da irrevogabilidade: obrigação de fazer? As primeiras exegeses do art. 1080 do Código Civil de 1916 – a começar nada menos pela do eminente autor de seu anteprojeto –, são um exemplo de como uma interpretação equivocada, difundida logo nos primórdios da vigência de uma lei, pode relegar uma norma jurídica à completa inutilidade. Deveras, muito embora tenha anotado em seu “Comentário” que o art. 1080 teve por fonte o § 145 do BGB259, CLOVIS BEVILAQUA, ao opinar sobre o sentido e alcance da locução “a proposta de contrato obriga o proponente” entendeu que “o Código Civil declara que o proponente fica, em regra, obrigado a mantê-la”260. Ora, o cerne do equívoco interpretativo reside exatamente neste entendimento – talvez psicológica e quase-inconscientemente sugestionado pela carga técnico-jurídica sedimentada no termo “obrigar” – de que o efeito típico da proposta de contrato seria a imputação legal, ao proponente, de uma obrigação de fazer, tomada a locução, agora sim, em sentido o mais juridicamente estrito e técnico, qual seja uma obrigação de manter ou sustentar261 a declaração da proposta, até a eventual aceitação do oblato, ou até seu vencimento implícito ou expresso. 259 Cf. BEVILAQUA, Clovis. op. cit., p. 195. 260 Cf. Id., loc. cit. (destaquei). 261 Às vezes, a mesma idéia é expressada de modo negativo; fala-se, então, em “obrigação de não revogar a proposta”. 117 Adotada essa falsa premissa, bastou pouco a BEVILAQUA para concluir – certamente influenciado pela mentalidade jurídica predominante à época, segundo a qual o princípio nemo praecise cogi potest ad factum262 gozava de prestígio quase-absoluto – que “as conseqüências desta doutrina é que o proponente que retira a sua oferta, nos casos em que não pode fazer, responde por perdas e danos”263. Essa construção interpretativa de BEVILAQUA certamente era a mais condizente com os valores individualistas da época264. Todavia, não pode mais prevalecer nos dias de hoje, em que predominam valores como a boa-fé objetiva, a função social do contrato, o sentido de cooperação entre os contratantes, e não de oposição de interesses, etc. Tudo começou quando o legislador de 1916, inspirado pelo § 145 do BGB, decidiu introduzir em nosso ordenamento o princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato, mas ao fazê-lo, ao invés de utilizar o verbo “vincular”265 – tal qual o fez, o legislador alemão, no referido parágrafo –, serviu-se do vocábulo “obrigar”, de significado técnico-jurídico muito preciso, mas completamente inadequado para expressar o efeito jurídico realmente idealizado pelo legislador do BGB, qual seja a irrevogabilidade da proposta de contrato. 262 Princípio segundo o qual, em tradução bem flexível, o devedor de prestação de fato não pode ser compelido a cumprir especificamente o prometido, de modo que sua recusa converte a obrigação de fazer originária em obrigação de indenizar. 263 BEVILAQUA, Clovis. op. cit., p. 195 (destaquei). No mesmo sentido: Id. Direito das obrigações. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1940: “[...] deve o proponente manter firme a sua oferta, sob pena de responder por perdas e danos” (§ 60, p. 168). 264 Em interessante estudo histórico-comparativo entre o BGB e o CCbr-1916, CLÁUDIA LIMA MARQUES pôde concluir: “ambos os Códigos, alemão e brasileiro, apesar da diferença de 20 anos da data de suas aprovações, possuem características comuns e podem ser considerados como ‘produtos’ ou criações típicas do século XIX. O momento histórico do liberalismo, o momento político semelhante de reafirmação da unidade nacional e o momento científico de desenvolvimento do Direito marcaram ambas as codificações e determinaram sua proximidade até hoje. O Código Civil brasileiro sofreu múltiplas influências de direitos estrangeiros e, especialmente, da Pandectística alemã, mas manteve importante dose de originalidade criativa, graças ao genial Teixeira de Freitas, ao espírito crítico de Coelho Rodrigues e à sabedoria de Clovis Bevilaqua. A influência germânica nos principais juristas brasileiros do século XIX foi grande, a obra da Escola de Recife e de Tobias Barreto, e continua no século XX, com um novo germanismo” (MARQUES, Cláudia Lima. Cem anos de Código Civil alemão: o BGB e o Código Civil brasileiro de 1916. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 741, p. 36, jul. 1997). 265 No § 145 do BGB, o verbo “binden” (= vincular) está no particípio passado “gebunden” (= vinculado). 118 Consoante o registro de PONTES DE MIRANDA, “a oferta vincula o oferente. Desgraçadamente, nas leis e nos livros de doutrina, por vezes se emprega ‘obrigar’ em vez de ‘vincular’, ou de ‘tornar devedor’, como de obrigar stricto sensu. A vinculação, a dívida e a obrigação se confundem. O oferente ainda não deve, a fortiori ainda não é obrigado, mas vinculado fica, exceto se na oferta estabeleceu restrições, ou se a invinculabilidade resulta do tipo mesmo do negócio jurídico, ou de circunstâncias do caso concreto”266 . E deixando absolutamente claro o seu entendimento sobre o sentido e alcance do verbo obrigar contido no art. 1080, conclui o mesmo Autor: “Ora, vincular-se à oferta é não poder revogá-la, a despeito da defeituosa terminologia de algumas regras jurídicas (v.g. artigos. 1080, verbo ‘obriga’, e 1081, verbo ‘obrigatória’, que empregam obrigatoriedade no sentido de vinculação)”267. Essa infelicidade terminológica, se por si só não é capaz de explicar inteiramente a distorção interpretativa do art. 1080 do Código Civil de 1916, certamente contribui muito para a sua compreensão. O certo é que essa interpretação inicial e profundamente equivocada passou a ser rotineiramente repetida por não poucos e eminentes civilistas, contemporâneos ou não a BEVILAQUA, até se converter na proverbial doutrina dominante. Assim CARVALHO DE MENDONÇA, para quem “a lei obriga o proponente a mantê-la [a proposta], salvo os casos que estabelece [...]. Retirando a proposta nos casos em que não o pode fazer, o proponente responde por perdas e danos” 268. No mesmo sentido, MIGUEL MARIA DE SERPA LOPES, que afirmou ser “fora de qualquer dúvida que a oferta ou a proposta de contrato, obrigando o proponente, torna-o responsável pela sua manutenção [...]. Na proposta feita com os requisitos legais há uma 266 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962. t. 38, § 4194, p. 48-49 (destaquei). 267 Id. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1983. t. 5, p. 7 (destaquei). 268 CARVALHO DE MENDONÇA, José Xavier. op. cit., p. 465-466 (destaquei). 119 obrigação [...]. Entendemos, pois, a oferta, como uma relação obrigatória decorrente da lei [...].Quanto à responsabilidade, ela não é contratual. Todavia, ela se traduz na composição pelas perdas e danos sofridos com a denegação da oferta” 269. WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, por sua vez, ensinava que “a obrigatoriedade da proposta constitui postulado universalmente proclamado por todas as legislações. Violada, sujeita o policitante ao pagamento das perdas e danos”270, e SILVIO RODRIGUES que “a lei impõe ao policitante o dever de manter sua proposta, sujeitando-o às perdas e danos em caso de inadimplemento” MÁRIO DA 271 . Diferente não é a posição de CAIO SILVA PEREIRA, para quem, “uma vez feita a proposta que constitui em si mesma um negócio jurídico, a ela está o policitante vinculado [...] sujeitando-se à reparação de perdas e danos se injustificadamente a retira” 272. Em argumentação confusa, e pautando-se no direito francês, cujo sistema, como visto, é o da revogabilidade da proposta, DARCY BESSONE parece entender que a obrigatoriedade pressuposta pelo art. 1080 não teria o significado de irrevogabilidade, pois “o proponente poderá revogar a proposta, ainda que respondendo pelo prejuízo decorrente da revogação, e, revogando-a, impedirá a formação do contrato, porque o acordo de vontades deve ser atual e não se poderá realizar quando, ao ser manifestada a aceitação, a proposta já houver sido destruída pela revogação” 273. Seguindo essa mesma linha de entendimento, JUNQUEIRA DE AZEVEDO sustenta que “quanto ao descumprimento da oferta, deve-se entender, no sistema do CC, que há uma diferença entre obrigatoriedade e revogabilidade, isto é, a oferta, ressalvadas as 269 SERPA LOPES, Miguel Maria. op. cit., p. 84-85 (destaquei). 270 BARROS MONTEIRO, Washington. Curso de direito civil: direito das obrigações. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1977. 2. pt. - contratos, declarações unilaterais da vontade, obrigações por atos ilícitos, p. 15 (destaquei). 271 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: dos contratos e das declarações da vontade. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 3, p. 71: destaquei. 272 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: contratos. Declaração unilateral de vontade. RESPONSABILIDADE civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 3, p. 39 (destaquei). 273 BESSONE, Darcy. Do contrato: teoria geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 128-129 (destaquei). 120 exceções, obriga (art. 1080), mas, antes da aceitação, pode ser revogada – quando, então, o contrato não se fará e o inadimplemento da oferta se converterá em perdas e danos” 274 . E mais. Cotejando os regimes do Código Civil de 2002 e do CDC, afirma que “a obrigação que surge da oferta não tem o efeito próprio de vincular o ofertante ao futuro contrato, se a retirada da oferta se dá antes da aceitação. A obrigação se converte em perdas e danos. Já o Código de Proteção do Consumidor, diferentemente, dá eficácia plena à oferta. Segundo o art. 35, e se assim quiser o consumidor, o fornecedor ficará sujeito ao cumprimento forçado nos termos da oferta”275. Encerrando essa relação meramente exemplificativa, pode-se citar, ainda, SÍLVIO DE SALVO VENOSA, que chega inclusive a equivocar-se quanto ao regime da proposta de contrato no BGB, dizendo que “no sistema do código alemão, a proposta é vinculativa e deve ser mantida sob certo prazo e sob certas condições. Não se confunde a vinculação da proposta com a sua revogabilidade. O ofertante pode deixar de realizar o negócio, submetendo-se a perdas e danos. Não poderá fazê-lo, porém, se da proposta constar a cláusula de irrevogabilidade” 276. A jurisprudência de nossos tribunais acabou seguindo essa pista falta da doutrina. Ilustrativa, a respeito, é a seguinte passagem do voto do desembargador ILTON CARLOS DELLANDRÉA, proferido no julgamento de apelação perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “[...] a proposta expressa não obriga ao cumprimento. SILVIO RODRIGUES, comentando o artigo 1080 do Código Civil, que trata do assunto, é claro: ‘Tal regra se firma na necessidade de assegurar a estabilidade das relações sociais [...] Por isso, a lei impõe ao policitante o dever de manter sua proposta, sujeitando-o às perdas e danos em caso de inadimplemento’. A obrigação de manter a proposta, pois, não necessariamente 274 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor: estudo COMPARATIVO com a responsabilidade pré-contratual no direito comum. In: Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 182-183 (destaquei). 275 Id. A boa-fé na formação dos contratos. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 3, p. 83, 1992. 276 VENOSA, Sílvio de Salvo. A força vinculante da oferta no código civil e no código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 8, p. 82, out./dez. 1993 (destaquei). 121 imporá a obrigação de cumpri-la. Então, mesmo que considere a propaganda veiculada uma verdadeira proposta, ainda assim a resolução se dará no plano indenizatório” 277 . Nesse mesmo sentido, assim, equivocado, também é o voto vencedor do desembargador EDUARDO PEDRO DA LUZ, nos autos de apelação perante o Tribunal de Justiça de Santa Catarina: “A obrigatoriedade da proposta indica que o proponente não poderá retirá-la, revogá-la ou modificá-la arbitrariamente, e se o fizer ficará sujeito ao pagamento das perdas e danos (Washington de Barros Monteiro. Curso de Direito Civil, 5º vol., p. 15; Serpa Lopes. Curso de Direito Civil, 3º volume, p. 93; Silvio Rodrigues, Direito Civil, vol. 3º p. 76)” 278 . Assim também o voto do relator e desembargador CUNHA CINTRA, ao julgar apelação interposta perante o Tribunal de Justiça de São Paulo: “O direito do autor está consubstanciado no artigo 1080 do Código Civil, pelo qual ‘a proposta de contrato obriga o proponente’, de maneira que o rompimento implica na responsabilidade daquele que o 279 causou, em relação aos prejuízos sofridos pela outra parte” . 3.3. A ineficácia da revogação de proposta irrevogável Antes mesmo de entrar em vigor o Código Civil de 1916, EDUARDO ESPINOLA, analisando o “Projeto Bevilaqua”, já comentava que “conforme a moderna orientação jurídica, a retirada da proposta dentro do prazo estabelecido não gera simplesmente uma indenização por perdas e interesses, se a aceitação é fornecida em tempo: considera-se o 277 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, 10º Grupo Cível, Embargos infringentes n. 599.212.396, Acórdão de 28 maio 1999, Relator: Ilton Carlos Dellandréa, p. 2-3 (destaquei). 278 SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça, 1ª Câmara Cível, Apelação n. 6.331, Acórdão de 3 jul. 1969, Relator: Alves Pedrosa. IN: Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 413, p. 332-33, mar. 1970, p.333 279 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça, 4ª Câmara de Direito Privado, Apelação n. 82.941-4/9, Acórdão de 23 abr. 1998, Relator: Cunha Cintra. 122 contrato realmente formado e, assim, plenamente eficazes as obrigações decorrentes”280. Dizia ainda, o mesmo Autor, em nota de rodapé referente à mesma passagem, que “no caso em que o proponente se retrate, a tradição francesa limita sua responsabilidade à satisfação das perdas e interesses [...]. Sobre o moderno conceito escreve PLANIOL: ‘Propõe-se atualmente ir mais longe: o ofertante seria obrigado a manter sua oferta durante todo o prazo, de sorte que sua retratação sobrevinda antes do termo fixado é inoperante; a primeira vontade é considerada subsistente ainda, e a aceitação feita no prazo operaria a conclusão do contrato. Nesse sistema, a parte que recebeu a oferta tem direito de exigir a execução integral do contrato, notadamente a entrega das mercadorias. Se ela não o obtém, a situação é de contrato plenamente formado não executado’. É este o princípio expressamente estabelecido pelo art. 145 do Cód. Civ. alemão, como também o é pelo [então] art. 1082 do Projeto Bevilaqua” 281. Anos mais tarde, PONTES DE MIRANDA, familiarizado que era com o direito alemão, uniu-se a este entendimento de ESPINOLA, reiterando-o em diversas passagens de seu “Tratado”, como esta por exemplo: “A regra é que a oferta, ao chegar ao aceitante, seja eficaz e não possa ser revogada, salvo se subordinada a prazo [...]. Se o ofertante a retira, antes da chegada da aceitação, nem por isso deixa essa de ser eficaz” 282. Em outro passo, asseverou o mesmo Autor: “A revogabilidade retira a vox, de modo que se volta ao status quo. Não há indenizabilidade, porque quem revoga só o faz porque pode revogar. A revogação do irrevogável é sem qualquer eficácia. Não se confunde com a resolução, que re-solve, desfaz a eficácia como se desfizesse o próprio negócio 280 ESPINOLA, Eduardo. Systema do direito civil brasileiro: theoria geral das relações jurídicas de obrigação. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1912. v. 2, t. 1, pt. 1, p. 629-630. 281 Id. Ibid., p. 630, nota 240 (destaquei). 282 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, cit., 1977, t. 13,§ 1454, p. 93 (destaquei). 123 jurídico, sem ser pela retirada da vox, que parte do mundo fático. Nem com a denúncia. Nem com a resilição” 283. Diz mais: “Para se explicar a irrevogabilidade de certas ofertas pensou-se em haver, nelas, promessa de obrigação de não fazer. Verdade é que, revogada [uma oferta irrevogável], a aceitação a teria tornado parte do contrato, em vez de ter o oferente de prestar perdas e danos”284. E numa das passagem mais brilhantes sobre o tema, escreveu também PONTES DE MIRANDA: “No mundo de hoje, tem-se de proteger, em mais larga extensão, a boa-fé, porque a intensidade da vida, a circulação incessante, a deslocação das pessoas e das coisas não permitem que se conheçam, sempre, todos os dados de que se precisa para se saber exatamente qual a situação jurídica. A ciência jurídica e a técnica jurídica legislativa foram descobrindo casos em que seria proveitoso amparar o que confiou, dando-se eficácia a negócios jurídicos, que não na teriam, sem novas regras jurídicas sobre a boa fé, ou tornando-se fatos jurídicos fatos que, antes, a despeito da boa fé dos figurantes, não no seriam (= não entrariam no mundo jurídico): então, e só então e nessas espécies, Bona fides tantumdem praestat quantum veritas (L. 136, D., de diversis regulis iuris antiqui, 50,17)” 285. 3.4. O caso do direito português Digno de nota é a gênese do princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato no direito português. 283 Id. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1977. v. 25, § 3075, p. 270 (destaquei). 284 Id. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954. t. 2, § 223, p. 413-414 (destaquei). 285 Id. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954. t. 1, § 44, p. 138-139 (destaquei). 124 Com efeito, o Código Civil português de 1867 dispunha que “o proponente é obrigado a manter a sua proposta, enquanto não receber resposta da outra parte, nos termos declarados no artigo precedente. É responsável pelas perdas e danos, que possam resultar da sua retratação” 286 . Todavia, o Código Civil de 1966, a exemplo do BGB e do Código Civil brasileiro de 1916, adotou princípio diametralmente oposto ao Diploma anterior, qual seja a 287 irrevogabilidade da proposta de contrato . O comentário de INOCÊNCIO GALVÃO TELLES sobre o sentido e alcance deste princípio no direito português atual é impecável: “A lei diz que a proposta de contrato obriga o proponente (art. 228). Mas, verdadeiramente, dela não emerge um vínculo creditório. O proponente não tem de realizar qualquer prestação, positiva ou negativa, pelo simples fato de haver feito a proposta. Esta não constitui, por si, uma fonte de obrigação. O que a lei pretende significar é que a proposta é irrevogável. O seu autor não pode retirá-la, sendo irrelevante a declaração que faça neste sentido. Diverso era o sistema do Código anterior, que considerava possível revogar a proposta até à ultimação do contrato, embora estabelecendo para o proponente a obrigação de não proceder assim e constituindo-o pois em responsabilidade pelos prejuízos a que a revogação desse origem quando ele a praticasse (art. 653)” 288. E concluindo o seu pensamento, acrescenta o mesmo Autor: “Há aliás que distinguir duas fases: a que vai até ao recebimento ou conhecimento da proposta pelo destinatário; a que se segue a esse recebimento ou conhecimento. Na primeira fase a proposta é revogável (sem qualquer responsabilidade para o proponente); só na segunda se torna irrevogável. Por conseguinte, se o proponente revogar a proposta e a revogação for recebida ou conhecida pelo destinatário antes de esse receber ou conhecer a própria proposta, ou ao mesmo tempo, fica a proposta sem efeito. A revogação apenas será 286 CCpt-1867, art. 653 (destaquei). 287 CCpt-1966, art. 230, n. 1: “Salvo declaração em contrário, a proposta de contrato é irrevogável depois de ser recebida pelo destinatário ou de ser dele conhecida”. 288 GALVÃO TELLES, Inocêncio. op. cit., p. 51-52 (destaquei). 125 inoperante, mantendo-se a proposta de pé, no caso oposto de a recepção ou o conhecimento da proposta se dar antes da recepção ou conhecimento da revogação289. Penso que as cristalinas ponderações de EDUARDO ESPINOLA, PONTES DE MIRANDA e, no direito português atual, GALVÃO TELLES, não deixam dúvidas quanto à verdadeira mens legis do art. 1080 do Código Civil de 1916, atual art. 427 do Código Civil de 2002, que ao dispor que a “proposta de contrato obriga o proponente” introduziu no direito brasileiro, em termos idênticos ao direito alemão, o princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato, de tal modo que a (tentativa de) revogação de proposta irrevogável é ato completamente ineficaz, como se inexistisse para o direito. Não deixa de ser interessante o fato de que, muito embora o Código Civil italiano, por seu artigo 1328290, tenha adotado expressamente o princípio da revogabilidade da proposta, no artigo seguinte, ao prever a hipótese de proposta irrevogável por vontade 291 do proponente, foi taxativo ao dizer que “a revogação é sem efeito” . Pelo princípio da irrevogabilidade, a declaração originária da proposta mantém-se de pé, conservando todo o seu viço e eficácia, até o advento de alguma condição que enseje a sua caducidade (decurso de prazo expresso ou implícito, recusa pelo oblato, etc.) ou o resultado a que naturalmente se destina a proposta: a aceitação do oblato. Mesmo tendo declarado, o proponente, a intenção de revogar a sua proposta, sobrevindo tempestivamente a aceitação do oblato, o contrato se forma. A partir deste momento, já se está no campo contratual, de modo que eventual recusa do proponente a cumprir as obrigações que lhe tocam no contrato recém-formado, receberá as respostas que o direito têm reservadas ao inadimplemento contratual; não mais o “descumprimento” da proposta, como impropriamente se diz (proposta não se “cumpre” nem se “descumpre”; proposta se “faz”). 289 Id. Ibid., p. 52 (destaquei). 290 CCit, art. 1328: “A proposta pode ser revogada enquanto o contrato não se concluir”. 291 CCit, art. 1329: “Se o proponente se obrigou a manter firme a proposta durante certo tempo, a revogação é ineficaz” (destaquei). 126 SEÇÃO B: EFEITOS DA OFERTA AO PÚBLICO 127 CAPÍTULO 10: ART. 30 DO CDC – UM NOVO CONCEITO DE OFERTA? Muito embora os artigos 30 e 35 do CDC estejam inseridos em seção intitulada “Da oferta”, tenho que as hipóteses-de-fato de ambas as normas não se referem, de nenhum modo, à figura da oferta contratual, quer na modalidade proposta de contrato, quer na de oferta ao público – ao contrário do que pensa a maioria, para não dizer totalidade, dos 292 juristas que vêm comentando esses dispositivos . Deveras, ao dizer que “toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a celebrado”, o art. 30 não tratou da oferta ao público, mas do revolucionário princípio da integração publicitária do contrato, que embora de certa forma relacionado com a figura da oferta ao público, com ela não se confunde. Suponha-se que no Código Civil vigente inexistissem os artigos 427 a 435, e que o Código Civil de 1916 também não tivesse abrigado as normas dos artigos 1081 a 1087. Suponha-se, além disso, que nem a doutrina brasileira, tampouco a jurisprudência tivessem haurido dos direitos estrangeiros as figuras da proposta de contrato e da oferta ao público, e que portanto não houvesse em nosso direito qualquer tradição a respeito. Será que nestas hipotéticas circunstâncias, de inexistência absoluta de qualquer referência a essas figuras jurídicas, poder-se-ia afirmar, com honestidade, que os artigos 30 e 35 do CDC teriam disciplinado a proposta de contrato ou a oferta ao público? Conteriam, estas normas, realmente, uma descrição ainda que tênue, mínima ou indireta do fato “propor um contrato a pessoa determinada” ou “propor um contrato ao público”? 292 Por todos: ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. A oferta no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Lemos Editora, 1997, p. 15 e ss. 128 Parece-me que tais perguntas merecem uma resposta rotundamente negativa. Nesse sentido, a evolução do direito positivo argentino quanto à admissão da oferta ao público é muito eloqüente. Vimos que o art. 1148 do Código Civil daquele país estabeleceu expressamente que a oferta contratual “deve ser a pessoa ou pessoas determinadas”, excluindo, portanto, a possibilidade jurídica da oferta ao público. Ora, quando em 1993 o legislador argentino decidiu introduzir nas relações B2C as figuras da oferta ao público e da integração publicitária do contrato, não o fez por intermédio de um único dispositivo apenas, e sim dedicando um artigo distinto para cada 293 uma delas , eis que distintas são essas figuras. A verdade é que o art. 30 do CDC, definitivamente, não disciplina a oferta ao público, tampouco a proposta de contrato, mas tão-somente a integração publicitária dos contratos para consumo. O mesmo se deve dizer do art. 35: trata-se de norma jurídica que se refere exclusivamente à fase contratual, pois partindo da pressuposição de que a simples aceitação da oferta do fornecedor pelo consumidor já enseja a constituição plena do contrato, dispõe sobre os meios de execução específica das obrigações contratuais, na hipótese de inadimplemento do fornecedor. Aqui também, mais uma vez, a infelicidade terminológica do legislador tem sido fonte de equívocos interpretativos. A lei fala em “recusar cumprimento à oferta” 294 , quando na realidade, o que efetivamente quis dizer, foi recusar cumprimento ao contrato, formado pela aceitação da oferta do fornecedor pelo consumidor. 293 Confira-se o teor e sobretudo os titulos de cada um desses arigos da LPDC: “Art. 7º - Oferta. A oferta dirigida a consumidores potenciais indeterminados, obriga a quem a emite durante o tempo em que se realize, devendo conter a data precisa de começo e de finalização, bem assim suas modalidades, condições ou limitações” (negritei e sublinhei). “Art. 8º - Efeitos da Publicidade. As especificações formuladas na publicidade ou em anúncios prospectos, circulares ou outros meios de difusão obrigam ao oferene e se têm por incluídas no contrato com o consumidor” (negritei e sublinhei). 294 CDC, art. 35, caput (destaquei). 129 Como procurei salientar anteriormente, a oferta de contrato não é algo passível de ser cumprido ou descumprido, pelo simples e evidente motivo de que é tão-somente isso, uma oferta, e não um contrato. Oferta é algo que se faz, e uma vez feita e aceita pelo oblato, transmuda-se, juntamente com a aceitação, em contrato, de modo que eventual descumprimento do ofertante em relação ao conteúdo de sua oferta não mais constitui descumprimento desta, e sim do próprio contrato já plenamente formado pela aceitação correspondente. Daí discordar da opinião de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, segundo a qual o art. 35 do CDC teria “disciplinado a oferta ao público” 295 , ou de JUNQUEIRA DE AZEVEDO, para quem “o CDC equiparou, à oferta, a informação ou a publicidade ‘suficientemente precisa’ (art. 30)” 296. Aliás, neste particular, penso que por mais precisas que possam ser as informações veiculadas em determinada mensagem publicitária, se juntas elas não delineiam um contrato definido, ainda que em seus elementos mínimos, tais informações não constituem oferta ao público, muito embora tenham aptidão para integrar o conteúdo dos contratos que eventualmente vierem a ser celebrados pelos consumidores instigados pela publicidade comercial, consoante prevê explicitamente o art. 30. O contrário equivaleria a atribuir arbitrariamente ao vocábulo “oferta” um significado jurídico completamente distinto de “proposta”, como o fez, por exemplo, FERNANDO GHERARDINI SANTOS, ao sustentar que “a oferta, diferentemente da proposta, não precisa conter todos os elementos do contrato para ser obrigatória, bastando, para tanto, que contenha informações ‘suficientemente precisas’, ou seja, que contenha um mínimo de concisão capaz de esclarecer, ao consumidor comum, sobre uma ou mais 295 PEREIRA, Caio Mário da Silva. op. cit., p. 39. 296 JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor, cit., p. 182 (destaquei). 130 características do produto”297. Todavia, essa distinção semântica não encontra aparo legal, tampouco paralelo em nenhum direito estrangeiro. O certo é que desde o início da vigência do CDC até os dias de hoje, a maioria dos juristas que vem comentando os artigos 30 e 35 vê neles, invariavelmente, uma “nova 298 noção de oferta” , um “novo paradigma” 299 , que “a definição clássica de oferta contratual foi consideravelmente modificada e ampliada pelo diploma consumeirista” 300 , que “a oferta moderna, disciplinada pelo CDC, não corresponde, in totum, a vetusta figura jurídica da proposta [...], não mais condizente com a situação sócio-econômica 301 hodierna” , e assim por diante. Ocorre que nesse afã de vislumbrar novas facetas da oferta contratual, acabou-se 302 descuidando – salvo algumas pinceladas muito tênues da doutrina – do verdadeiro substrato do art. 30 do CDC, o seu elemento verdadeiramente revolucionário, qual seja o princípio da integração publicitária dos contratos para consumo. 297 SANTOS, Fernando Gherardini. Direito do marketing: uma abordagem jurídica do marketing empresarial. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000. p. 150-151 (destaquei). 298 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002. p. 599 e ss. 299 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. op. cit., p. 267 e ss. 300 CARVALHO, Ana Paula Gambogi. Contratos via internet segundo os ordenamentos jurídicos alemão e brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 66 e ss. 301 SANTOS, Fernando Gherardini. Direito do marketing. op. cit., p. 142. 302 Assim ALBERTO AMARAL JÚNIOR, quando em 1995 escreveu: “Qualquer declaração de vontade do fornecedor, desde que revele a precisão suficiente, terá caráter vinculante, o que significa que o seu cumprimento poderá ser exigido judicialmente [...]. A publicidade passará a integrar o contrato concluído com o consumidor como verdadeira cláusula extra, não escrita, mas que produzirá todos os efeitos legais (O princípio da vinculação da mensagem publicitária. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 14, p. 48-49, abr./jun. 1995)”. No mesmo sentido, mas sem se aprofundar no tema, CLAUDIA LIMA MARQUES: “Aceita a proposta feita através de publicidade, o conteúdo da publicidade passará a integrar o contrato firmado com o consumidor, como se fosse uma cláusula extra, não escrita, mas cujo cumprimento poderá ser exigido, mesmo de maneira litigiosa perante o judiciário” (Contratos no código de defesa do consumidor. op. cit., p. 625). 131 Na impossibilidade de analisar neste passo todas as abordagens doutrinais pautadas neste prisma – a meu ver, profundamente equivocado –, limito-me à mais significativa delas. Refiro-me à exegese de ALCIDES TOMASETTI JR., que a menos de dois anos da promulgação do CDC escreveu: “Na lógica do Código Civil, em matéria de formação do contrato, um dever de prestar nasce para o proponente apenas depois da conclusão do contrato – negócio jurídico de formação no mínimo bilateral – pelo intermédio da soldagem (no plano da eficácia) das conseqüências respectivamente típicas aos negócios jurídicos unilaterais contrapostos que se chamam oferta e aceitação [...]. Muito diversamente do modelo do Código Civil, no art. 35, caput e inciso I, do CDC, vem para logo atribuídos ao consumidor – com independência de que este previamente declare a respectiva aceitação – o direito, a pretensão e a ação tendentes a obter do fornecedor, não a execução específica de prestação prometida em contrato já concluído, mas sim o cumprimento forçado de uma obrigação, unilateralmente contraída pelo fornecedor, desde o momento em que foi veiculada a oferta [...]” 303. Não obstante esta exegese, num primeiro momento, tenha me seduzido, após as pesquisas e estudos que propiciaram a elaboração desta tese cheguei à conclusão de que ela, na verdade, não encontra amparo no CDC, nem no Código Civil, tampouco no direito contratual de nenhum dos países pesquisados. Com efeito, não há como uma oferta ao público, ipso facto, possa gerar uma obrigação stricto sensu de efetuar a prestação de produtos ou serviços a que se refere, sem a aceitação de um consumidor determinado. Em algum momento é necessário ocorrer a determinação subjetiva de um dos destinatários da oferta ao público, mediante a indispensável aceitação formadora do vínculo contratual, a qual, como sabido, as mais das vezes, manifesta-se tacitamente, por facta concludentia. 303 TOMASETTI JR., Alcides. O objetivo de transparência e o regime jurídico dos deveres e riscos de informação nas declarações negociais para consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 4, p. 63-65, 1992. 132 No dizer de PONTES DE MIRANDA, “a vincularidade e a obrigação de prestar são conceitos distintos, o segundo deles posterius, eventual, lógico, do primeiro. O oferente não é obrigado a contratar; ofereceu contrato, deu o primeiro passo para a conclusão dele, com a sua declaração de vontade. A outra declaração de vontade, concordante, faria o contrato” 304. A verdade é que em matéria de oferta contratual – exceção feita ao princípio da integração publicitária do contrato, instituto que, embora conexo, com esta não se confunde – o CDC não aportou nenhum elemento novo ao regramento já perfilhado pelo Código Civil de 1916, hoje aperfeiçoado pelo Código de 2002, com a positivação da oferta ao público e dos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, regramento que, corretamente interpretado e aplicado, sobretudo no que diz respeito ao maltratado princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato, fornece os subsídios necessários ao enfrentamento dos incessantes desafios da economia de mercado globalizada de nossos dias. 304 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, cit. 1977, t. 13, § 1511, p. 221 (destaquei). 133 CAPÍTULO 11: LIMITES EFICACIAIS DA OFERTA AO PÚBLICO 1. A revogabilidade natural da oferta ao público Na Alemanha, como visto, afora raríssimas hipóteses como a disponibilização de Verkaufsautomaten ao público, hesita-se abandonar totalmente aquela concepção individualista da declaração de vontade ad incertam personam preconizada por SAVIGNI, de modo que ofertas de contrato veiculadas nos meios de comunicação de massa são consideradas apenas invitatio ad offerendum. Em seu clássico “La formazione dei conttrati”, GIOVANNI CARRARA, após rigorosa comparação entre os direitos contratuais italiano, francês e alemão, propôs uma explicação para essa postura aparentemente paradoxal da doutrina germânica dizendo que “o sistema sobre o qual geralmente se constrói a proposta a pessoa indeterminada é o da livre revogabilidade da proposta. Nos países, portanto, que acolhem o princípio da revogabilidade, a proposta a pessoa indeterminada é admitida. Ao invés, naqueles em que a proposta tem caráter de irrevogabilidade, a proposta a pessoa indeterminada é rejeitada” 305 . Sob essa ótica, até que se poderia compreender a excessiva prudência dos alemães em admitir que uma proposta de contrato ad incertam personam seja vinculativa, eis que no direito alemão o princípio da irrevogabilidade é levado a sério pelos operadores do direito. 134 306 Ocorre que a oferta ao público, em princípio , é revogável, até mesmo no direito dos países que adotaram o princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato, de modo que aquela cautela dos alemães não se justifica. Sim. A oferta ao público é revogável por natureza! Creio ter já demonstrado satisfatoriamente que esta modalidade de oferta contratual é constituída de declaração de vontade não-receptícia, pois não se endereçando, a oferta ao público, a pessoas predeterminadas, o seu recebimento é fato irrelevante para o nascimento dos efeitos jurídicos que lhe são próprios. Dessa característica decorre importante conseqüência lógica: se o BGB – assim como o Código Civil de outros países que adotaram o mesmo princípio, como Brasil e Portugal – subordina a irrevogabilidade da proposta de contrato à recepção desta pelo oblato, e se a oferta ao público, ao contrário da proposta de contrato, é constituída de declaração de vontade não-receptícia, é forçoso concluir que ela pode ser revogada a todo momento pelo ofertante, em relação a todas as pessoas do público que ainda não tenham manifestado a correspondente aceitação307. Essa revogabilidade natural da oferta ao público, repita-se, dá-se inclusive naqueles 308 ordenamentos jurídicos – como o alemão, o brasileiro 309 e o português – em que vigora o princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato. 305 CARRARA, Giovanni. op. cit., p. 192 (destaquei). 306 Digo “em princípio”, porque nada impede ao ofertante, sponte sua,torná-la irrevogável por certo tempo, declarando-o nos próprios termos da oferta ao público. 307 Nas palavras de KÖNDGEN: “A peculiaridade de a oferta ao público ser constituída de declaração de vontade não-receptícia tem como contraponto o fato de que, em face de todos aqueles que ainda não tenham aceitado a oferta, ser esta revogável. A revogação precisa ser dirigida ao público da mesma forma que o foi a oferta a revogada” (KÖNDGEN, Johannes. op. cit., p. 290). 308 CCbr-2002, art. 429, parágrafo único: “Pode revogar-se a oferta pela mesma via de sua divulgação, desde que ressalvada esta faculdade na oferta realizada”. 135 Daí não haver qualquer incompatibilidade ou incoerência entre os artigos 427 (irrevogabilidade da proposta) e 429, parágrafo único (revogabilidade da oferta ao público) 310 do nosso Código Civil , tampouco entre as alíneas 1 e 3 do art. 230 do Código Civil 311 português . Daí também ser de todo desarrazoado o temor dos alemães a admitir vinculatividade a propostas de contrato ad incertam personam. Lembre-se, apenas, que a revogação da oferta ao público deve se operar pelos mesmos meios de publicidade pelos foi divulgada. Essa exigência, aliás, está presente na maioria dos dispositivos que versam sobre a oferta ao público. Além dos já citados artigos 429, parágrafo único do nosso Código Civil, e 230, alínea 3 do Código Civil português, cabe lembrar também o 1336, alínea 2 do Código Civil italiano. 2. Limites implícitos à eficácia da oferta ao público Além da revogabilidade que lhe é conatural, existem outros limites implícitos à oferta ao público. No dizer de CAMERIERI “a oferta ao público tem implicitamente limites objetivos (concernentes à própria capacidade do ofertante de satisfazer a demanda do público), temporais (que se dessumem da natureza do contrato a cuja conclusão a oferta se destina, da peculiaridade de seu conteúdo e dos usos) e subjetivos. Quanto a estes últimos – continua o Autor – o caráter indeterminado da oferta ao público exclui sua vinculatividade em relação àqueles contratos intuitu personae (mandato, sociedade, trabalho, etc.), sendo 309 CCpt-1966, art. 230, n. 3: “A revogação da proposta, quando dirigida ao público, é eficaz, desde que seja feita na forma da oferta ou em forma equivalente”. 310 CCbr-2002, art. 427: “A proposta de contrato obriga [= é irrevogável] o proponente [...]”. CCbr-2002, art. 429, parágrafo único: “Pode revogar-se a oferta [ao público] pela mesma via de sua divulgação, desde que ressalvada esta faculdade na oferta realizada”. 311 CCpt-1966, art. 230, 1: “Salvo declaração em contrário, a proposta de contrato é irrevogável”. CCpt1966, art. 230, 3: “A revogação da proposta, quando dirigida ao público, é eficaz, desde que seja feita na forma da oferta ou em forma equivalente”. 136 difícil, in concreto, imaginar que o ofertante assuma, a priori, o risco de ver aceita sua oferta por pessoa a ele desconhecida” 312. Aqui, sim, é honesto sustentar que ofertas desta natureza têm, efetivamente, a natureza de invitatio ad offerendum. 2.1. Ofertas ao público de contratos intuitu personae O art. 429 do nosso Código Civil estabelece que a oferta ao público equivale a 313 proposta de contrato, “salvo se o contrário resultar das circunstâncias e dos usos” . Ora, uma das “circunstâncias” que retira vinculatividade às ofertas ao público, a qual é geralmente apontada pela doutrina dos países pesquisados, é o fato de terem por objeto contratos intuito personae, em que as características ou qualidades pessoais do oblato são determinantes e condicionantes da intenção de vincular-se do ofertante. Vale dizer que, não sendo vinculantes na hipótese de versarem contrato intuitu personae – tais como o contrato de trabalho, a sociedade de pessoas, a locação, o seguro, etc. –, as ofertas ao público não conferem aos eventuais interessados o direito potestativo de constituir o vínculo contratual com a sua aceitação (vinculação mínima). No dizer de VIALARD, “na oferta ao público de contratos intuitu personae pode-se dizer que o ofertante, muito embora dirija sua oferta a muitas pessoas, reserva-se a faculdade, quer tacitamente, quer expressamente, de escolher, dentre os eventuais interessados que manifestem aceitar a oferta, aquele ou aqueles com os quais deseja contratar” 314 . 312 CAMERIERI, Fausto. op. cit., p. 116 (destaquei). 313 Destaquei. 314 VIALARD, Antoine. L’offre publique de contrat. op. cit., p. 784. 137 No Brasil, embora a doutrina não se tenha debruçado sobre esta particularidade, há dois julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que parecem admitir a existência de uma reserva implícita à oferta ao público de contratos intuitu personae. O primeiro deles é da Primeira Câmara Cível e vem assim ementado: “Contrato. Formação. Proposta. Em regra, a proposta de contrato tem a natureza de vinculante, apresentando-se como unilateralmente irrevogável. Entretanto, se a proposta já nasce precária, por ocorrer um dos motivos ressalvados no artigo 1080 do Código Civil, ela deixa de ser vinculativa, não obrigando o proponente. A proposta de oferta ao público [sic] por agente financeiro de imóvel a ser objeto de financiamento imobiliário pelo SFH, embora já contenha os elementos essenciais à formação do contrato, sempre dependerá, por sua natureza, do exame das condições da aceitação do terceiro, não significando, por isso proposta vinculante [...]” 315 . O segundo provém da Quarta Câmara Cível do mesmo Tribunal e sua ementa assim reza: “Ação indenizatória. Oferta ao público de imóvel para locação não ilmporta proposta, como definida no art. 1080 do Código Civil, sujeito que era o pretendente à aprovação de seus dados cadastrais [...]” 316 . 2.2. Ofertas ao público singulares e múltiplas Outro limite implícito à oferta ao público diz respeito ao número de potenciais aceitantes que ela pode admitir. Há ofertas ao público que são passíveis de serem aceitas por apenas uma pessoa, gerando, por conseguinte, só um contrato. É o que ocorre, via de regra, quando o objeto do contrato proposto é único, seja por envolver bem indivisível, seja infungível, 315 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, 1ª Câmara Cível, Apelação n. 589.077.106, Acórdão de 6 mar. 1990, Relator: Tupinambá Miguel Castro do Nascimento. 316 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, 4ª Câmara Cível, Apelação n. 589.047.240, Acórdão de 13 set. 1989. Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto. 138 seja, ainda, porque, mesmo sendo fungível o bem, o ofertante limita expressamente a oferta a apenas uma unidade. Oferta ao público desse gênero CAMERIERI a chama de “única”317, sendo preferível, a meu ver, designá-la “singular”, como o faz MIRABELLI318. Em contraposição, há ofertas ao público passíveis de serem aceitas por mais de uma pessoa, o que ocorre, por exemplo, quando o objeto do contrato proposto é múltiplo ou, sendo único, é divisível. Neste caso, embora tanto CAMERIERI319 quanto MIRABELLI320 as denominem de ofertas ao público plúrimas, prefiro chamá-las de múltiplas, vez que aquele vocábulo não integra o nosso vernáculo, pelo menos até o momento. Em geral, as ofertas ao público do comércio varejista são múltiplas, muito embora, quanto ao número possível de aceitações, sejam limitadas, também implicitamente, ao estoque de mercadorias de cada fornecedor, como visto. Curioso notar, a propósito, que, em princípio, a venda on-line de softwares em websites sequer sujeita-se a esta limitação numérica, haja vista a capacidade de reprodução ilimitada deste tipo de mercadoria. A importância prática desta distinção reside na circunstância de que a oferta ao público singular se extingue ou caduca com a aceitação do primeiro interessado, enquanto que em relação à oferta ao público múltipla – cujo objeto é certa pluralidade de bens ou de serviços repetíveis – terão eficácia todas as aceitações que se enquadrarem nos limites de estoque do ofertante, ou de sua capacidade de prestar os serviços ofertados – se outras limitações não vierem especificadas expressamente nos termos da própria oferta. 317 Cf. Id. Ibid., p. 119. 318 Cf. MIRABELLI, Giuseppe. op. cit., p. 110. 319 Cf. CAMERIERI, Fausto. op. cit., p. 119. 320 Cf. MIRABELLI, Giuseppe. op. cit., p. 110. 139 PARTE IV: O PRINCÍPIO DA INTEGRAÇÃO PUBLICITÁRIA DO CONTRATO 140 CAPÍTULO 12: FRANÇA – O VALOR CONTRATUAL DOS DOCUMENTOS PUBLICITÁRIOS 1. Publicidade comercial e formação do contrato Quase desnecessário dizer que a publicidade comercial exerce um papel decisivo na formação da vontade de consumir bens e serviços disponíveis no mercado, de tal modo que o Direito não poderia deixar de intervir também nesta seara, visando equilibrar não apenas as relações B2C, como também as B2B, eis que os distúrbios da publicidade também afetam gravemente a livre-concorrência entre empresários-fornecedores. Afinal de contas, livre-concorrência e defesa do consumidor são faces da mesma moeda da economia de mercado, consagrada no art. 170 da nossa Constituição. Desincumbindo-se desse desiderato constitucional, o legislador ordinário, por intermédio do CDC, e no que tange especificamente à publicidade comercial, positivou os princípios da “identificação da publicidade”321, “veracidade”322, “não-abusividade”323, “correção do desvio publicitário”324 e, por fim, “o princípio da integração publicitária dos contratos para consumo” 325 ora sob comento, que me parece ter vocação para exercer o 321 CDC, art. 36: “A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal”. 322 CDC, art. 37: “É proibida toda publicidade enganosa [...]: §1º É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços” 323 Idem. 324 CDC, art. 56, XII: “As infrações das normas de defesa do consumidor ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções administrativas, sem prejuízo das de natureza civil, penal e das definidas em normas específicas: XII - imposição de contrapropaganda”. 325 CDC, art. 30, in fine. 141 papel de mais eficiente dos meios de controle da publicidade comercial enganosa ou abusiva. Ao introduzir este estudo, adiantei que o art. 30 do CDC inspirou-se indubitavelmente no art. 8.1 da LGDCU espanhola. Ocorre que a partir de meados do século passado, antes, portanto, do advento desse diploma legal espanhol de 1984, a jurisprudência da Corte de Cassação francesa passou a destilar gradual e lentamente a chamada “doutrina sobre o valor contratual dos documentos publicitários”, a qual parece guardar intenso paralelismo com a figura da integração publicitária do contrato, nascida posteriormente na Espanha. Senão veja-se. 2. A noção de documento contratual Em monografia intitulada “A noção de documento contratual”, FRANÇOISE LABARTHE parte da acepção jurídica do vocábulo documento definindo-o como “todo elemento gráfico ou dado informatizado que serve de prova ou de informação”326, para em seguida passar à noção de documento contratual, dizendo que “são aqueles enviados ou invocados por ocasião da celebração de um contrato, suscetíveis de vincular a título de elemento contratual [...], que contribuem à formação ou à realização do contrato”327. Segundo o Autor, os documentos contratuais são uma das vias pelas quais a vontade das partes se exprime, de modo que para se captar adequadamente o verdadeiro conteúdo do contrato, tais documentos devem ser sopesados e interpretados cuidadosamente, sob a convicção de que o acordo contratual não se limita ao que foi estabelecido verbalmente ou por escrito no instrumento principal: outros documentos periféricos há que o complementam, aportando elementos às mais das vezes acessórios, mas nem por isso desimportantes328. 326 LABARTHE, Françoise. La notion de document contractuel. Paris: LGDJ, 1994. p. 2 (destaquei). 327 Id. Ibid., p. 6. 328 Cf. Id. Ibid., p. 9. 142 3. A noção de documento publicitário Para LABARTHE, o período contratual seria passível de ser dividido de acordo com a função que desempenham os documentos característicos de cada fase. Há documentos que são entregues à contraparte para (i) incitá-la a contratar, outros para (ii) facilitar as negociações preliminares, outros, por fim, para (iii) descrever o objeto do contrato. Naturalmente, os documentos que interessam ao tema desta tese pertencem ao primeiro grupo, os quais, na França, convencionou-se denominar documentos publicitários. A publicidade comercial é multifacetada. Ela pode ser oral, quando se difunde por rádio, televisão, cinema, etc; pode ser gráfica, como a exposição de produtos nas vitrinas de lojas por exemplo, ou tomar a forma de plantas ou maquetes, o que é particularmente freqüente no âmbito imobiliário; pode, ainda, ser escrita, servindo-se de inúmeros suportes, como cartazes, folhetos, prospectos, jornais, etc. Essa lista, evidentemente, não é exaustiva, e a cada dia, sob o influxo do incessante renovar-se da tecnologia, surgem novos suportes publicitários. A partir do momento em que determinado conteúdo publicitário adere a um suporte, tem-se o que a jurisprudência francesa chama de “documento publicitário”, tomando o vocábulo “documento” não apenas no sentido vulgar de texto ou escrito, mas em sentido amplo, como tudo que pode servir de prova, de testemunho de algum fato. JACQUES GHESTIN considera que os documentos publicitários são aqueles entregues antes da conclusão do contrato, com o objetivo de incentivar a sua formação329. MOUSSEROM, embora não os defina, assimila-os aos fatores de condicionamento, às notícias, prospectos, catálogos e convites para ofertar330. A doutrina francesa, portanto, parece levar em consideração apenas as formas escritas de documentação publicitária. 329 Cf. GHESTIN, Jacques. Traité de droit civil – la formation du contrat. 3. éd. Paris: LGDJ, 1993, p. 369. 330 MOUSSERON, Jean Marc. Technique contratuelle. Paris: Lefebvre, 1988, p. 113. 143 Segundo LABARTHE, na França, sempre que se perquire em juízo o valor contratual da publicidade, pressupõe-se esta sob a forma exclusivamente escrita. Todavia, isso não passa de mera constatação fática. Em tese, nada impediria considerar os documentos orais, sonoros, digitais, gráficos e fotográficos como aptos a vincular contratualmente o seu autor, quando certas palavras ou imagens determinaram a vontade da contraparte331. Ocorre que tais formas de publicidade são geralmente vagas e subjetivas, sendo por isso mesmo mais difícil encontrar decisões judiciais que tenham por objeto julgar se determinada mensagem publicitária oral ou visual teve ou não valor contratual. 4. O valor contratual dos documentos publicitários Durante muito tempo, a jurisprudência francesa não viu a publicidade comercial senão sob a perspectiva do dolus bonus, recusando-se, pois, a considerá-la integrada ao conteúdo do contrato. A partir de meados do século passado, porém, passou-se a atribuir certo valor contratual aos documentos publicitários, muito embora, na opinião de LABARTHE, ainda não exista homogeneidade nos julgados, podendo-se dizer, no entanto, que a tendência é reconhecer valor contratual a documentos que traduzem informações precisas e detalhadas332. Ainda que o documento publicitário não contenha todos os elementos essenciais do contrato, ele pode ser extremamente preciso quanto ao detalhamento da coisa ou do serviço publicitado. Ele pode, ao menos em parte, influenciar o consentimento da contraparte, que vai esperar do produto ou serviço contratado as qualidades prometidas no material publicitário. Se o instrumento contratual principal não registra todas essas 331 Cf. LABHARTE, op. Cit., p. 99-100. 332 Cf. Id., Ibid., p. 106. 144 características, é natural que as partes se fiem, para prestar seu assentimento ao negócio, no conteúdo dos documentos publicitários333. Em síntese, para a jurisprudência francesa, os documentos publicitários não têm, em princípio, valor contratual. Todavia, eles assumem tal eficácia quando, nas circunstâncias concretas do caso, estão presentes, basicamente, duas condições: (i) descrevem as características precisas do produto ou serviço a que se referem e (ii) influenciam ou determinam, pelo menos em parte, o consentimento da contraparte. Veja-se, a seguir, uma seleção de julgados da Corte de Cassação francesa nesse sentido. 5. A jurisprudência da Corte de Cassação 5.1. Incorporação imobiliária: promessa quanto a materiais empregados na construção Em sentença de 2 de abril de 1979, a Terceira Câmara Civil da Corte de Cassação, a despeito da imprecisão do memorial descritivo da construção, justificou a condenação de certa construtora a indenizar o proprietário de um imóvel, em razão das infiltrações de água verificadas na garagem, no fato de que, à época da aquisição, o proprietário confiou nas descrições detalhadas de um prospecto publicitário difundido pela construtora, o qual mencionava que o solo da garagem seria revestido de placas de cimento impermeável334. 333 Cf. Id. Ibid., p. 111. 334 Cf. GHESTIN, Jacques. op. cit., p. 370. 145 5.2. Incorporação imobiliária II: desatendimento à característica construtiva Em sentença de 23 de janeiro de 1979, ao improver um recurso interposto contra a sentença que condenou o incorporador a responder pelos defeitos de construção de certo empreendimento imobiliário, a Terceira Câmara da Corte de Cassação considerou que, embora o instrumento contratual mencionasse que o centro comercial abrigaria um hotel, certo documento publicitário remetido aos adquirentes à época do lançamento descrevia em detalhes que a arquitetura utilizada para a construção dos pavilhões respeitaria de modo especial os interesses dos adquirentes em ver resguardada a sua intimidade. Por isso, por ter sido entregue o edifício com pavilhões dotados de amplas vistas, incompatível com a anunciada privacidade, o incorporador, contrariando os seus compromissos, foi condenado a indenizar os adquirentes335. 5.3. Incorporação imobiliária III: promessa de manter área verde Segundo JACQUES MESTRE, a jurisprudência da Corte de Cassação, num primeiro momento, considerava que os documentos publicitários confeccionados por uma das partes no período pré-contratual não poderiam adquirir dimensão contratual e serem como tal invocados em juízo pela outra parte, sem uma prova palpável da decisiva influência desses documentos sobre o seu consentimento336. Paulatinamente, porém, a Corte passou a dispensar essa prova, sob a consideração de que os esforços de sedução despendidos na fase pré-contratual são muitas vezes a fonte de compromissos firmes e precisos para quem os emite ou deles se utiliza. 335 Id., loc. cit. 336 MESTRE, Jacques. La force contractuelle de certains documents publicitaires. Revue Trimestrielle de DroitCorte de Cassaçãoivil, Paris, n. 2, p. 363-364, avr./juin 1998. 146 Assim, em sentença de 17 de julho de 1997, a Terceira Câmara Civil contempla o caso de incorporadora que, à época do lançamento de um loteamento em condomínio, vende a certo casal a unidade identificada como “Lote 4”. Mais tarde, um terreno lindeiro ao lote adquirido pelo casal, não pertencente ao condomínio, mas de propriedade da incorporadora, é por esta desmembrado e agregado aos lotes 1 e 3. O casal, sustentando que um dos fatores que o levou a adquirir o Lote 4 era a circunstância de ladear e dar vistas a uma área verde, que não mais existia em razão de edificação promovida pela mesma incorporadora nos lotes unificados, ajuíza demanda indenizatória contra esta, que foi julgada procedente pela Corte de Apelação competente. Ao recorrer da sentença perante a Corte de Cassação, a incorporadora sustentou que (i) o vendedor é obrigado a entregar ao comprador apenas a coisa vendida e (ii) somente as estipulações contratuais vinculam as partes, de modo que o casal não poderia, posteriormente, prevalecer-se de documentos extracontratuais para alegar que o contrato não teria sido inteiramente cumprido. Todavia, a Terceira Câmara Civil rejeitou o recurso da incorporadora sob o fundamento de que (i) o memorial descritivo e a planta do loteamento recebidos pelo casal indicavam que o terreno lindeiro era uma área verde; (ii) o casal levou em consideração os arredores para se decidir sobre a compra do lote; (iii) ao incluir no memorial descritivo e na planta do loteamento a menção a uma área verde localizada no terreno lindeiro ao lote adquirido pelo casal, a incorporadora havia assumido, perante este, a obrigação de manter a área verde, não edificando nada sobre ela337 . 337 Cf. Id., loc. cit. 147 5.4. Compra-e-venda de máquina de preenchimento de cheques: promessa de resultado Afim de evitar a falsificação de cheques de sua conta bancária, uma empresa compra certa máquina de preenchimento automático de cheques. Pouco tempo depois, acaba sendo vítima da falsificação de dois cheques, o que a leva a demandar o fabricante em juízo buscando a reparação de um prejuízo da ordem de 140.000 francos. Para tanto, apóia-se no argumento de que, no anúncio publicitário do equipamento, o fabricante declara que a máquina proporcionava uma “segurança absoluta”, e que os cheques eram “infalsificáveis”. Ao contestar a demanda, o fabricante sustenta que o exagero é natural à toda publicidade comercial, e que o comprador não pode ignorar que toda tecnologia tem os seus limites. Essa defesa, porém, não evitou que a Corte de Apelação competente declarasse a procedência da pretensão indenizatória da compradora, sentença essa posteriormente confirmada pela de 9 de setembro de 1997 da Câmara Comercial da Corte de Cassação, sob o fundamento de que “os documentos publicitários obrigam plenamente seu autor, e de modo particularmente intenso se implicam uma obrigação de resultado”338. 5.5. Distribuição de software infectado por vírus, como brinde pela compra de revista A editora de certa revista coloca à venda determinada edição, encartando no interior do periódico, pelo preço habitual, e a título de brinde, um disquete contendo software de gerenciamento de pequenos negócios. 338 Id., loc. cit. 148 Ocorreu que o software estava infectado por vírus, e certo assinante da revista teve o seu computador seriamente danificado por isso. Em face da demanda indenizatória movida pelo assinante, a editora, após afirmar que (i) o software não fora confeccionado por ela e (ii) o disquete fora distribuído gratuitamente aos assinantes, sustenta que ela não poderia ser considerada vendedora do disquete, não devendo, por conseguinte, responder pelos danos por este causados. A sentença da Corte de Apelação afastou tais argumentos, e na sentença de 25 de novembro de 1997, a Corte de Cassação a confirmou, ponderando que (i) a sentença recorrida admitiu que o disquete fixado no interior da revista não podia separar-se fisicamente dela antes da compra; (ii) a revista ostentava na capa um anúncio mencionando a presença do disquete gratuito, visando com isso aumentar as vendas; (iii) sobre o disquete figurava a logomarca “Soft et Micro”, acompanhada da indicação do nome da editora como responsável por sua distribuição; (iv) a partir dessas comprovações, o tribunal a quo concluiu que o disquete constituía um dos elementos integrantes do contrato de venda da revista, de modo que a editora, como vendedora, devia responder pelas obrigações decorrentes do contrato339. 339 Id., loc. cit. 149 CAPÍTULO 13: ESPANHA – O ART. 8.1 DA LGDCU 1. Prevenir e remediar Bem observou JOSÉ MARIA CABALLERO LOZANO340 que o art. 8.1 da LGDCU poder-se-ia desmembrar em duas partes autônomas. A primeira delas cuida da vedação à publicidade enganosa, ao dizer que “a oferta, promoção e publicidade dos produtos, atividades ou serviços, ajustar-se-ão à sua natureza, condições, utilidade ou finalidade, sem prejuízo do estabelecido nas disposições sobre publicidade”. Já a segunda parte visa tutelar o chamado interesse contratual positivo do consumidor, estabelecendo que “seu conteúdo [o da publicidade], as prestações próprias de cada produto ou serviço, e as condições e garantias oferecidas, serão exigíveis pelos consumidores ou usuários, ainda quando não figurem expressamente no contrato celebrado ou no documente ou comprovante recebido”. Ao fazer menção ao “estabelecido nas disposições sobre publicidade”, a primeira parte do art. 8.1 referia-se, à época de sua promulgação (1984), ao “Estatuto de la Publicidad” de 1964341. 340 341 Cf. CABALLERO LOZANO, José Maria. Eficacia contractual de la publicidad comercial en la jurisprudencia. Actualidad Civil, Madrid, n. 13/25, p. 298, nota 13, mar. 1996. Cujo art. 8 estabelecera o princípio da veracidade na atividade publicitária, nos seguintes termos: “Em toda atividade publicitária, dever-se-á respeitar a verdade, evitando que se deformem os fatos ou que se induza a erro. As afirmações relativas à natureza, composição, origem, qualidades substanciais ou propriedades dos produtos ou prestação dos serviços objeto da publicidade serão sempre exatas e suscetíveis de prova em qualquer momento”. 150 Todavia, pouco depois de promulgada a LGDCU, tiveram início na Espanha os trabalhos preparatórios para a elaboração de uma nova lei de publicidade, em atendimento à Diretiva 1984/450/CE, que visou harmonizar as disposições legislativas e administrativas dos países-membros no tocante à publicidade enganosa342. Fruto desses trabalhos foi a Lei 34, de 11 de novembro de 1988, dita “Ley General de Publicidad” – doravante “LGP” – derrogatória do Estatuto da Publicidade de 1964, motivo pelo qual, atualmente, é a esta última lei a que se deve entender a remissão do art. 8.1 da LGDCU às “disposições sobre publicidade”. Ora, os instrumentos de combate à publicidade enganosa previstos na LGP restringem-se às ações de retificação e cessão da publicidade, de caráter apenas preventivo, portanto. Todavia, embora capazes de impedir o consumidor de tomar uma decisão equivocada na hora de escolher uma das opções existentes no mercado, tais medidas não resolvem uma faceta relevante do problema: a dos efeitos danosos da publicidade enganosa já produzidos, ou no dizer de EDUARDO CORRAL GARCÍA, a frustração de se comprovar que, depois de escolhido e contratado o produto anunciado, sua qualidade não corresponde ao que se poderia legitimamente esperar em função do conteúdo da mensagem publicitária que influiu na decisão de contratar esse e não outro bem ou serviço343. 342 Essa Diretiva, após considerar que “a publicidade enganosa pode ocasionar uma distorção da concorrência no seio do mercado comum” e que “a publicidade, leve ou não à celebração de um contrato, afeta a situação econômica dos consumidores”, declara em seu primeiro artigo que “terá por objeto proteger aos consumidores e as pessoas que exercem uma atividade comercial, industrial, artesanal ou liberal, assim como os interesses do público em geral contra a publicidade enganosa e suas consequências desleais". 151 O art. 8.1 da LGDCU cumpre exatamente essa função corretiva, eis que possibilita ao consumidor, em última análise, exigir do fornecedor, seja qual for o veículo utilizado, o cumprimento das condições negociais anunciadas na apresentação publicitária do produto ou serviço contratado, mesmo que o teor do anúncio não figure expressamente no instrumento contratual firmado pelas partes344. Na feliz expressão de MIGUEL PASQUAU LIAÑO, a publicidade “heterointegra o conteúdo da regulamentação contratual, passando a ser exigível não por derivação da intenção presumida ou tácita das partes, mas por exigências objetivas do ordenamento jurídico. Os contratos para consumo, portanto, obrigam não só ao expressamente pactuado, senão a todas as condições e as respectivas conseqüências veiculadas pela publicidade correspondente”345. Na verdade, o princípio da integração publicitária do contrato insculpido no art. 8.1 da LGDCU tem origem numa construção pretoriana, erigida sobre a conjugação de outros princípios maiores. O primeiro deles é o “princípio da boa-fé contratual” positivado no 1258 do Código Civil espanhol, de seguinte teor: “Os contratos se aperfeiçoam pelo mero consentimento, e desde então obrigam não só ao cumprimento do expressamente pactuado, como também a todas as conseqüências que, segundo sua natureza, sejam conformes à boa-fé, ao uso e à lei” (destaquei). O segundo princípio, de natureza eminentemente hermenêutica, foi positivado no art. 1282 do mesmo Código, e estabelece que “para se interpretar a intenção dos contratantes, dever-se-á observar principalmente os atos destes, coetâneos e posteriores ao contrato” (destaquei). 343 Cf. CORRAL GARCÍA, Eduardo. La protección de los consumidores a través de la eficacia contractual de la publicidad. Actualidad Civil, Madrid, n. 38, p. 1401, 2000. 344 FONT GALÁN, Juan Ignacio. El tratamiento jurídico de la publicidad en la Ley General para la defensa de los consumidores y usuarios. In: FONT GALÁN, Juan Ignacio; LÓPEZ MENUDO (Coord.). Curso sobre el nuevo derecho del consumidor. Madrid: Instituto Nacional del Consumo, 1990. p. 60: “O preceito do art. 8.1 da LGDCU aporta uma inovação jurídica que supera a velha dogmática da formação e integração do contrato". 152 Vale a pena examinar os precedentes jurisprudenciais mais importantes, que aplicando às respectivas causas sub judice esses dois princípios insculpidos no Código Civil espanhol, deram ensejo à consolidação da doutrina e, posteriormente, à norma do art. 8.1, consagradora do princípio da integração publicitária dos contratos para consumo. 2. Precedentes do Tribunal Supremo 2.1. Compra-e-venda de máquina industrial: promessa de resultado Um empresário de Madri, dono de uma fábrica de “salazones y harinas de 346 pescados” , compra de certa empresa uma máquina separadora-centrífuga. Insatisfeito com o desempenho do equipamento, interrompe o pagamento das parcelas estipuladas no contrato e notifica a vendedora para que substitua a máquina por outra que se ajuste ao rendimento anunciado em sua publicidade comercial, ou que a retire de sua fábrica, devolvendo-lhe a parte do preço já efetuado, e indenizando-lhe certos prejuízos que alega ter sofrido347. 345 PASQUAU LIAÑO, Miguel. [Comentários ao art. 8.1-2 LGDCU]. In: BERCOVITZ RODRÍGUEZ–CANO, Rodrigo; SALAS HERNÁNDEZ, Javier. Comentarios a la ley general para la defensa de los consumidores y usuarios. Madrid: Civitas, 1992. p. 161. 346 O que se poderia traduzir por “pescados em conserva” ou “pescados em salmoura”. 347 Cf. ESPAÑA. Tribunal Supremo, Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación, Sentencia 14 jun. 1976, Ponente: Antonio Cantos Guerrero. Repertorio de jurisprudencia, Pamplona, v. 1, verb. 2753, p. 2752, 1976. 153 A vendedora reage à notificação propondo perante o Juizado de Primeira Instância de Madri uma ação de cobrança das parcelas inadimplidas, diante do que o comprador contrapõe reconvenção pleiteando a substituição da máquina ou a devolução das parcelas do preço até então adimplidas348. O Juizado de Primeira Instância madrileno julga improcedente a reconvenção do comprador e procedente a demanda da vendedora, condenando aquele a pagar a esta a quantia de 185.000 pesetas, além de juros legais contados da propositura da demanda. Interposto recurso de apelação pelo comprador, a Audiência Provincial de Madri mantém a sentença recorrida quanto à condenação do comprador a pagar à vendedora a referida quantia, mas reforma-a no tocante à improcedência da reconvenção, condenando a vendedora: “(1) a retirar da fábrica [...] a máquina [...] por não corresponder, quanto às características e rendimento, àquela que foi objeto do contrato; (2) a enviar à fábrica [...] uma máquina [...] da mesma marca, mas que proporcione a facilidade de limpar automática e perfeitamente as peças, evitando o trabalho de retirada de resíduos, e apresente um rendimento, em azeite de pescado, de 2.000 a 2.3000 litros por hora, correndo por conta e risco da vendedora os gastos de transporte e instalação da máquina nas devidas condições de funcionamento, subordinando-se, todavia, tais obrigações, ao pagamento, pelo comprador, das parcelas remanescentes do preço ajustado” 349 . A vendedora, a seu turno, interpõe recurso de cassação da sentença perante o Tribunal Supremo da Espanha, que resultou integralmente improvido pela sentença de 14 de junho de 1976, sob o principal fundamento de que “ainda que o modelo SC-350/AOI seja efetivamente o contratado e entregue pela vendedora, o descumprimento do contrato por parte desta não reside no fato de ter entregue um modelo distinto ao comprador, e sim em não atingir, o modelo entregue, o rendimento anunciado na propaganda fotográfica e gráfica acostada aos autos, que cumpre a função de uma oferta, vinculante para a vendedora, na qual se indicava o rendimento horário de 2.000 a 2.300 348 Cf. Id., loc. cit. 349 Id., loc. cit. 154 litros, oferta pela qual se orientou o comprador. Irrelevante, no caso, a existência de uma placa fixada à máquina indicando um rendimento inferior ao anunciado, a qual, aliás, era desconhecida por completo do adquirente até o equipamento chegar à sua fábrica, pois como sempre ocorre nestes casos, o comprador se ateve aos dados consignados na publicidade comercial, que idubitavelmente tem o escopo de captação através da 350 propaganda” . Pois bem. A “informação” de que a máquina renderia “de 2.000 a 2.300 litros por hora em azeite de pescado” não poderia ser mais objetiva e precisa. Certamente, ela não deve ter figurado expressamente em nenhum dos instrumentos que documentaram o contrato de compra-e-venda, constando apenas da “propaganda fotográfica e gráfica” 351 que instigou o empresário a adquiri-la e empregá-la em sua atividade industrial. Isso não obstante, a sentença do Tribunal Supremo considerou que aquela informação “cumpre a função de uma oferta, vinculativa para o vendedor [...], pela 352 qual se orientou o comprador” – o que, de modo mais técnico, significa dizer que aquela informação integrou o acordo de compra-e-venda da máquina, como se cláusula contratual escrita fosse. Pela primeira vez na Espanha reconheceu-se que as declarações publicitárias acerca do objeto do contrato devem integrar o seu conteúdo. Digno de nota é a circunstância de que esse reconhecimento se deu no âmbito de uma relação jurídica B2B. 350 Id., loc. cit. 351 Id., loc. cit. 352 Id., loc. cit. (destaquei). 155 2.2. Incorporação imobiliária: promessa de instalações nas unidades autônomas e áreas comuns Em 18 de abril de 1968, um particular e certa construtora firmam contrato preliminar objetivando a compra-e-venda de determinada unidade autônoma de um loteamento em condomínio localizado na cidade de Sevilha, na Espanha, então em fase de construção. O instrumento contratual, previamente redigido pela construtora, limita-se a especificar o preço, as condições de pagamento e certas garantias da construtora relativas ao adimplemento das parcelas a cargo promitente-comprador. Quanto às características das unidades autônomas e das áreas comuns, o contrato apenas o descreve genérica e superficialmente. O que efetivamente incita o interesse do adquirente são os prospectos do empreendimento distribuídos pela construtora, bem como algumas plantas confeccionadas pelos arquitetos da construção, onde se especificam certos detalhes de conforto das unidades, alguns elementos das áreas comuns e determinados serviços que seriam disponibilizados aos condôminos353. Todavia, ao receber a sua unidade, o adquirente constata uma série de deficiências em relação aos itens anunciados no material publicitário, o que o leva a propor perante o Juizado de Primeira Instância de Madri uma demanda de natureza cautelar, visando a produção antecipada de provas, pela qual restam efetivamente comprovadas diversas deficiências na obra. Na seqüência, o promitente-comprador propõe ação de execução específica de obrigação de fazer cumulada com pedido indenizatório, pela qual a construtora foi condenada pelo Juizado de Madri a (i) realizar as obras necessárias para o isolamento acústico da unidade do autor, (ii) instalar um sistema de ar-condicionado que atenda 353 Cf. ESPAÑA. Tribunal Supremo, Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación, Sentencia 27 enero 1977, Ponente: Antonio Cantos Guerrero. Repertorio de jurisprudencia, Pamplona, v. 1, verb. 121, p. 120-122, 1977. 156 adequadamente toda a unidade e (iii) indenizar o autor pela ausência dos prometidos serviços de cafeteria, salão de festas, berçário, restaurante, lavanderia, acessos adequados à garagem, abatendo-se do preço da unidade estipulado no contrato os valores de tais serviços, a serem apurados em liqüidação de sentença por intermédio de perícia arquitetônica354. A construtora interpõe apelação perante a Audiência Provincial de Madri, alegando, em síntese, que (i) as instalações e serviços comuns pleiteados pelo adquirente não estão contemplados no contrato, e que (ii) a construtora não está vinculada aos termos da propaganda do empreendimento, que teria caráter meramente ilustrativo, de modo que não deve responder pelas deficiências do imóvel em relação à publicidade apontadas no laudo pericial da demanda cautelar movida pela autora. Tais alegações sensibilizam a Audiência Provincial, levando-a a prover o recurso da construtora e a cassar a condenação às obrigações-de-fazer e indenizar estabelecidas pelo juízo de primeiro grau355. No entanto, em recurso a seu turno interposto pelo adquirente, a sentença da Audiência Provincial de Madri é cassada pelo Tribunal Supremo em sentença de 27 de janeiro de 1977, restabelecendo-se in toctum a decisão do Juizado de Primeira Instância, ao fundamento de que “sendo muito parco, o contrato subscrito pelas partes, em elementos descritivos, é lógico – como salientou o juiz de primeira instância – que o adquirente do imóvel se atenha ao prometido nos folhetos de propaganda, de acordo com o princípio da boa fé proclamado no art. 1258 do Código Civil, ao considerá-los – com toda razão – vinculantes para a construtora. Isso não bastasse, as plantas arquitetônicas, seguindo uma linha de honradez profissional, correspondem, salvo pequenos detalhes, àquela linha de promessas ao público constantes da publicidade comercial, e o laudo pericial acostado aos autos – não impugnado pela construtora –, ao qual se ateve o juízo de primeiro grau, aponta discrepâncias não somente em relação à propaganda vinculativa, mas também em 354 Cf. Id., loc. cit. 355 Cf. Id., loc. cit. 157 comparação às plantas oficialmente apresentadas pela construtora para fins de cumprimento das exigências urbanísticas” 356. 2.3. Incorporação imobiliária II: promessa de instalação de piscinas e áreas verdes Ao lançar o loteamento denominado “Residencial San José”, certa construtora promove campanha publicitária anunciando, dentre outros benefícios, que o empreendimento contaria com “piscina para adultos, piscina infantil, água e áreas verdes” 357 . Posteriormente, a construtora lança um loteamento lindeiro ao San José, e acena com a pretensão de incorporar àquele a parte deste que seria destinada às piscinas e áreas verdes anunciadas na publicidade. Os condôminos do San José demandam a construtora em juízo, a qual sai vencida nas duas instâncias, a despeito de ter alegado que as piscinas e áreas verdes não estavam previstas nos respectivos contratos de venda das unidades autônomas. Inconformada, interpõe recurso de cassação, que também resulta improvido por sentença de 9 de fevereiro de 1981, que obriga a empresa construtora a transferir aos condôminos do San José a titularidade do referido terreno 358 . 356 Id., loc. cit. (destaquei). 357 ESPAÑA. Tribunal Supremo, Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación, Sentencia de 9 feb 1981, Ponente: Antonio Fernández Rodríguez. 358 Cf. Id., loc. cit. 158 Neste julgado, o Tribunal Supremo da Espanha fundamenta a relevância jurídica e a vinculação obrigacional da publicidade na regra do art. 1282 do Código Civil espanhol, segundo a qual “para se interpretar a intenção dos contratantes, dever-se-á atentar 359 principalmente ao atos destes, coetâneos e posteriores ao contrato” . Deveras, a ratio decidendi da sentença reside no entendimento de que a obscuridade dos contratos de compra-e-venda obriga ao intérprete a considerar os atos 360 anteriores, coetâneos e posteriores das partes para captar-lhes a verdadeira intenção . Nesse mister, o Tribunal Supremo transporta ao conteúdo do contrato a publicidade utilizada pela construtora na venda das unidades autônomas, ao pálio de que “o que indubitavelmente serviu de público e geral oferecimento, e desde que não se tenha 361 excluído expressamente, está compreendido no contratado” . 2.4. Síntese evolutiva: a tutela da confiança O que há de comum nesses julgados é o fato de terem integrado ao regramento dos contratos sub judice o conteúdo da publicidade acerca do objeto contratado, a qual, sobre ser promovida por uma das partes, instigou a outra a celebrar o contrato. Nota-se, todavia, que a fundamentação do que a doutrina espanhola passou a 362 chamar integração publicitária do contrato não somente é diferente em cada sentença, como evoluiu num sentido positivo de aperfeiçoamento. 359 Destaquei. 360 Cf. CABALLERO LOZANO, José Maria. Eficacia contractual de la publicidad comercial. op. cit., p. 297.. 361 Cf. ESPAÑA. Tribunal Supremo, Sentencia de 9 febr. 1981, op. cit. 362 Por todos: FONT GALÁN, Juan Ignacio. La integracion publicitaria del contrato: un instrumento de derecho privado contra la publicidad enganosa. Cuadernos de Derecho y Comercio, Madrid, n. 4, p. 7-47, dic. 1988. 159 Com efeito, na sentença de 14 de junho de 1976, para justificar a integração da “propaganda fotográfica e gráfica” da máquina separadora-centrífuga ao contrato de compra-e-venda em apreço, o Tribunal Supremo pautou-se na consideração de que a publicidade “cumpre a função de uma oferta, vinculante para o vendedor” 363 . Já na sentença de 27 de janeiro de 1977, o fundamento legal da integração publicitária do compromisso de compra-e-venda de imóvel celebrado entre o adquirente e a construtora foi o princípio da boa-fé contratual positivado no art. 1258 do Código Civil espanhol. Por fim, na sentença de 9 de fevereiro de 1981, o fundamento da integração publicitária do contrato é a chamada “doutrina dos atos próprios” recolhida no art. 1282 do mesmo Código. JUAN IGNACIO FONT GALÁN traduziu a relevância desses três precedentes para o direito espanhol dizendo que “pouco a pouco, aquela boa ‘semeadura’ jurisprudencial vai grassando, até que esta doutrina, por efeito de um fenômeno de fértil sinergia, contribui ao progressivo reconhecimento e desenvolvimento da doutrina protetora da confiança (vertrauenschutz), a qual, por sua vez, constitui um dos mais sólidos bastiões que sustentam a doutrina da relevância e vinculatividade obrigacional das declarações publicitárias” 364 . Efetivamente, esses julgados do Tribunal Supremo da Espanha serviram de referência a outros tantos, até que em 1984, o art. 8.1, segunda parte, da LGDCU veio a positivar o princípio da integração publicitária do contrato, de modo a não mais pairar dúvidas de que, no direito espanhol, as características dos produtos e serviços, bem como as condições negociais divulgadas pela publicidade comercial “serão exigíveis pelos 363 Id., loc. cit. 364 FONT GALÁN, Juan Ignacio. La integracion publicitaria del contrato. op. cit., p. 21: destaques do original. 160 consumidores ou usuários, ainda quando não figurem expressamente no contrato 365 celebrado ou no instrumento ou comprovante recebido” . 3. O sentido e alcance do art. 8.1 da LGDCU Pelo princípio da integração publicitária do contrato positivado no art. 8.1 da LGDCU, os conteúdos publicitários relativos a bens e serviços de consumo fazem parte do concerto contratual havido entre fornecedores e consumidores, independentemente de o instrumento subscrito fazer ou não menção expressa a eles. Para FONT GALÁN, o fundamento lógico-jurídico da exigibilidade ou vinculatividade dos conteúdos publicitados não reside no contrato celebrado entre fornecedor e consumidor, mas na confiança negocial e econômica criada por aquele no ânimo deste mediante as suas declarações publicitárias366. Os contratos obrigam não só ao expressamente pactuado, senão a mais coisas: a todas as conseqüências, queridas ou não pelas partes, que decorrem da lei imperativa, dos usos e sobretudo da boa-fé em seu sentido objetivo, que aplicada concretamente à publicidade comercial, implica na vinculatividade de seu conteúdo, nos termos do art. 8.1 da LGDCU367. O contrato, portanto, não é somente um ato de autonomia privada ou, dito de outra forma, a autonomia privada não é a única fonte normativa do contrato: lei, usos e boa-fé também integram o regramento contratual, de modo heterônomo, o que significa dizer que atuam independentemente da vontade das partes que conceberam o contrato. 365 LGDCU, art. 8.1 (destaquei). 366 Cf. FONT GALÁN, Juan Ignacio. El tratamiento jurídico de la publicidad en la Ley General para la defensa de los consumidores y usuarios, cit., p. 76. 367 Cf. PASQUAU LIAÑO, Miguel. op. cit., p. 161. 161 Segundo CABALLERO LOZANO, para o consumidor obter a proteção do preceito do art. 8.1 da LGDCU não é preciso que demonstre a relação de causa e efeito entre a publicidade e o contrato celebrado; basta que a publicidade seja coetânea ao contrato, mesmo que o consumidor concretamente considerado tenha formado sua vontade com independência da publicidade desenvolvida pelo fornecedor. E como exemplo, cita, o Autor, a aquisição em supermercado de produtos vendidos momentaneamente com desconto: mesmo ignorando tal desconto ao pegar o produto na gôndola, o consumidor tem direito a levá-lo pelo preço anunciado nos autofalantes da loja368. Como não poderia deixar de ser, a aplicação do dispositivo sob comento não deixou de suscitar algumas divergências na doutrina espanhola. Assim, CORRAL GARCÍA sustenta que nos casos em que existiu certa negociação entre fornecedor e consumidor, e o conteúdo final do contrato resultou menos favorável a este do que o anunciado na publicidade, esta exerce a função de estabelecer um “mínimo inegociável”, que sempre poderá ser exigida pelo consumidor, pois o preceito, em sua globalidade, instaurou um contrapeso à liberdade de negociar, em benefício dos próprios consumidores369. MABEL LÓPEZ GARCÍA, porém, entende que o art. 8.1 deve ser aplicado em conformidade com o ordenamento jurídico como um todo, devendo-se ter em conta que o princípio da boa-fé e a liberdade contratual são fundamentais ao direito contratual espanhol, de modo que o consumidor somente poderá exigir o cumprimento da publicidade quando não tenha voluntariamente negociado outras condições com o fornecedor, salvo se se tratar de contrato por adesão, hipótese em que se deve presumir, de forma absoluta, que as condições distintas das anunciadas não foram pactuadas livremente pelo consumidor370. 368 Cf. CABALLERO LOZANO, José Maria. op. cit., p. 299, nota 15. 369 Cf. CORRAL GARCÍA, Eduardo. La protección de los consumidores. op. cit. p. 7. 370 Cf. LÓPEZ GARCÍA, Mabel. La publicidad y el derecho a la información en el comercio electrónico. Madrid: eumed. net, 2004: html: //www. eumed.net/cursecon/libreria/, consultado por exemplo em 18.10.2005, p. 77. 162 4. A jurisprudência em torno do art. 8.1 da LGDCU Com o advento da LGDCU, a jurisprudência do Tribunal Supremo e das audiências provinciais da Espanha, contando, então, com uma previsão legal expressa, pôde consolidar a doutrina da integração publicitária do contrato. Eis os precedentes mais significativos. 4.1. Sentenças do Tribunal Supremo 4.1.1. Desconformidade entre publicidade e objeto contratado: indispensabilidade da prova A sentença de 7 de novembro de 1988 versa sobre ação de resolução de contrato de construção e venda de unidade autônoma com vaga de garagem, ajuizada pela construtora contra o comprador, por inadimplemento deste quanto às parcelas estipuladas no contrato. Em sua defesa, o demandado alega que a unidade que lhe foi entregue não se ajusta às condições da oferta anunciada na publicidade comercial que precedeu a assinatura do instrumento contratual. Tanto o Julgado de Primeira Instância quanto a Audiência Provincial de Madri entendem que o comprador não logrou provar a desconformidade entre o imóvel entregue e a propaganda da construtora, de modo que em face da falta de pagamento das prestações, reconheceu-se a procedência da pretensão resolutória da construtora. Em sede de recurso de cassação, o comprador insiste nessa linha de defesa, mas o Tribunal Supremo confirma a sentença da Audiência Provincial de Madrid, por 163 reconhecer ausente nos autos a prova da alegada disparidade entre o imóvel e sua 371 divulgação publicitária . O valor deste precedente, porém, está em que pela primeira vez se ouviram as expressões “efeitos contratuais da publicidade” e “integração da publicidade ao conteúdo contratual”. Deveras, embora sem uma relação direta com a ratio decidendi do caso, a Sala Civil do Tribunal Supremo deixou expressamente registrado no corpo da sentença a seguinte afirmação: “a publicidade sobre um objeto, sobretudo um objeto ainda não existente, forma parte essencial da oferta, como reconhecido pela doutrina, e proclamado pelo art. 8 da Lei 26/1984, e origina responsabilidade do ofertante”372. 4.1.2. Incorporação imobiliária: promessa quanto a armários embutidos A sentença de 21 de julho de 1993 trata de ação de rescisão de contrato de compra-e-venda de imóvel ajuizada pelo adquirente contra certa incorporadora, sob a alegação de que o apartamento adquirido foi-lhe foi entregue sem os armários embutidos anunciados na campanha publicitária do empreendimento. A sentença de primeira instância – posteriormente confirmada pela Audiência Provincial – reconhece, com fundamento nos artigos 1258 do Código Civil e 8.1 da LGDCU, que a obrigação a cargo da incorporadora compreende entregar o imóvel com os armários embutidos anunciados na publicidade comercial, muito embora o instrumento contratual silencie a respeito deste item específico. 371 Cf. ESPAÑA. Tribunal Supremo, Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación, Sentencia de 7 nov. 1988, Ponente: Antonio Carretero Pérez. 372 ESPAÑA. Tribunal Supremo, Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación, Sentencia de 7 nov. 1988, Ponente: Antonio Carretero Pérez. Apud: GARCÍA DE LEONARDO, Angel Cuesta. El art. 8 LCU en la jurisprudencia. Aranzadi Civil, Pamplona, t. 1, v. 2 , p. 129-148, 1999. p.131 164 Isso não obstante, a sentença declara que esse defeito construtivo representa um inadimplemento apenas parcial da obrigação da incorporadora, o que não dá ao adquirente o direito a rescindir por completo o contrato, mas apenas exigir dela a instalação dos armários embutidos373. A incorporadora interpõe recurso de cassação perante o Tribunal Supremo, sustentando que a sentença teria cometido “infração por interpretação errônea”374 dos artigos 1258 e 1591 375 do Código Civil, pois no seu entender “por não estarem previstas no projeto as características construtivas e definidoras dos armários embutidos e demais instalações, falta o pressuposto de fato para aplicar o direito, devendo-se salientar que as obrigações que envolvem as partes são as contraídas mediante a assinatura do contrato, sendo suas estipulações lei para as partes”376. A alegação, todavia, foi rejeitada pelo Tribunal Supremo e, conseqüentemente, improvido o recurso, ao fundamento de que “é obrigação exclusiva da incorporadora finalizar a obra de modo que reúna as características construtivas ofertadas publicamente 377 ao futuros compradores, conforme o estabelecido nos artigos 1091 , 1096 378 , 1101 379 e 373 Cf. ESPAÑA. Tribunal Supremo, Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación n. 126/1991, Sentencia n. 824/1993 de 21 jul., Ponente: Teófilo Ortega Torres. 374 Cf. Id., loc. cit. 375 CCes, art. 1591: “O empreiteiro de um edifício que se arruinar por vícios de construção, responde pelos danos e prejuízos se a ruina ocorrer dentro de dez anos, contados da conclusão da obra; igual responsabilidade, e pelo mesmo tempo, terá o engenheiro responsável pela obra, se a ruina se deve a defeitos do solo ou de direção da obra”. Se a causa for a falta do emprenteiro quanto às condições do contrato, a ação de indenização durará quinze anos”. 376 Cf. Id., loc. cit. 377 CCes, art. 1091: “As obrigações que nascem dos contratos têm força de lei entre as partes contratantes, e devem ser cumpridas de acordo com os mesmos”. 378 CCes, 1096: “Quando o que se deve entregar é uma coisa determinada, o credor, independentemente do direito que lhe outorga o artigo 1101, pode compelir o devedor a realizar a entrega”. 379 CCes, art. 1101: “Ficam sujeitos à indenização dos danos e prejuízos causados, os que, no cumprimento de suas obrigações, incorrerem em dolo, negligência ou mora, o os que de algum modo infringirem o conteúdo daquela”. 165 380 1258 do Código Civil, e art. 8 da Lei Geral para a Defesa dos Consumidores e 381 Usuários” . 4.1.3. Incorporação imobiliária II: promessa quanto a área de lazer A sentença de 8 de novembro de 1996 do Tribunal Supremo cuida de ação ajuizada em face de certa incorporadora, pelo “Presidente de la Comunidad de Proprietarios de la Primera Fase del Complejo Residencial ‘Don Alfonso’”, em litisconsórcio ativo com o adquirente de uma das unidades autônomas, visando compelir a incorporadora a construir em determinado lote do condomínio a “piscina e quadra de tênis, tal como figura na publicidade gráfica entregue ao compradores” 382. A demanda foi integralmente acolhida pelo Juizado de Primeira Instância de Ceuta, e conquanto a apelação da incorporadora tenha sido provida pela Audiência Provincial de Sevilha, o Tribunal Supremo restaura a sentença de primeira instância com fundamento nos artigos 1258 do Código Civil e 8.1 da LGDU, esclarecendo que “a publicidade de um empreendimento tem o condão de atrair compradores do produto oferecido. Desta forma, seu conteúdo vincula e obriga o seu autor. No caso em análise, os folhetos promocionais continham ilustrações nas quais constavam as áreas ausentes na construção e reclamadas na ação judicial. Além do mais, o próprio contrato escrito fez referência à área a ser construída”383. 380 V. citação supra. 381 ESPAÑA. Tribunal Supremo, Sentencia de 21 jul 1993. op. cit. 382 ESPAÑA. Tribunal Supremo, Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación n. 126/1993, Sentencia n. 894/1996, de 8 nov., Ponente: Eduardo Fernández-Cid de Temes. 383 Id., loc. cit. 166 4.1.4. Incorporação imobiliária III: promessa de quadras de tênis Na sentença de 23 de maio de 2003, tem-se mais um caso de integração publicitária de contrato de incorporação imobiliária, apreciado pelo Tribunal Supremo à luz do art. 8.1 da LGDCU. Aqui, as origens do recurso de cassação remontam à ação movida pela comunidade de proprietários de um loteamento em condomínio, localizado na cidade de Valência, na Espanha, intitulado “Coblanca”, em face da incorporadora responsável pelo empreendimento. A ementa do julgado, recolhida em coletânea coordenada por EUGENIO LLAMAS POMBO, é precisa e completa: “CONSUMIDORES E USUÁRIOS. Conteúdo da oferta, promoção e publicidade dos produtos. Integração dos contratos: princípios da veracidade e da boa-fé. Compra-e-venda. Loteamento em condomínio, em cujo folheto publicitário se anuncia a construção de três quadras de tênis, as quais, além disso, incluem-se no memorial descritivo do projeto elaborado por arquiteto, ao qual se remetem todos os contratos de compra-e-venda. Integração destes executada pela transferência da propriedade da terceira quadra como área comum do condomínio, a qual fora excluída da ‘escritura de declaração de obra nova e divisão em propriedade horizontal’, e vendida a terceiro. Retificação das inscrições registrais competentes. ATOS jurisprudencial. RECURSO cassacional” 384 DE CASSAÇÃO. PRÓPRIOS. Doutrina Hipótese da questão. Não cabe em sede . ROSARIO FERNANDO MAGARZO, Comentando este julgado particularmente representativo da jurisprudência espanhola escreveu que “o Tribunal Supremo põe de manifesto o caráter moderno do art. 8 da Lei Geral para a Defesa dos Consumidores e Usuários, salientando que a norma responde a princípios clássicos do direito que são, em primeiro lugar, o princípio da veracidade, mas não no sentido de que a oferta, promoção e 384 ESPAÑA. Tribunal Supremo, Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación n. 3167/1997, Sentencia 514/2003 de 23 mayo, Ponente: Xavier O’Callaghan Muñoz. IN: LLAMAS POMBO, Eugenio (coord.). Ley general para la defensa de los consumidores y usuarios: Comentarios y jurisprudencia de la Ley veinte años después. Madrid: La Ley, 2005, CD-ROM, artículo 8, ref. 45, p. 1 (destaquei). 167 publicidade devem ser objetivos e imparciais, como se obedecessem a uma política de informação e educação do público, senão que não podem ser enganosos e induzir a erro o particular. Em segundo lugar, o princípio da boa-fé proclamado pelo art. 1258 Código Civil, que impõe a cada contratante o cumprimento do pactuado, o que decorre de um critério lógico, da boa-fé. A este respeito, indica que o citado preceito da LGDCU estabelece a integração do contrato baseado em ambos os aludidos princípios [...]. Em conformidade com esta doutrina, o Tribunal Supremo conclui declarando que a terceira quadra de tênis mencionada na publicidade, no projeto e nos contratos particulares de compra-e-venda, forma parte da compra-e-venda e tem o caráter de área comum. Por conseguinte, declara a nulidade da parte da escritura de obra nova e divisão horizontal que se opõe a isso” 385 . 4.2. Sentenças das Audiências Provinciais Seja por mera coincidência, seja por fatores ainda desconhecidos, que talvez mereçam uma investigação específica – o que certamente escapa aos objetivos desta tese –, a maioria das sentenças do Tribunal Supremo que me foram possível recolher versa sobre a integração publicitária de contratos de incorporação imobiliária referentes a condomínios por unidades autônomas, tanto vertical quanto horizontal, as mais das vezes celebrados na fase de lançamento do empreendimento. Essa circunstância poderia levar à conclusão de que, na Espanha, o princípio da integração publicitária do contrato só teria encontrado relevância prática no âmbito dessa modalidade contratual, e não em tantas outras espécies que compõem a trama das relações de consumo. 385 FERNANDO MAGARZO, Rosario. [Comentário à LGDCU, art. 8º]. IN: LLAMAS POMBO, Eugenio (coord.). Ley general para la defensa de los consumidores y usuarios: Comentarios y jurisprudencia de la Ley veinte años después. Madrid: La Ley, 2005, p. 199. 168 Visando prevenir o leitor contra uma conclusão, assim, açodada, resenho a seguir algumas sentenças interessantes, proferidas em segundo grau de jurisdição, que versam sobre outras fattispecie contratuais. 4.2.1. Compra-e-venda de veículo: promessa quanto a equipamentos acessórios Na sentença de 11 de fevereiro de 1998, a Audiência Provincial de Córdoba aprecia o caso de um adquirente de veículo de certa marca, modelo intitulado “Passion”, de série limitada, que propõe contra a concessionária-vendedora uma ação de rescisão do contrato de compra-e-venda, aduzindo que após lhe ter sido entregue o automóvel percebeu que este não dispunha de alguns equipamentos que o modelo devia oferecer, nos termos da campanha publicitária amplamente promovida pelo fabricante, e que outros equipamentos se encontravam instalados de maneira errônea. A concessionária defendeu-se alegando, em síntese, que o contrato tinha por objeto a aquisição de um veículo da marca com cilindrada de 1.400 centímetros cúbicos. O Juizado de Primeira Instância de Montilha julga improcedente a demanda, mas o adquirente apela da sentença perante a Audiência Provincial de Córdoba, que provê integralmente o recurso e decreta, por conseguinte, a rescisão do contrato. A uma porque, na interpretação de um contrato, “nunca se pode ficar restrito à literalidade do pactuado”386. A duas porque “é evidente que os consumidores devem estar protegidos frente à promoção, pelos empresários, de seus bens e serviços, proteção que vem regulada especificamente no art. 8 da LGDCU, que prevê a possibilidade de que o consumidor ‘exija as prestações próprias de cada produto ou serviço’, o que poderá fazer, a despeito de não se ter feito constar no contrato de aquisição do produto”387. A três, finalmente, porque 386 CÓRDOBA. Audiencia Provincial, Sección 1ª, Rollo de apelación n. 268/1998, Sentencia n. 42/1998 de 11 feb., Ponente: José María Magaña Calle, p. 2. 387 Id., loc. cit. 169 “o Juiz de primeira instância não valorou corretamente a prova dos autos”388, da qual se depreende com meridiana claridade que (i) ao recorrente foi entregue um veículo com o emblema de uma série limitada (‘Passion’), caracterizado por oferecer determinados equipamentos indicados na publicidade promovida pela marca; (ii) o citado veículo, todavia, como demonstrou a prova pericial e documental, à vista do número do chassi, não pertencia a tal modelo, senão ao denominado ‘Collage’, tendo sido substituídas, pelo concessionário oficial e vendedor, as letras do nome ‘collage’ fixadas em fábrica, pelas do nome ‘passion’; (iii) isso não bastasse, a concessionária instalou em sua oficina somente parte dos equipamentos mencionados na publicidade, e além disso, de modo errado; (iv) em que pese o afirmado pelo recorrido, não se provou nos autos, com toda claridade e precisão, que tais alterações eram do conhecimento do recorrente-comprador, restando evidente, portanto, o pleno e total descumprimento do contrato, atentando, o vendedor, contra as mais elementares exigências da boa-fé contratual, e portanto, aos interesses do 389 consumidor . 4.2.2. Caderneta de poupança: promessa de seguro de vida vinculado Na sentença de 11 de janeiro de 1994, a Audiência Provincial de Tarragona contempla o caso de uma entidade bancária, que por meio de panfleto publicitário oferece aos titulares de determinada modalidade de caderneta de poupança, dentre outros benefícios, desfrutar de um seguro de acidentes gratuito em caso de morte ou invalidez total e permanente. Certo cliente sofre acidente que lhe acarreta invalidez permanente. Diante da negativa de informações, pelo Banco, sobre o procedimento de resgate do capital segurado – baldadas as inúmeras tentativas realizadas nesse sentido – o cliente move-lhe demanda objetivando receber a indenização anunciada no panfleto publicitário do Banco. 388 Id., loc. cit. 389 Cf. Id. Ibid., p. 2-3 170 Na espécie, a Apelação Provincial de Tarragona reconhece que o caso é de oferta de um tipo de seguro destituído do caráter intuitu personae, o qual se converte em contrato com a aceitação do cliente manifestada pela abertura da caderneta de poupança. Com fundamento no art. 8.1 da LGDCU, condena a entidade bancária a pagar ao cliente a indenização contratada por ela própria com a companhia de seguros, como se a entidade bancária avalizasse o seguro oferecido, pelo qual responde por não ter colaborado com o depositante, facilitando-lhe os dados do seguro contratado390. 4.2.3. Prestação de serviços: falso tratamento médico contra calvície A sentença de 24 de junho de 1996 proferida pela Apelação Provincial de Alava cuida de apelação interposta por instituto de beleza contra sentença do Juizado Provincial da mesma cidade, que reputando enganosa a propaganda por esta promovida, e reconhecendo o inadimplemento desta quanto às obrigações estabelecidas no contrato de tratamento capilar que firmou com certo cliente, julgou procedente a pretensão indenizatória deste, deduzida em demanda ajuizada contra aquele391. Em suas razões recursais, o instituto de beleza sustentou que a sentença recorrida teria incidido em erro de valoração das provas produzidas no processo, as quais teriam evidenciado que (i) o contrato contemplara expressamente a possibilidade de o tratamento não alcançar o êxito desejado, e (ii) o tratamento já estava começando a surtir efeitos, já que as calvas provocadas pela alopecia estavam se cobrindo de ligeira pelugem 392 . Ponderando as razões recursais das partes e as provas constantes dos autos, a Audiência Provincial de Alava assentou as seguintes premissas: “(1) o autor padecia de ‘alopecia areata’; (2) os responsáveis do N. H. C. o sabiam; (3) a alopecia areata só 390 Cf. CABALLERO LOZANO, José Maria. op. cit., p. 304. 391 Cf. ALAVA. Audiencia Provincial, Rollo de apelación n. 290/1996, Sentencia n. 350/1996 de 24 jun., Ponente: Julen Guimón Ugartechea. 392 Cf. Id., loc. cit. 171 encontra possibilidades de cura num tratamento médico específico, e o tratamento meramente cosmético não passa de ‘maquiagem decorativa’; (4) tendo, o autor, se submetido a um tratamento médico pela equipe especializada da clínica O., à base de corticóides orais, minoxidil e complexo vitamínico, o autor recuperou o cabelo, viu cobertas as calvas e desapareceu a enfermidade, ou pelo menos seus sintomas visíveis” 393 . A partir dessas premissas, a sentença da Audiência Provincial assim concluiu: “O autor foi induzido por uma publicidade ambígua. O bem elaborado informe do Presidente da Comissão sobre Publicidade Enganosa do Departamento de Comercio, Consumo y Turismo do Governo Vasco conclui que a publicidade analisada sugere e induz os consumidores a crerem que o serviço ofertado garante um resultado positivo, e que a natureza deste é médica, motivo pelo qual é suscetível de induzir a erro os consumidores. Examinando o informe, de acordo com a sã crítica ex art. 632 da Lei Processual Civil, esta Sala concorda com ditas conclusões, em que pese a letra pequena do ‘orçamento’ ofertado pelo demandado e firmado pelo autor. Tendo em vista que o autor guiou-se por publicidade deliberadamente enganosa, com as conseqüências previstas no art. 8 da LGDCU, e que se aplicou ao autor um tratamento não médico, senão cosmetológico, e que a alopecia areata não tem tratamento cosmético além da maquiagem decorativa, senão especificamente médico, a Sala deve confirmar a sentença recorrida” 394 . 4.2.4. Contrato de prestação de serviços: promessa de “depilação definitiva” Na sentença de 25 de novembro de 1997, a Audiência Provincial de Navarra aprecia o caso de um consumidor que, decepcionado com os resultados do tratamento de “depilação definitiva” em determinado salão beleza, move demanda contra este visando a declaração do inadimplemento integral do contrato e a conseqüente condenação do 393 Id., loc. cit. 394 Id., loc. cit. 172 demandado a reembolsar-lhe o preço do tratamento, além de certos prejuízos que alega ter sofrido. O Julgado de Primeira Instância de Navarra decide pela procedência integral da ação movida pelo consumidor, mas o salão de beleza, inconformado, interpõe recurso de apelação pleiteando “em primeiro lugar, a revogação da condenação, tendo em conta que, no seu entender, não houve o inadimplemento contratual alegado pelo autor como fundamento de sua pretensão. E, subsidiariamente, no caso de se considerar ter havido apenas um inadimplemento parcial, que seja reduzida pela metade o quantum indenizatório fixado na sentença recorrida” 395 . A Audiência Provincial, todavia, considera ter restado incontroverso nos autos que as partes “celebrara um contrato verbal, tendo, o autor, acudido ao salão de beleza em virtude do anúncio insertado em certo jornal de Navarra (doc. 1), concordando em submeter-se ao tratamento depilatório que oferecia o demandado, à vista do prospecto e plano de tratamento refletido no doc. 2. Ademais, as partes reconhecem que o autor apresentava um problema de pilosidade abundante nas costas, embora a divergência surja à hora de avaliarem os resultados das sessões de tratamento a que se submeteu, pois enquanto o autor considera que o tratamento fracassou estrepitosamente, o demandado afirma que o seu problema piloso atenuou-se sobremaneira, pois houve importante redução e debilitamento da pelugem das constas” 396 . Postas assim, as coisas, a sentença segue afirmando que “o contrato verbal subscrito entre as partes tem, de alguma maneira, sua conformação nos documentos 1 e 2 acostados aos autos, pois o primeiro deles, ou melhor, a oferta nele plasmada, foi o que moveu o autor a acudir ao salão de beleza, e o segundo documento concretiza o tratamento. Pois bem. Em ambos os documentos se oferta de forma destacada uma ‘depilação suave, indolora e definitiva’, e ‘depilação definitiva... uma solução: Epilaterm’. Vemos, pois, que se fala de depilação definitiva, o que não significa outra coisa que a completa desaparição 395 NAVARRA. Audiencia Provincial, Sección 2ª, Rollo de apelación n. 12/1997, Sentencia n. 274/1997 de 25 nov., Ponente: Francisco José Goyena Salgado, p. 1. 396 Id., loc. cit. 173 dos pelos, na zona onde se aplique o tratamento que, no caso, são as costas, e isso é o que oferece, e não menos, o tratamento ‘Epilaterm’, tal como reza o prospecto (doc. 2), em seu anverso, na parte de baixo: ‘a depilação definitiva’. E também se diz ao explicar a forma em que atua o gel: ‘atua suavemente sobre as células-gérmen do pelo; este se debilita progressivamente, converte-se em pelugem, até chegar a desaparecer por completo, se se quiser’. À vista disto, e reconhecendo, a juízo desta Sala, que o que queria o autor era solucionar seu problema piloso nas costas, de forma que desaparecesse por completo, tudo o que não seja dar o resultado depilatório definitivo, que de outra parte, como assinalado, é o que se oferecia, não cabe qualificá-lo senão de inadimplemento contratual, pelo que, aliás, de modo algum caberia aceitar o pedido subsidiário formulado pelo recorrente” 397 . Ao final, a sentença esclarece que “não compromete as conclusões anteriores a alegação de que o número de sessões anunciadas tem caráter apenas exemplificativo, e que dependendo do caso concreto, em vez de quinze sessões, sejam necessárias dezesseis, dezoito ou até vinte. E não o compromete porque não se admite transformar o que se afirma em caráter exemplificativo num tratamento contínuo e sine die, em que transcorridos os primeiros quinze dias, não se aprecie ou veja o resultado definitivo. Certamente, se para lograr o resultado definitivo, em vez das quinze sessões se necessitasse razoavelmente algumas mais, nada haveria a objetar; mas se para tanto requer-se um número muito superior de sessões, racionalmente desproporcionado à oferta inicial de obtenção do resultado em quinze dias, há evidente inadimplemento contratual, pois não conduz a outra coisa a aplicação do princípio da boa-fé, que deve presidir todo o contrato [...]. Em suma, confirmado que o tratamento oferecido, ao qual se submeteu o autor, sem que se tenha provado uma incorreta atuação da parte deste, não atingiu o resultado de uma depilação definitiva, é claro que o demandado não cumpriu sua obrigação contratual, motivo pelo qual afigura-se ajustada e conforme ao direito a sentença de instância, que deve, portanto, ser confirmada, improvendo-se este recurso” 397 Id., loc. cit. 398 Id., loc. cit. 398 . 174 CAPÍTULO 14: BRASIL – O ART. 30 DO CDC 1. Julgados de vanguarda No Brasil, diferentemente do ocorrido na Espanha, não se pode dizer que haveria um nexo de causalidade entre a jurisprudência de nossos tribunais, anterior à promulgação do CDC, e o advento do art. 30 deste Diploma que, como visto, introduziu em nosso ordenamento o principio da integração publicitária dos contratos para consumo. A bem da verdade – e sem qualquer conotação depreciativa –, este princípio foi importado da Espanha pelos autores do anteprojeto do CDC, que segundo o testemunho de ADA PELLEGRINI GRINOVER, ao qual me reportei na introdução desta tese, tomaram como fonte de inspiração, dentre outros diplomas estrangeiros, a LGDCU 399 . A despeito de o preceito não ser um fruto maduro da jurisprudência nacional, tampouco da produção doutrinal consumeirista que antecedeu o CDC, há dois precedentes jurisprudenciais da década de 80, que chamam a atenção pelo vanguardismo de terem integrado o contrato então sub judice pelo conteúdo da publicidade comercial promovida por uma das partes. Senão veja-se. 1.1. Contrato de seguro de vida “sem exame médico prévio” O primeiro precedente é do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e versa sobre contrato de seguro de vida firmado entre um particular e certa companhia seguradora, o qual, embora tenha subido ao Supremo Tribunal Federal pela via do agravo de instrumento contra a inadmissão dos recursos especial e extraordinário, não teve o seu mérito 399 Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado.op. cit. p. 10. 175 apreciado, eis que tal implicaria reexame de provas, o que já era vedado pela antiga 400 Súmula 279 daquele Tribunal, hoje Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça Isso não obstante, o então relator e Ministro NÉRI DA . SILVERIA consignou no despacho de improvimento do agravo de instrumento, dentre outras passagens importantes, a ementa do acórdão recorrido, de seguinte teor: “Contratos de adesão. Seguro de vida sem exame médico. Propaganda. Nos contratos de seguro de vida, como em todos os contratos de adesão, em que a parte não pode discutir nem modificar cláusulas do instrumento, e em que a atração do cliente se faz pela propaganda, os compromissos dos anúncios incorporam-se à convenção e prevalecem sobre a parte impressa que for conflitante e, nesta, a interpretação, na dúvida, se faz a favor do segurado” 401 . No recurso especial, a seguradora sustentara que o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro teria negado vigência ao então art. 1443 do Código Civil de 1916, segundo o qual “o segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”. Sustentara, ainda, a seguradora, a negativa de vigência ao art. 1444 do mesmo Código, que estabelecia que “se o segurado não fizer declarações verdadeiras e completas, omitindo circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito ao valor do seguro, e pagará o prêmio vencido”. É que no entender da seguradora, o acórdão recorrido não teria indagado “se o segurado tinha ou não ciência da doença que o vitimou, mas sim o fato, admitido pelas rés e reconhecido pelas decisões das instâncias ordinárias, de que o segurado, no momento da 402 realização do seguro, prestou falsas declarações” . 400 STJ, Súmula 7: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” 401 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 1ª Turma, Agravo regimental no agravo de instrumento n. 88.416-RJ, Relator: Néri da Silveira, Acórdão de 3 maio 1983, fls. 996 (destaquei). 402 Id. Ibid., fls. 998. 176 O Ministro NÉRI DA SILVERIA, porém, afastou essa argumentação da seguradora, nos seguintes termos: “O acórdão recorrido, com base na prova dos autos, afirmou (fls. 54): ‘[...] observa-se que a hipótese versa sobre contrato de seguro de vida com cláusula de isenção de exame médico. Como se vê na apólice a fls. 9, nas perguntas que antecedem à assinatura do segurado, não há nenhuma sobre o estado de saúde presente e anterior. As cláusulas especiais (fls. 11v.) estão até impressas de pernas para o ar, para dar ao cliente de boa-fé e pouco ilustrado a convicção da desimportância do texto. A propaganda impressa em volantes apontou em linguagem calorosa e otimista as vantagens do ‘Seguro Jovem’, ‘o mais bem bolado que você já viu’. ‘Não precisa fazer exame médico. Preenchendo o modelo de Declaração pessoal de Saúde, você evita todas as formalidades, andanças e burocracias que os exames médicos exigem’ (fls. 46). Em seguida, outro prospecto com as vantagens do ‘Seguro Total 85’ e para o qual, tendo 40 anos, ‘é só pagar 4 cruzeiros por dia para cada Cr$ 100.000,00 de investimento, com correção monetária’ ’ ” 403 . E para sepultar de vez a tese de que teria havido negativa de vigência daqueles citados artigos do Código Civil de 1916, o relator transcreve mais esta bem lançada passagem do acórdão recorrido: “Ora, se nos prospectos de propaganda é esclarecido que ‘Não precisa o segurado fazer exame médico’, ao homem comum, iletrado, de boa-fé, apenas poderá ocorrer que ‘o seguro jovem é o mais bem bolado que você já viu’. A seguradora não se importa com o estado de saúde do segurado, e isto representa um atrativo irresistível. A contradição dessas afirmações com o dever de informar minuciosamente se esteve doente, dever que se encontra em parte impressa posterior à página da assinatura e sob pena de aplicar-se o art. 1444 do Código Civil, é forma astuciosa de ludibriar o segurado desprevenido e iludido com as vantagens excepcionais do ‘Seguro Jovem’. Junte-se a isto os processos de corretagem de seguro nos balcões de bancos, onde empregados de baixos salários necessitam angustiadamente complementar a receita erodida pela inflação. Todos esses fatores devem ser equacionados quando a seguradora, depois de receber os prêmios e sem depositar os valores recebidos, recusa-se a honrar os compromissos ostensivos e refugia-se nas meias palavras em que ocultou as armas de sua prosperidade. Cumpre neste caso ao juiz não estimular comportamentos anti- 403 Id. Ibid., fls. 999. 177 sociais empregados na coleta da economia popular pelas grandes empresas, nestes tempos de força arrebatadora da publicidade. É preciso amparar os incautos”. E numa síntese perfeita da ratio decidendi, o texto do acórdão encerra-se com aquele trecho supramencionado, que acabou servindo de ementa de todo o julgado. 1.2. Contrato de hospedagem em camping: promessa de “seguro total” Outro julgado que se poderia qualificar vanguardista provém do Tribunal de Justiça de São Paulo. O titular de um camping localizado em Itu, São Paulo, faz inserir publicidade em revista especializada com menção a inúmeros atrativos, dentre os quais, a existência de um “seguro total” aos hóspedes. Atraído por tal publicidade, certo turista hospeda-se com seu trailer no camping, o qual acaba sendo inteiramente destruído juntamente com seus pertences em virtude de forte tempestade que se abatera sobre o local. Após contabilizar seus prejuízos e dirigir ao titular do camping o seu pleito indenizatório, vem a descobrir que inexistia o propalado “seguro total”, motivo pelo qual vai a juízo propor contra o camping uma demanda indenizatória, tendo-se-lhe reconhecido, por maioria de votos, em sede de recurso de apelação perante o Tribunal de Justiça de São Paulo, o direito à indenização pleiteada. Inconformado, o camping interpõe embargos infringentes, que são rejeitados, também por maioria de votos. Em voto vencedor, o então relator e desembargador CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO ponderou que “uma das posturas mais realistas, nas modernas tendências do direito das obrigações, é o repúdio ao voluntarismo jurídico, tal qual resulta do artigo 85 do Código Civil, em sua interpretação tradicional. Na verdade, toda declaração de vontade entra no mundo jurídico, não rigorosamente pelo teor da intenção de quem a emite, mas pelas impressões e expectativas que, segundo o senso comum, ela seja capaz de provocar nos destinatários. Toda linguagem é um conjunto de símbolos, que despertam reações no 178 espírito de quem os recebe; inclusive a linguagem do silêncio, das meias-palavras ou das imagens. Essa sensível alteração no moderno direito obrigacional é atestada por ORLANDO GOMES (cf. Transformações Gerais do Direito das Obrigações), que enfatiza o valor da boa-fé nos contratos e a relevância da aparência formada segundo os ditames da boa-fé. Daí a entender que as ofertas ao público, quando claras e não revogadas em tempo, constituam verdadeiras cláusulas contratuais a partir do momento em que aceitas, não existe salto algum. Daí, também, resulta que fica inteiramente desabrigada a alegação do embargante (carregada, até, de certa dose de ingenuidade) de que a propaganda do camping não saíra segundo as instruções dadas. A situação seria outra, talvez, se no momento da recepção do réu no Camping, lhe fosse esclarecido que inexistia o seguro e tudo não passara de um engano. Ou se a cláusula de seguro fosse opcional e a administração do empreendimento intermediasse a sua contratação a quem se interessasse, ainda que mediante pagamento suplementar, a título de prêmio securitário. Mas nada disso aconteceu e os usuários do ‘Camping do A. ’ (ou pelo menos esse que veio demandar) tudo tinham para crer que estavam sob seguro [...]. Segurar ou não os usuários é ato que dependia da vontade do empresário, o qual nem fez seguro algum, nem advertiu o autor da inexistência de seguro, nem lhe deu a faculdade de optar pela cobertura securitária ou dispensá-la”404. 404 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça, 1ª Câmara de Direito Privado, Embargos infringentes n. 52.771-1. Relator: Cândido Rangel Dinamarco, Acórdão de 30 jun. 1986 (destaquei). 179 2. A jurisprudência em torno do art. 30 do CDC 2.1. Decisões do Superior Tribunal de Justiça 2.1.1. Compra-e-venda de veículo em concessionária: garantia de entrega pela montadora Nos idos de 1997, importante montadora de automóveis brasileira lançou programa de marketing de âmbito nacional denominado “Palio on line”, visando incrementar a venda de automóveis modelo “Palio” em todas as suas versões zeroquilômetro, nos termos das condições gerais de contratação intituladas “Regulamento do programa Palio on line”, e do contrato-padrão qualificado como “Contrato de reserva de veículo”. Tal contrato era firmado entre o interessado e uma das concessionárias da marca, de sua livre escolha, que se ocupava de todas as etapas da comercialização do veículo. Todavia, na campanha publicitária de amplo espectro, a montadora anunciava que o automóvel “tem entrega garantida pela fábrica”. Certo consumidor firmou o “contrato de reserva de veículo” com uma concessionária da montadora instalada na cidade de Bom Despacho, MG, pagando-lhe na oportunidade, a título de reserva, 20% do preço estipulado, obrigando-se, em contrapartida, a concessionária, a entregar o veículo em dois meses da data da assinatura do contrato, ocasião em que os 80% restantes do preço deveriam ser pagos pelo consumidor. Pois bem. Sob a alegação de que (i) teria quitado integralmente perante a concessionária o saldo devedor estipulado no contrato, (ii) o veículo não lhe fora entregue na data aprazada e (iii) decretara-se a falência da concessionária, o consumidor ajuíza ação de conhecimento em face da montadora, pleiteando a condenação desta ao “pagamento dos 180 valores pagos, ou compensar o autor pela perda do veículo mediante cumprimento forçado da obrigação, efetuando a entrega de um veículo Palio zero-quilometro” 405 . O juízo da 24ª Vara Cível de Belo Horizonte julga o pedido procedente, condenando a montadora “ao cumprimento da obrigação concretizada no contrato de reserva de veículo de fls. 10/14, determinando seja entregue ao Autor, um veículo Pálio zero quilômetro [...], devendo, contudo, arcar, o autor, com o pagamento dos valores previstos em aludido contrato, e ainda não desembolsados, a título de quitação integral do objeto contratado” 406 . Inconformadas, ambas as partes apelam da sentença perante o então Tribunal de Alçada de Minas Gerais. O relator e juiz QUINTINO DO PRADO reconhece a legitimidade passiva da montadora, sob o fundamento de que “não há, porém, como excluir a responsabilidade solidária da ré. Alguns fatos são incontroversos e não comportam prova em contrário, quais sejam: a existência e a validade do contrato de f. 10/14 e o pagamento de 20% do valor do veículo transacionado, eis que atestado no mesmo instrumento apontado. Para bem se entender a questão dos autos é muito importante a análise do Contrato e do Regulamento de Reserva de Veículo Palio On-Line firmado entre o autor e a concessionária, cuja falência fora decretada em 1997, conforme noticiam os autos. Esse contrato e seu respectivo regulamento prevêem obrigações recíprocas e sucessivas [...]. Contida, porém, não explícita nesta cadeia de obrigações sucessivas está a obrigação assumida pela montadora, de garantir a entrega do veículo encomendado. De fato, incontroverso é o fato de que a propaganda veiculada pela ré afirmava que a entrega do veículo era garantida pela fábrica, sob pena de multa moratória, o que, aliás, é previsto pela cláusula sétima do Regulamento do Programa Palio On-Line, pela qual a 405 BELO ORIZONTE. 24ª Vara Cível, Processo n. 98.014.164-2, Ação de rito ordinário, Sentença de 17 set. 1999, Juiz: Geraldo Senra Delgado, fls. 70. 406 Id. Ibid., fls. 72. 181 montadora ‘declara que o veículo será entregue pelo concessionário contra o pagamento do saldo do preço’ ” 407 . Com base nessa fundamentação, o voto do relator foi no sentido de dar provimento parcial a ambas as apelações “para julgar parcialmente procedente o pedido exordial, condenando a montadora ao cumprimento das cláusulas IV.2 e V.1.1., mediante a disponibilização do veículo reservado e respectiva comunicação ao autor, para que, assim feito, possa ele, querendo, cumprir a sua obrigação de pagar, dentro do prazo convencionado, o saldo devedor previsto na mesma cláusula IV.2, somente após o que a montadora deverá lhe entregar efetivamente o veículo” 408 . O Primeiro Vogal e juiz FERNANDO BRÁULIO, porém, divergiu do relator, nos seguintes termos: “[...] há dois contratos a analisar nesta causa: o contrato de reserva de veículo Palio on line, firmado entre a concessionária e o autor, ora primeiro apelante, e o contrato de concessão entre a montadora-ré, e a concessionária. As cláusulas invocadas pelo autor dizem respeito ao contrato firmado entre ele a concessionária. Cabia ao primeiro apelante fazer prova de que, pelo contrato de concessão, estava a montadora, ora segunda apelante, obrigada a cumprir as cláusulas em que se baseia. Não o fez. Ora, ‘a solidariedade não se presume; resulta de lei ou da vontade das partes’ (art. 896 do Código Civil). Nem se argumente com o artigo 34 da Lei 8.078/90, segundo o qual ‘o fornecedor do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes autônomos’. A concessionária, pelo que resultou demonstrado, não é preposta nem representante da segunda apelante. Isto posto, DOU PROVIMENTO ao segundo apelo, com inversão dos ônus de sucumbência e julgo prejudicado o primeiro” 409 . Tendo, o Terceiro Vogal, acompanhado o voto do Segundo, proferiu-se, pois, acórdão neste último sentido, por maioria de votos, confirmando-se, o decisum, em sede de embargos infringentes. 407 MINAS GERAIS. Tribunal de Alçada, 7ª Câmara Cível, Apelação n. 302.147-2, Acórdão de 4 maio 2000, Relator (vencido): Quintino do Prado, fls. 121-122 (destaquei). 408 Id. Ibid., fls. 125 (destaquei). 182 Irresignado, o consumidor interpôs recurso especial alegando ofensa ao art. 30 do CDC, dentre outros dispositivos do mesmo Código, sustentando, para tanto, que independentemente do relacionamento comercial entre a concessionária e a fábrica, esta se obrigou à entrega do veículo objeto do contrato, por meio da publicidade que o divulgara. Sob a relatoria da Ministra NANCY ANDRIGHI, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento parcial ao recurso, julgando “procedente o pedido de cumprimento forçado da obrigação [de entregar o veículo contratado] formulado pelo recorrente, devendo ele, contudo, cumprir a sua obrigação de pagar, dentro do prazo convencionado, o saldo devedor previsto na cláusula IV.2 do contrato, a título de quitação integral, condicionando-se a entrega do veículo ao pagamento do preço na forma 410 avençada” . Após assentar que “a questão posta a desate pelo recorrente consiste em aferir a responsabilidade [da montadora] pelo inadimplemento do contrato de compra-e-venda de veículo firmado entre o recorrente e uma de suas concessionárias”, e invocado o art. 30 do CDC, o voto da relatora, que foi acompanhado pela unanimidade da Turma, pautou-se, fundamentalmente, no seguinte argumento, recolhido na ementa oficial do julgado: “Constatado pelo eg. Tribunal a quo, que o fornecedor, através de publicidade amplamente divulgada, garantiu a entrega de veículo objeto de contrato de compra-evenda firmado entre o consumidor e uma de suas concessionárias, submete-se ao cumprimento da obrigação nos exatos termos da oferta apresentada” 411 . 409 Id. Ibid., fls. 126-127: destaques do original. 410 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 3ª Turma, Recurso especial n. 363.939, Acórdão de 4 jun. 2002, Relatora: Nancy Andrighi, p. 6. 411 Id. Ibid, p. 1 (destaquei). 183 2.1.2. Incorporação imobiliária: promessa de financiamento Dois consumidores residentes em Brasília, DF, interpõem recurso especial contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, oriundo de ação por eles ajuizada em face de certa incorporadora, objetivando ver declarada a nulidade do “Termo aditivo de re-ratificação de contrato de venda e confissão de dívida” referente a duas unidades residenciais do empreendimento denominado “Edifício Casablanca I”, destinado à população de baixa renda. Pelo referido contrato, pactuou-se que os adquirentes pagariam parte do preço do imóvel em trinta parcelas a título de poupança, e a incorporadora entregaria as chaves contra a efetivação de um financiamento do saldo devedor por eles contratado com terceiro. Através de publicidade amplamente divulgada pela incorporadora, e no momento da assinatura do contrato, esta assegurou-lhes que o saldo devedor seria financiado pela Caixa Econômica Federal, consoante o sistema de equivalência salarial, motivo preponderante para que aderissem ao contrato. Após a quitação das trinta parcelas tidas como poupança, a incorporadora obteve o habite-se – quase um ano após o prazo fixado para a entrega das unidades residenciais –, e condicionou a entrega das chaves à efetivação do financiamento do saldo devedor. Ocorreu que a Caixa Econômica Federal não financiou a totalidade do saldo, de modo que os adquirentes viram-se obrigados a assinarem o referido “Termo aditivo de re-ratificação de contrato de venda e confissão de dívida”, sob pena de não lhes ser concedida pela incorporadora a posse dos imóveis, e rescindidos os respectivos contratos, o que lhes ocasionaria a perda dos valores já adimplidos. Daí o ajuizamento da demanda contra a incorporadora, em que defendem a nulidade do termo aditivo em função de sua abusividade e da coação de que foram vítimas, bem como do seu descompasso com a publicidade veiculada e com a proposta inicial que previa o financiamento total do saldo devedor pela Caixa Econômica Federal. 184 Sustentaram, ainda, que o contrato firmado com tal instituição levou em consideração o plano de equivalência salarial e prazo de pagamento em vinte anos, ao passo que o termo aditivo previu reajustes mensais pela variação da taxa referencial, juros capitalizados de 1% ao mês e prazo de pagamento em quatro anos. Ao final, formulam pedidos de (i) declaração de nulidade do termo aditivo e (ii) condenação da incorporadora ao financiamento do saldo devedor remanescente nas mesmas condições e prazos de financiamento concedidos pela Caixa Econômica Federal, com esteio no plano de equivalência salarial, tudo em razão da mensagem publicitária veiculada e da declaração constante do recibo de sinal acostado aos autos. Requerem, ainda, o abatimento, no saldo devedor, das quantias já pagas, a partir de seu desembolso e acrescidas de juros de mora de 1% ao mês. Em contestação, a incorporadora sustenta, dentre outros pontos, que não poderia e nem jamais se comprometera a garantir o financiamento do saldo devedor pela Caixa Econômica Federal. Em primeiro grau, julga-se procedente o pedido dos adquirentes, declarando-se a nulidade dos respectivos “Termos aditivos” no tocante à forma de resgate do saldo devedor, o qual deveria ser financiado nas mesmas condições e prazos fixados à parte financiada pela Caixa, inclusive no que diz respeito à regra de equivalência salarial. No que se refere às parcelas já pagas, deveriam ser abatidas do saldo devedor a ser refinanciado pela incorporadora, devendo a sua atualização acompanhar a mesma regra de atualização do saldo devedor remanescente. Inconformada, a incorporadora apela da sentença perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que provendo o recurso, profere acórdão assim ementado: “Processual civil e civil. Despersonificação de pessoa jurídica para atingir outra do mesmo grupo econômico. Ofensa aos artigos 20 do CC e 472 do CPC. Código de Defesa do Consumidor. Compromisso de compra-e-venda de imóvel. Referência a financiamento por agente financeiro em folheto de publicidade. Falta de especificidade. (1) Não vinga a despersonificação de pessoa jurídica para abranger outra do mesmo grupo econômicofinanceiro que não foi parte no processo. Inteligência dos artigos 20 do CC e 472 do CPC. (2) Mera referência, em folheto de publicidade, à possibilidade de financiamento de 185 parte do preço de bem imóvel por determinado agente financeiro não se configura em obrigatoriedade para o promitente vendedor. Falta de especificidade e alcance da 412 pessoa estranha ao negócio jurídico celebrado” . Inconformados, os adquirente interpõem recurso especial alegando ofensa ao art. 30 do CDC, dentre outros dispositivos do mesmo Código. Para tanto, sustentam que a mensagem publicitária veiculada pela incorporadora contendo a expressão “Financiamento Caixa Econômica Federal” é suficientemente precisa e tem o condão de obrigá-la a firmar o contrato nos moldes anunciados. Além disso, a condição publicitada foi decisiva para a assinatura do contrato, o que não teria ocorrido caso tivessem conhecimento de que o saldo devedor não seria inteiramente financiado pela Caixa. Segundo a relatora e Ministra NANCY ANDRIGHI, “a questão posta a desate pelos recorrentes consiste em aferir se a oferta publicitária veiculada pelo recorrido reveste-se de força vinculativa, nos termos preconizados pelo Código de Defesa do Consumidor” 413 . Após discorrer longamente sobre a função da publicidade e do marketing nas relações de consumo, ponderou, a relatora, que “no caso sub examen, consta do recibo de sinal firmado pela recorrente [...] que o financiamento do valor restante a ser pago pelo imóvel será financiado pela CEF, nos seguintes termos: ‘Declara ainda concordar que o saldo restante seja financiado pela CAIXA ECONÔMICA FEDERAL - Filial de Brasília, cujo valor será utilizado para amortização do seu saldo devedor junto à CEF, bem como os recursos utilizados do FGTS, quando da apresentação do traslado da escritura, devidamente registrada no RGI competente [...]’. Consta também do panfleto veiculado pelo recorrido a mesma afirmação, o que vem a corroborar o fato de que efetivamente houve publicidade no sentido do financiamento exclusivo pela CEF. Confira-se à fl. 244 412 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 3ª Turma, Recurso especian n. 341.505, Acórdão de 3 set. 2002, Relatora: Nancy Andrighi, p. 1 (destaquei). 413 Id. Ibid., p. 5. 186 dos autos da ação cautelar que, além da destacada expressão ‘FINANCIAMENTO CAIXA ECONÔMICA FEDERAL’, utilizando-se, inclusive, da logomarca da aludida empresa pública, ainda ressalvou-se: ‘financiamento garantido’. Verifica-se, pois, que a oferta foi suficientemente precisa, sem qualquer exagero ou absurdidade, e chegou ao conhecimento dos recorrentes que, seguros da possibilidade de adquirirem um imóvel nos moldes preconizados pelo recorrido, firmaram contrato de compra-e-venda das unidades residenciais. Isso certamente não teria ocorrido se tivessem conhecimento de que apenas parte do financiamento seria concedido pela CEF. Outrossim, é de se ressaltar que o fornecedor, quando da divulgação de publicidade atinente aos produtos e/ou serviços que comercializa, deve agir com o mínimo de prudência, de modo a clarificar para o consumidor em que condições reais o negócio se realizará” 414 . E finalizando a fundamentação de seu voto, acompanhado pela unanimidade da Terceira Turma, arrematou: “Não prospera a afirmação do recorrido de que não dependeria desse a aprovação do financiamento junto à CEF, porquanto a veiculação do panfleto acerca do produto oferecido criou legítima e inquestionável expectativa para os recorrentes. Ciente do fato de que não teria possibilidade de conceder os financiamentos da forma que anunciara, deveria o recorrido ter agido com cautela na divulgação da publicidade, apondo na peça informativa a ressalva de que a obtenção do financiamento estaria condicionada à aprovação do agente financeiro. Dada a força vinculativa da oferta divulgada pelo recorrido, aplica-se ao caso em análise o art. 35, I, do CDC, nos termos do pedido formulado pelos recorrentes na petição inicial [...]. Forte em tais razões, CONHEÇO dos presentes recursos especiais pelas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, e DOU-LHES PROVIMENTO para julgar procedentes os pedidos formulados pelos recorrentes, restabelecendo-se a r. sentença. Deverá o recorrido financiar o restante do saldo devedor dos imóveis adquiridos nas mesmas condições e prazos de financiamento concedidos pela CEF, inclusive no que diz respeito ao plano de equivalência salarial, desde que os mutuários preencham os requisitos estabelecidos pela CEF, entre esses o de possuir renda compatível com o financiamento. As parcelas já pagas devem ser abatidas do saldo devedor a ser financiado 414 Id. Ibid., p. 6. 187 pelo recorrido, devendo a sua atualização acompanhar a mesma regra de atualização do saldo devedor remanescente” 415 . 2.1.3. Serviço de entrega rápida: promessa de pontualidade Certo consumidor ajuizou ação de indenização em face de uma companhia aérea, visando obter ressarcimento pelo fato de ter contratado com esta o serviço de entrega rápida denominado “Vaspex” que, não prestado tempestivamente, ocasionou sua exclusão de licitação promovida pela Câmara dos Deputados. Sua proposta para o certame foi enviada de Belo Horizonte para seu representante comercial em Brasília, mas chegou ao destino fora do prazo contratado e além daquele estabelecido no edital para a apresentação de proposta. Em primeira instância, a companhia aérea foi condenada ao pagamento de indenização por danos materiais equivalentes a R$35.160,00, correspondente ao ganho que teria o consumidor em um ano de contrato com a Câmara dos Deputados, confirmando-se, neste sentido, a sentença, em sede de apelação. No recurso especial interposto pela companhia aérea, que à unanimidade resultou improvido, embora o art. 30 do CDC não tenha sido objeto de questionamento, o relator e ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO aplicou implicitamente à espécie o princípio da integração publicitária do contrato, ao ponderar que “o Vaspex é um serviço de entregas. É de companhia aérea e, no caso, ‘da companhia aérea mais pontual do Brasil’ (fls. 45). Mas poderia ser de qualquer tipo de empresa e, de qualquer forma, nada tem a ver com os chamados riscos de vôo. Deveria, pois, o recorrente cumprir o que fez constar em propaganda e, entre capitais, fazer a ajustada entrega no dia seguinte ao da coleta, porquanto ‘nunca assume compromissos que não possam ser cumpridos’ (fls. 45). Cabe ressaltar, ainda, que muitas vezes é possível dizer que aquele que procura um serviço aéreo o faz porque tem pressa e sabe que o transportes por avião é rápido. Mas no presente caso, a própria recorrente prometeu celeridade da entrega, a qual seria exatamente no 188 horário combinado. Logo, ainda que presentes os riscos de vôo, quem os assumiu foi a recorrente, fornecedora” 416 . 2.2. Decisões dos Tribunais Estaduais 2.2.1. Oferta ao público de equipamentos de som: desatendimento ao preço anunciado Uma rede de lojas especializada em equipamentos fotográficos e eletrônicos insere anúncio em jornais de grande circulação, pelo qual apresenta ao público aparelhos de som, dando destaque aos preços de mercado em contraste com os seus, com alternativa para o pagamento à vista ou parcelado. Certo consumidor, tangido pelo anúncio publicitário, dirige-se à loja da rede mais próxima com o propósito de adquirir, pelo preço e condições anunciadas, o conjunto de som “Esothec com PII, HAII, TII”, da marca “Gradiente”. Entretanto, frustra-se o seu intento, já que é informado pelo balconista que o preço do equipamento é superior àquele indicado no anúncio. Na seqüência, o consumidor demanda a loja em juízo, e a sentença acolhe o seu pedido alternativo, condenando a loja a concluir o negócio com a entrega do equipamento pelo preço ofertado, ou pagar a indenização correspondente ao preço, corrigido desde abril de 1987. 415 Id. Ibid., p. 6-7. 416 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 3ª Turma, Recurso especial n. 196.301, Acórdão de 24 abr. 2001, Relator: Antônio de Pádua Ribeiro, p. 3-4 (destaquei). 189 Interposto recurso de apelação pela loja, a Quarta Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo nega-lhe provimento, nos seguintes termos do voto proferido pelo relator e desembargador ALVES BRAGA: “A oferta reproduzida no jornal junto à fl. 5 não deixa dúvida, diante da recusa da ré em concluir o negócio, que se cuida de propaganda enganosa. É que reproduz as fotografias das peças que compõem o conjunto com a seguinte chamada ao pé das fotografias: ‘conj. ESOTECH c/ PII, HAII, TII, por Cz$39.620, à vista ou 5 x Cz10.997’. No rodapé do anúncio está a observação que a oferta é ‘válida até 11/04 ou até o fim do estoque’. Vale dizer que tudo leva a crer, até para as pessoas que conhecem o equipamento, que a oferta com os preços e condições se refere ao conjunto, e a validade da proposta tem data indefinida [sic], já que válida enquanto houver mercadoria em estoque. Os argumentos da apelante não afastam sua responsabilidade. A propaganda, com força de policitação, dirige-se ao comprador típico, ou seja, a pessoa que provavelmente vai querer aquela mercadoria. Portanto, dizer que o autor não é pessoa ignorante e que, por isso mesmo, tinha condições de saber que a oferta não se referia ao conjunto, em nada beneficia a ré. Ele, no caso, é o comprador típico. É a pessoa que, com certeza, diante do anúncio ofertando o produto, será motivado a adquiri-lo pelo preço e condições da proposta. A pessoa ignorante poderia até não ter interesse, pois não sabendo o significado de tantas siglas e das características do aparelho, poderia não se motivar a adquiri-lo. Por que a oferta chamou a atenção do autor? Exatamente porque, afeito a adquirir aparelhos eletrônicos, achou vantajosa a oferta. Ora, ninguém faz propaganda senão para promover vendas. Ninguém anuncia apenas para enfeitar as páginas dos jornais. Em contrapartida, os compradores estão sempre a procura de ofertas atrativas, senão deixariam de ler a propaganda e suas ilustrações. Não há confundir, portanto, habilidade para vender (salesmanchip) com a propaganda enganosa, com o artifício ilusório. Com a armadilha para atrair o incauto. Sempre que a propaganda, o pregão, a oferta, incide nesse erro, caracteriza-se como dolus malus, o embuste. Não se cuida da simples gabança, mas da má-fé do vendedor. Ora, o homem médio, lendo o anúncio e a oferta divulgada pela ré e que atraiu o autor, não terá dúvida que ali se oferece um conjunto de som, com os 190 acessórios enumerados, pelo preço e condições ofertado. Caracterizada, portanto, a 417 intenção enganosa da oferta. A sentença decidiu com acerto e merece mantida” . Embora este acórdão tenha sido proferido nos idos de 1991, quando já vigorava o CDC, chama a atenção o fato de que, em nenhum momento, o relator invoca o art. 30. Nem por isso deixou-se de dar ao caso, de forma irretocável, a solução preconizada por este dispositivo. Quanto às partes, nenhuma delas invocou o preceito, e nem poderiam fazê-lo, eis que a demanda fora ajuizada pelo consumidor em 1987. 2.2.2. Oferta ao público de forno microondas: erro quanto à indicação do preço? Este é um precedente rico em reflexões acerca do sentido, alcance e aplicabilidade do art. 30 do CDC, sobretudo no que tange à articulação entre o princípio da integração publicitária do contrato e a ocorrência de eventual erro na declaração de vontade dirigida ad incertam personam, quer a título de oferta ao público completa, quer como elemento contratual isolado e suficientemente preciso capaz de integrar o conteúdo de um contrato futuro. Em meados de 1992, a filial de uma famosa loja de departamentos situada em Goiânia, GO, faz publicar no jornal de circulação local denominado “O Popular”, edição de 23 de agosto, um anúncio de “ofertas promocionais”, no qual constava, dentre vários artigos, a fotografia e a especificação de um modelo de forno microondas digital da marca SHARP, com as seguintes condições de pagamento, na moeda da época: 21.450,00 à vista; ou 2 x 14.211,00 sem entrada (= 28.422,00); ou 5 x 8.141,00 (= 40.705,00) 418 . 417 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça, 4ª Câmara Civil, Apelação n. 142.976.1/3, Acórdão de 17 out. 1991, Relator: Alves Braga, fls. 555-556. 418 GOIÂNIA. 6ª Vara Cível, Processo n. 91034897, Ação de rito ordinário, Sentença de 23 set. 1992, Juiz: Gonçalo Teixeira e Silva, p. 1. 191 No dia seguinte à publicação, à primeira hora, dezenas de consumidores comparecem quase que ao mesmo tempo à loja, visando adquirir o forno nas condições anunciadas e reputadas extremamente vantajosas. Orientados pelo gerente da loja, os funcionários se negam a vender o produto, o que provoca nos clientes reações diversas: alguns insistem com os vendedores que lhes venda o produto, enquanto outros ameaçam procurar órgãos de proteção ao consumidor. Nesse entretempo, representantes do PROCON e da Polícia Militar chegam à loja e tentam acalmar os ânimos, incentivando a todos que procurassem encontrar solução pacífica para o problema. Neste clima, acabou-se costurando um acordo no sentido de que os clientes pagariam à loja o preço à vista, e receberiam em troca uma espécie de vale intitulado “Credi-nota”, que deveria ser apresentado por cada cliente quando do recebimento do produto. Assim as coisas, e decorridos alguns dias, a loja decide ajuizar contra um dos consumidores que participou da negociação e recebeu o “Credi-nota” uma “ação ordinária anulatória de ato jurídico”, sob a alegação de que a declaração publicitária estaria eivada de erro, eis que o preço de aquisição do forno pela loja, segundo nota fiscal emitida pelo fabricante e exibida nos autos, era de 201.582,93, enquanto que o preço anunciado erroneamente representava pouco mais de 10% desse valor. Alegou, ainda, que diante do clima de negociação extremamente tenso, das ameaças quase que físicas dos consumidores, da presença da Polícia Militar e de membros do Ministério Público estadual, e de outras circunstâncias que relata na exordial, o gerente da loja teria aderido sob coação ao acordo proposto pelos representantes do PROCON. Portanto, seja por erro, seja por coação, pleiteou, a loja de departamentos, em sua peça exordial, a anulação do referido acordo. 192 O Ministério Público goiano, por sua vez, decidiu ajuizar uma “ação civil pública coletiva com preceito cominatório para obrigação de fazer, cumulada com perdas e 419 danos” contra a loja, visando o “cumprimento da obrigação derivada dos contratos celebrados [...], dando início, de imediato, à entrega dos ‘fornos de microondas digitais MW 520 Sharp’ aos consumidores portadores do documento denominado ‘Documento de 420 Caixa e Recibo’ (ou ‘Credi-nota’)” . Em virtude da conexão entre causas e da prevenção do juízo da 6ª Vara Cível de Goiânia, para o qual primeiramente se distribuiu a demanda anulatória da loja de departamentos, determinou-se a reunião dos processos no juízo prevento para julgamento conjunto, nos termos do art. 105 do Código de Processo Civil. Designada audiência de instrução e julgamento, na qual foram ouvidos os depoimentos de inúmeras testemunhas, o juiz da 6ª Vara Cível de Goiânia houve por bem “acolher o pedido da autora [loja de departamentos], para declarar sem validade jurídica o compromisso que fez com os requeridos, de entregar-lhes o forno de microondas Sharp, digital, pelo preço contido na oferta anunciada na imprensa local, por considerar que não houve propaganda enganosa e que esse compromisso foi feito sob coação, portanto, com mácula que invalida o ato jurídico, por viciar a vontade de uma das partes” 421 . No que tange exclusiva e especificamente à mensagem publicitária promovida pela loja – único aspecto da sentença que se conecta ao tema deste trabalho – entendeu, o magistrado, que “não se pode admitir como propaganda enganosa, mas apenas erro material contido no anúncio, pois mesmo pessoas de mediana inteligência jamais admitiriam como correta tal publicação, em face do disparate entre a oferta e o preço real da mercadoria. Será que alguém em sã consciência aceitou o anúncio da venda do forno 419 GOIÁS. Ministério Público, Núcleo de Proteção ao Consumidor, Ação civil pública coletiva com preceito cominatório para obrigação de fazer cumulada com perdas e danos, Petição inicial de 5 maio 1992, Representante: Eliseu José Taveira Vieira, p. 1. 420 Id. Ibid., p. 17: destaques do original. 421 GOIÂNIA. 6ª Vara Cível, Processo n. 91034897, Ação de rito ordinário, Sentença de 23 set. 1992, Juiz: Gonçalo Teixeira e Silva, p. 17. 193 microondas Sharp, digital, pelo preço nele contido como correto? Tenho para mim que não, pois a distância entre o valor errado consignado e o efetivo valor do bem foi exatamente de 10% do preço real [sic; leia-se 90%]. Sem dúvida alguma que o erro material do anúncio está caracterizado. Qual seria o sentido dessa empresa fazer o anúncio do produto já referido, por preço tão irrisório? Sinceramente, não encontro resposta satisfatória, pois o equívoco apresenta-se com meridiana clareza. Se amanhã uma concessionária de veículos anunciar um carro novo que custa 95.000,00 por apenas 9.500,00, essa empresa não está obrigada a vender esse veículo por valor correspondente a 10% do seu custo real, pois o que se pode sentir, à primeira vista, é que algo está errado no anúncio. Querer, o consumidor, prevalecer-se de uma situação desta natureza, no meu sentir, é um procedimento incorreto, na tentativa de obter uma vantagem indevida, mercê de um erro que se mostra claro e convincente. Ora, dentre as pessoas que pretendem obter o forno [...] pelo preço contido no anúncio, há muitas de nível superior e com suficiente capacidade de entender que algo estava errado na publicação como foi feita. Inobstante, insistem em seu intuito de adquirir um produto por preço irrisoriamente impossível. Tal comportamento, entendo, não se coaduna com os bons princípios éticos a que todos devemos obediência” 422 . Inconformados, o Ministério Público e a consumidora que figurou no pólo passivo da demanda anulatória da loja de departamentos interpuseram recurso de apelação perante o Tribunal de Justiça de Goiás, que restou improvido, por unanimidade de votos, consoante os seguintes fundamentos do relator e desembargador NOÉ GONÇALVES FERREIRA: “Tudo o que foi dito pelo Assistente, pelos Contestantes, pelos Reconvintes, pela douta Procuradoria Geral de Justiça, não consegue enfraquecer uma realidade inafastável: os fatos evidenciam a pretensão de um grupo de consumidores em adquirir fornos microondas por preço vil (assim é aquele que, como no caso, pouco ultrapassa em 10% o preço de custo) aproveitando-se de erro na veiculação publicitária do produto. Não há dúvida em que o Código de Defesa do Consumidor obriga ao fornecedor no momento mesmo da oferta, da apresentação ou da publicidade, e é certo que o artigo 35, caput e inciso I, confere ao consumidor o poder de exigir o cumprimento forçado da obrigação 422 Id. Ibid, p. 9-10. 194 [...]. Isto é salutar e há muito tempo reclamado. As várias argumentações sobre as relações obrigacionais são válidas, mas não têm cabida no caso dos autos, em que, pelas suas próprias características, evidenciou tratar-se de erro na publicação e não de publicação enganosa. O princípio da ‘vinculação da oferta’, no CPDC, não pode ser absoluto. Acho mesmo uma temeridade o acolhimento cego do entendimento de que o artigo 30 do Código de Defesa do Consumidor tem efeito vinculativo absoluto. Sirvo-me do exemplo suscitado pela apelada para mostrar esse risco: se, a despeito da boa-fé, um anúncio veicula, erradamente, a venda de um automóvel por preço ínfimo, o comerciante estará obrigado, automaticamente, a entregá-lo por tal preço? O próprio enunciado já mostra o equívoco em que se poderia incidir. Não se trata, em verdade, de contraposição a esta ou àquela teoria que possa orientar as relações de comércio, mas sim de manter íntegra uma realidade insofismável: se o consumidor não pode, e não deve, ficar à mercê do fornecedor, este, por sua vez, não pode se transmudar em presa do consumidor. Acho que a Lei quer o equilíbrio nessas relações e não a superposição de uma das partes. Não sendo assim, o problema continuaria o mesmo, só que com posições invertidas. É mister ressaltar que a tese contida no ensaio de fls. 248 e segs. leva à inaceitável conclusão de que basta haver erro no anúncio que, automaticamente, acarretará a responsabilidade de cumprimento da obrigação. Não estamos tratando, aqui, meramente, de uma situação em que frente a uma publicidade enganosa, o fornecedor se recusa a manter o preço anunciado. Trata-se, o presente caso, de erro evidente, evidentíssimo, no preço anunciado [...]. A verdade é que o preço anunciado, comparado com os do pequeno secador de cabelos, cafeteira, batedeira de bolos, calculadoras, etc. (fls. 85 do vol. 1/3), veiculados no mesmo anúncio, já evidenciava, à farta, o erro havido”423. 195 2.2.3. Incorporação imobiliária: promessa de financiamento Uma consumidora ajuíza ação de rito ordinário contra certa incorporadora alegando que, atraída por propaganda, adquiriu desta um apartamento localizado em Porto Alegre, RS. Diz também que o motivo principal de sua opção foi a garantia do financiamento em quinze anos, e pelo plano de equivalência salarial. Salientou que pagou todas as notas promissórias correspondentes à poupança na forma pactuada. Assevera que, após encaminhar todos os documentos e preencher as formalidades exigidas pelo Banco, teve negado o financiamento em razão da intervenção do Banco Central do Brasil sofrida por esta mesma instituição bancária. Requereu a condenação da incorporadora a cumprir sua promessa de financiamento do saldo devedor, sob pena de multa. Em contestação, a incorporadora argumenta que era obrigação contratual da adquirente preencher os requisitos de renda e cadastro capazes de lhe garantir a obtenção do financiamento. Alega que o Banco negou o financiamento porque não comprovadas as rendas indicadas pela autora e que houve uma primeira aprovação do pedido, o que exoneraria a ré de culpa. Invoca o parágrafo único da Cláusula Quarta do contrato, acrescentando que o pedido é juridicamente impossível, porque só agentes financeiros autorizados pelo Governo Federal podem dar financiamentos pelo Sistema Financeiro da Habitação (SFH), mediante o plano de equivalência salarial. Na sentença, o juiz decidiu pela improcedência da ação, pelos seguintes fundamentos: (i) a veiculação do anúncio em objeto não configura publicidade enganosa referida no art. 37 do CDC; (ii) o anúncio publicitário não é falso e não induz em erro o consumidor; (iii) o financiamento seria concedido desde que o candidato preenchesse os requisitos exigidos pelo agente financeiro; (iv) “Financiamento garantido” significa que a instituição bancária financiadora concederia financiamentos, desde que preenchessem os requisitos exigidos; (v) na Cláusula Quarta do instrumento de compromisso de compra-evenda, a promitente-compradora declara-se ciente de todas as regras e exigências para a concessão de financiamento no âmbito do SFH, constando, ainda, na mesma cláusula, que 423 GOIÁS. Tribunal de Justiça, 2ª Câmara Cível, Apelação n. 30594-0/188, Acórdão de 10 fev. 1994,Relator: Noé Gonçalves Ferreira. fls. 165-167. 196 a promitente-compradora ficaria desde então obrigada ao pagamento integral da quantia, caso não fosse aprovado o financiamento pelo SFH 424 . Ao apelar da sentença perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a consumidora insiste em que à luz do CDC o anúncio da incorporadora caracterizou-se como propaganda enganosa, pois a garantia do financiamento era fundamental para a concretização do negócio, já que sem isso não teria condições financeiras para adquirir o imóvel. Salienta, ainda, que o Banco já lhe havia aprovado o financiamento, recuando, 425 porém, após ter sofrido a intervenção do Banco Central . Apresentadas as contra-razões, e vindo, os autos, à conclusão do relator e desembargador GUINTHER SPODE, proferiu, este, o seu voto, cujas principais passagens – extremamente relevantes ao tema do princípio da integração publicitária do contrato – são as seguintes: “Narra a apelante ter sido atraída por propaganda veiculada pela apelada. As reproduções do folder anunciativo encontram-se às folhas 13 e 157 dos autos. Neles constam a inscrição ‘financiamento garantido’. Nenhuma ressalva é feita acerca das condições de concessão do financiamento. A afirmação de que, seguido à risca o anúncio veiculado, exigir-se-ia o mesmo financiamento a um assalariado de baixa renda é falaciosa e não merece prosperar. Somente por amor ao argumento, se este assalariado viesse a postular a compra e o financiamento do imóvel, certamente não passaria da mera cogitação, eis que, de plano, a incorporadora não daria seguimento à pretensão daquele infeliz excluído. Tal não é o caso dos autos. A apelante, à época, funcionária pública estável da União, postulou a compra e financiamento do imóvel. A apelada fez a análise da situação financeira, bem como da documentação da apelante, admitindo-a como cliente. Contratada a compra do imóvel, passou a apelante a efetuar pagamentos da parcela não financiada, diretamente à incorporadora, que os aceitou. Mister que se diga que os pagamentos efetivados giram na ordem de 48% do valor do imóvel, o que não é pouco [...]. Nada há na propaganda, veiculada inclusive em jornal de grande circulação, acerca dos requisitos a serem implementados. Não há ressalvas. A frase é absoluta: ‘Financiamento 424 Cf. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, 19ª Câmara Cível, Apelação n. 598.435.063, Acórdão de 22 dez. 1998, Relator: Guinther Spode, p. 2-3. 197 garantido’. Do anúncio exsurge com cristalina clareza o entendimento de que, caso houvesse financiamento, este era garantido. Nada mais há a dizer sobre o assunto, nada mais há a interpretar. Tudo que se disser sobre requisitos a serem implementados, não está na propaganda a que se obrigou a apelada. E não se diga que o fato de constar o nome do Banco Banespa na propaganda como ‘Obra financiada pelo Banespa’ coloque a garantia dada sob condição de resolutividade do contrato. Os contratos não podem ser interpretados de maneira a onerar ou restringir direitos do consumidor. O financiamento da obra diz com a construção do prédio, com a incorporação, jamais com a venda a terceiros [...]. De entendimento mediano, acessível aos contratantes, que a propaganda que anuncia o produto vincula a contratação, baliza-a. Qualquer modificação contratual não anuída, posterior ao anúncio, é passível do conhecimento por parte do Poder Judiciário, na defesa dos direitos e deveres individuais e coletivos inscritos na Constituição Federal [...]. Vicioso é o contrato que estabelece obrigação em desacordo com a propaganda que o originou. Nenhuma dúvida resta de que o contrato, acostado às folhas 14 a 18, é adesivo [...]. Improcede, ainda, a alegação de que a apelada não pode financiar o imóvel. Certo está que não pode atuar como agente financeiro, eis que tal não é. Entretanto, deve cumprir a avença a que se obrigou em propaganda e efetivar o financiamento às próprias expensas, nos mesmos moldes do anunciado, inclusive pela equivalência salarial. Colegas, com a inversão do ônus sucumbencial, voto pelo provimento do apelo” 426 . Note-se que o relator invocou como fundamento legal de seu voto apenas o art. 37 do CDC, que veda “a propaganda enganosa ou abusiva”, não tendo mencionado sequer en passant o art. 30 do mesmo Código. Isso não obstante, é patente que toda a ratio decidendi do voto apóia-se no princípio da integração publicitária do contrato insculpido neste último artigo, o que fica claríssimo, aliás, quando o relator, a certa altura, assevera que “vicioso é o contrato que estabelece obrigação em desacordo com a propaganda que o originou” 427 . 425 Cf. Id. Ibid., p. 4. 426 Id. Ibid., p. 5-11. 427 Id. Ibid., p. 8. 198 De qualquer forma, o revisor e desembargador CARLOS RAFAEL DOS SANTOS JÚNIOR divergiu do relator, por razões que merecem transcritas neste passo, eis que revelam frontal contrariedade ao comando do art. 30 do CDC. Senão veja-se: “Revisei os autos e tive oportunidade de constatar a presença de prova inequívoca, substancial e torrencial no sentido de que a apelada lançou propaganda no mercado para compra-e-venda de imóvel em que constava que o financiamento para essa aquisição era absolutamente garantido. Neste ponto, não tenho dúvida alguma [...] Todavia, nos termos do art. 1080 do Código Civil, o que obriga o contratante é a efetiva proposta, e eu não consigo ver na publicidade, ainda que enganosa, efetiva proposta de negócio formulada à parte. Nessas condições, eu não emprestaria ao fato da propaganda enganosa – e o é induvidosamente – a conseqüência de compelir a construtora a outorgar, per se, financiamento nos moldes previstos na propaganda. Parece-me que, diante dessa constatação, a solução estaria no plano indenizatório, e não na obrigação, à construtora, de cumprir a propaganda. Note-se que se estaria dizendo cumprir a propaganda, e não a proposta, porque a proposta que está nas fls. 14 a 18 destes autos contém inarredavelmente a exceção, ou seja, que o financiamento está adstrito ao atendimento das normas do agente financeiro [...]. Nessas condições, pedindo a máxima vênia, ouso divergir e votar no sentido de improver a apelação, entendendo que a solução está no plano indenizatório, o que não se pode alcançar, já que não há pedido nesse sentido, senão o de que seja compelida a apelada ao cumprimento da promessa de financiamento do saldo devedor, sob pena de multa” 428 . Vê-se, pois, que ao não reconhecer qualquer vinculatividade à promessa de “financiamento garantido” contida no anúncio publicitário da incorporadora, o revisor não teve em mente, nem de longe, a norma do art. 30 do CDC. Pois bem. Tendo o Segundo Vogal seguido integralmente o voto do relator, resultou provida, a apelação da adquirente, por maioria de votos. Inconformada, a incorporadora interpôs embargos infringentes perante o Décimo Grupo Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, argumentando, em síntese, “não haver vinculação entre a propaganda enganosa e a obrigação de fazer a que 428 Id. Ibid., p. 11-12. 199 foi condenada, pois naquela não há uma real proposta de contrato e, neste caso, como 429 dispõe o art. 12 do CDC, cabe apenas o dever de indenizar” , alegando, ainda, que o voto vencedor fere o art. 1080 do Código Civil. O relator e desembargador ILTON CARLOS DELLANDRÉA votou pelo provimento dos embargos, nos seguintes termos: “Definida unanimemente a emergência de propaganda enganosa, nada resta a analisar no aspecto. Cinge-se a discussão aos termos do ilustrado voto vencido. Também não vejo, neste, o poder de a propaganda obrigar, aquele que a veicula, a acatar manifestação de possível aderente como uma proposta de contrato, estabelecendo a priori obrigações mútuas. A propaganda não tem efeito policitante, mesmo enganosa, e sujeita o fornecedor a perdas e danos [...]. A propaganda, em geral, exterioriza qualidades genéricas de determinado produto, ofertando bases também genéricas de negociação mútua, atraindo potenciais interessados, considerando-se com a aproximação particularidades e compondo-se interesses para o fechamento do negócio. Somente então, definidos os contornos, pactuadas as cláusulas e condições do contrato, e celebrado este, emerge a força obrigatória deste. Mesmo a proposta expressa não obriga ao cumprimento [...]. A obrigação de manter a proposta, pois, não necessariamente imporá a obrigação de cumpri-la. Então, mesmo que considere a propaganda veiculada uma verdadeira proposta, ainda assim a resolução se dará no plano indenizatório, como defende o voto vencido. Dou provimento aos embargos 430 . Todavia, o desembargador JOSÉ AQUINO FLORES DE CAMARGO, remetendo-se incondicionalmente ao supracitado voto do desembargador GUINTER SPODE proferido no juízo de apelação, a este agregou expressamente o fundamento legal que lhe estava faltando para evidenciar de vez que, na hipótese sub judice, a promessa publicitária de “financiamento garantido” integrou-se ao compromisso de compra-e-venda como obrigação da incorporadora, por força do art. 30 do CDC. 429 430 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça, 10º Grupo Cível, Embargos infringentes n. 599.212.396, Acórdão de 28 maio 1999, Relator: Ilton Carlos Dellandréa, p. 2-3. Id. Ibid., p. 3-5 (destaquei). 200 Confira-se o teor deste voto, que acabou sendo acompanhado pela maioria do Grupo, e levando, por conseguinte, à rejeição dos embargos infringentes da incorporadora: “[...] o voto vencido, da lavra do também eminente Des. Carlos Rafael dos Santos Júnior, foi incisivo ao reconhecer que a apelada lançou propaganda no mercado para compra-evenda de imóvel em que constava que o financiamento para aquisição era absolutamente garantido. Porém, nos termos do art. 1080 do Código Civil, entendeu que o que vincula o contratante é a efetiva proposta, não vendo na publicidade, ainda que enganosa, este efeito. E por aí concluiu que a solução estaria no plano indenizatório. Todavia, ouso divergir para acompanhar a douta maioria. O CDC, no particular, trouxe importante evolução no tocante ao instituto da oferta e da vinculação das informações publicitárias emitidas pelo ofertante perante a massa de consumidores. Ainda que o art. 1080 do CCB estabeleça que ‘a promessa de contrato obriga o proponente’, na verdade, até o advento da lei consumeirista, vigia um sistema em que a oferta contida na publicidade era mero convite a fazer a oferta. Isto é, após veiculado anúncio publicitário, mesmo que nele estivessem as informações essenciais para o negócio (coisa, preço, identificação do oferente...), considerava-se que havia mero convite. Pelo sistema do CCB, ocorria a inversão das posições: o consumidor, ao procurar o ofertante, é que apresentaria uma proposta, que seria ou não aceita por este, segundo sua livre vontade. Na lição do eminente Des. Wilson Carlos Rodycz, em artigo publicado pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, o colega advoga: ‘A evolução do CDC consiste em dispor, de modo expresso, no art. 30 que toda informação ou publicidade [... omissis]. Esse dispositivo veio sanar esse segmento do mercado, afastando de vez a tese de que os exageros da publicidade constituem-se em aceitável dolus bonus do comércio. Não por acaso, vige o brocardo caveat emptor, ou por outra, o comprador que se acautele... No novo quadro jurídico, a publicidade, bem como quaisquer outras informações veiculadas, obrigam o ofertante e integram o contrato. Numa palavra, o ofertante não está obrigado a ofertar, a fazer publicidade, mas se o fizer terá que fazê-lo corretamente e terá que responder por ela como verdadeira e acabada oferta’. Não há dúvida, destarte, que se impõe a incidência do CDC para equacionar a 201 relação das partes, apontando-se como anacrônica a interpretação baseada na aplicação pura da regra do art. 1080 do C. Civil” 431 Id. Ibid., p. 6-7 (destaquei). 431 . 202 CAPÍTULO 15: ARGENTINA – O ART. 8 DA LPDC Na argentina, a doutrina revela que o sentido e alcance do art. 8 da LPDC não diverge substancialmente do art. 30 do CDC. Nesse sentido é a posição de MOSSET ITURRASPE, que não vacila em afirmar que “a publicidade integra o contrato, forma parte de seu conteúdo, cria deveres e direitos, tenha sido mencionada, reiterada ou aludida no contrato, ou tenha sido deixada de lado, ignorada. Ocorre que a ‘confiança’ suscitada por uma parte, e a ‘aparência’, em relação àquilo que se mostra como verdade, são hoje paradigmas fundamentais, filhos da boa-fé contratual”432. E com particular acuidade continua o mesmo Autor dizendo que “a publicidade integra o contrato. Esta afirmação teria parecido herética há poucos anos atrás. Hoje tem acolhida nos direitos mais avançados que enfrentaram o problema do marketing, da promoção publicitária, do avanço do mercado sobre ‘a decisão do consumidor’. A doutrina tradicional só outorgava força normativa, poder genético, ou de criar direitos e deveres, à recolhida no conteúdo negocial, total ou parcialmente; a que ficava fora, os anúncios, propaganda, prospectos, consideravam-se aspectos ou questões alheias ao negócio. Em caso de oposição ou contradição devia-se ater ao pactuado, ainda que não houvesse explicação suficiente e razoável para esse afastamento dos ‘antecedentes’ ou declarações pré-negociais emanadas de uma das partes celebrantes. Esse divórcio entre o publicitado e o pactuado, baseado em um contrato com cláusulas predispostas, dava pé a enganos, dolos, verdadeiras fraudes à boa-fé. A norma do art. 8 tende a pôr fim a esse lamentável estado de coisas. A publicidade apresenta-se como um aspecto básico das ‘tratativas pré-contratuais’, dirigida aos consumidores potenciais, cerceando, limitando o conteúdo negocial. É uma antecipação negocial da qual não se deve afastar, ao menos sem uma explicação coerente. E esta solução nova, revolucionária se sequer, tem fundamentos suficientes: a publicidade é o que atrai o usuário ou consumidor potencial; entra, penetra, é internalizada, posto que 432 MOSSET ITURRASPE, Jorge. op. cit., p. 78-79. 203 usa-se uma técnica de captação, de sugestionamento e convencimento; quer-se o bem ou serviço com base no apresentado, ouvido, percebido pelos sentidos”433. RICARDO LORENZETTI, todavia, parece incidir em ligeiro equívoco quando afirma que a lei prevê que a publicidade integra a oferta, o que requer que exista uma oferta (LPDC, art. 8)”434. É que a publicidade, na verdade, não integra a oferta, mas o contrato. Com efeito, as mais das vezes, a publicidade veicula apenas certos elementos ou condições negociais de fornecimento do bem ou serviço publicitado, e não um contrato acabado, com todos os elementos essenciais. Nessas hipóteses, embora a publicidade não represente uma oferta ao público, os seus elementos “suficientemente precisos” integrarão os contratos que os consumidores, instigados pela publicidade, vierem a celebrar com o fornecedor. Portanto, as declarações publicitárias, ainda que representem mero invitatio ad offerendum por não reunirem elementos mínimos ou suficientes à formação de uma espécie contratual consistente e acabada, integrarão os contratos celebrados durante o período de eficácia da publicidade em questão, mesmo que nessa hipótese os consumidores devam ser considerados os verdadeiros proponentes, por se terem dirigido, eles mesmos, ao fornecedor, e tomado a iniciativa de contratarem o produto ou serviço publicitado. Talvez, esse ligeiro equivoco interpretativo de LORENZETTI possa se explicar pelo fato de que, na Argentina, como visto, até o advento da LPDC, o ordenamento jurídico não abrigava a oferta ao público, e quando o art. 7 desta Lei a introduziu naquele país, o fez impondo-lhe requisitos mais rigorosos que os vigentes nos demais países, pois além da completude e da intenção de vincular-se, estabeleceu a obrigatoriedade de se definir 433 Id. Ibid., p. 95-96. 434 LORENZETTI, Ricardo Luis. Consumidores, cit., p. 194 (destaquei). 204 expressamente (i) o prazo de sua vigência e (ii) certos elementos acidentais ao contrato referidos pela locução “modalidades, condições ou limitações” 435 . Questão interessante é saber se no direito argentino, quando a oferta ao público for completa e revelar intenção de vinculação do ofertante, mas não especificar prazo ou aqueles elementos não-essenciais previstos no art. 7, in fine da LPDC, ensejará a integração do contrato. Parece-me que o entendimento de LORENZETTI seria no sentido negativo. Confirase a seguinte passagem: “Efeitos da falta de elementos na oferta. A regra geral é que, se a oferta não reúne os elementos substanciais, sobretudo a completude, não há oferta, e portanto não haverá contrato, por mais que seja aceita. Se faltam esses elementos e houve uma expectativa razoável para confiar, poderá haver uma responsabilidade de outro tipo, mas não contrato. Se o que faltam são elementos relativos às limitações, condições, etc., que não formam a ‘existência jurídica’ de um contrato, senão a compreensão do consumidor, haverá oferta e contrato, com inadimplemento do dever de informar”436. De qualquer forma, a pesquisa que promovi acerca da aplicação do art. 8 da LPDC pelos tribunais argentinos, a qual contou inclusive com a colaboração de advogados locais, não logrou identificar nenhum julgado específico sobre a matéria, o que parece indicar que o preceito ainda não encontrou ressonância e sobretudo efetividade entre os consumidores argentinos, tampouco entre os operadores do direito desse país. 435 436 LPDC, art. 7º: “A oferta dirigida a consumidores potenciais indeterminados, obriga a quem a emite durante o tempo em que se realize, devendo conter a data precisa de começo e término, bem como suas modalidades, condiciones o limitaciones” (destaquei). LORENZETTI, Ricardo Luis. Consumidores, cit., p. 197. 205 CAPÍTULO 17: UNIÃO EUROPÉIA – OS ARTS. 2º E 6º DA DIRETIVA 1999/44/CE A Diretiva 44 de 25 de maio de 1999 (1999/44/CE) relativa a “certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas” também reconheceu à publicidade comercial uma relevância contratual, muito embora restringindo, tal reconhecimento, ao âmbito específico do contrato de compra-e-venda de bens de consumo, e servindo-se de técnica legislativa distinta daquela adotada pela Espanha em 1984, qual seja a positivação do “princípio da integração publicitária do contrato”. Com efeito, a Diretiva introduziu no direito comunitário europeu o princípio da conformidade do bem vendido ao contrato de compra-e-venda, ao estabelecer no art. 2º, item 1, que “o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra-e-venda”437, presumindo conformes os bens que – dentre outras condições enumeradas no item 2 do mesmo artigo – atendem “às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, particularmente na publicidade ou na rotulagem” (alínea “d”). Ademais, particularizando tal princípio às promessas de garantia dos bens vendidos – das quais frequentemente se servem, os vendedores, em suas campanhas promocionais –, o art. 6º, item 1 da Diretiva estabelece que “as garantias vinculam juridicamente as pessoas que as oferecem, nas condições constantes da declaração de 438 garantia e da publicidade correspondentes” 437 Destaquei. 438 Destaquei. . 206 439 Segundo a doutrina européia em torno da Diretiva , a norma do art. 2º teria se inspirado no art. 35 da CISG-UNCITRAL (Convenção da Viena de 1980, sobre a venda 440 internacional de bens móveis) . Todavia, a utilização da publicidade comercial do bem vendido como critério de aferição de sua conformidade com o contrato não encontra correspondência com nenhuma das regras de conformidade especificadas naquele artigo da CISG-UNCITRAL 441 . Se antes a publicidade comercial exercia um papel de mero veículo de informações pré-contratuais, destituídas de caráter vinculante, hoje, no direito dos países da União Européia que já transpuseram as disposições dessa Diretiva a seus respectivos ordenamentos jurídicos nacionais, não subsiste qualquer dúvida de que as informações publicitárias – no dizer de ELENA BELLISARIO – “penetram no interior do contrato de compra-e-venda, especificando o conteúdo da obrigação do vendedor, adquirindo, 442 portanto, um caráter vinculante” , ou, na precisa expressão de LAURA MASCALI, “as 443 declarações públicas tornam-se parte integrante do contrato” . 439 Por todos: PATTI, Salvatore. [Commentario - CC, art. 1519-ter, comma 1º e 2º]. IN: PATTI, Salvatore (coord.). Commentario sulla vendita dei beni di consumo. Milano: Giuffrè, 2004, p. 73. 440 CSIG-UNCITRAL, art. 35, 1: "O vendedor deverá entregar mercadorias cuja quantidade, qualidade e tipo correspondam ao estipuladosno contrato, e que estejam envasados ou embalados na forma fixada pelo contrato. [...]". 441 CSIG-UNCITRAL, art. 35, 2: "Salvo se as partes pactuaram de modo diverso, as mercadorias são conformes ao contrato se: (a) são aptas para os usos a que ordinariamente se destinem mercadorias do mesmo tipo; (b) são aptas para qualquer uso especial que expressa ou tacitamente o comprador tenha declarado ao vendedor no momento da celebração do contrato, salvo se das circunstâncias resulte que o comprador não confiou, ou não era razoável que confiasse na habilidade ou no juízo do vendedor; (c) possuam as qualidades da amostra ou modelo que o vendedor apresentou ao comprador; (d) estejam envasadas ou embaladas na forma habitual para tais mercadorias ou, em não existindo uma forma habitual, de modo adequado para conservá-las e protegê-las". 442 BELLISARIO, Elena. [Commentario – CC, art. 1519-ter, 2º comma, lett. "c"]. IN: PATTI, Salvatore (coord.). Commentario sulla vendita dei beni di consumo. Milano: Giuffrè, 2004, p. 120. 443 MASCALI, Laura. La conformità al contratto com riferimento alle 'dichiarazioni pubbliche sulle caratteristiche specifiche dei bene": art. 1519-Ter CC. IN: UNIVERSITÀ DI CATANIA. Annali del Seminario Giuridico – Vol. V (2003-2004). Milano: Giuffrè, 2005, p. 561. 207 Tal reconhecimento se deu em consideração ao fato de que, em regra, é sobre a base das informações divulgadas antes da conclusão do contrato – em particular, aquelas veiculadas na publicidade comercial – que o consumidor se determina a adquirir o bem, fundando nessas informações as suas próprias expectativas de qualidade e utilidade do produto. A ratio da disposição centra-se na consciência atual da enorme relevância que as mensagens publicitárias têm assumido na dinâmica da moderna economia de mercado, e da potente influência que exercem sobre os comportamentos e sobre as escolhas dos consumidores. Se, de fato, às duas funções – informativa e persuasiva – tradicionalmente atribuídas às comunicações publicitárias se tende geralmente a dar uma particular relevância, em muitos casos constata-se que a persuasão acaba assumindo um papel nitidamente predominante 444 . Ainda na observação de BELLISARIO, a norma da alínea “d” do art. 2º da Diretiva 1999/44/CE veio de encontro a uma tendência que já vinha se esboçando no direito comunitário europeu, no sentido de se superar a rígida distinção entre informações précontratuais e declarações negociais. Em diversos capítulos das relações de consumo – sobretudo no referente à obrigação de informação do fornecedor, considerada como um dos pilares sobre os quais, desde a sua origem, construiu-se a disciplina comunitária da tutela do consumidor –, assiste-se ao fenômeno da progressiva absorção da fase pré pela fase contratual propriamente dita, podendo-se falar de uma contratualização das informações 445 . 444 Cf. BELLISARIO, op. cit., p. 127. 445 Cf. id. Ibid., p. 121. 208 EPÍLOGO: SÍNTESE DAS TESES APRESENTADAS 209 CAPÍTULO 16 – CONCLUSÕES SOBRE A PROPOSTA DE CONTRATO 1. Princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato No direito contratual brasileiro, por força do art. 427 do Código Civil de 2002, que reproduz integralmente o art. 1080 do Código de 1916, que por sua vez teve como fonte de inspiração o § 145 do BGB, vigora o princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato. A interpretação tradicional deste artigo, que remonta à formulada por CLOVIS BEVILAQUA, e que se pode considerar ainda dominante, é equivocada e reduziu o dispositivo legal à completa inutilidade. Por ela, o efeito jurídico da proposta de contrato seria a obrigação stricto sensu e ex lege do proponente de manter (ou “sustentar”, ou “não revogar”) a proposta no prazo implícita ou expressamente estabelecido. A partir desta falsa premissa, e sob o influxo do prestígio do princípio anacrônico e individualista segundo o qual nemo praecise cogi potest ad factum, sustenta-se que se o proponente retirar (ou “revogar”) a proposta nos casos em que não pode fazê-lo, a obrigação de fazer originária converte-se em obrigação de indenizar eventuais perdas e danos. Todavia, o verdadeiro sentido do dispositivo, consoante o entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência alemãs (BGB, § 145), e as vozes abalizadas de EDUARDO ESPINOLA e PONTES DE MIRANDA, é o de que, da proposta de contrato, não emerge qualquer vínculo obrigacional. Pelo simples fato de haver feito a proposta, o proponente não tem de realizar qualquer prestação, quer positiva, quer negativa. A proposta de contrato, por si só, não constitui fonte de obrigação. O que o art. 427 do nosso Código estabelece, em essência, é que a proposta é irrevogável. 210 Pelo princípio da irrevogabilidade, a declaração originária da proposta mantém-se de pé, conservando todo o seu viço e eficácia, até o advento de alguma condição que enseje a sua caducidade, tal como o decurso do prazo expresso ou implícito à proposta, a recusa pelo oblato, ou o resultado a que naturalmente está vocacionado a proposta: a aceitação. Mesmo tendo declarado, o proponente, a intenção de revogar a sua proposta, sobrevindo tempestivamente a aceitação do oblato, o contrato se forma. A partir deste momento, já se está no campo puramente contratual, de modo que eventual recusa do proponente a cumprir as obrigações que lhe tocam no contrato recém-formado, receberá as respostas que o direito têm reservadas ao inadimplemento contratual. 2. Vinculação mínima e máxima da proposta de contrato A vinculação jurídica que decorre da realização de uma proposta de contrato a alguém apresenta dois graus de intensidade: (a) vinculação mínima: é o efeito jurídico necessário de toda proposta de contrato – independentemente de ser ou não irrevogável –, segundo o qual a proposta proporciona ao oblato um direito potestativo ou formativo de constituir o vínculo contratual com sua aceitação pura e simples, direito a que se contrapõe o que se chama de estado de sujeição a que se submete, no caso, o proponente; (b) vinculação máxima: dá-se quando à vinculação mínima agrega-se a irrevogabilidade da proposta, que é efeito eventual, pois depende de disposição legal expressa, ou da vontade do proponente. Portanto: Vinculação máxima = estado de sujeição + irrevogabilidade da proposta. 211 3. A irrevogabilidade da proposta no Código Civil e no Código Comercial Até a revogação da Primeira Parte do Código Comercial pelo Código Civil de 2002, conviviam no Brasil dois regimes diametralmente opostos quanto à eficácia da proposta de contrato. Deveras, pelo Código Comercial, a proposta era livremente revogável pelo proponente, desde que a declaração revocatória chegasse à esfera de conhecimento do oblato antes de este ter expedido sua declaração de aceitação (cf. art. 127). Ao contrário, pelo Código Civil, a proposta, embora passível de ser retirada pelo proponente no período compreendido entre a sua emissão e a recepção pelo oblato, não podia, após este momento, e até caducar por decurso do prazo de eficácia implícito ou expresso, ser revogada de forma eficaz pelo proponente (CCbr-1916, art. 1081, IV). Mantendo, os artigos 427 e 428 do Código Civil de 2002, a redação de seus correspondentes artigos 1080 e 1081 do Código Civil de 1916, e não tendo ressalvado os contratos empresariais, hoje, no Brasil, todos os contratos de direito privado, quer civis, quer comerciais, sujeitam-se ao princípio da irrevogabilidade da proposta. 212 CAPÍTULO 17: CONCLUSÕES SOBRE A OFERTA AO PÚBLICO 1. A oferta ao público é constituída de declaração de vontade não-receptícia Na sistemática do § 130 do BGB – o qual serve de referência para toda a Teoria Geral do Direito – a chegada da declaração (Zugang der Erklärung) de vontade ao destinatário é pressuposto legal da geração dos efeitos jurídicos (Wirksamweden) próprios à declaração. Todavia, esse pressuposto não se aplica, por definição, às declarações de vontade dirigidas ad incertam personam, como a oferta ao público, pois não se endereçando esta a pessoas predeterminadas, o fato de seu conteúdo ter ou não ter chegado efetivamente ao conhecimento de alguém é de todo irrelevante. Exemplo eloqüente de KÖNDGEN: a oferta de contrato feita por meio de anúncio em jornal gera efeitos vinculantes no momento em que o jornal é publicado, e não quando um exemplar do jornal chega à caixa de correio do assinante. 2. A oferta ao público, em princípio, é revogável A peculiaridade de a oferta ao público ser constituída de declaração de vontade não-receptícia tem como corolário o fato de, em face de todos aqueles, do público, que ainda não tenham aceitado a oferta, ser esta revogável. Deveras, a oferta ao público, em princípio, é revogável até mesmo no direito dos países, como Alemanha, Brasil e Portugal que adotaram o princípio da irrevogabilidade da proposta de contrato. 213 Digo “em princípio”, porque nada impede ao ofertante, sponte sua, torná-la irrevogável por determinado tempo estabelecido nos termos da própria oferta ao público. Daí não haver qualquer incompatibilidade ou incoerência entre os artigos 427 (irrevogabilidade da proposta de contrato) e 429, parágrafo único (revogabilidade da oferta ao público) do Código Civil. A única exigência legal para a revogação eficaz da oferta ao público é que ela se dê “pela mesma via de sua divulgação, desde que ressalvada 446 essa faculdade na oferta realizada” . 3. Limites eficaciais implícitos à oferta ao público O art. 429 do Código Civil estabelece que a oferta ao público equivale a proposta de contrato “salvo se o contrário resultar das circunstâncias e dos usos”. Uma das “circunstâncias” que retira vinculatividade às ofertas ao público é o fato de terem por objeto contratos intuito personae, em que as características ou qualidades pessoais do oblato são determinantes ou condicionantes da intenção de vincular-se do ofertante. Vale dizer que, não sendo vinculantes na hipótese de versarem contrato intuitu personae – tais como o contrato de trabalho, a sociedade de pessoas, a locação, o seguro, etc. –, as ofertas ao público não conferem aos eventuais interessados o direito potestativo de constituir o vínculo contratual com a sua pura e simples aceitação (vinculação mínima). 446 CCbr-2002, art. 429, parágrafo único, in fine. 214 4. Ofertas ao público singulares e múltiplas Outro limite implícito à oferta ao público diz respeito ao número de potenciais aceitantes que ela pode admitir. As ofertas ao público singulares são aquelas passíveis de serem aceitas por apenas uma pessoa, gerando, por conseguinte, um único contrato. É o que ocorre, via de regra, quando o objeto do contrato proposto é único – quer por envolver bem indivisível, quer infungível, quer, ainda, porque, mesmo sendo fungível o bem, o ofertante limita expressamente a oferta a apenas uma unidade. As ofertas ao público múltiplas são aquelas passíveis de serem aceitas por mais de uma pessoa, o que ocorre, por exemplo, quando o objeto do contrato proposto é múltiplo, ou, sendo único, é divisível. A importância prática desta distinção reside na circunstância de que a oferta ao público singular se extingue ou caduca com a aceitação do primeiro interessado, enquanto que em relação à oferta ao público múltipla – cujo objeto é certa pluralidade de bens ou de serviços repetíveis – terão eficácia todas as aceitações que se enquadrarem nos limites de estoque do ofertante (ou de sua capacidade de prestar, quanto a serviços), se outras limitações não vierem especificadas expressamente nos termos da própria oferta ao público. 5. Oferta ao público e o art. 30 do CDC Ao contrário do que sustenta a esmagadora maioria dos autores que vêm comentando o CDC, o art. 30 deste Diploma legal não disciplina a oferta ao público, e sim o revolucionário princípio da integração publicitária do contrato. 215 6. Oferta ao público e o art. 35 do CDC Quando fala em “recusar cumprimento à oferta”, este dispositivo se serve de expressão de todo inadequada, o que tem propiciado interpretações equivocadas acerca do sentido e alcance do CDC, art. 30, inclusive levando muitos a vislumbrarem neste um “novo regime da oferta contratual”. Ocorre que a oferta contratual não é algo passível de ser cumprido ou descumprido, pelo simples e óbvio motivo de que é tão-somente oferta, e não contrato. A “oferta” é algo que se faz, e uma vez feita e aceita pelo oblato, transmuda-se em contrato, de modo que eventual descumprimento do ofertante quanto ao conteúdo da sua própria oferta, não representa um descumprimento desta, e sim do próprio contrato já plenamente formado pela aceitação da oferta. O art. 35 do CDC refere-se exclusivamente à fase contratual, e não à oferta, que é fenômeno pertencente à fase pré-contratual. Partindo do pressuposto de que a aceitação pura e simples da oferta, manifestada expressa ou tacitamente (facta concludentia), já enseja a constituição do vínculo contratual, este artigo estabelece alternativas, ao consumidor, de execução das obrigações contratuais do fornecedor, em caso de inadimplemento. 216 CAPÍTULO 18: CONCLUSÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA INTEGRAÇÃO PUBLICITÁRIA DO CONTRATO 1. A fonte de inspiração do art. 30 do CDC O art. 30 do CDC tem como fonte direta o art. 8.1 da LGDCU espanhola de 1984, que introduziu no ordenamento jurídico o que a jurisprudência chamou de princípio da integração publicitária do contrato. Tal princípio tem origem nitidamente pretoriana, tendo decorrido da aplicação conjugada de dois emblemáticos dispositivos do Código Civil espanhol, a saber: Art. 1258: “Os contratos se aperfeiçoam pelo mero consentimento, e desde então obrigam não somente ao cumprimento do expressamente pactuado, senão também a todas as conseqüências que, segundo sua natureza, sejam conformes à boa-fé, ao uso e à lei”. Art. 1282: “Para se interpretar a intenção dos contratantes, dever-se-á atentar principalmente ao atos destes, coetâneos e posteriores ao contrato”. 3. Função e fundamentos do princípio O princípio da integração publicitária do contrato visa tutelar as legítimas expectativas criadas no ânimo dos consumidores pela atuação comercial dos fornecedores (tutela da confiança), e deita suas raízes no princípio maior da boa-fé objetiva e da veracidade, tomado este, sobretudo, no sentido de que as declarações publicitárias não podem enganar ou induzir os consumidores a erro. 217 4. Publicidade comercial x oferta ao público x integração publicitária do contrato Toda oferta ao público é publicidade que descreve pelo menos os elementos essenciais do contrato ofertado (CCbr-2002, art. 428), de tal modo que a conclusão deste não requer outra declaração de vontade além da aceitação de eventual interessado em contratar. Logo, nem toda publicidade é oferta ao público. Isso não obstante, se a publicidade é incompleta do ponto-de-vista contratual, mas pelo menos veicular informações suficientemente precisas, estas integrarão a posterior os contratos que vierem a ser celebrados com os consumidores que se sentiram tocados pela publicidade, prevalecendo inclusive, tais informações, sobre cláusulas escritas que eventualmente lhes forem conflitantes. * * * * * 218 ABREVIATURAS 1999/44/CE ................... Diretiva 44 da Comunidade Européia, de 25 de maio de 1999, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas 2000/31/CE ................... Diretiva 31 da Comunidade Européia, de 8 de junho de 2000, relativa a certos aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrônico, no mercado interno ABGB ........................ Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch für Österreich ADHGB ..................... Allgemeines Deutsches Handelsgesetzbuch ALR ............................ 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Código civil português de 1867 219 CCpt-1966 ..................... Código civil português de 1966 CDC .............................. Código brasileiro de defesa do consumidor CISG- UNCITRAL ........... United Nations convention on contracts for international sale of goods da UNCITRAL CPC ............................... Código de Processo Civil brasileiro CSO ............................... Código suíço das obrigações FCISG-UNIDROIT .......... Uniform law on the formation of contracts for the international sale of goods do UNIDROIT JPI .................................. Juzgado de Primera Instancia(Espanha) LGDCU ......................... Ley 26/1984, de 19 de julio, general para la defensa de los consumidores y usuários (Espanha) LGP ............................... Ley 34/1988, de 11 de novembro, general de publicidad (Espanha) LPDC ............................ 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Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul TJ-SC ............................ Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina 220 TJ-SP ............................. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo TS .................................. Tribunal Supremo (Espanha) UNCITRAL ................... United Nations Commission on International Trade Law UNIDROIT .................... International Institute for the Unification of Private Law 221 BIBLIOGRAFIA ALEGRÍA, Hector et al. Proyecto de código civil unificado con el código de comercio. Buenos Aires: Ed. Estudio, 2001. ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico. Coimbra: Almedina, 1992. v. 1. AMARAL JÚNIOR, Alberto do. O princípio da vinculação da mensagem publicitária. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 14, p. 41-51, abr./jun. 1995. ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria da relação jurídica: sujeitos e objeto. Coimbra: Almedina, 1983. v. 1. AUBERT, Jean-Luc. 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Tribunal Supremo, Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación, Sentencia de 9 feb. 1981, Ponente: Antonio Fernández Rodrígues. ______. Tribunal Supremo, Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación, Sentencia 8 nov. 1996, Ponente: Eduardo Fernández-Cid de Temes. ______. Tribunal Supremo, Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación, Sentencia de 7 nov. 1988, Ponente: Antonio Carretero Pérez. ______. Tribunal Supremo, Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación, Sentencia de 7 nov. 1988, Ponente: Antonio Carretero Pérez. Apud: GARCÍA DE LEONARDO, Angel Cuesta. El art. 8 LCU en la jurisprudencia. Aranzadi Civil, Pamplona, t. 1, v. 2 , p. 129148, 1999. 235 ESPAÑA. Tribunal Supremo, Primera Sala de lo Civil, Recurso de casación n. 126/1991, Sentencia n. 824/1993 de 21 jul., Ponente: Teófilo Ortega Torres. ______. Tribunal Supremo, Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación n. 126/1993, Sentencia n. 894/1996, de 8 nov., Ponente: Eduardo Fernández-Cid de Temes. ESPAÑA. Tribunal Supremo, Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación n. 3167/1997, Sentencia 514/2003 de 23 mayo, Ponente: Xavier O’Callaghan Muñoz. IN: LLAMAS POMBO, Eugenio (coord.). Ley general para la defensa de los consumidores y usuarios: Comentarios y jurisprudencia de la Ley veinte años después. Madrid: La Ley, 2005. ______. Tribunal Supremo. Sala Primera, de lo Civil, Recurso de casación, Sentencia de 21 jul. 1993, Ponente D. Teófilo Ortega Torres. NAVARRA. Audiencia Provincial, Sección 2ª, Rollo de apelación n. 12/1997, Sentencia n. 274/1997 de 25 nov., Ponente: Francisco José Goyena Salgado. * * * * * This document was created with Win2PDF available at http://www.win2pdf.com. The unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only. This page will not be added after purchasing Win2PDF.