Girafas, mariposas e anacronismos didáticos

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OPINIÃO
OPINIÃO
Isabel Rebelo Roque*
Girafas, mariposas e
anacronismos didáticos
Ao tratar da evolução das espécies,
os livros didáticos raramente
deixam de usar dois exemplos
clássicos: o da explicação
de Lamarck para o tamanho
do pescoço das girafas
(e seu contraponto darwinista)
e o da seleção natural
em mariposas dos bosques
da Inglaterra durante a Revolução
Industrial. Nos últimos anos,
as duas histórias geraram calorosas
polêmicas na mídia científica
internacional, mas nada foi dito
a respeito no Brasil.
Tais exemplos permitem uma
complexa discussão que envolve
interesses e responsabilidades
da comunidade científica
sobre o modo como divulga
naturalista e evolucionista
francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) lançou seu livro Philosophie zoologique em
1809, ano do nascimento de
Charles Darwin (1809-1882).
Para explicar a evolução dos seres vivos, Lamarck considerou
duas hipóteses: a do uso e desuso
e a da transmissão dos caracteres
adquiridos. Segundo essas idéias,
os seres vivos seriam capazes de
se adaptar a pressões impostas
pelo ambiente, usando para isso
algumas partes do corpo mais do
que outras. As mais usadas se desenvolveriam mais; as menos usadas tenderiam a se atrofiar ou até
desaparecer. Daí o nome ‘uso e
desuso’. Ele afirmava ainda que
tais modificações seriam transmitidas à descendência. Até então
nada se sabia sobre o papel da herança genética na transmissão de
caracteres entre gerações: Gregor
Mendel (1822-1884), que lançou
as bases da genética, nem havia
nascido.
O exemplo clássico utilizado
para explicar a teoria lamarckista
é o do pescoço das girafas. Costumamos ler nos livros didáticos
O
que, segundo Lamarck, os ancestrais das girafas teriam pescoço
curto. A necessidade de alcançar
a copa das árvores, em especial
em épocas de escassez, quando só
restariam as folhas mais altas, teria provocado o constante exercício de esticar o pescoço, e essa
característica – ‘pescoço alongado’ – seria transmitida à descendência. O resultado, após milhares de anos, teria sido o que vemos hoje: girafas com pescoço
longo e musculoso.
Em geral, os mesmos livros
apresentam o contraponto darwinista: indivíduos nasceriam com
pescoços de tamanhos ligeiramente diferentes. Os ‘privilegiados’ teriam vantagem na hora de
alcançar as folhas mais altas, o
que, em épocas de escassez, seria
decisivo para a sobrevivência.
Assim, girafas nascidas com pescoço mais longo teriam maior
chance de sobreviver e de transmitir a característica à prole. Belo
e didático exemplo, não fossem
alguns senões. O primeiro deles é
que Lamarck jamais deu a esse
exemplo o destaque que tem recebido há quase 200 anos.
– ou deixa de divulgar
– seus estudos e conclusões.
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* A autora, graduada em letras e medicina veterinária,
é editora de livros didáticos (Editora Ática)
OPINIÃO
Tentando achar
o fio da meada
O estranho caminho seguido pelo exemplo do pescoço da girafa,
de mero parágrafo a ‘carro-chefe’
da teoria lamarckiana, foi detalhado pelo paleontólogo e divulgador da ciência Stephen Jay
Gould (1941-2002) no ensaio ‘The
tallest tale’ (alusão à expressão
tall tale, história cujos detalhes
são difíceis de engolir), publicado originalmente na Natural
History Magazine (p. 18, maio de
1996). Nele, Gould tenta retomar
o fio da meada. Observa que, na
Philosophie zoologique, o parágrafo sobre as girafas aparece em
um capítulo onde estão muitos
outros exemplos a que Lamarck
possivelmente atribuiu maior importância.
Quanto a Darwin, a primeira
edição do seu A origem das espécies (1859) não faz qualquer menção ao pescoço da girafa, mas à
sua cauda! Gould especula que o
pescoço da girafa teria assumido
importância graças ao naturalista inglês Saint George Mivart
(1827-1900), que, em crítica ao
darwinismo publicada em 1871
(The genesis of species), usou esse
exemplo em sua argumentação.
Em reação ao ataque de Mivart,
Darwin acrescentou à sexta e última edição de A origem das espécies (1872) um capítulo em que
discorre sobre o assunto. Assim a
história ganhou os livros escolares – e em muitos deles ainda é
mantida.
Outros dados, resultantes da
observação de girafas em seu
hábitat (as savanas africanas), ajudam a derrubar o ‘conto’ das folhinhas mais altas em tempos de
escassez. Na verdade, a importância do tamanho e da robustez do
pescoço desses animais reside em
outras áreas. Entre os machos, o
pescoço é uma ‘arma’ de dominação e uma garantia da preferência das fêmeas, sendo usado em
duelos às vezes fatais. As girafas
também usam o pescoço como
A velha história do pescoço esticado [das girafas]
perpetuou-se talvez porque adoremos
uma linda história, ainda que falsa, e talvez
porque não estejamos habituados a questionar
pretensas autoridades – no caso, a dos livros
‘torre de observação’, para vigiar
a aproximação de predadores, por
exemplo. Esses dois usos já representam, segundo os cientistas, fatores relevantes para a importância do comprimento do pescoço.
Darwin, aliás, os cita no capítulo
citado, ao afirmar que “a preservação de cada espécie raramente
é determinada por apenas uma
vantagem, mas pela associação de
todas elas, grandes e pequenas”.
Gould fecha seu ensaio explicando que a velha história do pescoço esticado perpetuou-se talvez
porque adoremos uma linda história, ainda que falsa, e talvez
porque não estejamos habituados
a questionar pretensas autoridades – no caso, a dos livros.
Ainda em 1996, os zoólogos
Robert Simmons e Lue Scheepers
publicaram o artigo ‘Winning by
a neck: sexual selection in the
evolution of giraffe’ (‘Vencendo
por um pescoço: seleção sexual
na evolução da girafa’) na American Naturalist (148, p. 771). Segundo eles, as girafas, na estação
seca, alimentam-se dos arbustos.
É na estação das chuvas, quando
não se espera competição, que se
voltam para o alto das acácias. Observaram ainda que as fêmeas
passam metade de seu tempo alimentando-se com o pescoço em
posição horizontal (comportamento tão típico que permite
identificar o sexo do animal a distância). Além disso, ambos os sexos alimentam-se com maior freqüência mantendo o pescoço cur-
vado para baixo. Tudo isso, afirmam, sugere que o tamanho do
pescoço não teria evoluído especificamente devido à busca de alimento em pontos mais elevados.
Para refutar a objeção de que a
competição entre machos não
explicaria por que as fêmeas têm
pescoços longos, Simmons e
Scheepers argumentam que isso
resultaria da correlação genética
entre os sexos, e que outras espécies exibem correlações similares. Ou seja, o pescoço longo das
fêmeas teria vindo como uma espécie de ‘brinde’.
Muito barulho por nada?
Afinal, qual é a importância de
tudo isso? O lamarckismo já não
foi derrubado? Sim, é um fato.
Acontece que não se trata apenas
de preservar a memória de um
cientista.
As teorias
sobre a
evolução
do pescoço
das girafas
ganharam
um destaque
exagerado
dezembro de 2003 • CIÊNCIA HOJE • 65
OPINIÃO
O exemplo das mariposas
do gênero Biston, muito citado
em livros didáticos,
também é hoje muito criticado
Quando falamos em atualizar
as informações em materiais de
divulgação científica, cursos e livros didáticos, falamos em pôr em
evidência um problema maior: o
da ‘cristalização’ de conceitos, em
ciência e em outros campos. Falamos, ainda, do problema crônico da não-ventilação das informações a que professores e autores
de material didático têm acesso –
ambos têm formação superior,
mas em geral não são cientistas.
Falamos do risco de apresentar a ciência como instância sagrada e fechada, que permanece
imutável, a salvo de reavaliações
e, ao mesmo tempo (como revela
a história das girafas), tão vulnerável a ponto de cair em ‘armadilhas’, pela perda da perspectiva
histórica. Falamos, ainda, do comodismo de nos agarrarmos a
modelos científicos que seriam
excelentes, não fossem eles inconsistentes como modelos.
À luz dos conhecimentos genéticos atuais, contrapor, em um
livro, a explicação de Darwin
para o pescoço da girafa à de
Lamarck significa ridicularizar o
segundo, também evolucionista,
sem levar em conta o momento
histórico em que viveu. Ou seja,
conduz o leitor à adesão imediata
ao darwinismo, sem lhe dar chance
para reflexão, por falta de maiores
subsídios. É, em outras palavras,
manipulação. No Brasil, isso se torna mais grave pela morosidade da
divulgação, aqui, das vozes dissonantes publicadas lá fora.
As ‘ex-mariposas’:
outro exemplo clássico
A jornalista Judith Hooper lançou,
em 2002, na Inglaterra (e depois
nos Estados Unidos), o livro Of
moths and men (Sobre mariposas
e homens). A obra utiliza outro
exemplo clássico de evolução
para lançar luz sobre um tema
antes restrito ao círculo dos que
defendem as idéias criacionistas
– mais modernamente, os teóricos do ‘design inteligente’.
Nas aulas de ciências e biologia, aprendemos que o chamado
‘melanismo industrial’ teria alterado o padrão de cor de populações de mariposas do gênero
Biston, encontradas na região de
Manchester (Inglaterra). Antes da
Revolução Industrial, grande
quantidade de líquens (associação entre algas e fungos) cobria
as árvores das florestas habitadas
por tais mariposas, conferindo aos
seus troncos uma cor esbranquiçada. O padrão de cor predomi-
Quando falamos em atualizar as informações
em materiais de divulgação científica, cursos
e livros didáticos, falamos em pôr em evidência
um problema maior: o da ‘cristalização’ de conceitos,
em ciência e em outros campos do conhecimento
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nante nessas mariposas, na época,
era claro, e elas facilmente se confundiriam com a cor dos líquens, ao
repousar sobre os troncos.
Com o advento das indústrias,
a partir de 1850, o ar carregado
de fuligem e outros poluentes provocou a morte dos líquens e o
escurecimento dos troncos. Como
resultado, a vantagem proporcionada pela cor clara teria se invertido: ao repousar sobre troncos escurecidos, as mariposas seriam
avistadas facilmente por predadores (no caso, alguns pássaros).
Com isso, a variedade de cor escura, de menor proporção, teria
passado a predominar, graças ao
fato de se camuflar nos troncos
escuros e passar despercebida
aos predadores.
A partir de 1950, a adoção de
leis de controle da emissão de
poluentes inverteu novamente o
padrão: troncos com novas populações de líquens, portanto mais
claros, passaram a esconder melhor mariposas de cor clara. Nos
livros didáticos, esse exemplo costuma vir acompanhado da descrição de uma série de experimentos do biólogo Bernard Kettlewell,
da Universidade de Oxford, na
década de 1950. Muitas vezes, os
livros trazem fotografias que registram os experimentos (ou que
reproduzem os registros originais), mostrando mariposas Biston claras e escuras em repouso
sobre troncos de árvores. Os livros
relatam que Kettlewell, nos experimentos, coletou mariposas
com os dois padrões de cor e os
liberou em ambientes controlados onde havia troncos também
com diferentes colorações. Ao
recapturar as sobreviventes, ele
teria constatado o que já se esperava: o índice de sobrevivência era
diretamente relacionado ao padrão de cor dos troncos.
Tudo estaria perfeito, não fossem, como no caso das girafas,
alguns senões. O primeiro foi a
descoberta de que os experimentos não transcorreram exa-
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tamente como foram descritos.
Houve um ‘empurrãozinho’, pois
as mariposas não estavam vivas:
foram coladas aos troncos. O segundo é que o comportamento das
mariposas Biston na natureza não
se encaixa tão perfeitamente no
modelo descrito. O terceiro é que
a relação predomínio de uma cor/
grau de poluição do ar não se
manteve como o esperado.
O livro de Hooper não é o primeiro a ‘devassar’ o caso Kettlewell. Há cinco anos, por exemplo, Michael Majerus fez o mesmo em Melanism: evolution in
action (Melanismo: evolução em
ação). Em resenha sobre esse livro, publicada na revista Nature
(396, p. 35, 1998), Jerry Coyne,
do Departamento de Ecologia e
Evolução da Universidade de Chicago, compara a decepção diante
da verdade sobre os experimentos de Kettlewell ao que sentiu
quando criança ao saber que Papai Noel não existia.
Segundo Coyne, o livro de
Majerus é o primeiro a reunir os
pontos criticáveis no trabalho de
Kettlewell. O mais grave é que as
mariposas Biston, em condições
naturais, provavelmente não repousam sobre troncos – em mais
de 40 anos de estudos sobre seus
hábitos, apenas duas foram vistas
fazendo isso. O local preferido
continua um mistério, mas acredita-se que seja o alto das copas
das árvores. Só isso, afirma Coyne,
invalidaria os experimentos, já que
colocar as mariposas sobre os troncos as tornaria altamente visíveis,
o que aumentaria artificialmente
a predação. Além disso, Kettlewell
expôs as mariposas durante o dia,
quando em geral elas escolhem locais de repouso à noite.
Mas outro fator compromete a
história: na verdade, o novo aumento na proporção da variedade clara ocorreu bem antes da
recolonização dos troncos pelos
líquens (que supostamente favoreceriam a camuflagem das
mariposas claras). E mais: o au-
A ciência não tem de ser ensinada como a arte
do ‘jeitinho’, mas como um campo
do conhecimento sujeito a falhas,
aperfeiçoamentos e inesperadas complexidades
diante do que parecia simples e ‘didático’
mento e depois a redução de mariposas escuras também ocorreram em áreas industriais dos
Estados Unidos, onde, porém, não
houve alteração na incidência
de líquens – é o que relativiza
bastante o papel destes na história toda.
Em resenha sobre o livro de
Hooper no The New York Times
(18 de junho de 2002), o editor de
ciência Nicholas Wade compara
o ‘empurrão’ de Kettlewell a uma
‘piada’ do grupo inglês Monty
Python: as mariposas, mortas, não
passavam de ex-mariposas.
E agora: descartar
ou não o exemplo?
Majerus, em seu livro, admite as
inúmeras falhas do modelo, mas
ainda assim o considera didaticamente útil. Jerry Coyne, entretanto, pondera que esse não é o
melhor exemplo a ser usado em
sala de aula, devido a seus pontos
fracos. Essa posição fez de Coyne,
à sua revelia, uma ‘arma’ dos criacionistas contra a teoria da evolução. Ele sugere como mais apropriado o trabalho mais recente dos
ecólogos Peter e Rosemary Grant
sobre a evolução do bico dos
tentilhões das ilhas Galápagos –
tema de um livro de leitura fácil
e agradável, já traduzido para o
português: O bico do tentilhão:
uma história da evolução no nosso tempo (Rocco, 1995), do jornalista Jonathan Weiner.
O debate sobre usar ou não o
exemplo das mariposas para fins
didáticos está longe de uma solução fácil. O biólogo evolucionário
David Rudge, da Universidade
Western Michigan, escreveu que
manter a história no espaço escolar teria inúmeras vantagens. Enquanto Coyne diz que suas contradições inviabilizam o uso pedagógico, Rudge acredita que ela
constitui excelente veículo para
apresentar a estudantes o conceito de seleção natural. Para ele,
expor as discrepâncias envolvidas no assunto permitiria mostrar a natureza da ciência como
processo.
Novamente, trata-se de uma
questão delicada, na qual estão
em jogo aspectos como corporativismo da comunidade científica, necessidade de controle, manipulação, de um lado, e desinformação, de outro. Como no
exemplo da girafa – perfeito, didático, mas falso –, recorrer às
mariposas de Manchester é tentador: permite trabalhar, de modo simples, conceitos complexos
como evolução e seleção natural.
Mas insistir neles é falsear informações e, de quebra, passar a alunos e professores uma idéia dogmática e nem um pouco ética da
ciência. A ciência não tem de ser
ensinada como a arte do ‘jeitinho’,
mas como um campo do conhecimento sujeito a falhas, aperfeiçoamentos e inesperadas complexidades diante do que parecia
simples e ‘didático’.
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dezembro de 2003 • CIÊNCIA HOJE • 67
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