OS CONHECIMENTOS ESPECIALIZADOS SOBRE OS

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OS
CONHECIMENTOS
ESPECIALIZADOS
SOBRE
OS
PROBLEMAS
DE
APRENDIZAGEM NOS MANUAIS DE PSICOLOGIA EDUCACIONAL (1925-1969)
Profa. Dra. Ana Laura Godinho Lima
Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo
[email protected]
palavras-chave: psicologia educacional; dificuldades de aprendizagem; manuais de ensino.
Introdução
Este trabalho efetua uma análise dos discursos especializados da psicologia educacional sobre
os problemas de aprendizagem na primeira metade do século XX, período de estruturação do
sistema público de ensino baseado nas escolas seriadas; de difusão dos princípios da Escola
Nova no Brasil e de valorização da psicologia como disciplina central na formação dos
professores. A análise incide sobre manuais de psicologia educacional destinados à formação
docente publicados entre 1925 e 1969 e recorre aos escritos de Foucault e Maingueneau sobre
as formações discursivas.
No decorrer do século XIX e primeiras décadas do século XX ocorreu o processo
internacional de difusão da escola de massas, ou seja, a implantação progressiva dos sistemas
de ensino público e obrigatório que pretendiam alcançar toda a população. No Brasil, esse foi
o momento de organização da escola republicana, cujas instituições emblemáticas foram as
escolas normais para formar professores e os grupos escolares. Organizados para permitir o
ensino simultâneo, os grupos escolares impuseram como condição de funcionamento a
homogeneização das classes, por meio da divisão dos alunos em grupos da mesma idade e
com o mesmo nível de conhecimentos. Consequentemente, tornaram necessária a realização
rotineira de procedimentos de avaliação das capacidades individuais.
Conforme Jorge Nagle, nos últimos anos do Império houve um amplo debate envolvendo
intelectuais e políticos acerca da importância da educação para o progresso social. Apesar das
diferentes posições em disputa, concordava-se que a República, a democracia e a educação
eram elementos imprescindíveis para o avanço do país. Em seguida esse interesse arrefeceu e
as iniciativas no campo educacional consistiram em eventos isolados nos primeiros anos do
regime republicano. Um pouco mais tarde, a partir de 1915, observou-se um movimento em
defesa da educação primária, conduzido ao nível dos estados, que representou uma retomada
parcial dos princípios defendidos anteriormente. Acreditava-se que a educação, ao permitir
transformar o homem e a sociedade, era recurso capaz de solucionar todos os problemas
sociais e econômicos enfrentados no país. Segundo Nagle, os anos que se seguiram
consistiram num período de “entusiasmo pela educação”, no qual foram levadas a efeito
diversas reformas educacionais em estados brasileiros, as quais permitiram ampliar a
população escolarizada. Estiveram à frente dessas reformas educadores proeminentes: Anísio
Teixeira (Bahia); Lourenço Filho (Pernambuco e São Paulo), Francisco Campos (Minas
Gerais) e Fernando de Azevedo (Distrito Federal). Ainda na década de 1920 a educação
tornou-se matéria de especialistas, surgiram os profissionais especialmente dedicados ao
ensino escolar, anteriormente pensado e conduzido por homens públicos e intelectuais de
outras áreas. Nesse período observou-se o aumento das publicações que tratavam de questões
educacionais, favorecendo a ampliação do conhecimento especializado na área. Para Nagle
(1977), essas condições fizeram com que o “entusiasmo pela educação” do início dos anos
vinte se transformasse em uma outra atitude em relação às questões do ensino, designada pelo
autor como “otimismo pedagógico”, observado em fins da década de 1920 e início dos anos
trinta. Além de ampliar o alcance da educação primária, buscou-se, a partir de então,
empreender a renovação da escola e dos seus métodos, mediante a apropriação dos novos
princípios pedagógicos que se difundiam na Europa e dos Estados Unidos no âmbito do
movimento da Escola Nova. De acordo com Lourenço Filho, esse movimento relaciona-se
diretamente à ampliação do acesso à escola e à constatação de que nem todos os alunos se
mostravam em condições de aproveitar o ensino:
Crescendo em número e capacidade de matrícula, difundindo-se pelas
cidades e os campos, a escola passava a admitir clientela da mais variada
procedência, condições de saúde, diversidade de tendências e aspirações. Os
procedimentos didáticos, que logravam êxito com certo número de crianças,
já de igual modo não serviam a outras. Seria natural que, ao didatismo
corrente, sucedesse certa curiosidade na indagação das causas ou razões
dessas diferenças. Do interesse em regular as atividades dos mestres, ou do
ato unilateral de ensinar, impondo noções feitas, passou-se a procurar
entender os discípulos no ato de aprender, em circunstâncias a isso
favoráveis ou desfavoráveis segundo condições de desenvolvimento
(Lourenço Filho, s.d., p. p. 19).
A Escola Nova defendia uma “revolução copernicana” na educação, ao postular que a criança,
e não mais o professor, deveria tornar-se o centro da atividade escolar. Em vez de lugar da
transmissão às crianças da cultura elaborada pelas gerações precedentes, entedia-se que era
preciso transformar a escola em espaço de acolhimento das motivações infantis, onde se
proporcionasse aos alunos oportunidades de observar, agir e experimentar livremente. As
atividades e os interesses do aluno passavam a comandar o aprendizado e não mais o ensino
de conteúdos definidos pelos adultos e a autoridade do professor. Valorizavam-se ainda as
atividades cooperativas, visando-se à formação de indivíduos responsáveis e autônomos,
capazes de governar a si próprios em uma sociedade democrática.
À medida que se tornava o centro da pedagogia renovada, a criança passou a ser objeto
privilegiado de estudos científicos, em especial da psicologia, que foi alçada à condição de
disciplina fundamental na formação dos educadores. Criando a demanda por saberes
especializados sobre a psicologia da criança, a pedagogia contribuiu para o desenvolvimento
dessa disciplina. Como bem observa a psicóloga Mitsuko Antunes, “A conquista da
autonomia pela Psicologia no Brasil teve na Educação um dos mais importantes substratos
para sua realização” (2007, p. 63).
Paralelamente à implantação da escola primária republicana, criaram-se em diferentes estados
brasileiros diversos laboratórios de psicologia experimental para o estudo dos alunos. Em
1906 foi criado o Laboratório de Psicologia Experimental do Pedagogium, no Rio de Janeiro,
planejado por Alfred Binet, o prestigiado inventor dos testes de Q.I. na França e por Manoel
Bomfim, que se tornou o diretor do laboratório (Antunes, op. cit.) No ano de 1914 criou-se o
primeiro Gabinete de Antropologia Pedagógica e Psicologia Experimental do Estado de São
Paulo, que foi instalado na Escola Normal da Capital (Tavares, 1995, p. 166). O Instituto de
Psicologia de Pernambuco foi fundado em 1925 por iniciativa de Ulysses Pernambucano,
diretor da Escola Normal Oficial de Pernambuco. Pernambucano é considerado o precursor
brasileiro da educação das crianças deficientes mentais, tendo criado a “Escola para
Anormais”, anexa ao curso de aplicação da Escola Normal, entre outras instituições para a
educação de crianças “deficientes”. Deve-se destacar ainda o trabalho empreendido por
Helena Antipoff, psicóloga russa que foi discípula de Claparède no Laboratório de Psicologia
da Universidade de Genebra, posteriormente se estabeleceu no Brasil e instituiu um
Laboratório de Psicologia em Minas Gerais, com o objetivo de subsidiar as ações daquele
estado no campo educacional. Conforme Regina Campos e outros, “Helena Antipoff buscava
comprometer suas alunas na construção da pedagogia científica, visando prepará-las para
conhecer as crianças através das novas teorias e métodos desenvolvidos pela psicologia”
(Campos et al., 2002, p. 24). Essa psicóloga também se dedicou à educação das crianças
“deficientes” e fundou a Sociedade Pestalozzi de Belo Horizonte em 1932, destinada a
“promover o cuidado das crianças excepcionais e assessorar as professoras de classes
especiais dos grupos escolares” (Antipoff, 1937 apud Campos et al., 2002, p. 24). Nesse
período, a psicologia dedicada à educação empenhava-se principalmente no estudo da criança
“deficiente”, supostamente incapaz de aproveitar o ensino regular e na investigação das
diferenças individuais entre os alunos. Deve-se notar ainda que os estudos da psicologia sobre
as questões educacionais se fez nesse período em estreita associação com as atividades
desenvolvidas nas escolas normais.
A produção das Escolas Normais consistiu, provavelmente, numa das mais
importantes contribuições para o estabelecimento da psicologia cientifica no
Brasil, quer no âmbito teórico, quer no âmbito da aplicação prática de seus
conhecimentos. Sua importância reside também no fato de muitos dos
primeiros profissionais da psicologia terem iniciado sua formação nessas
escolas e terem sido elas incentivadoras da publicação das primeiras obras
específicas de psicologia no país” (Antunes, 2007, p.75).
Cabe considerar ainda que muitos especialistas em psicologia tornaram-se professores nas
escolas normais e vários deles dedicaram-se à escrita de manuais de psicologia para subsidiar
esse ensino. Nesta análise, a opção por privilegiar os manuais de psicologia educacional
destinados à formação dos professores em vez das obras dos grandes psicologistas e
educadores sobre as dificuldades de aprendizagem justifica-se em função do objetivo de
compreender como se procurou transmitir aos professores em formação as ideias dos grandes
pensadores e de que modo se procurou, a partir das teorias, formular explicações sobre os
problemas de aprendizagem, bem como recomendações aos professores sobre como agir com
os alunos que apresentassem dificuldades para aprender. Em função de seus propósitos
didáticos, os manuais propunham-se a intermediar a relação entre as teorias psicológicas e os
futuros professores, oferecendo-lhes uma leitura interessada em buscar na teoria elementos
que permitissem orientar a prática docente. Sendo assim, oferecem subsídios para a
compreensão de uma modalidade discursiva específica, aquela que pretende criar “pontes”
entre a teoria e a prática. Por isso mesmo, entende-se que os manuais constituem fontes
privilegiadas para a apreensão das relações entre os conhecimentos especializados da
psicologia e as orientações oferecidas aos professores sobre os modos de entender e lidar com
os alunos que não conseguiam aprender. (Silva, 2005).
Análise dos discursos dos manuais de psicologia educacional sobre os problemas de
aprendizagem:
A análise dos discursos dos manuais de psicologia educacional sobre os problemas de
aprendizagem que está sendo proposta baseia-se nos escritos de Michel Foucault e Dominique
Maingueneau sobre a análise do discurso. Recorrendo a Foucault, Maingueneau define o
discurso como “uma dispersão de textos, cujo modo de inscrição histórica permite definir
como um espaço de regularidades enunciativas” (2008, p. 15). Propõe uma modalidade de
análise que escapa à alternativa entre a semiótica textual e a hermenêutica histórica, um
tratamento que possibilite preservar simultaneamente a dimensão linguística e histórica do
discurso. Importa considerar tanto aspectos relativos à forma em que são dados a ler os
discursos como as condições históricas que explicam a recorrência de certos enunciados,
enquanto outros, ainda que formalmente possíveis, permanecem ausentes, aquém do limiar de
formulação.
Maingueneau defende ainda a superação da dicotomia entre análise profunda – que privilegia
a elaboração de um modelo subjacente a formulações diversas – e a análise superficial do
texto, atenta às especificidades dos discursos manifestos e avessa à tentativa de identificar um
modelo profundo como base para enunciados distintos. O autor entende que é possível
escapar a essa dicotomia desde que se considere o discurso como a relação que se estabelece
entre um conjunto de regras enunciativas (formação discursiva), e o conjunto dos enunciados
efetivamente formulados de acordo com essas regras (superfície discursiva) (2008, p. 18-20).
A modalidade de análise do discurso proposta pelo autor apoia-se em um conjunto de
hipóteses, tais como a de que o interdiscurso precede o discurso, o que exige considerar não
apenas um discurso isolado, mas um conjunto de discursos inter-relacionados, o que contribui
para que se identifique o “sistema de restrições globais” que incide sobre o conjunto. Outra
hipótese importante é a de que o discurso deve ser compreendido não apenas como um
conjunto de textos, mas como prática discursiva, a qual não se limita necessariamente a
produção de textos escritos, podendo criar enunciados pictóricos, musicais etc. O autor
entende ainda que a análise não precisa nem deve estabelecer uma dissociação entre práticas
discursivas e outras práticas, pelo contrário, a possibilidade de perceber correspondências
entre essas práticas e outras, sem que se perca a especificidade de cada conjunto, permite o
aprofundamento de sua compreensão histórica.
As considerações anteriores têm implicações importantes para esta análise, dentre as quais
sobressai a exigência de se examinar diversos manuais de psicologia educacional em
conjunto, para que se possa caracterizar o interdiscurso no âmbito do qual cada livro pode ser
compreendido. Segundo Maingueneau, “a análise do discurso supõe a colocação conjunta de
vários textos, dado que a organização do texto tomado isoladamente não pode remeter senão a
si mesmo (estrutura fechada) ou à língua (estrutura infinita)” (2008, p. 21). É a análise de um
conjunto de textos que permite identificar as diferenças entre os livros, mas também as suas
regularidades, incluindo a recorrência de enunciados e ainda os “silêncios eloquentes”, que
sinalizam as restrições que se impõem a esses discursos.
Este texto apresenta os primeiros resultados da pesquisa que está sendo desenvolvida, a partir
da análise dos seguintes manuais: Compêndio de psicologia aplicada (1925), de Henrique
Geenen; Manual de psicologia educacional (1955), de Guerino Casassanta; Noções de
psicologia educacional (1957), de João de Sousa Ferraz; Psicologia educacional – 1ª. parte:
psicologia genética ou da criança e Psicologia educacional – 2ª. e 3ª partes: psicologia da
aprendizagem. psicologia diferencial, ambos de Afro do Amaral Fontoura (1968). Os autores
referidos eram integrantes ilustres do magistério, lecionavam em escolas normais ou
universidades. Seus manuais procuravam sistematizar o conteúdo de suas próprias leituras dos
autores estrangeiros de modo a favorecer a transmissão dos conhecimentos assim adquiridos
aos futuros professores, alunas e alunos das Escolas Normais, institutos de educação e
faculdades onde os autores lecionavam.
É possível observar uma estrutura comum aos diferentes manuais, embora haja variações na
forma de organizar o conteúdo. Tipicamente, identifica-se um capítulo inicial dedicado a uma
apresentação da psicologia. Nos manuais mais recentes, publicados a partir da década de
1950, observa-se nesses capítulos considerações sobre a psicologia educacional como uma
subdivisão da psicologia. Os capítulos seguintes são dedicados ao exame de aspectos
específicos da psicologia da criança: inteligência, motivação, percepção, linguagem, caráter
etc. O capítulo final é geralmente dedicado ao estudo da personalidade, definida como síntese
dos elementos analisados anteriormente. O tema das dificuldades de aprendizagem não é
objeto de um capítulo específico nos manuais examinados, mas encontra-se disperso nas
páginas dos compêndios, o que exigiu a busca de temas relacionados às dificuldades de
aprendizagem em outras partes da matéria. As considerações apresentadas a seguir foram
feitas a partir da leitura de capítulos referentes à inteligência; às crianças “anormais”,
“retardadas” ou “problema” e de capítulos que falam de problemas que podem afetar o
aproveitamento escolar do aluno, tais como a fadiga, a preguiça, o sentimento de
inferioridade. Nem todos os manuais tratam de todos os tópicos mencionados, o que dificulta
a realização de comparações entre as maneiras encontradas pelos diferentes autores para tratar
cada um dos temas abordados. Sendo assim, optou-se neste texto por apresentar
separadamente o modo como cada um dos autores se refere às dificuldades de aprendizagem,
em ordem cronológica. Nas considerações finais, busca-se chamar atenção para os aspectos
recorrentes, tendo em vista oferecer uma caracterização preliminar desse primeiro conjunto de
textos da psicologia educacional sobre o tema no período considerado.
O Compêndio de psicologia aplicada (1925) foi escrito por Henrique Geenen, doutor em
filosofia e professor dessa disciplina no Instituto de Sciencias e Letras de São Paulo. O
capítulo examinado nesse livro intitula-se “A personalidade anormal”. O autor apresentava
três categorias de “anormais”, descrevia suas características mais marcantes e indicava suas
condições de educabilidade. Os idiotas eram os mais comprometidos de todos e nos casos
mais graves, mostravam-se incapazes de andar, de falar e impermeáveis a qualquer tipo de
educação. Os imbecis eram refratários à vida social, não manifestavam respeito à propriedade
nem solidariedade e tinham humor instável. Sua educação podia ser tentada a partir dos dois
anos de idade e deveria investir principalmente no objetivo de despertar a atenção. O terceiro
grupo era o dos indivíduos que apresentavam atraso intelectual. Esses eram facilmente
identificáveis nas escolas.
Os educadores encontram, frequentemente nas escolas, meninos cuja
deficiência mental não é tal que se possa classificá-los entre os imbecis e
contudo a simples convivência, um pouco de espírito de observação, sem
mesmo ser necessário o emprego dos testes de Binet-Simon ou outros, os faz
diferenciar dos meninos normais da mesma idade, são os atrasados, ou
atardados, como também se diz” (Geenen, 1925, p. 237-238).
Segundo o autor, a vida intelectual desses indivíduos apresentava as seguintes características:
“atenção fraca e volúvel; memória preguiçosa; reflexão trabalhosa; juízo incerto, ausência de
iniciativa intelectual, incapacidade de compreender raciocínios complicados, embora, às vezes
se mostrassem bons calculadores”. Deixados à própria sorte, tornavam-se vagabundos ou
ladrões. Para educá-los adequadamente era preciso criar escolas separadas, especiais, pois nas
escolas regulares prejudicavam seus colegas normais e eram também prejudicados, na medida
em que não eram capazes de aproveitar o ensino convencional (Geenen, 1925, p. 238). Esse
especialista defendia a criação de uma escola para atrasados em São Paulo e informava que,
embora em diversos países do mundo estivessem sendo criadas escolas especiais, no Brasil
havia apenas uma, no Hospital de Alienados.
Três décadas depois da publicação do compêndio de Geenen, foi publicada a segunda edição
do Manual de psicologia educacional (1955), de Guerino Casassanta, professor da cadeira de
Psicologia Educacional na Escola Normal Modelo de Belo Horizonte (Assunção, 2008).
Dessa obra, examinaram-se os seguintes capítulos: Capítulo XX: O sentimento de
inferioridade; Capítulo XXVIII: A atenção; Capítulo XXIX: A distração, a fadiga, a preguiça;
Capítulo XLIII: A inteligência e Capítulo XLIV: Os testes de inteligência.
O sentimento de inferioridade era apresentado como um efeito possível das dificuldades
encontradas pelas crianças em vencer os obstáculos que a vida lhes apresentava. As causas
relacionadas ao problema eram “influências desfavoráveis do meio; inferioridade real;
anomalias corporais e exigências escolares acima de suas forças” (Casassanta, 1955, p. 135136). Para evitar o aparecimento do problema, o autor recomendava que os professores
adequassem suas expectativas às possibilidades de cada criança; que procurassem identificar
alguma aptidão em todas as crianças, por menor que fosse; que jamais rebaixassem uma
criança, apontando suas dificuldades e, ainda, que proporcionassem amor às crianças vítimas
do sentimento de inferioridade. Dizia: “O amor é o antídoto específico do sentimento de
inferioridade” e ainda “O amor é o alfa e o ômega da educação” (Casassanta, 1955, p. 136).
Na parte relativa à atenção encontra-se um tópico intitulado “O problema pedagógico da
atenção”, em que o autor afirmava que a criança apresentava, por sua própria constituição,
dificuldade em manter a atenção e isso era ainda agravado pelas distrações proporcionadas
pelos pais e educadores, dentre as quais o cinema e as revistas em quadrinhos. Casassanta
advertia ainda para a tendência da escola a procurar facilitar excessivamente o ensino, o que,
no seu entender, impedia o fortalecimento da atenção.
A escola, procurando, num excesso pedagógico imperdoável, remover todos
os obstáculos; a escola, transformando o ambiente escolar em águas de rosas
e num superficialismo irritante, tem concorrido brilhantemente para que o
curso primário não só não atinja as suas finalidades, como as crianças
permaneçam, no fim do currículo, mais infantis ainda (Casassanta, 1955, p.
215).
Por outro lado, no capítulo seguinte, ao tratar dos problemas da distração, da fadiga e da
preguiça, o autor apontava, como causas que provocavam a fadiga, os seguintes fatores
associados ao funcionamento escolar: exercícios físicos prolongados; má apresentação das
matérias e o seu grau de dificuldade; horários dilatados e constantes mudanças de matéria;
dificuldade excessiva das tarefas para casa (op. cit., p. 218). Além dos fatores propriamente
escolares, mencionava as causas orgânicas da fadiga, as quais deveriam ser tratadas pelo
médico. Nos capítulos dedicados à inteligência e aos testes de inteligência, apresentavam-se o
conceito e a definição de inteligência, seguidos da visão de diversos psicólogos sobre o tema
– John Dewey, Alfred Binet, Anibal Ponce, Claparède e Mira y Lopez – e ainda referências às
aptidões específicas, que remetiam às diferenças individuais. O autor referia-se à utilidade dos
testes de inteligência e apresentava exemplos de diversos testes existentes, assim como seus
objetivos e modos de aplicação, mas fazia a seguinte crítica ao modo como os testes de
inteligência vinham sendo empregados no Brasil.
A crítica que se fez, no Brasil, com relação aos testes, teve seu fundamento
porquanto professores mal avisados não fizeram deles o uso conveniente.
Por agora, a crítica que se poderá articular será a falta de um serviço
organizado, com finalidades precisas, com propósitos altamente sociais.
Além da homogeneização das classes, poucos serviços têm os testes
prestado, não compensando as despesas que acarretam. (Casassanta, 1955,
p. 306).
Noções de psicologia educacional (1957) foi redigido pelo jornalista, professor e psicólogo
João de Sousa Ferraz, que atuou principalmente em Limeira, no interior do estado de São
Paulo. Em seu manual, o tema das dificuldades de aprendizagem comparece nos seguintes
capítulos: Capítulo VII: Desenvolvimento do comportamento inteligente. Princípios de
adaptação da educação aos vários níveis do comportamento inteligente. A mensuração da
inteligência na escola. Alunos normais, retardados e brilhantes e Capítulo XX: Personalidade
do Escolar. De acordo com Ferraz, os alunos distribuíam-se em sala de aula de acordo com a
seguinte regra:
Numa classe comum, de 40 crianças, haverá um quarto de escolares que se
situam abaixo do quartil médio numa distribuição estatística; metade dentro
da normalidade; e um quarto de crianças que superam as demais. Das 10
crianças consideradas de nível mental inferior, que podem ser consideradas
deficientes ou retardadas, apenas uma ou duas serão realmente incapazes de
aprender as matérias de escola, ou denunciarão rudeza de inteligência. As
outras se distanciarão ora mais ora menos do padrão considerado médio.
(Ferraz, 1957, p. 95).
Quanto às causas das dificuldades, o autor considerava que essas podiam ser atribuídas à
problemas de saúde, preguiça ou “deficiência de inteligência”. Ponderava, contudo, que essas
dificuldades às vezes eram decorrência de experiências difíceis vividas pelo aluno, tais como
a mudança de país, mudança do meio rural para o meio urbano ou a troca de escola.
Acrescentava ainda que às vezes uma criança normal manifestava “períodos de deficiência”
que podiam ser superados a partir de medidas corretivas. Dizia: “Há alunos, por exemplo,
caudatários de classe que, repetindo o ano, tornam-se bons alunos no ano seguinte” (Ferraz,
1957, p. 96). Ferraz considerava ainda a possibilidade de a escola ter um papel no
desajustamento de parte dos alunos, em função de suas próprias exigências, as quais
contrastavam com a vida mais livre que as crianças costumavam viver fora da escola.
Entendia que, na maior parte dos casos, os castigos aplicados pelos professores para controlar
os alunos eram contraproducentes. Mesmo assim, as infrações infantis, em vez de serem
consideradas como formas legítimas de resistência às imposições da escola, eram percebidas
pelo psicólogo como sintomas de problemas afetivos do aluno.
Condutas reprováveis, no lar ou na escola, como por exemplo, a
desobediência, a indisciplina, as respostas em revide a censuras, o furto, as
agressões físicas, as palavras consideradas insultuosas ou imorais, o
descuido nas tarefas escolares, a preguiça no estudo, as fugas, atos
atentatórios à moral etc., que constituem preocupações para os educadores,
aparecem com regular frequência em alunos de inteligência normal, porém
de emocionabilidade desgovernada ou mal conduzida (Ferraz, 1957, p. 5657).
Afro do Amaral Fontoura, professor da Universidade Católica do Rio de Janeiro é o autor de
Psicologia Educacional, obra dividida em dois volumes e três partes. O primeiro volume
contém a primeira parte, que trata da psicologia da criança; o segundo volume inclui as partes
2 e 3, dedicadas à psicologia da aprendizagem e à psicologia diferencial. Do primeiro volume,
examinou-se o oitavo capítulo, intitulado “A criança problema”, no qual se apresentam o
conceito de criança problema, a distinção entre criança problema e criança anormal, as causas
dos desajustamentos infantis, os tipos de criança-problema, a terapêutica indicada para essas
crianças. O conteúdo do capítulo sobre a criança-problema baseia-se principalmente no livro
de Arthur Ramos sobre o tema, sugerido como leitura complementar no final do capítulo. Do
segundo volume, examinaram-se os capítulos: VIII: Diferenças individuais; X: Inteligência e
XI: A medida da inteligência. As considerações a seguir baseiam-se na análise dos dois
volumes, uma vez que algumas questões, tais como as relativas às crianças consideradas
“anormais” aparecem em ambos.
De acordo com as concepções de Arthur Ramos, Afro do Amaral Fontoura indicava que as
crianças com problemas de aprendizagem e comportamento deveriam ser divididas em dois
grupos, o das anormais ou excepcionais e das que eram desajustadas ou “problemas”. No
primeiro caso, a criança era portadora de alguma anomalia física, mental ou moral. No
capítulo referente à medida da inteligência, apresentava-se uma classificação dos indivíduos
conforme seu nível de inteligência em nove categorias, organizadas de ordem crescente:
idiotas, imbecis, cretinos, débeis mentais, retardados, normais, superiores e gênios ou quase
gênios. Segundo o autor, as crianças oligofrênicas, categoria que compreendia os cretinos,
imbecis e idiotas deveriam ser impedidas de frequentar a escola regular:
Oligofrênicos na escola: Muitas vezes os pais matriculam filhos imbecis na
escola e... os professores aceitam. Resultado: o menino ficará 4 ou 5 anos na
1ª. série, sem aprender a ler, causando grande confusão e ocupando o lugar
de 4 ou 5 outros, até o pai desistir. Crianças imbecis precisam de educação
especial não podendo ser aceitos em escolas comuns! Para eles é que
existem as “escolas de excepcionais”, do tipo do Instituto Pestalozzi, do Rio,
São Paulo, Belo Horizonte etc. (Fontoura, 1969, p. 331, destaques do autor).
Fontoura entendia que a inteligência era estável ao longo da vida e acreditava que os testes de
Q.I. permitiam identificar o nível de inteligência dos indivíduos, de modo a prever sua
capacidade para a aprendizagem escolar e o seu futuro desempenho profissional. Para esse
autor, era preciso direcionar cada aluno para uma profissão condizente com o seu nível
intelectual, medido pelos testes de Q.I. Desse modo, na parte do capítulo dedicada às
aplicações pedagógicas da medida da inteligência, indicava a possibilidade de dividir os
alunos em classes homogêneas, separando os mais capazes dos menos capazes e, além disso,
de diminuir as cobranças e expectativas dos professores em relação aos últimos.
No capítulo dedicado ao estudo das diferenças individuais, o autor afirmava que, embora as
meninas se destacassem nos estudos, isso não era efeito de sua inteligência superior, mas da
sua maior acomodação e precocidade em relação aos meninos. Explicava ainda que não havia
diferença quantitativa entre as inteligências feminina e masculina, mas sim diferença
qualitativa, sendo que as mulheres apresentavam uma inteligência mais prática, enquanto os
homens apresentavam superioridade na inteligência abstrata. Fontoura tratava ainda da
polêmica acerca da superioridade da raça branca em relação às raças preta, amarela e
vermelha. Mencionava as teorias que supunham que as diferenças observáveis no
desenvolvimento intelectual de brancos e pretos deviam-se exclusivamente às desigualdades
do meio, mas ao mesmo tempo as questionava, dizendo: “Ora, é possível responder a esta
teoria dizendo que se os amarelos, vermelhos e negros até hoje não conseguiram estabelecer
uma civilização igual à dos brancos é justamente porque são mentalmente inferiores...”
(Fontoura, 1969, p. 309). Contudo, logo em seguida voltava a admitir a importância de se
levar em conta os fatores ambientais, fazendo as seguintes observações relativas às diferenças
de desempenho entre brancos e negros no Brasil:
No Brasil, a maioria absoluta dos negros tem um nível mental muito abaixo
do dos brancos. Embora não haja testes realizados nesse sentido, nossa
experiência diária o reconhece claramente. No entanto, é preciso levar em
linha de conta que o nosso negro, que até 50 anos atrás ainda era escravo,
talvez não tenha ainda tido tempo e oportunidade para firmar suas qualidades
mentais. (Fontoura, 1969, p. 309)
Na criança-problema, os distúrbios da conduta não estavam associados a nenhuma anomalia,
mas deviam-se a um desajustamento cuja origem poderia ser a vida familiar; a saúde física ou
a alimentação; a saúde mental ou a vida social. Fontoura acreditava que por volta de 90% dos
casos de desajustamentos eram atribuíveis à vida familiar. Uma vez que não era apresentada
anomalia constitucional, entendia-se que a criança-problema era um caso para a escola, onde
se acreditava que poderia ser recuperada com a ajuda de um professor dedicado. Vinte e dois
comportamentos típicos nos alunos-problemas são listados pelo autor, dentre os quais
turbulência; agressividade e cólera; indolência; apatia; falta de interesse pelos estudos;
incapacidade para aprender; antipatia pela escola, pelos colegas; desordens sexuais;
nervosismo e instabilidade. As causas associadas a esses comportamentos problemáticos
também eram numerosas. Apenas no campo dos desajustamentos originados na vida familiar,
podia-se associá-los a seis fatores distintos, segundo o psicólogo norte-americano Jordan,
citado por Fontoura – brigas frequentes entre os pais; ausência de afeto da mãe e do pai pela
criança; pais separados; insegurança da criança nos casos de pobreza dos pais; percepção da
criança de que as condições de seus pais eram inferiores a de seus parentes ou vizinhos;
incapacidade da criança de atingir as expectativas dos pais a seu respeito (Fontoura, 1969, p.
165).
Seguindo a orientação presente no livro de Arthur Ramos, Fontoura atribuía a maior parte dos
desajustamentos infantis a problemas afetivos. Dividia as crianças-problema em dois tipos
fundamentais. No primeiro caso tratava-se da criança mimada, geralmente filho único, ou
filho de pai rico, ou a criança mais bonita ou inteligente da prole. As crianças mimadas davam
trabalho na escola porque não aceitavam ser contrariadas e tinham dificuldades em acatar as
regras estabelecidas pelos professores. No segundo caso, tratava-se da criança escorraçada,
um caso muito mais grave, geralmente associado às seguintes condições de existência: órfão,
enteado, filho ilegítimo, filho adotivo, criança feia, criança maltratada, abandonada ou pouco
inteligente. Tais crianças tendiam a tornar-se agressivas com os colegas e destrutivas com os
materiais escolares, ou então tornavam-se apáticas, indiferentes.
Para Fontoura, a “terapêutica da criança-problema” iniciava-se a partir da pesquisa das
causas. Na medida em que o comportamento indesejável era percebido como efeito de um
desajustamento do qual a criança era vítima, o castigo era visto como inútil e prejudicial. A
solução do problema estava em remover suas causas. Para o especialista não havia regras
infalíveis para o tratamento dessas crianças, a não ser a do amor do mestre pela criança. Ainda
assim, o autor apresentava algumas sugestões consideradas úteis: procurar oferecer
compensação na escola para as carências experimentadas pelo aluno no lar; mantê-lo sempre
ocupado, identificar e alimentar seus interesses oferecendo atividades específicas;
proporcionar recreação dirigida e inseri-lo em grupos de atividades bem orientadas. Em todo
caso, tratava-se apenas de indicações, que poderiam ser variadas, dependendo do caso
específico que se tinha em vista. Os dois princípios fundamentais a seguir eram apenas dois: a
investigação das causas e o amor do mestre pela criança.
Considerações finais:
Os autores dos manuais de psicologia educacional aqui considerados entendiam que uma das
questões centrais a ser enfrentada na escola era a heterogeneidade dos alunos. Constatavam
que as crianças apresentavam diferenças individuais de inteligência e de interesses. Eram
ainda afetadas por condições de vida desiguais, especialmente em seu meio familiar, as quais
também interferiam em suas possibilidades de aprender. Acreditavam que a escola errava ao
impor o mesmo currículo e as mesmas exigências a crianças que apresentavam possibilidades
desiguais de aprender. Para superar esse problema, propunham que o ensino fosse ajustado às
necessidades dos alunos, considerados individualmente.
Nos textos dos manuais, essa convicção de que as práticas escolares deveriam ser adaptadas
às condições dos alunos traduziu-se em recomendações para que não se aceitassem as crianças
consideradas anormais nas escolas comuns e para que os alunos fossem submetidos a testes de
inteligência, cujos resultados serviriam para orientar os professores sobre o nível de exigência
adequado para cada aluno em particular e também para permitir a divisão das turmas em
classes homogêneas quanto ao nível intelectual. Desnecessário observar que as medidas da
inteligência, caso fossem empregadas como recomendavam os autores, funcionariam como
verdadeiras profecias auto realizadoras, ao estabelecer de antemão o limite das conquistas
escolares possíveis para cada criança.
A premissa de que a escola deveria atender às necessidades individuais dos alunos traduziu-se
ainda em conselhos para que os professores procurassem compreender os alunos refratários às
regras impostas pela escola, evitando castigá-los e buscando, pelo contrário, investigar as
causas de suas condutas inadequadas, procurando-as em primeiro lugar na família, percebida
quase sempre como desajustada. Identificadas as causas, tratava-se de procurar resolvê-las,
quando fosse possível, ou então compensá-las na escola, por meio de um atendimento
amoroso e compreensivo proporcionado à criança problema.
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