o pseudo-inciso xii, art. 5º, da cf: uma abordagem

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Ricardo Gueiros, Valdeciliana Andrade, Jordana Pereira
Panóptica, ano 1, n. 3
O PSEUDO-INCISO XII, ART. 5º, DA CF: UMA ABORDAGEM
POLÍTICO-GRAMATICAL.
Ricardo Gueiros Bernardes Dias
Professor da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES
Pós-graduado em Direito Comparado (Sorbonne - Université de Paris I/Cornell)
Mestre em Direito (UGF/RJ)
Valdeciliana da Silva Ramos Andrade
Professora da Faculdade de Direito de Vitória – FDV
Mestre em Lingüística e Filologia (UNESP)
Doutoranda em Língua Portuguesa (UERJ)
Jordana Canal Pereira
Bacharel em Direito pela FDV
Parafraseando Otto Von Bismark, leis são como as salsichas, não queiram vocês
saber como são feitas. 1 Não é incomum depararmo-nos com publicações de textos
legais, que não correspondem fielmente ao aprovado pelo Congresso Nacional. Para
não nos limitarmos à nostalgia, basta lembrar o recente episódio envolvendo a
“Reforma Judiciária”, EC nº 45/04, publicada em 31 de dezembro de 2004. Inúmeras
vozes ecoaram, sobressaltadas, em razão da redação do inciso I, art. 114 da
Constituição. O problema é que o texto, no particular, foi emendado pelo Senado
Federal, mas um parecer da Presidência do Senado tomou posição que gerou
grandes controvérsias. A questão foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade,
tendo o relator da matéria, Ministro Nelson Jobim, deferido em parte a medida
cautelar pleiteada. 2
1
GELBCKE, Séfora Schubert; CANALI, Karen Francis Schubert. Frases jurídicas. Curitiba: Juruá, 1999. p.
113.
2
ADIMC 3.395-6-DF. Vale citar interessante trecho da decisão: "O retorno do projeto emendado à Casa
iniciadora não decorre do fato de ter sido simplesmente emendado. Só retornará se, e somente se, a emenda tiver
produzido modificação de sentido na proposição jurídica. Ou seja, se a emenda produzir proposição jurídica
diversa da proposição emendada. Tal ocorrerá quando a modificação produzir alterações em qualquer dos
âmbitos de aplicação do texto emendado: material, pessoal, temporal ou espacial. Não basta a simples
modificação do enunciado pela qual se expressa a proposição jurídica. O comando jurídico – a proposição – tem
que ter sofrido alteração”.
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Panóptica, ano 1, n. 3
O que não se espera é o fato de esse metafórico fenômeno (as salsichas)
contaminar a própria Constituição originária, mormente em situação ainda mais
insólita, como veremos adiante. Não dizemos isso, pretendendo exaltar um
imaculado processo constituinte originário. É que o trabalho constituinte de 1988 foi
pautado por singulares características: uma assembléia que não partiu de um
anteprojeto pré-fabricado; 3 uma Assembléia que surgiu como uma forte reação a um
sistema veementemente repudiado; a participação da sociedade foi, talvez, ímpar.
Estamos nos referindo ao inciso XII, art. 5º da Constituição Federal, promulgado em
05.10.1988, in verbis:
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no
último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a
lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução
processual penal;
Uma primeira leitura nos induz a uma conclusão (quase) imediata, mesmo que
insólita. Vê-se duas formas de inviolabilidade: uma absoluta; outra relativa. Seriam
absolutamente
invioláveis
o
sigilo
da
correspondência,
das
comunicações
telegráficas e de dados. Seria relativamente inviolável a comunicação telefônica.
Ilação retirada de uma simples razão: se se quis ressalvar expressamente uma
hipótese, é porque não houve intenção do legislador-constituinte, de excepcionar as
demais. Repito: isso é uma primeira leitura.
Tomando por premissa essa leitura, já teríamos, de pronto, um percalço lógicojurídico. Não seria (e não é) plausível concluir que exista uma violação absoluta
sobre determinados bens jurídicos (intimidade quanto à correspondência etc.) e uma
relativa para outro (intimidade quanto à conversação telefônica). Inexiste
diferenciação ontológica entre esses bens jurídicos tutelados constitucionalmente. O
que há, sim, é uma diferença axiológica (valorativa) a cada caso in concreto; a
relevância, portanto, é sopesada in casu.
3
O tão-falado projeto Afonso Arinos foi desamparado, em razão de sua faceta parlamentarista, o que contrariava
os interesses do então Presidente José Sarney.
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Panóptica, ano 1, n. 3
E se assim é, faz-se necessário que a abstração própria da lei possa, ao menos, dar
azo à possibilidade de uma regulamentação visando a que o juiz-intérprete pondere
os interesses caso a caso. A Constituição alemã muito bem explicita esse
entendimento, quando prevê que a inviolabilidade (seja qual for) poderá ser mitigada
por lei infraconstitucional. 4 Outras Constituições estrangeiras navegam no mesmo
sentido: partem de uma premissa realista acerca da relatividade de todo e qualquer
direito. 5
6 7 8 9
Por outro lado, afora os argumentos introdutórios aduzidos, passemos ao cerne do
presente ensaio, qual seja, uma análise político-gramatical do dispositivo
em
exame.
Bem, é inegável que o homem utiliza a língua para se manifestar, para traduzir o seu
querer, para levar avante os seus sonhos. Mas também é importante ter em mente
que este ser que se comunica não o faz para si, ele pressupõe a existência de um
outro a quem se dirige e com quem dialoga. Assim, pensar na utilização de uma
dada língua é vislumbrar efetivamente o processo de comunicação que a linguagem
proporciona.
Vale lembrar ainda que tal processo implica necessariamente uma relação dialógica,
na qual estão previstos, ao menos, dois elementos – aquele que comunica e aquele
que recebe a comunicação. Ora há, então, entre esses dois pólos um fio
4
Art. 10 (1) O sigilo da correspondência, assim como das comunicações postais, telegráficas e telefônicas, é
inviolável. (2) Limitações só podem ser ordenadas com base numa lei. Se a limitação tiver por finalidade
proteger a ordem fundamental livre e democrática ou a existência e segurança da Federação ou de um Estado
federado, a lei pode determinar que a limitação não seja levada ao conhecimento do indivíduo atingido e que, em
vez de se seguir a via judiciária, o controle seja efetuado por órgãos principais e auxiliares designados pela
representação do povo.
5
Art. 18 El domicilio es inviolable, como también la correspondencia epistolar y los papeles privados, y una ley
determinará em qué casos y con qué justificativos podrá procederse a su allanamiento y ocupación.
(Constituição Argentina)
6
Art. 56 La correspondencia es inviolable. Sólo puede ser ocupada, abierta y examinada en los casos previstos
por la ley. Se guardará secreto de los asuntos ajenos al hecho que motivare el examen. (Constituição Cubana)
7
Art. 18 (3) Se garantiza el secreto de as comunicaciones y, en especial, de las postales, telegráficas y
telefónicas, salvo resolución judicial. (Constituição Espanhola)
8
Art. 15 A liberdade e o segredo da correspondência e de qualquer outra forma de comunicação são invioláveis.
Sua limitação pode ocorrer somente por determinação de autoridade judicial com as garantias estabelecidas pela
lei. (Constituição Italiana)
9
Art. 34 (4) É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência e nas telecomunicações,
salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal. (Constituição Portuguesa)
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comunicador que permite que a pessoa que emite uma enunciação tenha uma certa
receptividade ou não de outrem. Pensar assim é muito simples.
Existem, entretanto, alguns óbices que se tornam verdadeiros entraves no processo
comunicativo, pois aquilo que é emitido – o texto com as intenções do autor – nem
sempre é depreendido da forma adequada. Aliás, cabe esclarecer que o processo
comunicativo se constitui em um processo de reconstrução de sentidos, pois uma
pessoa emite uma mensagem que é decodificada por outra, esta, por sua vez, a
decodifica – reconstrói os sentidos ali expressos – e emite outra mensagem em
resposta àquela mensagem recebida que será decodificada pela primeira pessoa
que enviou a mensagem. Na realidade, passa-se a existir um caminho de vai-e-vem
em que um emite e o outro decodifica segundo seu contexto, mas, ao depreender os
possíveis sentidos de tal mensagem, formula um novo texto que será decodificado
por aquele que primeiramente enunciou – assim vai se desenrolando o processo que
produz a comunicação.
Porém, pensar em processo comunicativo envolve não apenas aquele que emite a
mensagem e quem recebe, há outros elementos tão necessários quanto esses dois.
Podemos perceber isso ao vislumbrar o quadro de elementos previstos no ato de
comunicação de Jakobson, como temos a seguir:
REFERENTE
EMISSOR
MENSAGEM
RECEPTOR
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CANAL
CÓDIGO
Para compreender o quadro acima, Andrade e Gabriel 10 relatam que:
Para que exista comunicação, há seis elementos básicos: um
emissor envia uma mensagem a um receptor. Para ser
operante, a mensagem está inserida em um contexto
(referente) ao qual ela remete. Tal contexto deve ser
apreensível pelo receptor, devido à utilização de um código
comum ao emissor e ao receptor e, finalmente, a mensagem
requer um canal físico (ondas sonoras para conduzirem o som,
registro gráfico, registros visuais, etc.) [...]. Da interação desses
fatores resulta o sistema de comunicação.
Como visto, há vários fatores implicados no processo de comunicação. Ademais, é
imprescindível destacar um elemento muito importante e, às vezes, não tão
explorado – a própria mensagem. Esta, independente de ser escrita ou falada,
precisa ter uma característica fundamental para realizar bem seu propósito de
comunicar – CLAREZA. No entanto, este fator nem sempre está presente, pois é
muito comum ouvirmos que determinado texto não é coerente, isto é, está-lhe
faltando um dos requisitos básicos para a compreensão.
Ter um texto claro e coerente significa ter um texto com transparência de sentidos,
se é que podemos falar nisso. Tal texto prescinde de qualquer tipo de problemas
que venham a se tornar óbices no processo comunicativo, inclusive no que tange
aos problemas de ordem gramatical. É claro que o fato de se ter um texto sem erros
gramaticais não lhe confere, necessariamente, coerência, mas o texto que possui
erros de ordem gramatical também pode ter comprometido o seu conteúdo
significativo.
Portanto, ao se desejar um texto claro, é necessário pensar nos elementos
comunicativos,
10
mas
também
pensar
que
a
mensagem
veiculada
precisa
ANDRADE, Valdeciliana da Silva Ramos; GABRIEL, Valéria Cristina Barbosa. Os meandros discursivos
do texto: da leitura à produção. Vitória, 2004. (no prelo)
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Panóptica, ano 1, n. 3
proporcionar clareza quanto aos seus propósitos e isso implica ausência de
problemas de ordem gramatical.
À conta disso, procuraremos identificar alguns problemas gramaticais que o inciso
XII do artigo 5º da CRFB/88 apresenta.
Antes, porém, é prudente relatar que a Constituição Federal de 1988 foi corrigida (e
aqui nos referimos às mais diversas formas de correção como a gramatical, a
ortográfica, a semântica etc) pelo saudoso mestre Celso Cunha que, a nosso ver,
não cometeria equívocos como os que se insurgem de tal dispositivo constitucional.
Ocorre que o texto constitucional corrigido pelo professor Celso Cunha e que foi
votado e aprovado pela Assembléia Nacional Constituinte não é o que consta hoje
em nossas Constituições. Sabe-se que a redação original foi reescrita e publicada
sem que houvesse nova correção, votação e aprovação, o que acarretou sérios
problemas que ainda persistem.
Trazemos à colação informações de uma matéria publicada pelo jornal O Estado de
São Paulo em 07 de outubro de 2003 11 , relatando que, em uma palestra ministrada
pelo Ministro Nelson Jobim, cujo tema era “Como o Tribunal julga os recursos em
série”, a platéia ficou chocada com algumas revelações ocorridas com a
Constituinte. O ministro do Supremo Tribunal Federal fez suspense ao ser indagado
sobre o texto de um artigo que foi incluído, sem ter sido votado, na Constituição de
1988, in verbis, “vocês vão ficar sabendo em outro momento, não tem nada, não tem
gravidade nenhuma, mas é bom que vocês fiquem com a curiosidade; vou contar,
mas é bom deixar sempre um suspense, não é?”
Posteriormente, Jobim explicou que, na Constituinte, quando terminou a votação do
segundo turno, o deputado Ulysses Guimarães convocou o gramático Celso Cunha
para fazer a revisão do texto constitucional. Após essa revisão, apareceram alguns
parlamentares trazendo problemas de omissões, como o artigo segundo da Carta
Constitucional, estabelecendo que “os poderes são autônomos e harmônicos”. 12
11
MACEDO, Fausto. Ele promete contar “acertos” da Constituinte. O Estado de São Paulo, São Paulo, out.
2003, p. 04-07.
12
Idem, Ibidem.
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Panóptica, ano 1, n. 3
Diante disso, ficou decidido que o artigo teria de ser incluído na Carta, porque era
omissão grave, porém esse texto não foi votado nem no primeiro nem no segundo
turnos, foi incluído por aprovação na comissão de redação. Tal fato também ocorreu
com relação a outro artigo, mas, Jobim não revelou o seu teor. Quando terminou a
Constituinte, o Ministro informou ao doutor Ulysses que tinha reunido tudo sobre os
entendimentos havidos acerca do texto Constitucional e todos os acertos realizados.
Contou Jobim, líder do PMDB na Câmara à época, que Ulysses Guimarães havia lhe
dito que isso só poderia ser revelado 15 anos depois da promulgação da
Constituição. 13
Podemos, então, suspeitar (sem ousar concluir) – com a reportagem mencionada e
com outras como, por exemplo, o artigo da professora Ada Pellegrini Grinover “O
regime brasileiro das interceptações telefônicas” 14 – que o outro dispositivo se refere
ao inciso XII do artigo 5º da CRFB/88. Ora, conforme relatado pelo próprio Ministro
Nelson Jobim, os dispositivos constitucionais foram votados e aprovados, tendo em
seguida o deputado Ulysses Guimarães convocado Celso Cunha para que fizesse a
revisão gramatical do texto. Entretanto, após tal revisão, o texto em questão (art. 5º,
XII) foi modificado sem que houvesse nova votação, nem aprovação, nem mesmo
nova revisão de ordem gramatical. Diante disso, surgem duas especulações: não
houve nova revisão porque não houve tempo hábil, ou porque era conveniente que o
acontecido não fosse divulgado. Aliás, essa última hipótese nos parece a mais
provável, já que o deputado Ulysses Guimarães e, o então, Deputado Nélson Jobim
pactuaram somente revelar tal fato 15 anos após a promulgação da Constituição 15 .
Em
virtude
disso,
podemos
traçar
algumas
interessantes
ponderações.
Comparando-se o texto atual com o texto apresentado pelo projeto e que, conforme
já mencionado, foi a composição votada e aprovada pela Assembléia Nacional
Constituinte, podemos perceber que a redação assim prescrevia: “é inviolável o
sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, telefônicas e de dados,
salvo por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, para fins de
13
Idem, Ibdem.
GRINOVER, Ada Pellegrini. O regime brasileiro das interceptações telefônicas. Revista brasileira de
ciências criminais. São Paulo, nº 17, jan-mar, 1997, 412.
15
MACEDO, Fausto. Ele promete contar “acertos” da Constituinte. O Estado de São Paulo, São Paulo, out.
2003, p. 04-07.
14
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Panóptica, ano 1, n. 3
investigação processual” 16 . Como o texto apresenta estruturas paralelas, é possível
esquematizá-lo da seguinte forma:
da correspondência
É inviolável o sigilo
E
telegráficas,
das comunicações
telefônicas
e
de dados
Analisando o corpo do texto, podemos vislumbrar que, na construção “é inviolável o
sigilo”, este termo (sigilo) necessita de elementos que o complementem e o
determinem, uma vez que ele não traz definido em si o tipo de sigilo, por causa disso
requer que os termos que o completem estejam precedidos pela preposição DE, o
que, de fato, ocorre em “da correspondência” e “das comunicações”, as quais
apresentam a estrutura – de+a= da e de+as= das – seguidas dos termos
“correspondência” e “comunicações”, respectivamente. Tem-se, então, os dois
elementos que são invioláveis. Houve, contudo, a necessidade de outra
especificação, qual seja: o tipo de comunicação. Neste caso, o legislador viu como
necessário esclarecer os tipos de comunicação, no texto constitucional dividido em
três grupos, a saber: telegráficas, telefônicas e de dados.
Retornando à questão do sigilo da correspondência, vê-se que não há mero
processo de comunicação da correspondência, mas à correspondência em si, ao
texto, ao conteúdo, à carta, ou seja, ao papel escrito, tanto é que o substantivo
“comunicação” foi escrito após o substantivo “correspondência”.
Dados tais esclarecimentos, é bom lembrar que a primeira parte da atual redação
meramente repetiu o texto corrigido por Celso Cunha, vejamos: “é inviolável o sigilo
da correspondência e das comunicações telegráficas”. Porém, a seguir, a ordem dos
elementos foi alterada, causando um erro grosseiro: “de dados e das comunicações
16
BRASIL. Projeto de Constituição. (Substituto do Relator). Assembléia Nacional Constituinte: Comissão de
Sistematização. Brasília: Centro gráfico do Senado Federal, 1987. p. 28.
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telefônicas”. O que se vê é que o substantivo “comunicação” foi repetido, porém de
forma totalmente desnecessária, visto que já havia sido mencionado antes.
O problema pode ser verificado observando que os termos, “telex e telefone” são
substantivos, mas o termo “comunicação” também é um substantivo. Seria
incoerente, portanto, um substantivo acompanhar outro substantivo, visto que o
substantivo, geralmente, deve ser acompanhado de um adjetivo, pois esta é a
função do adjetivo – acompanhar o substantivo. Logo, para obedecer às regras
gramaticais, transformou-se os substantivos (telex e telefone) em adjetivos, quais
sejam: telegráficas e telefônicas, para que acompanhassem o substantivo
“comunicação”. Entretanto, não há adjetivo correspondente para o termo “dados”,
dessa forma, exigiu-se colocar uma locução adjetiva, qual seja: de dados. Porém, no
momento em que se alterou a ordem das figuras, fez-se necessário, para dar sentido
ao texto, inserir, novamente, o substantivo “comunicação”, fazendo com que o texto
tivesse uma redação prejudicada, que comprometeu, inclusive, a sua interpretação,
como podemos verificar no trecho já exposto – “é inviolável o sigilo da
correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações
telefônicas...”.
Isso ocorre em face da referida inversão dos termos “dados” e “telefônicas”, talvez
porque, por algum motivo, pretendia-se restringir as interceptações apenas às
comunicações telefônicas, o que disside da proposta original aprovada pela
Assembléia Constituinte.
O que se pode perceber é que a redação do projeto, devidamente corrigida por
Celso Cunha, é clara, ou seja, não possui qualquer ambigüidade que possa vir a dar
margem a mais de uma interpretação. Daquela forma, o sigilo é preservado de
maneira igual a qualquer dos meios de comunicação, apresentando-se os itens
como se fossem uma enumeração e fechando a seqüência pelo conectivo “e”. A
única ressalva realizada “salvo por ordem judicial” alcança todos os elementos de
maneira indistinta.
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Ricardo Gueiros, Valdeciliana Andrade, Jordana Pereira
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Por outro lado, o texto com que os aplicadores do direito hoje têm que lidar está
impregnado de erros que comprometem a interpretação do dispositivo, já que não
condiz com o proposto nem com uma adequada correção gramatical.
Tal assertiva revela-se totalmente verdadeira quando procuramos, na doutrina, a
explicação dada ao inciso XII e chegamos à conclusão de que cada autor defende
uma de interpretação diferente, o que causa ao aplicador da norma muitas
inseguranças, que são geradas em virtude da má redação de tal inciso. Na
realidade, a falta de lucidez gramatical, conduz a interpretações outras, vez que não
foi preenchido o requisito básico da clareza.
Certos de que os problemas de ordem gramatical da redação atual do inciso
prejudicam a compreensão, é necessário reiterarmos esclarecimentos como
dissemos antes, a fim de mostrar os erros encontrados no dispositivo e quais as
limitações que passam a existir.
É inviolável o sigilo [...], nesse ponto podemos perceber, conforme mencionado
anteriormente, que há uma estrutura sintática em que o substantivo “sigilo” requer
complemento preposicionado, ou seja, invoca a preposição “de”, tanto é que ela se
repete ao longo do texto: da correspondência, das comunicações telegráficas, de
dados (quando deveria ser dos dados), das comunicações telefônicas. Todos esses
elementos estão coordenados entre si. Diante disso, trazemos à colação o
entendimento de Flávia de Barros Carone:
A coordenação, portanto, torna possível uma troca de
elementos, por acréscimo de um segundo e supressão do
primeiro, bem como da “eventual marca de coordenação” – a
conjunção. Infere-se daí que a coordenação nasce do eixo
paradigmático, visto que todos os membros de um paradigma
poderiam, hipoteticamente, comutar com aquele que está
presente em um ponto da cadeia sintagmática 17 .
O eixo paradigmático permite, então, que as relações que estejam no mesmo nível
possam comutar entre si. Vejamos como o texto atual poderia se apresentar:
17
CARONE, Flávia de Barros. Subordinação e Coordenação Confrontos e Contrastes. 6. ed. São Paulo:
Ática, 2001, p. 20.
39
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Panóptica, ano 1, n. 3
1) É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telefônicas, de
dados e das comunicações telegráficas; (como poderia ser)
2) É inviolável o sigilo de dados e da correspondência, das comunicações
telegráficas e das comunicações telefônicas; (como poderia ser)
Percebe-se, então, que os elementos coordenados entre si nascem do eixo
paradigmático e que tal eixo permite comutar os membros de um paradigma,
consoante o que foi exposto.
Daí, para Tesnière, citado por Flávia de Barros Carone, “a coordenação é a
conseqüência de um fenômeno de desdobramento de um termo, que se vê, assim,
em face de um peculiar alter ego” 18 . Pode ser ainda mais claramente radical quando
afirma que se “é um termo que se desdobra, o resultado só pode ser um par de
gêmeos univitelinos (ou trigêmeos, ou mais ainda)”. No presente caso, tudo é
conseqüência de desdobramento da palavra “sigilo”.
É possível inferir, portanto, que a
coordenação apresenta as seguintes
características:
a) os elementos coordenados têm a mesma função sintática;
b) os elementos coordenados pertencem a um mesmo paradigma;
c) a coordenação forma seqüências abertas, não sintagmas;
d) coordenam-se tanto orações como termos de uma oração;
Além disso, Othon M. Garcia 19 acrescenta que:
Na coordenação (também dita parataxe), que é um
paralelismo de funções ou valores sintáticos idênticos, as
orações se dizem da mesma natureza (ou categoria) e função,
devem ter a mesma estrutura sintático-gramatical (estrutura
interna) e se interligam por meio de conectivos chamados
conjunções coordenativas. É, em essência, um processo de
encadeamento de idéias.
18
19
Idem, p. 22-24.
GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. 18. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 42.
40
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Othon ainda aduz que, na coordenação, há um paralelismo, que são as estruturas
gramaticais semelhantes e que mantém relação entre si, que tem funções e valores
sintáticos idênticos. No inciso XII, os termos são paralelos em face da preposição
“de” reclamada pelo substantivo “sigilo”.
O autor ainda assevera que se coordenação é um processo de encadeamento de
valores sintáticos idênticos, é justo presumir que quaisquer elementos da frase –
sejam orações, sejam termos dela – coordenados entre si – devam, em princípio
pelo menos, apresentar estrutura gramatical idêntica, pois não se podem coordenar
frases que não comportem constituintes do mesmo tipo. Em outras palavras: as
idéias similares devem corresponder em estruturação de forma. Isso é o que se
costuma chamar paralelismo ou simetria de construção. 20
Assim, pautado no princípio gramatical, é possível estender a reserva (salvo por
ordem judicial) a todos os elementos, uma vez que os mesmos estão em uma
construção gramatical coordenada, que permite a comutação dos elementos. Ora se
a estrutura gramatical tanto no texto anterior, quanto no atual permite isso, nada
mais justo que se poder atribuir a todos os elementos uma ressalva, visto que os
itens elencados pelo constituinte referem-se às diversas manifestações de
possibilidade de comunicação.
Entretanto, o paralelismo não constitui uma norma rígida. Trata-se, portanto, de uma
diretriz, mas diretriz extremamente eficaz, que muitas vezes saneia a frase evitando
construções incorretas ou inadequadas.
Othon M. Garcia esclarece também que, em alguns casos, como no seguinte trecho
de Carlos Laet, a ausência de paralelismo não invalida a construção da frase:
“Estamos ameaçados de um livro terrível e que pode lançar o desespero nas fileiras
literárias”. Os dois adjuntos de “livro” – o adjetivo “terrível” e a oração adjetiva “que
pode lançar...” – coordenados pela conjunção “e” não têm estrutura gramatical
20
Idem, p. 52-53.
41
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idêntica 21 . Isso não impede que a construção seja vernácula, inatacável, embora
talvez fosse preferível tornar os dois adjuntos paralelos. Percebemos, então, que:
que é terrível
Estamos ameaçados de um livro
e
(que) pode lançar...
terrível
Estamos ameaçados de um livro
e
capaz de lançar...
Também seria cabível omitir a conjunção “e”, mantendo-se a oração adjetiva ou
substituindo-a por um adjetivo equivalente: “... um livro terrível, que pode lançar...”
ou “...um livro terrível, capaz de lançar...”
Percebe-se que qualquer dessas formas é sintaticamente correta; todavia, a que
observa o paralelismo parece, do ponto de vista estilístico, mais aceitável. Vale
ressaltar, contudo, que a variação quanto ao paralelismo, no exemplo citado, não
produz outras interpretações
Em suma, Othon 22 conclui que:
O que se deduz dessas observações a respeito de
coordenação e paralelismo pode ser consubstanciado neste
princípio (que Chomsky subscreveria): não se podem
coordenar duas ou mais orações, ou termos delas, que não
comportem constituintes do mesmo tipo, que não tenham a
mesma estrutura interna e a mesma função gramatical.
Essa estrutura paralela é evidente, em termos, no texto constitucional e isso permite
verificar que a construção foi pensada para apresentar todos os termos no mesmo
nível, até porque não há diferença ontológica entre as formas de comunicação ali
descritas.
21
22
Idem. Ibidem.
Idem, p. 58.
42
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Panóptica, ano 1, n. 3
Além disso, segundo Flávia de Barros Carone 23 , um traço considerado definidor da
natureza da coordenação é a formação de seqüências abertas, a que sempre se
pode agregar mais um elemento. As seqüências abertas são aquelas que
apresentam os termos ligados por vírgulas, o que permite sempre que seja incluído
outro elemento, elas aceitam que os termos sejam aumentados ao infinito,
acrescentando a todos os núcleos um número teoricamente ilimitado de núcleos da
mesma natureza.
Um olhar mais atento perceberá que o problema refere-se à ligação entre tais
elementos. Todos eles estão coordenados entre si e sujeitos ao termo sigilo, mas
pecam ao serem interligados.
Os dois primeiros elementos estão ligados pela conjunção “e” (da correspondência e
das comunicações telegráficas). Os outros dois elementos também estão ligados
pela conjunção “e” (de dados e das comunicações telefônicas). E os dois primeiros
blocos estão interligados pela vírgula.
O problema é que o texto mistura seqüência aberta com seqüência fechada. A
seqüência fechada é percebida quando identificamos a conjunção “e”, enquanto que
a seqüência aberta é percebida pelo uso da “vírgula”.
Quando usamos a vírgula para interligarmos o termo, é porque estamos admitindo
que,
posteriormente,
sejam
acrescentados
mais
termos
entre
aqueles
já
mencionados. Por exemplo: João gosta de bala, chiclete, chocolate. Nessa estrutura,
nada impede que o redator acrescente:...chocolate, pudim, bolo; porque se trata de
uma seqüência aberta. Por outro lado, quando se diz: João gosta de bala e chiclete,
nessa estrutura, a seqüência foi fechada, não dando oportunidade de se incluir
qualquer outro elemento.
Diante disso, o que podemos extrair da norma do inciso XII é que ela contém duas
seqüências fechadas e uma seqüência aberta. Absurdo. A construção do texto
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CARONE, Flávia de Barros. Subordinação e Coordenação Confrontos e Contrastes. 6. ed. São Paulo:
Ática, 2001, p. 36.
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Panóptica, ano 1, n. 3
constitucional não poderia ser redigida dessa forma, pois, assim, sofre de problemas
de estruturação, de paralelismo e de gramática (o emprego da vírgula).
Quando o legislador diz que “é inviolável o sigilo da correspondência e das
comunicações telegráficas” ele cria uma seqüência fechada por meio do uso da
conjunção “e” inviabilizando, dessa forma, que entre aqueles elementos sejam
incluídos outros. Entretanto, depois ele continua dizendo que “é inviolável o sigilo
(...) de dados e das comunicações telefônicas”. Novamente, ele cria uma seqüência
fechada, e pior sujeita ao mesmo substantivo (sigilo) a que a primeira seqüência
fechada se sujeita. O fato de se criar mais de uma seqüência fechada em um texto
não é incorreto, desde que os elementos estejam sujeitos a outro termo, isto é, se os
elementos da seqüência estão sujeitos ao mesmo termo (como no caso do inciso XII
em que todos os termos estão sujeitos ao substantivo sigilo), não há porque se criar
duas seqüências fechadas. Aliás, fazê-lo seria cometer um erro de ordem sintática.
Então, observamos um problema – a existência de duas seqüências fechadas
sujeitas ao mesmo substantivo.
Como se não bastasse, o legislador além de criar duas seqüências fechadas sujeitas
ao mesmo substantivo – sigilo –, criou uma seqüência aberta entre as seqüências
fechadas quando interliga aquelas com o uso da vírgula. É nesse ponto que reside
outro problema, ou seja, quando se mescla a seqüência fechada com a seqüência
aberta.
A nosso ver, Celso Cunha, como asseveramos, não cometeria tal incorreção, visto
que há na Constituição outros textos em que aparece a coordenação e que não
sofre tais equívocos, mesmo porque, consoante mostrado no início deste item, a
primeira redação não apresentava problemas nem de paralelismo nem de seqüência
aberta ou fechada. Isso revela que a redação desse inciso destoa da prática de
Cunha, que busca uma linguagem escorreita para o texto constitucional, o que nos
leva a acreditar que a redação do dispositivo constitucional alterado não passou por
nova correção gramatical da mesma forma que não foi novamente votado e
aprovado para publicação.
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Tais problemas resultam, hoje, numa infinidade de interpretações que conduzem a
uma aplicação nem sempre eficaz da norma jurídica. Em suma, o que foi idealizado
para ser claro e objetivo, tornou-se, hoje, um entrave para a adequada concretização
do direito.
Informações Bibliográficas:
DIAS, Ricardo Gueiros Bernardes; ANDRADE, Valdeciliana da Silva Ramos;
PEREIRA, Jordana Canal. O pseudo-inciso XII, art. 5º, da CF: uma abordagem
político-gramatical. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 4, dez. 2006, p. 29-44. Disponível
em: <http://www.panoptica.org>. Acesso em:
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