REFLEXÕES SOBRE UMA EDUCAÇÃO TOTALITÁRIA E RACISTA

Propaganda
REFLEXÕES SOBRE UMA EDUCAÇÃO
TOTALITÁRIA E RACISTA
SAKAMOTO, Bernardo Alfredo Mayta1 - Unioeste
Grupo de Trabalho – Violências nas Escolas
Agência financiadora: não contou com financiamento
Resumo
O objetivo deste trabalho é ressaltar a relação entre a educação e a ideologia do totalitarismo,
mostrando como a educação consolida um projeto político. O método empregado na pesquisa
foi bibliográfico, analisando a obra A sociedade aberta e seus inimigos (1945) de Karl
Popper, onde se expõe que a origem da ideologia totalitária e racista do nazismo encontra-se
no projeto político de Platão. Segundo Popper, em A República de Platão observa-se uma
concepção de educação que fundamenta a estabilidade do rei filósofo. Na pólis platônica a
educação é privilégio de poucos, dos governantes e dos guerreiros, o resto da sociedade não
têm acesso à educação, constituindo uma “sociedade fechada”. A educação platônica
privilegia os que nascem com atitude de filósofos e guerreiros, assim, a maioria da população
não tem acesso à educação, pois nasceram para corresponder os desejos da minoria. Como
conclusão, percebe-se que a educação platônica é contrária à educação democrática, e
contraria os princípios da constituição brasileira, que estabelece a educação como um direito
de todos e condena qualquer tratamento desigual. Dividimos o trabalho em três partes, na
primeira, ressaltamos “a educação e os projetos políticos”, nela vemos que a República de
Platão sustenta uma educação que serve de fundamento para o governo do rei filósofo; na
segunda, “a educação totalitária na polis platônica”, o governante consolida a pólis
hierárquica com uma educação que privilegia as diferenças naturais entre os seres humanos
(raças) e, por último, observamos algumas consequências da educação platônica. Podemos
concluir que apesar das grandes contribuições de Platão à filosofia, na República
encontramos uma proposta educativa que fere os princípios da democracia, legitimando
regimes totalitaristas.
Palavras-chave: Origem do totalitarismo. Educação e violência. Sociedade fechada.
1
Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp (1999), mestre em Lógica e Filosofia
da ciência na área de Filosofia política pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp (1993), bacharel e
licenciado em Filosofia pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos (UNMSM) Lima-Peru. Professor
associado em Ética e filosofia política do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(Unioeste). Leciono Estética e Seminário de ética e filosofia política. Atualmente tenho interesse em temas de
Ética, Direitos humanos e Meio ambiente. Líder do Grupo de Pesquisa Poliética: ética na administração e na
economia.
28823
Introdução
Em nossos dias a educação, a formação e desenvolvimento físico, intelectual e moral
do ser humano, tem como objetivo formar cidadãos livres para consolidar a democracia. Os
ideais democráticos de liberdade e de igualdade ante a lei opõem-se às justificações de
sistemas políticos fundados sobre o direito de uma raça superior e que propõem o
totalitarismo. O totalitarismo não admite erros nem críticas, de fato neste sistema a oposição é
ilegal. Um estado totalitário exige completa submissão e subserviência do indivíduo ao
Estado.
No fim da segunda guerra mundial, Karl Popper publica A sociedade aberta e seus
inimigos. Ele teve motivações imperiosas para deixar suas pesquisas epistemológicas e
escrever esta obra em defesa da democracia: de família judaica, ele perdeu dezesseis parentes,
ademais de amigos e conhecidos, mortos nos campos de concentração nazista. Popper
encontra as origens da intolerância, da ideologia totalitarista e racista no pensamento de
Platão. A educação platônica solidifica uma sociedade não democrática (fechada, rígida,
totalitária), que é oposta aos interesses do povo, porque submete servilmente os seres
humanos às decisões do governante.
Por isso, Popper escreve no prefácio: “este livro busca contribuir para que
compreendamos o totalitarismo e a significação da permanente luta contra ele. Procura
também examinar a aplicação dos métodos críticos e racionais da ciência aos problemas da
sociedade democrática” (POPPER, 1974, p 16). Neste sentido, para apresentar a educação
platônica na visão de Popper, dividimos este trabalho em duas partes: na primeira, observa-se
na República de Platão uma educação que serve de fundamento para o governo do reifilósofo. Na segunda, percebe-se que este governante consolida a pólis hierárquica com uma
educação que privilegia as diferenças naturais entre os seres humanos (raças) e a violência da
“classe dos guerreiros”. Por último, algumas consequências da educação platônica, na qual
enfatizamos que a educação, exposta na República de Platão, é contrária a uma educação
com os ideais democráticos.
A educação e os projetos políticos
Observando a Lei de diretrizes e bases da educação brasileira (LDB) de 1996, vemos
que está pautada em princípios democráticos que respeitam a dignidade humana:
28824
TÍTULO I. Da Educação. Art. 1º A educação abrange os processos formativos que
se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas
instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da
sociedade civil e nas manifestações culturais. [...] § 2º A educação escolar deverá
vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social.
TÍTULO II Dos Princípios e Fins da Educação Nacional. Art. 2º A educação, dever
da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de
solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de
condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar,
pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de
idéias e de concepções pedagógicas; IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;
[...] VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; [...] VIII gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos
sistemas de ensino [...] XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as
práticas sociais (FRAUCHES, 2002, p. 23).
A lei ressalta o alcance da educação desde o início da vida até os complexos vínculos
do indivíduo com a sociedade. Se por um lado, cabe à educação escolar estabelecer ligações
com a prática laboral e com o convívio social. Por outro, cabe à família e ao Estado dar uma
educação que valorize a liberdade e a solidariedade (FRAUCHES, 2002). Incumbe então,
responsabilizar o Estado e a família pelos erros no seu trabalho de educar, quando o indivíduo
faz mal uso de sua liberdade ou quando não atingem através de seus atos o estabelecido pela
lei. E sobre os problemas de ordem laboral, em grande parte cabem à escola, ainda que ela
também é responsável de orientar a educação em direção a uma ordem social.
A lei também observa que a prática educativa seja realizada respeitando a liberdade,
igualdade e diversidade, para que não sejam unicamente valores teóricos que se apreendem,
senão atitudes educativas que formam indivíduos e fortalecem culturas.
Estas diretrizes e bases estão em consonância com o preâmbulo da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, que diz:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida,
na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (CONSTITUIÇÃO, 2003, p. 6).
Os direitos sociais procuram a garantir os direitos fundamentais dos indivíduos,
preservando sua dignidade, através das garantias estabelecidas pelo Estado democrático de
28825
direito. E é um direito dos cidadãos ter acesso à educação, mas não basta declarar este direito
é necessário estabelecer condições para que todos o possam efetivar.
Desta forma, a educação brasileira procura desenvolver a cidadania para afirmar a
forma democrática de governo: igualdade, liberdade e fraternidade entre todos os brasileiros,
destacando os valores de justiça e de inclusão social. A liberdade é o poder que tem o cidadão
de exercer a sua vontade dentro dos limites que lhe faculta a lei. Ela se complementa com a
igualdade, que é o princípio segundo o qual todos os homens são submetidos à lei e gozam
dos mesmos direitos e obrigações e, por último, a fraternidade que propõe a harmonia e união
entre os seres humanos. Estes três valores serão o fundamento que orienta a justiça.
A educação é peça fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade justa,
democrática e participativa, que procura exercer a soberania e satisfazer os interesses
populares. Mas, nem toda educação pode cumprir este papel. Neste sentido observaremos a
proposta educativa de Platão para identificar suas condições políticas.
Popper reconhece que a educação de Platão teve influência no sistema educativo
europeu: “tem-se dito, e sempre com verdade, que Platão foi o inventor tanto de nossas
escolas secundarias como de nossas universidades” (POPPER, 1974, p. 152). Tal é o alcance
desta proposta educativa e podemos observar até agora muita influencia platônica.
Popper fica surpreendido que os filósofos da educação só percebessem o desinteresse
econômico do ensino platônico, esquecendo a relação da educação com a política, da procura
pela estabilidade da classe dominante na Grécia antiga através da educação:
O fato de ser a educação, no estado de Platão, uma prerrogativa de classe, não tem
sido devidamente considerado por alguns educadores entusiásticos que creditam a
Platão a idéia de tornar a educação independente de meios financeiros; não veem
que o mal está na prerrogativa de classe como tal e que é relativamente sem
importância ser essa prerrogativa baseada na posse de dinheiro ou em outro critério
o ingresso na classe dirigente (POPPER, 1974, p. 2482).
O autor ressalta que, a República de Platão apresenta o programa político e
educacional do pensamento não democrático. Na obra-prima platônica percebe-se uma
educação hierárquica que solidifica uma sociedade organizada sobre uma ordem de prioridade
entre seus membros, que apresentam relações de subordinação entre eles, isto é uma
sociedade hierárquica. Por esta consideração é importante ressaltar, seguindo a Popper, o
2
Nota 33 do capítulo 4.
28826
perigo do totalitarismo e do racismo imerso na proposta da educação do fundador da
Academia.
Popper considera que em nossos dias qualquer preconceito sobre uma superioridade
entre os homens não justifica um programa político:
Desejo expressar minha crença de que a superioridade pessoal, seja racial,
intelectual, moral ou educacional, nunca pode basear uma reivindicação a
prerrogativas políticas, ainda mesmo que tal superioridade, seja comprovada. A
maioria, hoje, nos países civilizados, admite que a superioridade racial é um mito;
ainda, porém, que se tratasse de um fato estabelecido, não criaria especiais direitos
políticos, embora pudesse criar especiais responsabilidades morais para as pessoas
superiores. Exigências, análogas deveriam ser feitas àqueles intelectual, moraI e
educacionalmente superiores; e não posso deixar de sentir que os reclamos em
sentido contrário de certos intelectualistas e moralistas apenas mostram quão pouco
êxito alcançou sua educação, visto como falhou em torná-los conscientes de suas
próprias limitações e de seu farisaísmo (POPPER, 1974, p. 63).
As observações levantadas por Popper, não são unicamente comentários pertinentes
para os fatos promovidos pelo fascismo durante a segunda guerra mundial, senão também aos
eventos de finais do século XX, com a queda dos regimes socialistas do leste europeu, que
podem ser considerados como episódios de limpeza étnica, as guerras da Iugoslávia e do
Cáucaso. O chamado nacionalismo étnico compreende que o conceito de nação é definido por
herança, que normalmente inclui linguagem, religião e ancestrais em comum.
Mas, nem todos aceitaram a crítica de Popper ao projeto político e educativo de Platão,
ele teve severas contestações dos platônicos. O filósofo austríaco naturalizado britânico diz no
prefácio da segunda edição de A sociedade aberta e seus inimigos: “Não tive surpresa em
ser censurado por alguns [...]. Sinto ainda, entretanto, a necessidade de encarar Platão com
olhos fortemente críticos, precisamente porque a geral adoração do “divino filósofo” encontra
base real em sua esmagadora obra intelectual” (POPPER, 1974, p. 8).
Popper anota que seu livro polêmico começou a ser redigido em 1938 e publicado em
1945. Ele confessa que a obra de “o divino” Platão possui fascínio, mas a tarefa do filósofo
comprometido com os valores da liberdade e da democracia tem que denunciar os
fundamentos do racismo e totalitarismo expostos na filosofia platônica. Por isso, quando
critica a censura das artes e do cerceamento da liberdade das pessoas no programa platônico,
Popper diz:
28827
Considerando a tendência decididamente anti-ateniense e portanto anti-literária da
República, é um pouco difícil explicar por que razão tantos educadores têm tão
grande entusiasmo pelas teorias educacionais platônicas. Só posso ver três
explicações plausíveis. Ou não entendem a República, apesar de sua mais que aberta
hostilidade para com a educação literária então existente em Atenas; ou se sentem
simplesmente lisonjeados pela ênfase retórica que Platão dá ao poder político da
educação, como ocorre a muitos filósofos e mesmo a alguns músicos; ou uma coisa
e outra (POPPER, 1974, p. 2493).
As análises de Popper no estudo das relações entre educação e política podem ajudar a
desenvolver a leitura crítica das obras filosóficas. E deve ser lida desde uma perspectiva
democrática, nesse sentido entendemos a Anísio Teixeira quando afirma:
Não fôsse a divisão em castas da sociedade grega, pela primeira vez posta e
alcandorada em filosofia, e o lazer assegurado aos homens "livres" – isto, é, livres de
trabalhar – e não seria possível a sua teoria do conhecimento, nem a sua teoria da
vida perfeita. Longe de mim insinuar que sua contribuição não foi grande. Foi
grande e mesmo imensa, em sua exaltação da faculdade humana de conhecer, a
ponto de resumir o homem à inexaurível curiosidade e à busca incessante do saber
pelo saber, o saber de contemplação e fruição, primacialmente, com discutíveis
possibilidades de aplicação, secundàriamente. (TEIXEIRA, 1955, p.32).
Mas, fora o reconhecimento da grandeza filosófica de Platão, não se pode deixar de
criticar a proposta educativa da República, se partimos de uma visão democrática.
Atualmente, o antigo dualismo entre o material e o mental, que separou durante séculos os
homens “livres” capazes de exercer tarefas intelectuais e, os escravos encarregados das tarefas
braçais, pesadas é censurável. Claro que, foi graças ao esforço de milhares de escravos que
alguns homens puderam se dedicar a filosofar, por isso, a filosofia de ocidente não deve seu
legado unicamente aos filósofos, senão também àqueles que sustentaram esta dedicação.
A educação totalitária na pólis platônica
Iniciaremos por ver como Platão ressalta a importância da educação para constituir um
bom governo:
Porque a cidade com bom começo, prossegui, continua a crescer à maneira de um
círculo. a educação e a instrução bem dirigidas formam constituições boas; por outro
lado, as boas constituições, sob a influencia de semelhante educação, tornam-se
ainda melhores do que as das gerações anteriores, sob todos os aspectos (PLATÃO,
2000, p. 191).
3
Nota 39, cap. 4.
28828
Com efeito, a educação dos guardas da cidade platônica inicia muito cedo. Assim, as
crianças. Aprendem a ideia de ordem que rege a hierarquia das Formas ou Ideias (gerando a
estabilidade, a saúde, a paz, etc.). E a partir da percepção harmônica na música, de uma
ginástica gradual visando a preparação do corpo para os confrontos bélicos, da alfabetização
para a compreensão dos escritores clássicos, depois, do ensino das matemáticas, astronomia e
outras disciplinas, como retórica e filosofia. Tudo isto porque o objetivo máximo desta
educação era compreender o conceito eterno e puro do Bem, que é a idéia reitora no mundo
das Ideias. A compreensão do Bem tornava apto aos guerreiros para a gestão pública do
governo do rei filósofo. (SAKAMOTO, 2012).
Para Popper a educação é a instituição que solidifica o programa político platônico:
A instituição que, de acordo com Platão, tem de cuidar dos futuros líderes pode ser
descrita como o departamento educacional do estado. De um ponto de vista
puramente político, esta é, em muitos aspectos, a mais importante instituição da
sociedade de Platão. Conserva as chaves do poder. Só por essa razão, deveria ser
claro que pelo menos os graus mais elevados de educação ficam sob direto controle
dos governantes. (POPPER, 1974, p. 149).
A educação de Platão serve para figurar a “sociedade fechada” (hierárquica, rígida,
autoritária) que estabelece uma classe privilegiada para governar. A educação da República
prevê uma imobilidade social, não quer mudanças porque tenta manter uma ordem
supostamente natural, com privilégios já solidificados. Por essa razão a educação é
fundamental para ajudar a preservar a hierarquia social, sendo assim, a política legaliza e a
educação legitima essa ordem,
[...] em suma: o programa político de Platão foi muito mais institucional do que
personalista: esperava ele deter a mudança política pelo controle institucional da
sucessão na liderança. O controle devia ser educacional, baseado numa concepção
autoritária do ensino, na autoridade do perito letrado, do homem de comprovada
probidade. (POPPER, 1974, p. 153).
O estabelecimento do plano exposto na República implica negar ou calar conflitos de
classe, não permitindo revindicações nem críticas e obviamente o Estado e a educação devem
trabalhar juntos para este fim. Podemos observar que as pretensões do autoritarismo não são
poucas, ele tenta deter a história utilizando todos seus recursos, força política e persuasão
cultural.
Com efeito, a educação em Platão é para poucos, para os naturalmente superiores:
“Platão divide os homens em duas classes, os fracos e os poderosos. A ignorância e loucura
28829
do fraco é descrita como risível, ao passo que a ignorância do forte é “adequadamente
chamada “má” e “odiosa”[...] Mas isso implica a doutrina platônica de que quem detém poder
deve ser sábio e não ignorante ou de que só quem é sábio deve deter o poder”. (POPPER,
1974, p. 294). Os governantes são designados pela natureza, sua educação e preparação só
segue um curso natural.
Os homens nascem natural e socialmente diferentes, a natureza humana é diferente, a
democracia não se pode fundamentar na igualdade entre os homens. Mas, esta diferença não
implica discriminação, assim Popper anota que Platão ao referir-se ao bom caráter dos nobres
diz: “ninguém se pode converter em homem honrado se seus primeiros anos não foram dados
a nobres brinquedos (República, 558b)” (POPPER, 1974, p. 241). O homem se constitui
desde “o berço”, o nascimento, e a infância.
Enfatizar o autocontrole do caráter na formação dos governantes é decisivo para a
estabilidade da pólis. Platão não baseia sua política no equilíbrio das forças das várias classes
sociais como a democracia. O controle que exercem as classes dominantes, através de seus
poderes arbitrários e do uso da violência, está fora de questão, pois a “superioridade da classe
dirigente não pode ser discutida” (POPPER, 1974, p. 66). Assim, diz Popper:
[...] a finalidade educacional de Platão tem como alvo puramente político a
estabilização do estado pela mescla de um elemento violento a um gentil no caráter
dos governantes. As duas disciplinas em que eram educados os filhos das altas
classes gregas, ginástica e música (incluídos todos os estudos literários), são ligadas
por Platão aos dois elementos do caráter, violência e gentileza. “Não observastes”
indaga Platão (36 412a-e) como o caráter é afetado por um adestramento exclusivo
na ginástica, sem a música, e como também o afeta o adestramento inverso?[...]
Exclusiva preocupação com a ginástica produz homens mais violentos do que
deveriam ser, ao passo que análoga preocupação com a música os faz demasiado
suaves[...]. Sustentamos, porém, que nossos guardiães devem combinar essas duas
naturezas... Eis por que digo que algum deus deve ter dado ao homem estas duas
artes, a música e a ginástica; seu objetivo não é tanto servir corpo e alma
respectivamente, mas antes harmonizá-los adequadamente às duas cordas principais,
isto é, colocar em harmonia os dois elementos da alma, gentileza e violência. E
Platão conclui sua análise: “São estas as linhas mestras de nosso sistema de
educação e adestramento” (POPPER, 1974, p. 66-67).
O apelo à natureza é constante em Platão ele não explica as ações como fruto de
condutas ou interesses, senão como produto da natureza. Assim, a educação das classes
gregas altas contemplava uma mescla equilibradora das duas naturezas, de “violência” e de
“gentileza”, de força e de persuasão, os dois elementos necessários para submeter ou dominar,
já seja através da violência física ou da moral (ARENDT, 1989). A tentativa platônica de
estabilizar o poder instituído através da educação serve como cimento para tornar a ordem
28830
proposta como “natural” e assim, estabelecer a discriminação, exploração e exclusão como
condutas legítimas.
A educação platônica tem uma finalidade: “o alvo da criação da raça de senhores é
assim estabelecido e demonstrado atingível” (POPPER, 1974, p. 66-67). Platão procura
justificar sua divisão de classes pela tríplice afirmação de que os governantes são vastamente
superiores aos governados sob os aspectos: “pela raça, pela educação e por sua escala de
valores” (POPPER, 1974, p. 63).
Popper ao criticar o totalitarismo nazista, afirma que esta teoria baseia suas predições
numa interpretação da história que conduz à descoberta de uma lei do desenvolvimento, a
superioridade ariana. O domínio racial é “considerado como uma espécie de lei natural; a
superioridade biológica do sangue da raça escolhida explica o curso da história, o passado, o
presente e o futuro; resume-se apenas à luta das raças pela hegemonia” (POPPER, 1974, p.
24).
O projeto educativo-político para um grupo seleto de homens é criticado por Popper:
Dificilmente pode idear-se uma instituição para seleção dos indivíduos de maior
realce. A seleção institucional pode servir maravilhosamente para os fins propostos
por Platão, isto é, para deter toda mudança. Mas, se lhe pedirmos mais, então já não
servirá para nada, pois tenderá sempre a eliminar a iniciativa e a original idade e, de
modo mais geral, as qualidades inesperadas e pouco frequentes. Isto não é, por certo,
uma crítica do institucionalismo político. Só reafirmamos o que antes já havíamos
dito, isto é, que sempre devemos preparar-nos para os piores líderes, embora,
naturalmente, cuidemos de procurar os melhores. É, porém, uma crítica da tendência
para sobrecarregar as instituições, especialmente a instituição educacional, com a
tarefa impossível de escolher os melhores. Nunca isto poder ia ser sua tarefa. Tal
tendência transforma nosso sistema educacional numa corrida, faz de um curso de
estudos uma carreira de obstáculos. Em vez de encorajar o estudante a dedicar-se a
seus estudos por amor a estudar, em vez de encorajá-lo a amar realmente o objeto de
sua pesquisa e a indagação, (23) é ele incitado a estudar em função de sua carreira
pessoal e levado a só adquirir aqueles conhecimentos que lhe sejam úteis para
transpor os obstáculos de que se deve livrar a fim de adiantar-se. (POPPER, 1974, p.
151).
A proposta platônica é massificar a educação através de um projeto que prevê o
resultado de cidadãos que atendam à conduta estabelecida pela ordem social e sua “natureza”.
Este plano educativo desconhece completamente os desejos e vontades dos alunos, tampouco
considera o desenvolvimento de uma postura consciente e crítica, os alunos não se formam e
adquirem autonomia, pelo contrário, eles são formados sob um modelo preestabelecido. A
educação platônica forma indivíduos dogmáticos e submissos. A crítica de Popper não só
atinge ao produto desta educação que termina formando indivíduos com este perfil. Ele
28831
também critica o sistema educativo, baseado na meritocracia, isto é, na busca pelos mais bem
dotados intelectualmente para que entrem num sistema de recompensa e promoções pessoais.
Popper seguindo o raciocínio de Platão observa as conclusões deste projeto educativo:
A lição que, assim, devemos aprender de Platão é exatamente a oposta à que ele nos
tenta ensinar. Ê uma lição que não deve ser esquecida. Embora fosse excelente o
diagnóstico sociológico de Platão, seu próprio desenvolvimento mostra que a
terapêutica por ele recomendada é pior do que o mal que tentava combater. Deter a
mudança política não é o remédio; não pode trazer felicidade. Nunca podemos
retornar à alegada inocência e beleza da sociedade fechada. Nosso sonho de um céu
não pode ser realizado na terra. Uma vez que comecemos a confiar em nossa razão,
a usar nossos poderes de crítica, uma vez que sintamos o apelo das
responsabilidades pessoais e, com estas, a responsabilidade de auxiliar a promoção
do conhecimento, não poderemos retornar a um estado de submissão implícita à
magia tribal. Para aqueles que comeram da árvore do conhecimento, o paraíso é
perdido (70). Quanto mais tentarmos regressar à era heroica do tribalismo, tanto
mais seguramente chegaremos à Inquisição, à Policia Secreta e a um banditismo
romantizado. Se começarmos pela supressão da razão e da verdade deveremos
terminar pela mais brutal e violenta destruição de tudo o que é humano. Não há volta
possível a um estado harmonioso da natureza. Se voltarmos, então deveremos
refazer o caminho integral — devemos retornar às bestas. (POPPER, 1974, p. 216217).
Os dogmáticos observam como natural a existência de preceitos incontestáveis, sem
dar-se conta que esta postura enceguese, afasta a sagacidade da observação porque “Os
dogmas não existem; o que existe é o mundo e a realidade a ser interpretada” (LUCKESI,
1990, p. 42). De fato, Platão prescreve a filosofia só para a elite dominante, não é casual que o
rei é filósofo, porque a filosofia permite um autoconhecimento, um pensar a realidade,
desvendar criticamente os valores e condutas e, propor novos conceitos que orientem a vida.
Se a filosofia fica acessível a todos, serão inevitáveis as críticas e a procura por mudanças
sócias e políticas, assim entendemos a Luckesi (1990, p.36) quando afirma que, “a filosofia é
uma forma de saber que é perigosa nas mãos dos cidadãos e, por isso, deve ser abolida, mas
que é importante nas mãos dos poderes constituídos”. E podemos lembrar a trajetória do
ensino de Filosofia no Brasil, que na década dos 60 saio de currículo, esta saída foi causada
por razões ideológicas que tentavam inibir o pensar crítico.
A educação tinha que seguir a divisão de castas sociais na polis platônica porque “No
fundo, os gregos alimentavam o sonho de uma sociedade que tivesse as ‘virtudes’ ou o
determinismo que emprestamos às sociedades de formigas, com as suas castas de trabalho e
de lazer biològicamente estabelecidas, ou seja, por ‘natureza’” (TEIXEIRA, 1955, p.32). Em
Platão, a justificação da superioridade racial estaria determinada pela teoria das Formas, com
efeito, quando se procuram consequências sociais entre a mitologia grega e a Teoria das
28832
Ideias ou das Formas platônica, surge a teoria de Platão que justifica a supremacia de uma
raça entre os homens:
Há, porém, urna diferença importante entre a mitologia grega e a Teoria das Formas
e Idéias de P1atão. Ao passo que os Gregos veneravam muitos deuses como
ancestrais de várias tribos ou famílias, a Teoria das Idéias exige que só haja urna
Forma ou Idéia do Homem pois uma das doutrinas centrais da Teoria das Formas é a
de que só existe uma Forma de cada “raça” ou “espécie” de coisas. A unidade da
Forma, que corresponde á unicidade do primogenitor, é elemento necessário a que a
teoria realize uma de suas mais importantes funções, a saber, explicar a similaridade
das coisas sensíveis, ao propor que as coisas similares são cópias ou impressões de
uma Forma. Assim, se houvesse duas Formas iguais ou similares, sua similaridade
forçar-nos-ia a admitir serem ambas cópias de um terceiro original, que, portanto,
viria a ser a única Forma verdadeira e singular. Ou, como diz Platão no Timeu: “A
semelhança seria assim explicada, mais precisamente, não como uma entre essas
duas coisas, mas com referência à coisa superior que é o seu protótipo”. (POPPER,
1974, p. 41).
A filosofia desenvolvida por Platão está baseada num dualismo de matéria e forma,
entre atividade material e atividade espiritual, e é coerente com seus pressupostos políticos,
portanto, a filosofia como contemplação e privilegio de poucos é produto dos pressupostos
filosóficos. Na análise da filosofia platônica, Popper encontra que a o totalitarismo nazista e a
de supremacia racial, encontram justificativa na Teoria das Formas de Platão. Enquanto o
politeísmo da mitologia grega justificava a diversidade cultural e aparência física entre os
seres humanos. A teoria das Formas ou Ideias hierarquiza os povos e classifica os seres
humanos, privilegiando a singularidade e superioridade de uma “raça” ou uma “espécie”
verdadeira, e, excluindo “cópias” que são inferiores, indignas e dispensáveis. Esta teoria que
procura o verdadeiro, o real, é origem do etnocentrismo, do racismo e todo tipo de
intolerância contra a diversidade da natureza humana.
Reflexões e considerações finais
A sociedade fechada, totalitária, ao procurar o total controle das pessoas sobrecarrega
funções na instituição educacional. E faz dela um apêndice de seu poder político, evitando o
desenvolvimento da autonomia, do debate, obrigando a desenvolver um currículo autoritário e
fora de contexto. E essa tendência converte nosso sistema educacional num campo de
competição desleal, onde se medem os resultados e não os esforços, porque avaliamos
pessoas com diferentes condições para desempenhar os mesmos resultados.
Uma educação pautada na meritocracia converte à educação em um campo de batalha,
no qual o mérito estará com os vencedores e a compensação será em forma de dinheiro, status
28833
ou privilégios. Esta educação afasta a colaboração porque é desvantajosa para ganhar. Sendo
assim, o desenvolvimento de habilidades, destrezas e conhecimentos que não fazem parte do
currículo que entra na competição devem ser afastados.
Em realidade, as regras que entram em jogo são as regras do mercado, quem atende
melhor as exigências deste, se dará melhor na sociedade, triunfará. Sendo assim, “Educar
seria primordialmente isto: instruir e desenvolver faculdades que habilitem o educando a
integrar o mercado de trabalho o mais vantajosamente possível” (SINGER, 1996, p. 2). A
compensação ao esforço educativo será o trabalho garantido, bom salário, status e muitas
possibilidades de enriquecimento.
A educação segue as regras do mercado e é ele que impõe as regras e dirige o jogo. O
denominado livre mercado promove a concorrência, e só os mais fortes sobrevivem. Em
outras palavras, a educação está focada no aumento da produtividade, que se torna o fator
mais importante para medir o índice de desenvolvimento de um país. Mas, esta é uma medida
de crescimento econômico: autoritária e violenta, que parte de condições diferentes e já sabe
antes de iniciar a competição quem serão os perdedores.
Impor uma forma de crescimento que sacrifica de antemão uma parcela da população,
que entra na competição econômica sem condições significa perenizar o sacrifício de alguns
em benefício de outros. Mesmo sabendo que esse sacrifício trará resultados grandiosos, como
a filosofia grega, não é uma proposta ética. O crescimento da humanidade não pode ter meios
indignos para alcançar fins nobres. Os fins e os meios devem se confundir na mesma
dignidade e respeito.
A sociedade fechada tende a eliminar a iniciativa e a originalidade, por isso a
educação deve permitir a reflexão sobre os dados concretos do dia-a-dia, ser crítica e
possibilitar ao ser humano uma orientação segura para a sua prática. Popper nos encoraja para
marchar para o desconhecido, o incerto e o inseguro, utilizando a razão de que pudermos
dispor para planejar tanto a segurança como a liberdade no processo de construção da
democracia.
O alvo fundamental da educação platônica era deter a mudança política. Mas, para
poder rejeitar regimes totalitários, cabe à educação permitir que cada ser humano possa e deva
aprender a pensar criticamente o mundo, afastando o dogmatismo e a submissão. Devemos
aspirar a uma educação que observe o sentido e significado dos valores que norteiam a vida.
Por isso ressaltamos as palavras de Luckesi,
28834
Cabe a um educador questionar permanentemente sobre o objetivo de seu trabalho,
sobre os sujeitos de sua prática, sobre o sentido dos procedimentos que utiliza sobre
o que é conhecimento, sobre efetividade, sobre métodos, sobre os conteúdos que
veicula, e tantos outros objetos que estão comprometidos com sua prática
(LUCKESI, 1990, p.42).
A educação democrática é contrária à educação platônica, ela aspira a ser uma
verdadeira “sociedade aberta”, onde todos possam desenvolver suas qualidades e sejam
respeitados na sua liberdade, igualdade ante a lei e com fraternidade.
REFERÊNCIAS
ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
CONSTITUIÇÂO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Barueri, SP: Manole,
2003.
FRAUCHES, C. (Org.) LDB anotada e legislação complementar: lei n. 9394 de 20 de
dezembro de 1996. Marília, SP: CM Consultoria de administração, 2002.
LUCKESI, Cipriano C. Filosofia, Exercício do Filosofar e prática educativa. Em Aberto,
Brasília, n.45, p. 35-43, jan/mar. 1990.
PLATÃO. A república ou sobre a justiça. Belém: EDUFPA, 2000.
POPPER. K. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP,
1974.
SAKAMOTO, B. Platão como origem do totalitarismo. Revista Pesquisa em Foco em
Educação e Filosofia, v. 5, p. 16-30, 2012.
SINGER, P. Poder, política e educação. Revista Brasileira de Educação, Jan./fev./abr., Nº
01, p. 1-15, 1996.
TEIXEIRA, A. Ciência e humanismo. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de
Janeiro, v. 24, n.60, p. 30-44, 1955.
Download