Avaliação: um Estado de Alerta Permanente Sobre o Significado da Açáo Educativa Jussara Maria Ler& Hoffmaun* O que tem ocasionado a maioria das discussóes em torno da avaliação é a ientaiiva de definição do significado primordial de sua prática na ação6ducativa. Vários educadores notáveis e com formação diversa voltam sua atenção para o processo de avaliação educacional. Observa-se, entretanto, que os estudos realizados ainda detêm-se, prioritariamente, no “não deve ser” ao invés do “ser melhor’’ da avaliação. Reconhecendo-a a serviço do autoritarismo e do “direito de cátedra” do professor, desde os primórdios da educação, os estudiosos em avaliação importam-se, sobretudo, em estabelecer críticas e paralelismos entre ação avaliativa e diferentes manifestações pedagógicas, deixando, entretanto, de apontar pcrspectivas palpáveis ao educador que deseja exercer a avaliação em benefício da educação. Algumas vezes ocorre aos educadores mais experientes apontar as falhas do processo, criticá-las a contento e em profundidade, exercendo, ao mesmo tempo, em sua sala de aula, uma prática avaliativa improvisada e arbitrária. É uma falácia a dicotomia educação e avaliação. A avaliaçáo é essencial i educação no seu sentido de problematização, de busca, de constante desequilíbrio, de dúvida. Um professor que não se avalia constantemente ou que não avalia a ação educativa, em seus inúmeros aspectos, no sentido de aprimorá-la, instala sua docência em verdades prontas, adquiridas, pré-fabricadas. “Educar é fazer ato de sujeito, é problematizar o mundo em que vivemos para superar as contradições, comprometendo-se com esse mundo para recriá-lo Constantemcnte” (Gadolli, 1984). Entretanto, qual a concep:pçáo dc avaliac;ão que se evidencia na prática atual dos professores? Em que medida os estudiosos em educação têm contribuído, com suas crílicas, para uma interação da ação de avaliar a de educar? Até que ponto as consideram como açóes inerentes e indissolúveis? Paralelamente o estudo das diferentes tendências reflete-se sobre as difermtes manifestações da prática avaliativa. Apontam-se, por exem- * Professora Assistenteda UFRGS e da PUWRS. pio, os reflexos extremados da pedagogia tradicional na avaliação, resultando nas ritualísticas provas finais, responsáveis absolutas pela aprovação e reprovação dos estudantes até os nossos dias. Responsahiliia-se a pedagogia escolanovista pelo espontaneísmo, subjetivismo e “laissez-faire” quc impregna a ação avaliativa de muitos professores, preocupados demais com o processo c alienados dos resultados. E condena-se o uso extremado das medidas, das instruçócs programadas e do computador, legados da pedagogia liberal tecnicista. Nesse paralclismo que se estabelece, muitas lutas vêm sendo assumidas no anúncio (e denúncia) da função seletiva e discriminat0ria das notas e conceitos. Os cdticos mais extremados sugerem, inclusive, que as escolas eliminem de seus propósitos a avaliação da aprendizagem, desvinculando-se dessa função burocrática, punitiva e obstaculizante do progresso do aluno. O quc se iorna necessário questionar é justamente sobre essa conclusão final. Ora, numa cpoca em que se reflete profundamente sobre a educação, o professor ameaça abdicar de sua arma mais poderosa como educador; a de refletir sobre sua ação com base em premissas sálidas c acompanhar significativamente o educando na sua trajetória. E necessirio resgatar o significado primeiro da avaliação e rcencaminhar uma ação que se considera restritiva e negativa numa outra direção. Há três princípios relevantes a serem abordados se pretende-se diknder uma adequada concepçáo de avaliação. O primeiro deles consiste em conccher a avaliação da aprendizagem escolar como uma série de episódios altamente significativos na trajctária do cdiicdndn enquanto constrói o seu conhecimento, momentos cruciais de indagação sobre os alicerces dessa construção, sobre as estruturas wgnitivas que estáo se formando, sobre perspectivas diversas de seguimento dessa construção. O segundo deles consiste em considerar esses momenioscruciais como um processo iníeraíivo, atravts do qual educadores e educandos aprendem sobrç si mesmos e a realidade escolar no ato próprio da avaliaçáo. Jnel Mariins (1980) diz quc “o que deveria estar presente no paradigma de avaliaçáo do aluno e do professor, como indivíduos humanos, E que a essência do relacionamento fmsc sempre u m encontro cm que ambos os participantcs se modificassem”. Todavia, a avaliação, como ela E formada no seu sentido cmpírico, envolve apenas as modificaç6cs que SÇ produzem de u m lado - o do aluno. Estabelecendo-se a dicotomia: educação - avaliação e exercendo-se a prática avaliativa como uma função classificatória e burocráiica, persegue-se um princípio claro de descontinuidade, dc segmcntação, de parcclarização do saber. O grau, nota, conceito conferido ao aluno e não retomado quanto a o significado em termos dc aprendizagem elimina da sala de aula a oportunidade do “ir adianrc”, da retomada das dificuldades, da compreensão do erro e de sua dimensão na busca de verdades. Impede, da mesma forma, que professor e aluno cslabeieçam uma relação de interação e reciprocidade a partir da rcflcxáoconjunta e criieriosasohreosresultadosdaaçáoeducativa.Resulta daí,damesma forma, uma relaçáo de antagonismn (professor-aluno) que leva a sofridos momentos avaliativos. O prorissor, por seu lado, cumpre “pcnosamente” uma exigência burocrática e o aluno, por sua vez, “sofre” o processo avaliativo. Ambos perdem nesse momento e descaractcrizam a avaliac;ão di seu sentido básico de “transformaçáo”, “inovação”, desvinculando-a do seu verdadeiro papel que, coníorme Crnnbach, “n3o E o de apresentar verdades auioritárias, mas esclarecer, documentar, Icvaniar questóes c criar novas pcrspectivas”. (Cronbach, 1980). Não é tareki simplória. A prática avaliativa coerente exige do professor o domínio do cnnhecimento. Exige-lhe uma visáo, ao mesmo tempo, ampla e deialhada de sua disciplina. Visão essa que lhe permita estabelecer concxóes entre os diíerentes segmentos 58 do saber e visualizar diferentes perspectivas de continuidade e aprofundamento de cada área de conhecimento. Consciente de todas as alternativas pertinentes a uma mesma trajetória, cabe ao professor acompanhar o aluno e não dirigí-lo, questionar-se e questionar e não responder, informar, refletir sobre o erro e não corrigí-lo, buscar em conjunto novas perspectivas e náo dar oportunidades, avaliar-se e avaliar e não atribuir conceitos. A prática pedagógica assim exercida exige domínio do existente e conhecimento da realidade e do educando. Percebendo a ação educativa em sua complexidade, professores e alunos praticam a avaliação em seu benefício, analisando situaçóes, realizando descobertas, tomando decisões no sentido de transformar sua ação. A avaliação deixa de ser um momento terminal do processo de ensino-aprendizagcm para transformar-se no próprio processo, gerando um estado de alerta permanente sobre o significado da ação educdtiva. Passo a passo, na sua trajetória, professor e aluno permanecem atentos quanto aos resultados dessa ação. Todos os momentos em sala de aula, todas as tarefas de aprendizagem transformam-se em episódios de avaliação e educadores e educandos passam a interagir na soluçãoimediata das lacunas e dificuldades, no replanejamento das atividades, na definição de novas metas. Cada vez mais pcrccbcmos o quanto o erro é útil i produção criativa e que o aluno precisa ser ajudado a ver as contribuiçóes dos erros para o conhecimento. Mas, na prática avaliativa atual, os erros se transformam em verdades terminais. O terceiro princípio a ser abordado numa adequada concepção de avaliação é o seu caráter, ao mesmo tempo, filosófico e tecnológico. Quanto ao seu seníido de problematia ç ã o e questionamento, reflcxio, percebe-se a avaliação como um ato filosófico. No julgamento do mérito da ação educativa está implícito o julgamento de valor. Julgar algo implica um engajamento pessoal a que nenhum educador pode furtar-se. E interferem os valores pessoais do avaliador. Mas esse juíro dc valor não é prioritariamente subjetivo, ele incide sobre dados reais coletados do mundo concreto, atos ou objetos constiíuídos pelo sujeito, e para essa coleta e análise de dados precisos e significativos (que não significa exclusivamente numéricos) o avaliador mais experiente irá utilizar-se da tecnologia da avaliação. Há um perigo muito grande de se compactuar com a improvisão na prática avaliativa. Aprimorar essa prática significa tornar professores e alunos cada vez mais conhecedores de sua real situaçáo para o julgamento de mérito e tomada de decisões significativas. Muitos conceitos atribnídos a alunos poderiam ser desconsiderados por basearem-se em dados falsos. É necessária a preparação de tarefas relevantcs para a compreensão do desempenho e desenvolvimento do aluno frente Aquilo a que se propõe. A competência de um aluno de um curso profissionalizante não deve ser avaliada a partir de tarefas exclusivamentc teóricas (salvo raras exceções). Testes objetivos de gramática não avaliam, da mesma forma, a compeíência lingüística do educando. Acrescenta-se, assim, ao caráter filosófico da avaliac;ão, de reflexão, de problematicidade, o caráter tecnológico imprescindível. A tecuologia abordada no sentido de “fazer algo impregnado de conhecimento e de consciência dos resultados a que conduz” (Garcia, 1977). O educador não pode prescindir dc informações precisas e significativassobre os resultados da ação educativa, assim como dcve realizar uma intcrpretaçáo séria e competente dessas informações. Somente a partir da realização de tarefas avaliativas relevantes, professores e alunos poderão refletir juntos sobre a continuidade do processo. Abordando justamente o princípio de interpretação dos resultados obtidos nas tarefas de aprendizagem, evidencia-se a teoria das medidas referenuais a critério (Vianna, 1980), ainda desconhecida, no Brasil, pela maioria dos educadores. Na perspectiva dessas medidas, desvincula-se a avaliação de caráter competitivo e classificatório das medidas 59 referenciadas a norma e evolui no sentido de busca de significado e retomada das dificuldades apresentadas pelo educando. Está implícito, nesta teoria, o domínio, pelo professor, dos conceitos e princípios básicos de cada área de conhecimento, dos pré-requisitos necessários A formação de estruturas cognitivas complexas, bem como sugere o estado permanente de alerta a professores e alunos sobre a qualidade da ação educativa. A utilização adequada dessas medidas poderia ser um excelente recurso metodológicona prática pedagógica atual dos professores. Poder-se-ia, então, defuiir a avaliação como um processo contínuo, representado pelo seguinte esquema: A avaliação consiste num estado de alerta permanente do professor e do aluno que, interagindo, b u cam detectar dificuldades nos momentos significativosda aprendizagem. + Os resultados obtidos nas tarefas avaliativas são interpretados pelo professor e aluno no sentido de redirecionas a ação educativa no seu sentido amplo. + I Momentos significativosda aprendizagem si0 estabelecidos a partir da definiçáo da seqüência e graduação dos objetivos correspondentes i área de conhecimento que está sendo desenvolvida. Tarefas avaliativas são planejadas internacionalmente (medidas referenciadas a critério) para acompanhar o progresso dos alunos nas etapas significativasdo processo de aprendizagem. I Seguindo esse processo de continuidade ter-se-ia retomado a avaliação em seus princípios básicos, de reflexão sobre a ação, calcada num “saber fazer”, impregnada de tecnologia e de não-improvisação. Daí resultaria como conseqüência o caráter de não-antagonismo entre educador e educando a medida em que ambos Wiam a interagir no sentido de aprimorar a ação educativa no seu significado mais amplo. 60 BIBLIOGRAFIA CPONBACH, L. e Associados (1980).Towardrefomi ofpmgam evaluation. San Francisco. Jossey-Bass. GADOITI, M. (1984).Educaçáo ephder: introdução i pedagogia do conflito. São Paulo, Cortez. GARCIA, W.E. (1977).Educação:visão teórica e prática pedagógica. São Paulo,McGrawHill do Brasil. MARTINS, J. (1984). Avaliação: seus meios e fins. Educação E Avaliação. São Paulo, 1:84-95. VIANNA, H.M. (1980).A perspectiva das medidas referenciadas a critério.Educação e Seleção. 25-14, 61