Rigor em Contraciclo O enquadramento definido no Tratado da União Europeia no domínio da política macroeconómica - preços estáveis; finanças públicas e condições monetárias sólidas; e balança de pagamentos sustentável - reflecte o entendimento de que políticas monetária e orçamental, orientadas para a estabilidade, predominantemente baseadas em regras, são preferíveis à alternativa de um comportamento essencialmente discricionário das autoridades, e que aquelas favorecem um ambiente propício ao crescimento e desenvolvimento económicos. Neste contexto, os Estadosmembros da União Europeia decidiram que a política orçamental seria uma competência dos Estados-membros, mas que a condução das políticas orçamentais nacionais deveria ser, no entanto, condicionada por um conjunto de regras de disciplina, assim como de procedimentos de coordenação e acompanhamento, comuns a todos os Estados-membros. A generalidade destas regras e procedimentos foram definidos no próprio Tratado da União Europeia. O Pacto de Estabilidade e Crescimento clarificou estes procedimentos e estabeleceu o compromisso político de que seriam aplicados de forma estrita. Portugal foi um dos principais beneficiários deste novo regime económico. A queda de taxas de juro associadas à perspectiva deste regime foi essencial para a evolução dos saldos das contas públicas entre 1996 e 1999, ao reduzir substancialmente a despesas com juros (a par da venda maciça de activos públicos). Porém, hoje em dia, Portugal é também, função do enorme crescimento da Despesa Pública, o país que mais dificuldade terá em cumprir o Pacto de Estabilidade e Crescimento, sobretudo agora que a economia Europeia se encontra estagnada. Embora seja hoje consensual que a Despesa Pública não deve ser usada como instrumento indutor do crescimento, a generalidade dos estudos apontam para a sua eficácia na estabilização de curto prazo. Isto é, no curto prazo, uma política de contenção da Despesa Pública “arrefe” a economia, o que é particularmente problemático quando esta manifesta importantes sinais de abrandamento, como é o caso da conjuntura actual. Este é um risco que terá inevitavelmente de ser corrido hoje, embora não devamos esquecer que, no passado, também as correcções da trajectória orçamental em contraciclo terão contribuído para acentuar a magnitude e profundidade dos nossos ciclos depressivos. Para além do exemplo dramático do início dos anos oitenta, o que se passou em Portugal há dez anos, ilustra claramente os riscos que agora se correm e deverá servir de lição para que o ajustamento que agora surge como inevitável, a contraciclo, seja o último nessas circunstâncias. Felizmente, temos experiência das dificuldades, mas também do sucesso de processos de ajustamento em períodos recessivos. De facto, em 1991 a Despesa Pública apresentou uma taxa de crescimento real de cerca de 11%, função, nomeadamente, do então famoso “novo sistema retributivo” da função pública, o que implicou uma forte correcção posterior, com o início de uma política de muito maior rigor financeiro que levou a uma taxa de crescimento real da Despesa negativa em 1994. Para além dos méritos inegáveis dessa política (que mais tarde iria ser decisiva para a nossa entrada na zona Euro), não é menos verdade que o país teve de prosseguir uma política de contenção numa altura em que os argumentos de estabilização macroeconómica ditariam o contrário. O Governo da altura optou, e bem, por uma política de rigor, mas o país pagou o preço dos erros de 1990/91 com 1 um crescimento real em 1993 e 94 abaixo do que teria sido possível sem o episódio de 1991. A política macroeconómica foi de facto restritiva na altura em que a conjuntura já indiciava uma recessão. Agora, dez anos volvidos, passa-se algo de muito parecido. A política orçamental terá de ser restritiva numa altura em que a economia já mostra sinais de sério abrandamento e em que muitos países da zona euro têm muito mais margem de manobra para deixar adequadamente funcionar os respectivos estabilizadores automáticos. É assim essencial que se aproveite o quase unanimismo actual sobre os méritos de uma política de rigor na Despesa Pública (que não existia em 1992, 1993 e 1994 por parte de alguns influentes opinion makers posteriormente “reciclados”) para se encetarem as medidas de fundo que impeçam a nossa sina colectiva de “apertar o cinto” nas piores alturas. Em 1983 o FMI impôs o rigor a contraciclo e em 1992 o desígnio da adesão ao euro impôs novamente a contenção na pior altura. Esperemos que 2003 fique para a história como o último episódio de uma boa política financeira do Estado no “timing” menos adequado. Resta-nos a esperança de que, tal como em 1992, se transfome a necessidade em engenho e se inicie a tão propalada e sempre adiada reforma da administração pública. O Orçamento de Estado para 2003 terá de ser, inexoravelmente, a expressão financeira dessa vontade. Deverá mesmo, ser, em termos de realismo e afirmação de vontade, o oposto do Orçamento aprovado há um ano que ficará para a história, lamentavelmente, como a peça financeira mais irrealista da nossa já madura democracia. 2