Mecanismos da Adicção “A adicção é uma doença que envolve mais do que o uso de drogas. Alguns de nós acreditam que a nossa doença já estava presente muito antes de termos usado pela primeira vez.” Essa frase extraída do Capítulo Um do Texto Básico de Narcóticos Anônimos deixa claro que o uso de drogas, embora seja o comportamento que cause maior visibilidade para um adicto, é somente a “ponta do iceberg”. A adicção é uma doença que se instala através de mecanismos de defesa psíquica bastante complexos, freqüentemente associados a comportamentos anti-sociais e extremamente prejudiciais para o indivíduo e para a sociedade que o cerca; contudo esses prejuízos, embora evidentes, são sistematicamente ignorados pelo adicto para proteger seu uso de drogas. É nesse ponto que a sociedade confronta o modo de vida do dependente químico e oferece a ele a opção de recuperar-se ou ser excluído. Os grupos sociais vão gradativamente isolando o indivíduo, e ele vai perdendo trabalho, escola, casamentos, família e em alguns casos a liberdade. Quanto maiores são esses prejuízos, chamados “fundos de poço”, mais material o Terapeuta possui para realizar seu trabalho, que não será fácil, pois os mecanismos que mantém a doença ativa são os mesmos que mantiveram o indivíduo vivo até então. Então vamos investigar como isso funciona: São quatro os mecanismos básicos da adicção: 1. NEGAÇÃO “Não tenho doença alguma” / “Não é tão grave assim.” / “Não sou como os outros, eu paro quando eu quiser.” 2. MANIPULAÇÃO “Eu prometo que hoje foi a última vez, só preciso de dinheiro para voltar lá e pagar minha dívida” / “Hoje eu vou tomar só uma dose, querida, fique tranqüila.” / “Pode confiar em mim, deixe o dinheiro das compras comigo e vá trabalhar que eu cuido disso. Afinal prometi semana passada que não usaria mais. Vamos, confie em mim!” 3. RACIONALIZAÇÃO “Onde eu moro tem três bocas de fumo, não há como não usar!” / “E afinal de contas, todo cara da minha idade fuma maconha.” / “Não tem como ir a uma festa sem beber, a sociedade exige isso de você!” 4. PROJEÇÃO “Só bebo porque minha mulher me enche o saco!” / “Se você tivesse o chefe que eu tenho, também beberia.” / “Mas eu não tive pai, ele me largou. A culpa é dele por eu estar usando drogas.” Quebrar a resistência do paciente significa confrontar esses mecanismos, retirando deles a roupagem de credibilidade e sensação de segurança que trazem para seu paciente, além motivar o indivíduo a buscar caminhos alternativos ao seu estilo de vida atual e condizentes com a saúde. É preciso entender antes a maneira como o indivíduo se liga a seus objetos. Poderemos dissecar os mecanismos que a adicção apresenta para manter-se ativa e resistir às investidas do Terapeuta: NEGAÇÃO: A própria adicção é conhecida como “doença da negação. O Texto Básico de Narcóticos Anônimos cita a negação no capítulo um, a saber: “Alguns de nós usavam e abusavam das drogas, e mesmo assim não se consideravam adictos. Apesar de tudo, continuavam dizendo: “Eu consigo controlar”“. A negação é a primeira resposta ao questionamento que a família, amigos, sociedade, ou o próprio terapeuta fazem ao indivíduo sobre seu problema com drogas. É comum que o paciente tente manter, total ou parcialmente, seu estilo de vida, no qual ele encontrou conforto e proteção em um primeiro momento. O Conselheiro precisa estar preparado para enfrentar, além da negação propriamente dita (“não tenho problemas com drogas e não quero parar de usar droga nenhuma”), as características outras pelas quais a negação se apresenta. Como dissemos, a Negação tenta na verdade proteger um estilo de vida no qual o paciente sente-se confortável e tem medo de abrir mão. Ela protege velhos hábitos adquiridos que tornaram a vida possível. É a falta de Aceitação que resulta do medo da vida sem drogas. A Negação é combatida com a Aceitação. Aceitar não significa concordar, significa OUVIR atentamente o que o outro tem a dizer. A aceitação começa pela escuta do Conselheiro, pela sua compreensão dos motivos do paciente, pela sua fala que é acolhedora (lembre que o paciente possivelmente já ouviu “discursos moralizadores” da maioria das pessoas, em especial daquelas que ama. O Terapeuta não precisa ser mais um, mas que também é assertiva. A assertividade do Terapeuta visa a Rendição. Rendição: Durante uma guerra, quando o soldado se rende, ele decide que não deve mais lutar. É diferente de submissão, quando o indivíduo sente-se subjugado por uma força maior e espera a primeira oportunidade para tomar o controle. No caso do nosso paciente, a Rendição é fundamental para que ele não “lute” mais, achando-se capaz de usar drogas “só mais uma vez.” É pressuposto para que ele evite a primeira dose e aceite sua impotência. Estará, assim pronto para seu Primeiro Passo. Admissão: A admissão é a rendição posta em prática. O Primeiro Passo começa com “Admitimos que éramos impotentes perante...”. A primeira admissão é de que o objeto da impotência é real. Quando, nos 12 Passos de Narcóticos Anônimos, fala-se em impotência perante a adicção, é preciso que se admita ser adicto, ter uma doença progressiva, incurável e fatal. O sujeito rendido aceita a doença, procura não lutar com a realidade, mas ao contrário fazer dessa realidade um caminho de vida melhor que o atual. MANIPULAÇÃO: “Éramos obrigados a sobreviver como podíamos. Manipulamos pessoas e tentamos controlar tudo à nossa volta. Mentimos, roubamos, trapaceamos e nos vendemos. Tínhamos que conseguir as drogas, não importava o preço. O fracasso e o medo começaram a invadir as nossas vidas.” Um importante aspecto da adicção é a incapacidade que o indivíduo tem de lidar com a vida como ela é. Para o adicto, o mundo parece hostil e assustador. Manipular pessoas a fim de preservar velhos hábitos é uma forma de o comportamento adoecido sobreviver. A manipulação busca sempre uma “saída fácil”, um caminho que seja indolor e que ao mesmo tempo preserve o uso de drogas. Há tanta necessidade de criar uma fantasia convincente que preserve o uso de drogas que muitas vezes o indivíduo crê em suas “invencionices” e as transformam em dogmas, obtendo muitas vezes sucesso em convencer familiares, amigos e até profissionais de saúde a respeito de seus conceitos. Dificilmente, contudo, a manipulação passará impune frente a um grupo terapêutico com um Terapeuta experimentado. É importante, ao perceber o manipulador, o Terapeuta alertar seu paciente para a chamada Armadilha do “Se”: 1. “E se for só dessa vez...” 2. “E se eu usar menos cocaína...” 3. “E se eu só usar nos fins de semana...” Outra característica que exige atenção do Terapeuta e é freqüente no Manipulador é a Negociação. É importante que a família esteja avisada que todo e qualquer tratamento baseado em negociação resulta em FRACASSO COMPLETO. Conhecido como “Sua Majestade, O BEBÊ”, o dependente químico espera ter todas as suas vontades atendidas ao primeiro sinal de “choro”, como se todos ao seu redor não passassem de um “grande seio” disponível para satisfazê-lo. Quebrar essa expectativa ajuda a promover juízo de realidade. O Terapeuta trabalha o desenvolvimento do conceito de HONESTIDADE com o dependente químico; e isso de modo muito mais amplo do que simplesmente “não mentir e não roubar”. É a honestidade consigo mesmo, a descoberta ou redescoberta de seus valores humanos através do aprendizado da ASSERTIVIDADE, que em linhas gerais pode ser definida como a arte de “dizer sim quando quer dizer sim e dizer não quando quer dizer não”. RACIONALIZAÇÃO: “Sentíamos orgulho do comportamento, às vezes ilegal e quase sempre bizarro, que era típico do nosso uso. “Esquecíamos” os momentos em que ficávamos sozinhos, consumindo-nos em medo e autopiedade. Caímos num padrão de pensamento seletivo. Só lembrávamos as boas experiências com drogas. Justificávamos e racionalizávamos as coisas que fazíamos para não adoecer ou enlouquecer. Ignorávamos os momentos em que a vida parecia um pesadelo. Evitávamos a realidade da nossa adicção.” A racionalização é fruto de uma profunda necessidade de não ver o que está aparente, que é a impossibilidade de manter o uso de drogas como estilo de vida funcional. Está presente na totalidade dos adictos que chegam para tratamento e permite que o indivíduo justifique comportamentos totalmente anti-sociais para proteger o uso de drogas. É pela racionalização que o indivíduo comete atos que muitas vezes são comparáveis aos cometidos pelos portadores de transtorno da personalidade sociopática, de cunho perverso. É um dos mais atuantes mecanismos de proteção da doença, e sobre ele o tratamento concentra-se fortemente. O adicto racionaliza o tempo todo ancorado em sua incapacidade de estimar afetivamente as coisas, pessoas ou situações. Diz-se, portanto, que os sentimentos no adicto estão embotados e sua capacidade de identificar e expressar sentimentos está prejudicada. É fato que o paciente que vem do uso de drogas simplesmente não consegue expressar como se sente ao ser questionado. O treinamento para que o paciente reencontre-se com seus próprios sentimentos dá-se principalmente das seguintes maneiras: GRUPO DE SENTIMENTOS (GS): Grupo terapêutico onde cada indivíduo coloca o sentimento predominante naquele momento e fala de si, procurando buscar explorar o sentimento em questão e as situações ou situação que o levam a sentirse daquela determinada maneira. DIÁRIO DE SENTIMENTOS (DS): Exercício diário e solitário onde o indivíduo inventaria seu dia, procurando não só narrar os fatos, mas especialmente registrar os sentimentos ligados a cada momento ou ocorrência. É possível ler seu DS em grupo ou discutir individualmente com o Terapeuta. GRUPO DE TAREFAS (GT): As tarefas são exercícios baseados nos princípios contidos nos 12 passos. Em muitas delas (e isso acontece não só, mas especialmente logo no Primeiro Passo) o paciente é convidado a descrever minuciosamente suas experiências no uso de drogas, a confrontá-las com sentimentos que o levaram a usar drogas e a identificar seus sentimentos no momento em que está escrevendo a tarefa. É um exercício que leva muitas vezes a momentos de intensa catarse não só do paciente, mas do grupo como um todo. PROJEÇÃO: “Estávamos constantemente em busca da resposta – aquela pessoa, aquele lugar, aquela coisa que iria resolver tudo. Faltava-nos a capacidade para lidar com o dia-a-dia.” Tudo que um dependente químico não que é olhar para si mesmo. Se o fizer, perceberá algo que não gosta e que precisa ser modificado. Essa modificação gerará um esforço que resultará em um início de recuperação, e o uso de drogas é insustentável. Fica mais simples então, dentro de um sistema adoecido, que o indivíduo projete no outro a questão que ele não dá conta de olhar em si mesmo, e com isso sabota o projeto de abstinência. São duas as formas mais comuns de projeção: Culpar o outro pelo uso: Sempre ter uma “desculpa” para usar droga com base em uma situação externa (falecimento de familiar, relação conjugal disfuncional, dificuldades de relacionamento com superiores hierárquicos,...) Expectativa nas atitudes do outro: Vincular a abstinência a uma mudança de comportamento ou atitude do outro (só vai ao AA se a esposa for junto), espera o reconhecimento da família e o retorno imediato da confiança, espera que “o mundo todo” entre em recuperação. É trabalho para o Terapeuta ajudar seu paciente a perceber que a recuperação dele é responsabilidade dele; e que se ele se modificar é até possível ver o mundo mudar, mas o movimento precisa partir do paciente e não dos demais. Observe que o tempo todo que esses mecanismos da adicção buscam estabelecer ALIANÇAS, que são apoios, autorizações ou mesmo validações para seu comportamento adictivo. Há uma necessidade comum de o dependente químico impor ao mundo a sua verdade e por essa imposição obter aceitação para seu modo de vida. Muitas vezes, durante o tratamento, especialmente em grupo, o Terapeuta precisa ficar atento com alianças adoecidas que os pacientes podem fazer entre si, aprovando, autorizando e protegendo mutuamente comportamentos inadequados e incompatíveis com a recuperação. Como o TERAPEUTA Atuará?