biologia Moderna plus biologia das Populações Parte II Unidade B Capítulo 10 Teoria moderna da evolução 3 amabis martho 1 leitura GIRAFAS, MARIPOSAS E ANACRONISMOS DIDÁTICOS Lamarck jamais deu ao exemplo das girafas o destaque que tem recebido há quase 200 anos Ao tratar da evolução das espécies, os livros didáticos raramente deixam de usar dois exemplos clássicos: o da explicação de Lamarck para o tamanho do pescoço das girafas (e seu contraponto darwinista) e o da seleção natural em mariposas dos bosques da Inglaterra durante a Revolução Industrial. O naturalista e evolucionista francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) lançou seu livro Philosophie Zoologique em 1809, ano do nascimento de Charles Darwin (1809-1882). Para explicar a evolução dos seres vivos, Lamarck considerou duas hipóteses: a do uso e desuso e a da transmissão dos caracteres adquiridos. Segundo essas ideias, os seres vivos seriam capazes de se adaptar a pressões impostas pelo ambiente, usando para isso algumas partes do corpo mais do que outras. As mais usadas se desenvolveriam mais; as menos usadas tenderiam a se atrofiar ou até desaparecer. Daí o nome “uso e desuso”. Ele afirmava ainda que tais modificações seriam transmitidas à descendência. Até então nada se sabia sobre o papel da herança genética na transmissão de caracteres entre gerações: Gregor Mendel (1822-1884), que lançou as bases da genética, nem havia nascido. www.modernaplus.com.br O exemplo clássico utilizado para explicar a teoria lamarckista é o do pescoço das girafas. Costumamos ler nos livros didáticos que, segundo Lamarck, os ancestrais das girafas teriam pescoço curto. A necessidade de alcançar a copa das árvores, em especial em épocas de escassez, quando só restariam as folhas mais altas, teria provocado o constante exercício de esticar o pescoço, e essa característica — “pescoço alongado” — seria transmitida à descendência. O resultado, após milhares de anos, teria sido o que vemos hoje: girafas com pescoço longo e musculoso. Em geral, os mesmos livros apresentam o contraponto darwinista: indivíduos nasceriam com pescoços de tamanhos ligeiramente diferentes. Os “privilegiados” teriam vantagem na hora de alcançar as folhas mais altas, o que, em épocas de escassez, seria decisivo para a sobrevivência. Assim, girafas nascidas com pescoço mais longo teriam maior chance de sobreviver e de transmitir a característica à prole. Belo e didático exemplo, não fossem alguns senões. O primeiro deles é que Lamarck jamais deu a esse exemplo o destaque que tem recebido há quase 200 anos. Tentando achar o fio da meada O estranho caminho seguido pelo exemplo do pescoço da girafa, de mero parágrafo a “carro-chefe” da teoria lamarckiana, foi detalhado pelo paleontólogo e divulgador da ciência Stephen Jay Gould (1941-2002) no ensaio “The tallest Moderna plus Parte II Unidade B Capítulo 10 Teoria moderna da evolução biologia biologia das Populações 3 amabis martho 2 tale” (alusão à expressão tall tale, história cujos detalhes são difíceis de engolir), publicado originalmente na Natural History Magazine (p. 18, maio de 1996). Nele, Gould tenta retomar o fio da meada. Observa que, na Philosophie Zoologique, o parágrafo sobre as girafas aparece em um capítulo onde estão muitos outros exemplos a que Lamarck possivelmente atribuiu maior importância. Quanto a Darwin, a primeira edição do seu A origem das espécies (1859) não faz qualquer menção ao pescoço da girafa, mas à sua cauda! Gould especula que o pescoço da girafa teria assumido importância graças ao naturalista inglês Saint George Mivart (1827-1900), que, em crítica ao darwinismo publicada em 1871 (The Genesis of Species), usou esse exemplo em sua argumentação. Em reação ao ataque de Mivart, Darwin acrescentou à sexta e última edição de A origem das espécies (1872) um capítulo em que discorre sobre o assunto. Assim, a história ganhou os livros escolares — e em muitos deles ainda é mantida. Outros dados, resultantes da observação de girafas em seu hábitat (as savanas africanas), ajudam a derrubar o “conto” Entre os machos, o das folhinhas mais altas em tempos de escassez. Na verdade, pescoço é uma “arma” a importância do tamanho e da robustez do pescoço desses de dominação e uma animais reside em outras áreas. Entre os machos, o pescoço é garantia da preferência uma “arma” de dominação e uma garantia da preferência das fêmeas, sendo usado em duelos às vezes fatais. As girafas tamdas fêmeas, sendo bém usam o pescoço como “torre de observação”, para vigiar usado em duelos às a aproximação de predadores, por exemplo. Esses dois usos vezes fatais já representam, segundo os cientistas, fatores relevantes para a importância do comprimento do pescoço. Darwin, aliás, os cita, ao afirmar que “a preservação de cada espécie raramente é determinada por apenas uma vantagem, mas pela associação de todas elas, grandes e pequenas”. Gould fecha seu ensaio explicando que a velha história do pescoço esticado perpetuou-se talvez porque adoremos uma linda história, ainda que falsa, e talvez porque não estejamos habituados a questionar pretensas autoridades — no caso, a dos livros. www.modernaplus.com.br Ainda em 1996, os zoólogos Robert Simmons e Lue Scheepers publicaram o artigo “Winning by a Neck: Sexual Selection in the Evolution of Giraffe” (“Vencendo por um pescoço: seleção sexual na evolução da girafa”) na American Naturalist (148, p. 771). Segundo eles, as girafas, na estação seca, alimentam-se dos arbustos. É na estação das chuvas, quando não se espera competição, que se voltam para o alto das acácias. Observaram ainda que as fêmeas passam metade de seu tempo alimentando-se com o pescoço em posição horizontal (comportamento tão típico que permite identificar o sexo do animal a distância). Além disso, ambos os sexos alimentam-se com maior frequência mantendo o pescoço curvado para baixo. Tudo isso, afirmam, sugere que o tamanho do pescoço não teria evoluído especificamente devido à busca de alimento em pontos mais elevados. Para refutar a objeção de que a competição entre machos não explicaria por que as fêmeas têm pescoços longos, Simmons e Scheepers argumentam que isso resultaria da correlação genética entre os sexos, e que outras espécies exibem correlações similares. Ou seja, o pescoço longo das fêmeas teria vindo como uma espécie de “brinde”. Muito barulho por nada? Afinal, qual é a importância de tudo isso? O lamarckismo já não foi derrubado? Sim, é um fato. Acontece que não se trata apenas de preservar a memória de um cientista. Moderna plus Parte II Unidade B Capítulo 10 Teoria moderna da evolução biologia biologia das Populações 3 amabis martho 3 Quando falamos em atualizar as informações em materiais de divulgação científica, cursos e livros didáticos, falamos em pôr em evidência um problema maior: o da “cristalização” de conceitos, em ciência e em outros campos. Falamos, ainda, do problema crônico da não ventilação das informações a que professores e autores de material didático têm acesso — ambos têm formação superior, mas em geral não são cientistas. Falamos do risco de apresentar a ciência como instância sagrada e fechada, que permanece imutável, a salvo de reavaliações e, ao mesmo tempo (como revela a história das girafas), tão vulnerável a ponto de cair em “armadilhas”, pela perda da perspectiva histórica. Falamos, ainda, do comodismo de nos agarrarmos a modelos científicos que seriam excelentes, não fossem eles inconsistentes como modelos. À luz dos conhecimentos genéticos atuais, contrapor, em um livro, a explicação de Darwin para o pescoço da girafa à de Lamarck significa ridicularizar o segundo, também evolucionista, sem levar em conta o momento histórico em que viveu. Ou seja, conduz o leitor à adesão imediata ao darwinismo, sem lhe dar chance para reflexão, por falta de maiores subsídios. É, em outras palavras, manipulação. No Brasil, isso se torna mais grave pela morosidade da divulgação, aqui, das vozes dissonantes publicadas lá fora. As “ex-mariposas”: outro exemplo clássico A jornalista Judith Hooper lançou, em 2002, na Inglaterra (e depois nos Estados Unidos), o livro Of Moths and Men (Sobre mariposas e homens). A obra utiliza outro exemplo clássico de evolução para lançar luz sobre um tema antes restrito ao círculo dos que defendem as ideias criacionistas — mais modernamente, os teóricos do “design inteligente”. Nas aulas de Ciências e Biologia, aprendemos que o chamado “melanismo industrial” teria alterado o padrão de cor de populações de mariposas do gênero Biston, encontradas na região de Manchester (Inglaterra). Antes da Revolução Industrial, grande quantidade de liquens (associação entre algas e fungos) cobria as árvores das florestas habitadas por tais mariposas, conferindo aos seus troncos uma cor esbranquiçada. O padrão de cor predominante nessas mariposas, na época, era claro, e elas facilmente se confundiriam com a cor dos liquens, ao repousar sobre os troncos. www.modernaplus.com.br Com o advento das indústrias, a partir de 1850, o ar carregado de fuligem e outros poluentes provocou a morte dos liquens e o escurecimento dos troncos. Como resultado, a vantagem proporcionada pela cor clara teria se invertido: ao repousar sobre troncos escurecidos, as mariposas seriam avistadas facilmente por predadores (no caso, alguns pássaros). Com isso, a variedade de cor escura, de menor proporção, teria passado a predominar, graças ao fato de se camuflar nos troncos escuros e passar despercebida aos predadores. Houve um “empurrãozinho”, pois as mariposas não estavam vivas: foram coladas aos troncos A partir de 1950, a adoção de leis de controle da emissão de poluentes inverteu novamente o padrão: troncos com novas populações de liquens, portanto mais claros, passaram a esconder melhor mariposas de cor clara. Nos livros didáticos, esse exemplo costuma vir acompanhado da descrição de uma série de experimentos do biólogo Bernard Kettlewell, da Universidade de Oxford, na década de 1950. Muitas vezes, os livros trazem fotografias que registram os experimentos (ou que reproduzem os registros originais), mostrando Moderna plus Parte II Unidade B Capítulo 10 Teoria moderna da evolução biologia biologia das Populações 3 amabis martho 4 mariposas Biston claras e escuras em repouso sobre troncos de árvores. Os livros relatam que Kettlewell, nos experimentos, coletou mariposas com os dois padrões de cor e liberou-as em ambientes controlados onde havia troncos também com diferentes colorações. Ao recapturar as sobreviventes, ele teria constatado o que já se esperava: o índice de sobrevivência era diretamente relacionado ao padrão de cor dos troncos. Tudo estaria perfeito, não fossem, como no caso das girafas, alguns senões. O primeiro foi a descoberta de que os experimentos não transcorreram exatamente como foram descritos. Houve um “empurrãozinho”, pois as mariposas não estavam vivas: foram coladas aos troncos. O segundo é que o comportamento das mariposas Biston na natureza não se encaixa tão perfeitamente no modelo descrito. O terceiro é que a relação predomínio de uma cor/grau de poluição do ar não se manteve como o esperado. O livro de Hooper não é o primeiro a “devassar” o caso Kettlewell. Há cinco anos, por exemplo, Michael Majerus fez o mesmo em Melanism: Evolution in Action (Melanismo: evolução em ação). Em resenha sobre esse livro, publicada na revista Nature (396, p. 35, 1998), Jerry Coyne, do Departamento de Ecologia e Evolução da Universidade de Chicago, compara a decepção diante da verdade sobre os experimentos de Kettlewell ao que sentiu quando criança ao saber que Papai Noel não existia. Segundo Coyne, o livro de Majerus é o primeiro a reunir os pontos criticáveis no trabalho de Kettlewell. O mais grave é que as mariposas Biston, em condições naturais, provavelmente não repousam sobre troncos — em mais de 40 anos de estudos sobre seus hábitos, apenas duas foram vistas fazendo isso. O local preferido continua um mistério, mas acredita-se que seja o alto das copas das árvores. Só isso, afirma Coyne, invalidaria os experimentos, já que colocar as mariposas sobre os troncos as tornaria altamente visíveis, o que aumentaria artificialmente a predação. Além disso, Kettlewell expôs as mariposas durante o dia, quando em geral elas escolhem locais de repouso à noite. O debate sobre usar ou não o exemplo das mariposas para fins didáticos está longe de uma solução fácil Mas outro fator compromete a história: na verdade, o novo aumento na proporção da variedade clara ocorreu bem antes da recolonização dos troncos pelos liquens (que supostamente favoreceriam a camuflagem das mariposas claras). E mais: o aumento e depois a redução de mariposas escuras também ocorreram em áreas industriais dos Estados Unidos, onde, porém, não houve alteração na incidência de liquens — é o que relativiza bastante o papel destes na história toda. www.modernaplus.com.br Em resenha sobre o livro de Hooper no The New York Times (18 de junho de 2002), o editor de ciência Nicholas Wade compara o “empurrão” de Kettlewell a uma “piada” do grupo inglês Monty Python: as mariposas, mortas, não passavam de ex-mariposas. E agora: descartar ou não o exemplo? Majerus, em seu livro, admite as inúmeras falhas do modelo, mas ainda assim o considera didaticamente útil. Jerry Coyne, entretanto, pondera que esse não é o melhor exemplo a ser usado em sala de aula, devido a seus pontos fracos. Essa posição fez de Coyne, à sua revelia, uma “arma” dos criacionistas contra a teoria da evolução. Ele sugere como mais apropriado o trabalho mais recente dos ecólogos Peter e Rosemary Grant sobre a evolução do bico dos Moderna plus Parte II Unidade B Capítulo 10 Teoria moderna da evolução biologia biologia das Populações 3 amabis martho 5 tentilhões das ilhas Galápagos — tema de um livro de leitura fácil e agradável, já traduzido para o português: O bico do tentilhão: uma história da evolução no nosso tempo (Rocco, 1995), do jornalista Jonathan Weiner. O debate sobre usar ou não o exemplo das mariposas para fins didáticos está longe de uma solução fácil. O biólogo evolucioA ciência não tem de nário David Rudge, da Universidade Western Michigan, escreveu ser ensinada como a que manter a história no espaço escolar teria inúmeras vantaarte do “jeitinho” gens. Enquanto Coyne diz que suas contradições inviabilizam o uso pedagógico, Rudge acredita que ela constitui excelente veículo para apresentar a estudantes o conceito de seleção natural. Para ele, expor as discrepâncias envolvidas no assunto permitiria mostrar a natureza da ciência como processo. Novamente, trata-se de uma questão delicada, na qual estão em jogo aspectos como corporativismo da comunidade científica, necessidade de controle, manipulação, de um lado, e desinformação, de outro. Como no exemplo da girafa — perfeito, didático, mas falso —, recorrer às mariposas de Manchester é tentador: permite trabalhar, de modo simples, conceitos complexos como evolução e seleção natural. Mas insistir neles é falsear informações e, de quebra, passar a alunos e professores uma ideia dogmática e nem um pouco ética da ciência. A ciência não tem de ser ensinada como a arte do “jeitinho”, mas como um campo do conhecimento sujeito a falhas, aperfeiçoamentos e inesperadas complexidades diante do que parecia simples e “didático”. Fonte: Isabel Rebelo Roque. Sobre girafas, mariposas, corporativismo científico e anacronismos didáticos. Ciência Hoje, v. 34, n. 200, 2003, p. 64-67. Orientações de leitura Para esta Leitura selecionamos o trecho do artigo da jornalista Isabel Rebelo Roque, publicado na revista Ciência Hoje, que comenta certos exemplos de evolução utilizados em livros didáticos e que merecem críticas, em sua opinião. Acompanhe os comentários da jornalista com as orientações de leitura que elaboramos, a seguir. 1 Leia o primeiro parágrafo da Leitura. Confira alguns dados apresentados sobre as ideias de Lamarck. 2 Leia os parágrafos 2 e 3, em que a autora comenta como os livros didáticos explicam, de acordo com a teoria lamarckista, o aumento do pescoço nas linhagens ancestrais das girafas e seu contraponto darwinista. Você seria capaz de representar a explicação de Lamarck por meio de um esquema ou um desenho legendado? www.modernaplus.com.br 3 No quarto parágrafo, comenta-se que o paleontólogo e divulgador da ciência Stephen Jay Gould rastreou o exemplo das girafas de Lamarck. A que conclusões ele teria chegado, segundo o trecho? 4 No quinto parágrafo da Leitura é apresentada uma especulação de Gould sobre o sucesso alcançado pelo exemplo lamarckiano do pescoço das girafas. Quais são as conclusões do texto? 5 Leia o sexto parágrafo da Leitura, em que se comenta que uma possível vantagem de as girafas terem desenvolvido pescoço robusto seria utilizá-lo como “arma” e não para comer folhas altas das árvores. Certifique-se de ter entendido o trecho e, se necessário, releia os parágrafos 2 e 3. Quais são as conclusões de Gould para explicar a “história” das girafas como exemplo de seleção natural? 6 No sétimo e oitavo parágrafos, o artigo continua a especular sobre a explicação para as girafas terem pescoço desenvolvido e musculoso. Certifique-se de ter compreendido a argumentação. 7 Leia os parágrafos de números 9, 10 e 11 da Leitura. Qual é o risco para o qual a autora lança um alerta? 8 No último parágrafo da Leitura, a jornalista dá sua opinião e faz um julgamento valorativo dos livros que comparam Lamarck e Darwin quanto à explicação para o longo pescoço da girafa. Qual é sua opinião sobre as ideias desse trecho?